EMBARGOS DE TERCEIRO
INDEFERIMENTO LIMINAR
CONVITE AO APERFEIÇOAMENTO
CONTRADITÓRIO
Sumário

Sumário:
I. Se a parte demandada (embargada) não tiver sido identificada na petição inicial de embargos de terceiro, mas o tiver sido no formulário previsto na Portaria n.º 280/2013, de 26-08, na redação dada pela Portaria n.º 267/2018, de 20-09, atento o disposto no seu artigo 7.º, n.º 2 e 3, prevalece o conteúdo do formulário sobre o conteúdo dos seus anexos, sem prejuízo da parte requerer ou o juiz oficiosamente determinar a correção da informação.
II. Donde, a petição inicial, não tendo sido rejeitada pela secretaria, deve se objeto de convite ao aperfeiçoamento e não de indeferimento liminar.
III. O despacho liminar proferido em sede de embargos de terceiro, não impõe a enunciação de factos provados e não provados, nem constitui uma decisão-surpresa a justificar a precedência do prévio cumprimento do princípio do contraditório.

Texto Integral

Processo n.º 392/04.2TBLGS-F.E1 (Apelação)

Tribunal recorrido: TJ Comarca de Faro, Juízo de Execução de Silves – J2

Apelante: AA

Apelados: Arrow Global Limited, S.A. e outros




Acordam na 1.ª Secção do Tribunal da Relação de Évora

I – RELATÓRIO

Por Apenso ao processo de execução sumária que corre termos no Juízo de Execução de Silves, sob o n.º 392/04.2TBLGS, em que são Exequentes ARROW GLOBAL LIMITED, S.A. e Executados BB e BESSETERRE LIMITED, veio AA, ao abrigo dos artigos 342.º e 350.º do Código de Processo Civil (CPC) deduzir embargos de terceiro com função preventiva pedindo, a final, que a execução seja sustada ao abrigo do artigo 347.º do CPC.


Para o efeito alegou, em suma, que «é possuidor e é titular do direito potestativo de aquisição, por acessão industrial imobiliária, da propriedade dos prédios» urbanos que identifica no artigo 5.º, alíneas a) a d) da p.i. de embargos, por ter construído o 1.º andar das edificações existentes e arranjado o r/ch, tendo ali realizado investimentos de €450,000,00 e de €550.000,00, sendo que antes os imóveis tinham o valor de €49.790,21.


Mais alega que intentou ação declarativa contra a BESSETERRE LIMITED a invocar a usucapião e que há cerca de 30 anos que foi paga a hipoteca existente sobre a casa.


Ademais, tomou conhecimento da penhora e venda agendada dos prédios ao abrigo dos presentes autos e como terceiro de boa-fé, ao abrigo do artigo 291.º do Código Civil (CC), também reivindica o direito de retenção sobre os imóveis, atento o investimento realizado.


Por decisão proferida em 02-09-2024, ao abrigo dos artigos 5.º, 186.º, n.º 1 e 2, alínea a) e 345.º e 552.º, n.º 1, alínea a), do CPC, foram os embargos de terceiro rejeitados liminarmente.


Inconformado, apelou o Embargante defendendo a revogação da decisão recorrida, apresentando para o efeito as seguintes CONCLUSÕES:


«1. O Embargante, ora Recorrente deduziu os presentes embargos de terceiro.


2. Por sentença datada de 02-09-2024 o tribunal “a quo” indeferiu liminarmente os presentes embargos.


3. O embargante, ora recorrente não se conforma com a sentença recorrida que indeferiu liminarmente, por ineptidão da petição inicial.


4. A sentença recorrida viola assim o disposto no artigo 552.º, n.º 1, alínea a) do CPC.


5. Não se verificando nenhuma das causas da ineptidão da sentença.


6. A sentença recorrida ao declarar ineptidão a petição inicial violou o disposto no artigo 186.º e 552.º, n.º 1, alínea a) do Código de Processo Civil.


