MEDIAÇÃO IMOBILIÁRIA
CUMPRIMENTO DO CONTRATO
FACTURA COMERCIAL
Sumário

Sumário:
I – A não indicação, nas conclusões, dos concretos pontos da decisão sobre a matéria de facto impugnados, determina a rejeição do recurso no tocante à impugnação da matéria de facto.

II – Várias razões existem para que o credor anule a emissão de uma fatura, sendo uma delas, o não pagamento do respetivo valor por parte do devedor, evitando assim que o credor fique obrigado a pagar ao Estado o valor devido a título de imposto sem ter recebido o pagamento daquele valor.

III - Assim, para se eximir ao pagamento daquele valor, não basta ao réu demonstrar a anulação da fatura, mas também, por se tratar de um facto extintivo da sua obrigação, que essa anulação se deveu ao facto de a autora considerar que o réu já não é devedor desse valor.

Texto Integral

Proc. n.º 527/23.6T8SSB.E1

Acordam na 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora


I - RELATÓRIO


AA instaurou a presente ação declarativa, sob a forma de processo comum, contra Propriedade Convergente, Unipessoal Lda., pedindo a condenação da ré no pagamento da quantia de € 25.536,47, acrescida dos juros de mora civis, calculados à taxa legal em vigor, desde 17.08.2023 até efetivo e integral pagamento.


Alegou, em síntese, ter acordado com a ré a partilha do valor de comissão por serviços de mediação imobiliária referentes à venda de duas moradias situadas em ..., no montante de € 20.430,00, acrescido de IVA. A autora emitiu e entregou à ré a correspondente fatura, que esta não pagou.


A ré contestou, negando a existência de um acordo com os contornos assinalados pela autora, concluindo pela sua absolvição do pedido. Deduziu ainda pedido de condenação da autora por litigância de má-fé, em multa e indemnização a fixar segundo o prudente critério do Tribunal.


A autora respondeu, negando que esteja a litigar de má-fé, contrapondo ser a ré que o faz, pedindo por isso a sua condenação “no pagamento de uma multa não inferior a € 5.000.00 à autora”.


Dispensada a realização de audiência prévia, foi proferido despacho saneador tabelar e, admitidos os meios de prova, seguiram os autos para julgamento.


Realizada a audiência de julgamento, foi proferida sentença com o seguinte dispositivo:


«Tudo visto e ponderado, julga-se a presente ação procedente, por provada, e em conformidade, condena-se a Ré “PROPRIEDADE CONVERGENTE, UNIPESSOAL LDA.” a pagar à Autora AA, a quantia de € 25.536,47 (vinte e cinco mil, quinhentos e trinta e seis euros e quarenta e sete cêntimos), acrescido de juros de mora vencidos e vincendos à taxa legal supletiva em vigor, contabilizados desde da citação da Ré até efetivo e integral pagamento.


Não se condena nenhuma das partes em litigância de má-fé.


Custas da ação a cargo da Ré.


Custas pelo incidente de litigância de má-fé a cargo de ambas as partes, no valor de 1 Uc a cada.»


Inconformada, a ré apelou do assim decidido, finalizando a respetiva alegação com a formulação das conclusões que se transcrevem:


«1- Existem factos incorrectamente julgados, uma vez que da análise da prova gravada e transcrito o depoimento das testemunhas permitiria decidir de forma diversa.


2- Das duas versões apresentadas, não foi produzida prova que permita concluir pela bondade da versão da A. em detrimento da da R.


3- A matéria de facto é impugnada e impugnável uma vez que:


- A A. arroga-se o direito a reclamar um crédito, relativamente ao qual reconheceu em audiência de discussão e julgamento que parte desse crédito não lhe pertence, pertencendo à Testemunha BB e, portanto, demanda o pagamento de um valor , para o qual não tem legitimidade de o fazer.


