RESTITUIÇÃO PROVISÓRIA DE POSSE
ESBULHO VIOLENTO
POSSE
Sumário

Sumário:
I. O decretamento da restituição provisória de posse pressupõe que o requerente alegue e demonstre a posse sobre a coisa e o esbulho violento por parte de outrem.
II. A não utilização do imóvel por parte do proprietário, ainda que tal se prolongue por um largo período, corresponde a uma situação de inação ou inércia do titular, e não de abandono, esta sim suscetível de determinar a perda da posse, porquanto o abandono pressupõe um ato material praticado intencionalmente de rejeição da coisa, só assim cessando os dois elementos constitutivos da posse: o corpus e o animus.
III. O esbulho violento pode ser praticado contra pessoas e coisas exigindo que, em relação a estas, se perfile como uma forma de intimidação sobre o possuidor, pondo em causa a sua liberdade de determinação, impedindo-o, contra a sua vontade e consentimento, de exercer a posse sobre determinada coisa.
IV. Não existe esbulho violento quando a posse sobre um imóvel adveio ao possuidor em virtude de o ter adquirido num processo executivo e de ali ter sido lavrado ato de entrega, ainda que, por erro ou por outro motivo não concretamente apurado, a entrega também tenha abrangido um imóvel contíguo ao adquirido.
V. A retificação da área mencionada na descrição predial, a constituição da propriedade horizontal e venda do imóvel a terceiro por parte de quem foi empossado nos termos referidos no ponto IV, são atos posteriores à investidura da posse, não enformando o conceito de esbulho violento.

Texto Integral

Processo n.º 3/24.0T8ADV.E1 (Apelação)

Tribunal recorrido: TJ Comarca da Beja, Juízo Competência Genérica de Almodôvar

Apelante: Anaporprime – Investimentos Comércio Importação e Exportação, Ld.ª

Apelados: AA, BB e CC




Acordam na 1.ª Secção do Tribunal da Relação de Évora

I – RELATÓRIO

1. ANAPORPRIME – INVESTIMENTOS COMÉRCIO IMPORTAÇÃO E EXPORTAÇÃO, LD.ª intentou contra AA (1.º Requerido), BB e CC (2.ºs Requeridos), procedimento cautelar de restituição provisória de posse do prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial de Local 1 sob o n.º 136 da freguesia de S1, e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo 1549, sito na Rua 1, n.º 5, pedindo ainda a anulação de atos, escrituras e registos referentes ao imóvel, a fixação de uma sanção pecuniária compulsória e a declaração de inversão do contraditório.


Alegou, em suma, que adquiriu este imóvel em 27-05-2014 e que o 1.º Requerido se apossou indevidamente do mesmo (teve de forçosamente de efetuar um arrombamento por não possuir chaves) quando adquiriu, em 18-09-2020, e tomou posse do contíguo imóvel urbano descrito na Conservatória do Registo Predial de Local 1 sob o n.º 545 da freguesia de S1, e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo 1220, sito na Rua 1, n.º 3.


Os 2.ºs Requeridos, por sua vez, adquiram, 28-08-2023, por compra e venda, o imóvel esbulhado à Requerente sabendo que o mesmo é propriedade da Requerente mantendo-se na sua posse de má-fé.

2. Por decisão proferida em 11-03-2024 foi deferida a providência de restituição provisória de posse nos termos peticionados.

3. Em 02-07-2024, os Requeridos BB e CC deduziram oposição, alegando, por exceção, a caducidade do direito de instauração do procedimento cautelar pugnando pela sua absolvição do pedido; e, por impugnação motivada, alegam que são legítimos proprietários do imóvel desde 28-08-2023, por terem adquirido por compra e venda ao 1.º Requerido o imóvel com os n.ºs de polícia 3 e 5, que, por sua vez, o havia adquirido numa execução fiscal, em 18-09-2019, não se encontrando preenchidos os pressupostos da requerida providência cautelar, causando-lhes o seu deferimento prejuízo por não conseguirem manter a afetação do imóvel a alojamento local como pretendiam. Requerem, a final, o levantamento da providência cautelar e do demais ordenado.