7. A sentença recorrida viola ainda o princípio da cooperação disposto no artigo 7.º e o artigo 590.º, n.º 4 ambos do Código de Processo Civil, uma vez que o tribunal “a quo” ao abrigo daquilo que é o princípio da cooperação não convidou a parte a suprir as deficiências e/ou imprecisões da petição inicial.


8. Devendo ser concedido provimento ao presente recurso, revogando-se a decisão recorrida, concedendo-se prazo para o ora Embargante aperfeiçoar a sua petição inicial, seguindo os autos os seus termos ulteriores.


9. Devendo ser concedido provimento ao presente recurso, revogando-se a decisão recorrida, seguindo os autos os seus termos ulteriores.


10. Sem prescindir, o tribunal “a quo” proferiu a sentença recorrida sem que tivesse sido produzida alguma prova, realizada audiência prévia ou proferido despacho saneador.


11. Em violação do vertido no artigo 345.º do Código de Processo Civil que consagra


que na fase introdutória dos embargos são realizadas todas as diligências probatórias necessárias e bem assim o disposto nos artigos 590.º e seguintes do Código de Processo Civil.


12. A decisão recorrida viola ainda o disposto no artigo 3.º n.º 3 do Código de Processo Civil e de modo geral, o princípio do contraditório, constituindo uma decisão surpresa que é atentatória do princípio do processo justo e equitativo, garantido no n.º 4 do citado art.º 20.º, da Constituição da República Portuguesa e o dever de motivação da matéria de facto, dado que a complexidade da mesma impunha que o tribunal “ a quo” ouvisse e produzisse a prova testemunhal indicada.


13. A sentença recorrida é nula, nos termos do 615.º, n.º 1, alínea b) do Código de Processo Civil na medida em que o tribunal “ a quo” não deveria ter proferido a sentença sem realizar audiência de discussão e julgamento e sem produzir a prova testemunhal indicada.


14. Veja-se a este propósito o vertido no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, processo n.º 1386/13.2TBALQ.L1-7, datado de 05-05-2015, disponível em www.dgsi.pt.


15. Motivos pelos quais deverá a sentença recorrida ser revogada por violação do disposto nos artigos 3.º, 345.º, 590.º e seguintes todos do Código de Processo Civil, da nossa jurisprudência dominante dos princípios do processo justo e equitativo, garantidos no n.º 4 do citado artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa.


16. O embargante, ora recorrente não se conforma com a sentença recorrida porquanto o tribunal “a quo” cometeu erro de julgamento sobre a matéria de facto, pois os elementos de prova apresentados com os embargos impunham decisão diversa.


17. Sendo a sentença totalmente omissa quanto aos factos dados como provados e como não provados.


18. Desconhecendo-se em absoluto e sendo a sentença recorrida totalmente omissa quanto ao critério da selecção da matéria de facto dada como provada e como não provada.


19. O tribunal “a quo” não atendeu correctamente aos elementos de prova juntos aos autos.


20. Termos em que e por violação do disposto nos artigos 342º, 343º, 345º, 347º e 348º, nº 1 do Código de Processo Civil deverá a sentença recorrida ser revogada e consequentemente deverá ser proferida outra que julgue os presentes embargos totalmente procedentes por provados.


21. E bem assim por a sentença recorrida se encontrar ferida de nulidade nos termos do disposto no artigo 615.º do Código de Processo Civil.»


Na resposta ao recurso, a Embargada ARROW GLOBAL LIMITED defendeu a confirmação do decidido.


II- FUNDAMENTAÇÃO

A. Objeto do Recurso


Considerando as conclusões das alegações, as quais delimitam o objeto do recurso, sem prejuízo das questões que sejam de conhecimento oficioso e daquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras (artigos 635.º, n.ºs 3 e 4, 639.º, n.º 1 e 608.º, n.º 2, do CPC), não estando o tribunal obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes para sustentar os seus pontos de vista, sendo o julgador livre na interpretação e aplicação do direito (artigo 5.º, n.º 3, do CPC), no caso, impõe-se apreciar:


1.ª Questão: Se a decisão recorrida ao decretar a ineptidão da p.i. violou os artigos 186.º e 522.º, n.º 1, alínea a), do CPC.