- Ou seja, considerando-se válida e verdadeira a versão da A., confirmada pela testemunha BB, a credora, é a testemunha!


- A A. peticiona um crédito para quem não é parte no processo, não estando claro na prova testemunhal qual é afinal o montante do crédito a que ela se arroga, porque conforme afirmou parte é dela, parte é da testemunha BB e não sabemos qual a parte a que corresponde a cada uma , aliás segundo a versão da R. nenhum valor é devido .


- A verdade é que antes da propositura da presente Ação, a A. anulou as faturas e está confessado e está participado à Autoridade Tributária.


- Ou seja, a A. emitiu fatura, relativamente a uma globalidade de um alegado crédito sobre a R, sendo que segundo a sua própria versão, parte desse crédito não é seu.


-No entanto, ainda que se considere verdadeira a sua versão, à data da propositura da ação essa obrigação ter-se-ia extinguido por via da anulação desse pedido dessa reclamação de pagamento.»


A autora contra-alegou, defendendo a rejeição do recurso por falta de conclusões e, em todo o caso, a improcedência do recurso com a consequente manutenção da sentença recorrida.


Corridos os vistos, cumpre apreciar e decidir.


II – ÂMBITO DO RECURSO


Sendo o objeto do recurso delimitado pelas conclusões das alegações da recorrente, sem prejuízo do que seja de conhecimento oficioso (arts. 608º, nº 2, 635º, nº 4 e 639º, nº 1, do CPC), são as seguintes as questões a decidir:


- admissibilidade do recurso;


- impugnação da matéria de facto;


- inexistência na esfera jurídica da autora do crédito por si reclamado nestes autos.


III – FUNDAMENTAÇÃO FÁCTICO-JURÍDICA


A 1ª instância considerou provados os seguintes factos1:


1) A Autora é Mediadora Imobiliária, titular da Licença AMI n.º 18987.


2) A Ré é uma sociedade comercial por quotas que tem como objeto, entre outros, a promoção, angariação e mediação imobiliária.


3) Em data não propriamente apurada, BB contactou a Autora no sentido de esta a auxiliar na procura de duas moradias para aquisição por parte de CC.


4) Nessa sequência, a Autora contactou DD, legal representante da Ré, a dar conta de ter um interessado na compra de duas moradias angariadas pela Ré, correspondentes à fração autónoma designadas pelas letras “A” e “B” do prédio urbano constituído em propriedade horizontal sito em ..., concelho de ..., descrito na Conservatória do Registo Predial do ... sob o n.º 5791 – ...) e inscrito na respetiva matriz predial sob o artigo 71951.


5) Nessa sequência, Autora a Ré acordaram partilhar o montante da comissão, comprometendo-se a Ré a entregar à Autora 50% do valor da comissão que receberia pela venda das duas moradias, acrescido de Iva.


6) Mais se comprometeu a Ré a entregar adicionalmente à Autora o montante de €5.000,00 por cada uma das moradias.


7) O montante referido em 6) seria posteriormente entregue pela Autora a BB.


8) Em outubro de 2022 ocorreu uma primeira visita aos imóveis, em que esteve presente, do lado dos compradores, a Autora, BB e CC, e do lado dos vendedores DD e EE.


9) Em 20.03.2023, por documento particular autenticado, CC comprou as moradias descritas em 4), pelo preço unitário de €415.000,00 cada.


10) Em decorrência do negócio descrito em 9), a Ré recebeu dos vendedores, a título de comissão, o montante total de €36.830,04, acrescido de IVA, no valor final de €45.300,95


11) Por conta do acordo descrito em 5) e 6), em 21.03.2023 a Autora emitiu e entregou à Ré uma fatura-recibo no montante de €20.430,00, acrescido de IVA, no valor final de €25.128,90.


12) Em 27.04.2023 e por não ter recebido o valor cobrado, a Autora procedeu junto da Autoridade Tributária e Aduaneira a anulação da fatura descrita em 9).