4. Produzida prova em sede de audiência final, em 09-12-2024 (ref.ª 34982252), foi proferida decisão que julgou improcedente a exceção de caducidade, revogou a providência anteriormente ordenada, bem como o demais antes decidido.

5. Em cumprimento desta decisão, em 06-01-2025, foi lavrado Auto de Entrega do imóvel aos 2.ºs Requeridos.

6. A Requerente, em 31-12-2024, interpôs recurso de apelação da decisão proferida em 09-12-2024, pugnando pela alteração da decisão recorrida e pela repristinação da anterior, apresentando para esse efeito as seguintes Conclusões:

«1. O presente recurso visa anular a decisão que Indeferiu a providência cautelar especificada de restituição provisória da posse, com inversão do contencioso, requerida pela Anporprime - Investimentos Comércio Importação e Exportação, Lda. contra os requeridos.

2. A decisão recorrida não pode deixar de se considerar errada atentos os factos indiciariamente provados nos autos, uma vez que ao recorrido não foi adjudicado o prédio sito no n.º 5, mas tão somente o prédio do n.º 3, tendo se apossado indevidamente do prédio do n.º 5.

3. Tal como foi anteriormente decido com base nos seguintes factos dados como provados na decisão que agora o tribunal veio alterar.

4. Através da apresentação 3274, de 27 de Maio de 2014, encontra-se inscrita a favor da Requerente a propriedade do edifício composto de rés do chão, com dois compartimentos, cozinha e casa de banho, com a área total de 40 metros quadrados, descrito na Conservatória do Registo Predial de Local 1 sob a descrição n.º 136 da freguesia de S1, e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo 1549, sito na Rua 1, n.º 5

5. Por seu turno, através da Ap. 2, de 28 de Maio de 2002 encontra-se inscrita a favor da sociedade Monotec – Sociedade De Investimentos Imobiliários, S.A., a propriedade do edifício composto por rés do chão, com quatro quartos, cozinha, casa de banho, arrecadação e quintal com a área total de 140 metros quadrados, descrito na Conservatória do Registo Predial de Local 1, sob a descrição n.º 545 da freguesia de S1, e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo 1220, sito na Rua 1, n.º 3;

6. Ambos os imóveis mencionados são contíguos, porém distintos e separados um do outro por uma parede, não existindo qualquer ligação entre ambos, bem como tendo descrições prediais e inscrições matriciais autónomas;

7. Com data de 25 de Janeiro de 2010 foi registada uma penhora sobre o imóvel descrito sob o n.º 545, tendo o Serviço de Finanças de Sesimbra como sujeito activo, para pagamento de quantias exequendas relativas a processo de execução fiscal;

8. No âmbito daquele processo de execução fiscal, em 18 de Setembro de 2019, o imóvel referido acima foi adquirido pelo primeiro Requerido, AA;

9. Do «Título de Transmissão e Certidão de Cancelamento» consta que o primeiro Requerido adquiriu um «prédio urbano, artigo 1220, destinado a habitação, composto de casa de entrada, quatro quartos, cozinha, três arrecadações e quintal, com a área coberta de 140 m2 e a área descoberta de 25 m2 descrito na conservatória sob o n.º 545/19990705»;

10. Na posse do imóvel adquirido por compra em leilão, o primeiro Requerido tomou também posse do imóvel que não era seu, o descrito sob o n.º 136 da freguesia de S1, e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo 1549, antigo art. 254;

11. Uma vez que o primeiro Requerido não dispunha da chave da casa que pertence à Requerente, tal ocorreu através da mudança do canhão da fechadura que se encontrava na porta;