2.ª Questão: Se a decisão recorrida é nula por violação do artigo 615.º, n.º 1, alíneas b), c) e d), do CPC.


B- De Facto


Os factos e ocorrências processuais relevantes para o conhecimento do recurso constam do antecedente Relatório.

C. Do Conhecimento das questões suscitadas no recurso


1.ª Questão: Se a decisão recorrida ao decretar a ineptidão da p.i. violou os artigos 186.º e 522.º, n.º 1, alínea a), do CPC


1. Lê-se na decisão recorrida: «No presente caso, os embargos de terceiro foram deduzidos sem que fosse indicado quem são os requeridos.


Ora, a petição é inepta, pois não indica quais são as partes – artigo 552.º, n.º1, al. a), do Código de Processo Civil.»


O Apelante insurge-se contra este segmento da decisão recorrida alegando que o tribunal a quo violou as normas que cita, aduzindo no corpo da motivação que no «formulário do sistema citius foram identificadas todas as partes, o que deveria ter sido valorado pelo tribunal “a quo” e não o foi».


No mais, invoca que a falta de indicação das partes não constitui nulidade da p.i. por tal circunstância não se encontrar mencionada no artigo 186.º, n.º 2, do CPC e que, quanto muito, deveria ter sido proferido convite ao seu aperfeiçoamento, atento o princípio da cooperação previsto nos artigos 7.º e 590.º, n.º 4, do CPC.


2. Vejamos, então, se assiste razão ao Recorrente.


Analisada a p.i., verifica-se que o Embargante não identifica contra quem deduz os embargos de terceiro.


O que viola o disposto nos artigos 3.º, n.º 1 e 2, 342.º, n.º 1, 350.º, n.º 1, e 552.º, n.º 1, alínea a), do CPC.


Efetivamente, toda a pretensão formulada em juízo tem de ser deduzida contra alguém que assume no processo o estatuto jurídico de parte passiva, sem que tal seja excluído em relação à tutela que o Embargante pretende com a dedução dos presentes embargos de terceiros, os quais devem ser deduzidos, em termos de litisconsórcio necessário passivo, contra «as partes primitivas» da ação (autor/exequente e réu/executado), como resulta do artigo 348.º, n.º 1, do CPC, ao ordenar que no despacho que receba os embargos é determinado que as partes primitivas são notificadas para contestar.


Por outro lado, e como decorre do artigo 558.º, n.º 1, alínea b), se a p.i. omitir a identificação das partes, deve ser rejeitada pela secretaria, ato este sujeito à reclamação para o juiz do processo (artigo 559.º do CPC), e caso seja mantido o não recebimento, assiste à parte do direito de interpor recurso dessa decisão para o Tribunal da Relação (artigos 559.º, n.º 2, 629.º, n.º 3, alínea c), do CPC), ou, caso se verifiquem os pressupostos do artigo 560.º do CPC, apresentar nova petição.


Importa, ainda, ter em conta o disposto no artigo 144.º do CPC, n.º 10, alíneas a) e b), do CPC, que remetem para o disposto na Portaria n.º 280/2013, de 26-08, e alterações subsequentes1, que regula a tramitação eletrónica dos processos judiciais, mormente o seu artigo 7.º, n.ºs 1, 2 e 3 e 5, que estipulam:


«1 - Quando existam campos no formulário para a inserção de informação específica, essa informação deve ser indicada no campo respetivo, não podendo ser apresentada unicamente nos ficheiros anexos.


2 - Em caso de desconformidade entre o conteúdo dos formulários e o conteúdo dos ficheiros anexos, prevalece a informação constante dos formulários, ainda que estes não se encontrem preenchidos.


3 - O disposto no número anterior não prejudica a possibilidade de a mesma ser corrigida, a requerimento da parte, sem prejuízo de a questão poder ser suscitada oficiosamente.