E considerou não provada a seguinte factualidade:


a) Ficou acordado que o serviço prestado pela A. seria pago pela R. após a emissão da respetiva fatura-recibo, no valor de € 20.430,00, acrescido de IVA à taxa legal em vigor, o que totaliza o valor global de € 25.128,90.


b) Na visita aos imóveis, a Autora apresentou-se como a pessoa que em Portugal tratava dos assuntos dos interessados, porquanto os mesmos alegadamente eram jogadores de futebol estrangeiros.


Da admissibilidade do recurso


Na resposta ao recurso, defende a autora/recorrida a não admissibilidade da apelação por alegada falta de conclusões, mas não tem razão.


Com efeito, tais conclusões existem e são as que foram acima transcritas. Coisa diversa é a de saber se estamos perante conclusões deficientes ou se as mesmas satisfazem ou não, designadamente no plano da impugnação da matéria de facto, os ónus a que alude o art. 640º do CPC, o que será apreciado infra.


Conclui-se, pois, inexistir motivo para indeferir o requerimento de interposição do recurso com o fundamento aduzido pela autora/recorrida.


Da impugnação da matéria de facto


Dispõe o art. 640º, nº1, CPC:


“Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:


“a) - Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;


“b) - Os concretos meios probatórios constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida.”


c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de factos impugnadas”.


Os concretos pontos de facto impugnados devem ser feitos nas respetivas conclusões, porque delimitadoras do âmbito do recurso e constituírem o fundamento da alteração da decisão. Já quanto à especificação dos meios probatórios, a lei não impõe que seja feita nas conclusões, podendo sê-lo no corpo da motivação, e o mesmo sucede quanto à exigência da decisão alternativa, conforme fixação de jurisprudência, através do AUJ nº 12/2023, de 17.10.2023, publicado no DR 1ª Série de 14.11.2023.


In casu, como resulta evidente das conclusões, a ré/recorrente não indica quais os concretos pontos da matéria de facto impugnados, o que também não faz no corpo das alegações. De igual modo, logicamente, não diz a recorrente qual a decisão que no seu entender deveria ser proferida, pois não indicou os pontos da matéria de facto impugnados, o que, por si só, é fundamento suficiente para jeitar o recurso no tocante à impugnação da matéria de facto.


Ademais, o que resulta do corpo alegatório é uma alegação vaga e genérica sobre a decisão de facto proferida pelo tribunal a quo, limitando-se a recorrente, no essencial, ao longo de dezenas de páginas, a transcrever acriticamente declarações de parte e depoimentos testemunhais produzidos em julgamento.


Em suma, a inobservância, por parte da recorrente, dos aludidos ónus determina a imediata rejeição do recurso no tocante à impugnação da matéria de facto, pelo que nenhuma alteração será feita à decisão sobre tal matéria proferida pela 1ª instância.


Da (in)existência do crédito reclamado pela autora


Permanecendo incólume a decisão do tribunal a quo quanto à matéria de facto dada como provada e não provada, nenhuma censura há a fazer à decisão recorrida, onde se fez uma correta subsunção dos factos ao direito, concluindo-se pela total procedência da ação.


Com efeito, resulta da factualidade provada que a ré no exercício da sua atividade de mediadora imobiliária, angariou duas moradias para venda, representando, naturalmente, os respetivos vendedores, Mais se provou que a autora, também ela mediadora imobiliária, representava um interessado comprador, tendo por isso contactado a ré no sentido de lhe dar a conhecer o seu cliente como potencial comprador das referidas moradias, sendo neste contexto que autora e ré celebraram um acordo verbal, nos termos do qual a ré se comprometeu a pagar à autora 50% da comissão que iria receber pela venda dos imóveis ao comprador apresentado por aquela (mais IVA), acrescido da quantia de € 5.000,00 por cada moradia, no valor de € 10.000,00, o qual seria posteriormente entregue pela autora a BB2.