12. Na posse do imóvel descrito sob o n.º 545, o adquirente entregou na Conservatória do Registo Predial de Local 1 em 20 de Janeiro de 2020 um averbamento de actualização à descrição, onde declarou que «o prédio se situa na Rua 1, nº 3 e 5 e tem a área coberta de 178 m2 e a descoberta de 49 m2 e que a área correcta é a que consta da matriz e que a divergência de área decorre de erro de medição. Mais declarando que a configuração geométrica do prédio não sofreu alteração»;

13. Apresentando, também, uma nova descrição do n.º 545, através do Modelo 1 do IMI e uma nova planta do imóvel, alterando as áreas do prédio urbano adquirido de modo a abranger a área do prédio com a descrição n.º 136, propriedade da Requerente;

14. Posteriormente, em 13/07/2022, pela Ap. 2773, foi registada a constituição de propriedade horizontal, com base nas áreas conforme declaradas pelo primeiro Requerido, e abrangendo o imóvel propriedade da Requerente, alterando, assim, a descrição e a inscrição prediais do prédio urbano n.º 545, das quais passou a constar a área de 227 m2 com fracção A e B;

15. Na posse de ambos os imóveis, do modo descrito, o primeiro Requerido constituiu ali um Alojamento Local;

16. Em 28 de Agosto de 2023, através de escritura pública celebrada no cartório notarial de Loures, o primeiro Requerido procedeu à venda dos imóveis assim constituídos em propriedade horizontal aos segundo e terceiro Requeridos, BB e CC;

17. Tem razão a Meritíssima Juiz quando decide que a entrega de prédio efetuada através de entrega judicial não é ilegítima e não pressupõe um esbulho, mas ao recorrido não foi entregue o prédio do recorrente/requerente, mas tão somente o prédio descrito na matriz sob o n.º 1549.

18. Descreve ainda a douta decisão que o requerente não terá usado o prédio durante longos anos, o que não invalida a sua posse.

19. O recorrente é proprietário registado do imóvel em causa nos autos, um imóvel que se encontra, ele próprio, penhorado à ordem de um processo judicial e que o tribunal entende que, apesar disso, não há esbulho, que foi pacifica a ocupação do imóvel pelos requeridos/recorridos.

20.Tinha ainda o tribunal decidido pela inversão do contencioso, atento que está no seu espirito de evitar “que tenha de se repetir inteiramente, no âmbito da ação principal, a mesma controvérsia que acabou de ser apreciada e decidida no âmbito do procedimento cautelar – obstando aos custos e demoras decorrentes desta duplicação de procedimentos” (assim, a Exposição de Motivos da Proposta de Lei n.º 113/XII, do XIX Governo Constitucional, que esteve na origem do CPC de 2013).

21. Invoca o Tribunal que o requerido, apelado, não se apropriou de forma violente do imóvel e que o adquiriu na AT de forma legitima. Facto este que não está em causa nos autos, posto que o requerido/apelado adquiriu o imóvel sito no n.º 3 da Rua 1, com 140 m2 e não a área de 227 m2 que corresponde aos dois imóveis – o que adquiriu à AT, o n.º 3 e o que ilegalmente e violentamente se apossou, o n.º 5 propriedade e posse da requerente.

22. Isto é, existem dois imóveis, cada um com uma cozinha, uma casas de banho, uma sala, que constituem dois imóveis independentes que o recorrido, de forma engenhosa se apropriou. O recorrido comprou 140 m2 e acaba por ter na sua posse 227 m2, sem que tenha havido o milagre da multiplicação dos metros quadrados que comprou à AT. Como se alcança da prova nos autos, existem dois (2) imóveis distintos, o n.º 3 e o n.º 5, que são contíguos um com o outro.

23. É facto assente que o recorrido ocupou de forma ilegítima a área da descrição do n.º 136, que corresponde ao n.º 5 da Rua 1. Ao apelado não foi entregue pela Autoridade Tributária este imóvel, mas tão somente o imóvel contiguo.