(…)
5 - Existindo um formulário específico para a finalidade ou peça processual que se pretende apresentar, deve o mesmo ser usado obrigatoriamente pelo mandatário.»

Tendo em conta este enquadramento jurídico, constata-se que a p.i. não identifica os demandados (embargados), mas os mesmos encontram-se identificado no formulário como sendo Arrow Global Limited, BB e Besseterre Limted, ou seja, a Exequente e os Executados.


Verifica-se, igualmente, que a secretaria não rejeitou a p.i. pelo que não foi seguida a tramitação prevista no artigos 558.º e 559.º do CPC.


Apresentada a p.i. ao escrutínio do juiz, deve este analisar e decidir em sede liminar se a p.i. está em condições formais de ser recebida, uma vez que a lei prevê a prolação deste tipo de despacho em relação aos embargos de terceiro, como decorre do artigo 345.º do CPC.


Se a p.i. não identificar os demandados, padecendo o formulário de igual omissão, não existindo uma parte passiva, a p.i. deve ser rejeitada liminarmente, por violação dos artigos 3.º, n.º 1 e 2, 342.º, n.º 1, 350.º, n.º 1, e 552.º, n.º 1, alínea a), do CPC. Não se afigura ser uma situação de mero convite ao aperfeiçoamento da p.i., reservado para as situações previstas no artigo 590.º, n.º 2, alíneas a) a c), do CPC. Basta pensar nas consequências do não acatamento do convite ao aperfeiçoamento para se perceber a desadequação do aperfeiçoamento a essa situação.


Todavia, no caso em análise, não existe omissão de identificação dos demandados no formulário previsto na Portaria n.º 280/2013, de 26-08.


Na atual redação do artigo 7.º, n.º 2 e 3, deste diploma, extrai-se a consagração de uma regra de prevalência do conteúdo do formulário sobre o conteúdo dos seus anexos, ao mencionar que prevalece a informação contida no formulário, ainda que os campos não se encontrem preenchidos, sem prejuízo da parte requerer a correção da informação, conferindo a lei também ao juiz o poder de oficiosamente suscitar a necessidade de correção.


Na análise de várias situações tratadas na jurisprudência em relação a desconformidades entre o formulário e os anexos, e no âmbito do artigo 7.º da referida Portaria n.º 280/2013, de 26-08, com a alteração introduzida pela Portaria n.º 267/2018, de 20-09, verifica-se que o referido princípio da prevalência do que consta do formulário, sem prejuízo da sua correção, tem prevalecido sobre erros, omissões ou discrepância do anexo.2


Na situação que nos ocupa, o formulário não contém qualquer erro ou omissão na identificação dos demandados e, portanto, deve prevalecer sobre a omissão da identificação dos mesmos na p.i..


E sendo assim, o que se impunha, em face da não rejeição da p.i. pela secretaria, era o convite à correção da p.i. e não o indeferimento liminar pela razão acolhida pelo tribunal a quo.


Nestes termos, a decisão recorrida em relação ao indeferimento liminar com base na ineptidão da p.i. não pode ser sufragada nesta sede, impondo-se a sua revogação, procedendo este segmento do recurso.


Desse modo, a apreciação das arguidas nulidades da decisão recorrida resultava prejudicada, por aplicação do regime do artigo 608.º, n.º 2, do CPC.


Sucede, todavia, que o indeferimento liminar não se baseou apenas na ineptidão da p.i., mas também na extemporaneidade da dedução dos presentes embargos de terceiro, questão que o Apelante não impugna no recurso.


Assim sendo, existindo outro fundamento para o indeferimento liminar que se não foi impugnado e, por isso, não pode ser apreciado por o objeto do recurso não o abranger, cabe apreciar as arguidas nulidades do despacho recorrido.


2.ª Questão: Se a decisão recorrida é nula por violação do artigo 615.º, n.º 1, alíneas b), c) e d), do CPC.


1. O Apelante arguiu a nulidade da decisão recorrida, reconduzindo a violação ao preceito supra citado, com vários argumentos que passamos a analisar.