Lê-se na sentença recorrida: «(…), pese embora a situação dos autos gire em torno de um contrato de mediação imobiliária, que encontra regulação na Lei n.º 15/2013 de 8 de fevereiro, atenta à factualidade dada como provada é indiscutível que o acordo estabelecido entre a Autora e Ré não é um contrato de mediação imobiliária pois nada tem a ver com as relações que cada uma delas estabelece por força desse acordo com os referidos clientes ou interessados.


Trata-se sim, de um contrato celebrado ao abrigo do princípio da liberdade contratual consagrado no artigo 405.º do Código Civil, satélite ao contrato de mediação imobiliária, mas que está sujeito às regras gerais do Código Civil, vigorando desde logo, a liberdade de forma (cf. artigo 219.º do Código Civil)».


Como refere Enzo Roppo3, cada um «é absolutamente livre de comprometer-se ou não, mas, uma vez que se comprometa, fica ligado de modo irrevogável à palavra dada: pacta sunt servanda», sendo certo que, é «nesta estrutura de confiança que se intercala o laço social instituído pelos contratos e pelos pactos de todos os tipos que conferem uma estrutura jurídica à troca das palavras dadas», e que, o «facto de os pactos deverem ser observados é um princípio que constitui uma regra de reconhecimento que ultrapassa o face a face da promessa de pessoa a pessoa»4.


A ré desrespeitou a regra, incumprindo assim a sua obrigação de pagar à autora o valor com ela acordado, violando - deste modo - a confiança que nela depositou a autora, estando por isso obrigada a pagar à autora a quantia peticionada nos autos, acrescida de juros à taxa supletiva de juros moratórios relativamente a créditos de que são titulares empresas comerciais, desde a data da citação até efetivo e integral pagamento, como bem se decidiu na sentença.


A tal não obsta, ao invés do que defende a recorrente, o facto de, em 27.04.2023, por não ter recebido o valor cobrado, a autora ter procedido junto da Autoridade Tributária e Aduaneira à anulação da fatura referida no ponto 9 dos factos provados.


A este respeito escreveu-se com total acerto na sentença recorrida:


«(…), inúmeras razões existem para que o credor anule a emissão de uma fatura, sendo uma delas, o não pagamento do respetivo valor por parte do devedor, evitando assim que o credor fique obrigado a pagar ao Estado o valor devido a título de imposto sem ter recebido o respetivo pagamento do preço.


Assim, não bastaria demonstrar que a respetiva fatura foi anulada pela Autora, teria ainda que demonstrar a Ré, por se tratar de um facto extintivo da sua obrigação, cf. artigo 342.º, n.º 2 do Código Civil, que a sua anulação se deveu porque a Autora entendeu que o valor já não era devido.


No caso em apreço resultou demonstrado precisamente o oposto, isto é, que a anulação da fatura se deveu ao seu não pagamento por banda a Ré e não por motivos de extinção ou desistência de cobrança dos serviços prestados».


Por conseguinte, o recurso improcede.


Vencida no recurso, suportará a ré/recorrente as respetivas custas – art. 527º, nºs 1 e 2, do CPC.


IV – DECISÃO


Pelo exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar improcedente a apelação, confirmando a sentença recorrida.


Custas pela recorrente.


*


Évora, 8 de maio de 2025


Manuel Bargado (Relator)


Sónia Moura


Ana Pessoa


(documento com assinaturas eletrónicas)

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1. Mantém-se a redação e numeração constante da sentença.↩︎

2. Pessoa que contactou a autora no sentido desta a auxiliar na procura de duas moradias para aquisição por parte de CC [ponto 3 dos factos provados].↩︎

3. O Contrato, Almedina, 1989, p. 34.↩︎

4. Paul Ricoeur, O Justo ou a Essência da Justiça, Instituto Piaget, 1997, p. 32.↩︎