24. O apelado esbulhou a apelante da sua propriedade, sob o seu imóvel, de forma violenta e forçada, posto que teve de efetuar arrombamento, dado não possuir as chaves da propriedade do apelante da qual se apossou indevidamente. E, não se bastando com tudo isso, de posse da totalidade do imóvel do apelado, efetuou escritura de propriedade horizontal para alterar as áreas do imóvel que adquiriu à AT, constituiu um alojamento local, tendo posteriormente, vendido o imóvel a BB e mulher CC.

25. Os requeridos esbulharam a requerente da posse sobre o dito prédio, que só a ela com todos os requisitos legais pertence, desde a data em que o adquiriu e o registou em seu nome na conservatória, como ficou assente nos autos.

26. Faça a requerente/apelante uso do imóvel, ou não, não tinha o requerido legitimidade para a desapossar e lhe retirar a posse, como fez, devendo ser-lhe restituída, uma vez que só aquele pertence de direito e de facto.

27. Com o devido respeito, os requeridos/apelados conseguiram confundir e iludir o tribunal, fazendo uso da compra legitima que efetuou à AT para justificar o que, lamentavelmente, não tem justificação. Não tivesse o apelado ocupado o imóvel vizinho, paredes meias com o seu e não estaríamos com esta situação. O apelado tem conhecimento que o aludido prédio não é da sua propriedade. O apelado além do conhecimento, tem consciência de que não é, nem nunca foi, proprietário do prédio em causa, até porque não têm qualquer título pelo qual se tenha operado a transmissão daquela propriedade a seu favor. O apelado, está ciente de que a propriedade do imóvel registado sob a descrição 136, lhes não pertence, no entanto não se inibiu de o ocupar como se fosse seu.

28. Não pode o tribunal negar o que é evidente e se encontra provado nos autos. Pois que, na posse da propriedade do imóvel descrito sob o n.º 545 que adquiriu na AT, Cfr. Documento n.º 3 junto com o requerimento inicial, o apelado entrega na conservatória do registo predial de Local 1 em 20 de janeiro de 2020 um averbamento de atualização à descrição, onde declara que “o prédio se situa na Rua 1, nº 3 e 5 e tem a área coberta de 178 m2 e a descoberta de 49 m2 e que a área correcta é a que consta da matriz e que a divergência de área decorre de erro de medição. Mais declarando que a configuração geométrica do prédio não sofreu alteração.”, conforme certidão que se junta sob o Documento n.º 13 junto com o requerimento inicial.

29. Ora, estas declarações são falsas e não correspondem à verdade, uma vez que o apelado comprou um imóvel, o n.º 3 e não os dois imóveis, o n.º 3 e n.º 5.

30. No entanto, sob a descrição n.º 545 (matriz 1220) o apelado apresenta nova descrição, apresentando um Modelo 1 do IMI com falsas declarações. A que acresce ter apresentado uma planta, certificada pelo Sr. Arquiteto DD, em 19 de setembro de 2019, Cfr. Documento n.º 13 junto com o requerimento inicial, que é falsa e não corresponde à realidade do imóvel. Posto que, como se pode apurar pelas plantas juntas sob os Documentos n.º 14 e n.º 15, temos dois imóveis distintos e separados um do outro por uma parede, não tendo nunca entre eles existido qualquer ligação.

31. Com declarações falsas e documentos que não correspondem à realidade, no dia 23 de junho de 2022, no cartório do Dr. EE, em cascais, o apelado outorga escritura de propriedade horizontal, constituinte a fração A e a fração B, sob o artigo 1220, conforme Documento n.º 17 que se encontra nos autos. Alterando por completo a matriz e o registo da descrição 545 que passa a ter a área de 227 m2 com fração A e B, Cfr. Documento n.º 2 junto aos autos.

32. É evidente que o apelado se usurpou e se apoderou pela força do imóvel, paredes meias com o seu, sem que tenha havido o milagre da multiplicação dos metros quadrados que o apelado comprou à AT, 140 m2, acaba por ter na sua posse 227 m2, o que só consegue por recuso ao esbulho violente do apelado da sua propriedade.

33. Prescreve o artigo 377º do CPC que ”no caso do esbulho violento, pode o possuidor pedir que seja restituído provisoriamente à sua posse, alegando os factos que constituem a posse, o esbulho e a violência”.