Começa por alegar que a decisão recorrida é nula por violação do artigo 615.º, n.º 1, alínea b), do CPC, por ter sido proferida sem que tivesse sido realizada alguma prova; sem ter sido realização de audiência prévia ou proferido despacho saneador, o que constituí uma decisão surpresa violadora do princípio do contraditório, reconduzindo juridicamente a situação à violação dos artigos 345.º, 590.º, 3.º, n.º 3, do CPC, e artigo 20.º, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa (CRP).


Também alega o Apelante que a decisão recorrida é nula por violação do artigo 615.º, n.º1, alíneas c) e d), do CPC, por falta de enunciação dos factos provados e não provados e respetiva fundamentação, o que viola os artigos 607.º, n.º 4, e 195.º, n.º 1, do CPC.


2. Vejamos, então, se lhe assiste razão.


As causas de nulidade da sentença encontram-se taxativamente elencadas nas várias alíneas do no n.º 1 do artigo 615.º do CPC. No que ora releva, a sentença é nula quando:


«b) não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão;


c) os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível;


d) o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento;».


As nulidades da sentença, aplicam-se aos despachos com as devidas adaptações (artigo 613.º, n.º 2, do CPC).


Os fundamentos das alíneas b) e c) respeitam à estrutura da sentença e o fundamento da alínea d) aos seus limites.3


Sem prejuízo da necessidade de adaptação, como previsto no aludido artigo 613.º, n.º 3, do CPC, dado estarmos perante um despacho de indeferimento liminar e não perante uma sentença, a falta de fundamentação a que alude o n.º 1, alínea b) do artigo 615.º, do CPC, está em consonância com o dever de fundamentação as decisões, consagrado na CRP e na lei ordinária (artigo 205.º, n.º 1, da CPR, artigos 154.º, n.º 1 e 607.º, n.º 4, do CPC).


Porém, como tem sido entendido de forma consensual, a arguida nulidade só ocorre quando a falta de fundamentação for absoluta, o que não se verifica quando haja insuficiente ou errada fundamentação de facto e/ou de direito.


Em relação à alínea c), do n.º 1, do artigo 615.º do CPC, primeira parte, que a decisão é nula quando os fundamentos estejam em oposição com a decisão.


Já a segunda parte prescreve que a sentença é nula quando for ambígua ou obscura de tal modo que a torne ininteligível.


Conforme é comumente aceite, a nulidade prevista na primeira parte da alínea c), verifica-se quando haja uma contradição lógica no processo de decisão, ou seja, quando os fundamentos invocados devam conduzir logicamente ao resultado oposto ao que veio a ser expresso na decisão, ou, pelo menos, de sentido diferente.


Este vício formal não se reporta a situações em que se parte de pressupostos errados (por exemplo, apreciação e interpretação dos factos ou do direito), caso em que existe um vício de conteúdo (error in judicando), mas não nulidade da decisão. 4


Já a ambiguidade ou obscuridade da sentença reporta-se à sua parte decisória e apenas ocorre quando gera ininteligibilidade, ou seja, quando um declaratário normal, nos termos do artigo 236.º, n.º 1 e 238.º, n.º 1 do CC, não possa retirar da decisão um sentido unívoco, mesmo depois de recorrer à fundamentação para a interpretar.5


Por sua vez, a nulidade prevista na alínea d), do n.º 1, do artigo 615.º do CPC, na vertente da omissão de pronúncia (aquela que é invocada), está diretamente relacionada com o comando do artigo 608.º, n.º 2, do mesmo Código, reportando-se ao não conhecimento das questões (que não meros argumentos ou razões6) alegadas relativas à consubstanciação da causa de pedir e do pedido formulado pelo autor e da reconvenção e/ou das exceções invocadas na defesa7.


3. Sendo estes os pressupostos e requisitos das arguidas nulidades, no caso em apreço, nenhum deles se verifica.


Desde logo, não se verificam os pressupostos da nulidade por falta de fundamentação (alínea b) supra transcrita) porque foram exarados na decisão recorrido os fundamentos fáctico-jurídicos em que assenta considerando o alegado na p.i. e o processado praticado na execução.


Ademais, estamos perante um despacho de indeferimento liminar que, pela sua natureza, impossibilita o prosseguimento dos deduzidos embargos.


Efetivamente, como decorre do artigo 345.º do CPC, reportando-se à fase introdutória dos embargos, o juiz procede às diligências probatórias necessárias, se não tiver havido «imediato indeferimento da petição de embargos».


Logo, havendo indeferimento liminar da p.i. de embargos, não existe ulterior tramitação processual relacionada com a preparação e prolação da decisão que aprecie os embargos de terceiro.


Donde a invocação da violação dos artigos 590.º, n.º 3, do CPC não se aplica ao caso.


Refere também o Apelante que ocorreu violação do artigo 20.º, n.º 4, do CRP, embora não explique ou fundamente em que termos tal violação se pode ter como cometida.


Nem se percebe como tal preceito possa ser genericamente invocado numa situação como a dos autos, porquanto o Embargante teve acesso ao direito e à correspondente tutela jurisdicional. O que se verifica é que o mesmo não a fez atuar de acordo com os pressupostos legais. Ora, o artigo 20.º, n.º 4, da CRP não impede ou obstaculiza a emissão de despachos de indeferimento liminar, pois estes já pressupõem o desencadear dos mecanismos processuais previstos na lei ordinária que enformam, em concreto, o referido princípio constitucional.


Como sublinham Jorge Miranda e Rui Medeiros8, «o direito de acesso aos tribunais para defesa de um direito ou de um interesse legítimo, o direito ao processo, “não impede naturalmente, a existência de requisitos ou de pressupostos processuais” nem pressupõe “a efectiva titularidade de um direito ou interesse legalmente protegido lesado ou ameaçado.


Aliás, bem vistas as coisas, no âmbito do artigo 20.º, e uma vez que é legítima a imposição por lei de ónus processuais às partes (…), o tribunal nem sequer está vinculado “a que seja qual for a conduta processual da parte, se profira sempre uma decisão sobre o mérito da causa (e ainda que no meio processual utilizado se vise a tutela de hipotéticos direitos fundamentais) e se faculte, enquanto ela não for proferida, o recurso até à mais alta instância dos tribunais judiciais”.»


Em relação à violação do artigo 3.º, n.º 3, do CPC, também o mesmo não se verifica, porquanto o princípio do contraditório não exige que o tribunal ouça previamente o demandante antes da emissão do despacho de indeferimento liminar. Na verdade, se assim fosse, o despacho liminar deixaria de ter essa natureza.


Como se refere no Acórdão desta Relação de Évora proferido em 12-09-20249:

«Sustentar que estava vedado, ao tribunal a quo, indeferir aquela petição sem, antes, conceder o contraditório às partes, realizar uma audiência prévia, proferir despacho saneador e realizar a audiência final, com a produção da prova testemunhal indicada, equivale a considerar que a lei não permite o indeferimento liminar da mesma petição. Por definição, para poder ser considerado liminar, um despacho tem de ser proferido antes de qualquer dos actos referidos pelo recorrente.

Nomeadamente, não faria sentido a prolação de um despacho prévio com vista a conceder, ao recorrente, a possibilidade de se pronunciar acerca de um possível fundamento de indeferimento liminar, a indicar nesse despacho, como ele pretende. Pela sua natureza e tal como a sua designação inculca, o despacho de indeferimento liminar não é precedido por qualquer outro, nomeadamente com a função acima referida, sob pena de deixar de merecer o qualificativo de liminar. Não faria sentido e constituiria uma verdadeira contradição nos termos a prolação de despacho liminar depois de outro despacho. Já não estaríamos, obviamente, perante um despacho liminar.»

Concorda-se absolutamente.


Em face do exposto, improcede a arguida nulidade.


Em relação à alínea c), do n.º 1, do artigo 615.º do CPC, o Apelante não especifica qual dos dois segmentos do normativo teve em mente.