34. A posse existe desde 27 de maio de 2014, data em que o apelante tomou posse do imóvel. O esbulho é o acto do apelado se apossar, à revelia do apelante do imóvel. E, a violência refere-se ao ato de trocar as fechaduras das portas de acesso ao imóvel, impedindo assim que o apelante tivesse acesso àquele.

35. Estando reunidos todos os requisitos de que depende o decretamento da restituição provisória da posse do apelado, anteriormente, o tribunal decidiu, como não poderia deixar de ser, decretar a restituição provisória da posse deste sobre o imóvel descrito na Conservatória do Registo Predial de Local 1 sob a descrição n.º 136 da freguesia de S1, e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo 1549, sito na Rua 1, n.º 5. Reconhecendo-se a propriedade do apelante sobre o imóvel, bem como que o mesmo é a seu legítimo possuidor, devendo o mesmo ser-lhe restituído.

36. Não foram trazidos aos autos factos novos que permitam que o Tribunal a quo tome a decisão de alterar o que foi indiciariamente decidido nos autos.

37. O facto de o apelante não se deslocar ao imóvel, nem dele fazer uso não legitima que o apelado o ocupe e o use como se o tivesse adquirido legitimamente, o que não ocorreu.

38. Dos documentos juntos aos autos apenas resulta que o apelado tomou posse do n.º 3 e não do n.º 3 do n.º 5, não tendo tomado posse do imóvel de forma legal e totalmente protegido por uma decisão da AT, posto que o imóvel vendido em leilão pela AT, não é, nem nunca foi, o n.º 5, mas apenas o n.º 3, contíguo àquele, pelo que, ainda que o auto possa referir, erradamente, o numero da porta do prédio, o imóvel

vendido pela AT, não foi o que é propriedade do apelante, mas tão somente o prédio do lado, sendo que o apelado se apossou dos dois (2) prédios.

39. O que se reflete no caso dos autos em que não existem duvidas de que a apelante foi esbulhada da sua posse e que pretende que lhe seja restituída em definitivo, o que foi decidido pelo tribunal e que agora foi alterado de forma inusitada e sem que aos autos tenham sido trazidos novos factos.»

7. O 2.º e a 3.ª Apelada responderam ao recurso pugnando pela confirmação da decisão recorrida.

8. Remetidos os autos a esta Relação de Évora, a ora Relatora ouviu as pelas razões que constam do despacho proferido em 03-04-2025.

9. Pronunciaram-se o 1.º Requerido e a Recorrente no sentido de estarem preenchidos os pressupostos para apreciação do presente recurso.

10. Foram colhidos os vistos.


II- FUNDAMENTAÇÃO

A. Objeto do Recurso


Considerando as conclusões das alegações, as quais delimitam o objeto do recurso, sem prejuízo das questões que sejam de conhecimento oficioso e daquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras (artigos 635.º, n.ºs 3 e 4, 639.º, n.º 1 e 608.º, n.º 2, do CPC), não estando o tribunal obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes para sustentar os seus pontos de vista, sendo o julgador livre na interpretação e aplicação do direito (artigo 5.º, n.º 3, do CPC), no caso, impõe-se apreciar se dos factos dados como indiciariamente provados, decorrem os pressupostos do decretamento do procedimento cautelar de restituição provisória com a consequente repristinação da decisão proferida antes do contraditório.


B- De Facto


A 1.ª instância proferiu a seguinte decisão de facto:

A. «A. FACTOS NÃO INDICIARIAMENTE PROVADOS.

Com relevo para a decisão da causa, consideram-se indiciariamente provados os seguintes factos:


JÁ CONSIDERADOS INDICIARIAMENTE PROVADOS NA DECISÃO PROFERIDA:


1. Mediante a Ap. 2 de 2004/08/18, foi registada hipoteca voluntária, a favor do Banco Bilbao Vizcaya Argentária S.A., sobre o prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de Local 1 sob a descrição n.º 136 da freguesia de S1, e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo 1549 (antigo 1372), sito na Rua 1, n.º 5, à data registado a favor de FF e GG, composto por casa de entrada, com quatro quartos, cozinha, casa de banho, três arrecadações e quintal, com área coberta de 140 m2, e área descoberta de 25 m2, confrontando a norte com HH, sul e nascente com via pública e poente com II.