Seja como for, nenhum deles se verifica, porquanto da leitura do despacho recorrido não se descortina que haja qualquer vício lógico entre os fundamentos e a decisão, nem que a decisão de indeferimento liminar seja ambígua, obscura ou ininteligível.


Assim, também não se verifica esta nulidade.


Em relação alínea c), do n.º 1, do artigo 615.º do CPC, também a mesma não se verifica, porquanto a natureza e a estrutura do despacho de indeferimento liminar não exigem a enunciação da decisão de facto positiva e negativa e a sua fundamentação.


Ademais, e na verdade, o despacho em causa até se socorreu de elementos processuais que decorrem da tramitação da execução para fundamentar a questão da intempestividade da dedução dos presentes embargos de terceiro, pelo que, até nessa perspetiva, a alegada omissão de pronúncia não colhe.


Em face de todo o exposto, a apelação improcede em relação às arguidas nulidades.


4. Chegados a esta fase da análise do objeto do recurso, importa deixar clarificado que, apesar da procedência do recurso quanto à questão da ineptidão da p.i., o despacho recorrido não pode ser alvo de revogação porque subsiste a decisão de indeferimento liminar com base noutro fundamento – a extemporaneidade da dedução dos presentes embargos de terceiro – por não ter sido impugnado neste recurso.


III- DECISÃO


Nos termos e pelas razões expostas, acordam em julgar parcialmente procedente a Apelação em relação ao indeferimento liminar por ineptidão da p.i., sem prejuízo da manutenção do indeferimento liminar por extemporaneidade da dedução dos embargos de executado, fundamento este não impugnado no presente recurso.


Custas pelo Apelante (artigo 527.º do CPC).


Évora, 08-05-2025


Maria Adelaide Domingos (Relatora)


Maria João Sousa e Faro (1.ª Adjunta)


Elisabete Valente (2.ª Adjunta)

__________________________________

1. Cfr. Portaria n.º 266/2024, de 15/10; Portaria n.º 360-A/2023, de 14/11; Portaria n.º 86/2023, de 27/03; Portaria n.º 267/2018, de 20/09; Retificação n.º 16/2017, de 06/06; Portaria n.º 170/2017, de 25/05 e Retificação n.º 44/2013, de 25/10.↩︎

2. Exemplificativamente, vejam-se os seguintes arestos: Ac. RE, de 05-12-2024, proc. n.º 2027/22.2T8PTM-A.E1; Ac. RC, de 28-03-3023, proc. n.º164/22.2T8OHP.C1; Ac. RG, de 24-09-2020, proc. n.º 1167/19.0T8VRL-A.G1, todos em www.dgsi.pt.↩︎

3. LEBRE DE FREITAS e ISABEL ALEXANDRE, Código de Processo Civil Anotado, Vol. 2.º , 3.ª ed., Almedina, 2017, p. 735 (3).↩︎

4. LEBRE DE FREITAS e ISABEL ALEXANDRE, ob. cit, pp. 736-737.↩︎

5. LEBRE DE FREITAS e ISABEL ALEXANDRE, ob. cit. p. 735.↩︎

6. Cfr., entre outros, AC. STJ, de 06/05/2004, proc. n.º 04B1409 e AC. STJ, de 27/10/2009, proc. n.º 93/1999.C1.S2, em www.dgsi.pt↩︎

7. Cfr, entre outros, Ac. STJ, de 16/09/2008, proc. n.º 08S321, em www.dgsi.pt↩︎

8. Constituição Portuguesa Anotada, Tomo I, 2ª Edição, Coimbra, 2010, págs. 190-191, apud Ac. RE, de 13-02-2025, proc. n.º 204/24.0T8LGA.E1, em www.dgsi.pt↩︎

9. Proferido no proc. n.º 1291/21.9T8LLE-F.E1, seguindo, aliás, jurisprudência acolhidas no Ac. RE, de 28-06-2018, proc. n.º 2621/17.3T8ENT.E1 e no Ac. RE, de 11-04-2019, proc. n.º 1501/17.7T8SLV.E1, em www.dgsi.pt↩︎