2. Pela apresentação n.º 3274, de 27 de Maio de 2014, encontra-se inscrita a favor da Requerente a aquisição, por compra, do edifício composto de rés do chão, com dois compartimentos, cozinha e casa de banho, com a área total de 40,00 m2, descrito na Conservatória do Registo Predial de Local 1 sob a descrição n.º 136 da freguesia de S1, e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo 1549, sito na Rua 1, n.º 5.


3. Encontrou-se inscrita a favor da sociedade Monotec – Sociedade De Investimentos Imobiliários, S.A.,, pela Ap. n.º 2 de 28.05.2002, a aquisição, por compra, do prédio descrito sob o n.º 545 da Conservatória do Registo Predial de Local 1 e inscrito na matriz predial sob o artigo 1720, naquela data com a seguinte composição e confrontações:


“ (…) Edifício de rés-do-chão, destinado a habitação composto de várias divisões e quintal.


Confrontações:


Norte: HH


Sul e Nascente: Via Pública


Poente: II (…)”


4. Os imóveis identificados em 2) e 3) são contíguos, tendo descrições prediais e inscrições matriciais autónomas.


5. Por despacho datado de 23.06.2001 subscrito pelo Presidente da Câmara Municipal de Local 1, foi embargada a obra do prédio descrito sob o n.º 545, melhor identificado em 3), entrando-se tal embargo anotado pelo Of. de 2001/07/20.


6. Pela Ap. 5423 de 2010.02.08 foi registada penhora, efectuada no âmbito do processo executivo fiscal n.º ..., sobre o prédio descrito sob o n. 545 efectuada em 25.01.2010, onde consta como sujeito activo Serviço de Finanças de Sesimbra e como sujeito passivo Monotec – Sociedade de Investimentos Imobiliários, S.A., penhora.


7. Em 18 de Setembro de 2019, o prédio descrito sob o n.º 545 foi adquirido por AA, no âmbito de venda efectuada em processo de execução fiscal, tendo tal aquisição sido registada mediante AP. 1296 de 2019/09/23, onde este consta como sujeito activo, e Monotec – Sociedade de Investimentos Imobiliários S.A. como sujeito passivo.


8. Do «Título de Transmissão e Certidão de Cancelamento» datado de 18.09.2019 consta:


“Processo Executivo n.º ... e aps. ... e aps. ..., ..., ... e ... e aps.


Executado – MONOTEC SOCIEDADE DE INVESTIMENTOS IMOBILIÁRIOS S.A.


JJ, Técnico Administração Tributária do Quadro de Pessoal da Direcção Geral de Impostos, em serviço no Serviço de Finanças de Sesimbra.


Em cumprimento do despacho do SR Chefe de Finanças de 18 do mês de setembro de 2019, do processo executivo acima indicado, certifico:


Que do referido processo consta que o bem:


“Prédio urbano, artigo 1220, destinado a habitação com 4 divisões, localizado em Travessa 7, S1. Ano e inscrição na matriz 1998; Área total do terreno: 165,00 m2; Área de implantação do edifício: 140,00 m2: Área bruta de construção: 140,00 m2; Área bruta privativa: 140,00 m2; valor patrimonial: 21.120,04 euros. Descrito na Conservatória do Registo Predial de Local 1 sob o n.º 545/19990705.


Foi adquirido por AA, contribuinte n.º ..., solteiro, com residência fiscal na ..., ... ..., através de leilão eletrónico em 11 de setembro de 2019, pelo preço de 14.950,00 (catorze mil novecentos e cinquenta euros) totalmente pago em 13/09/2019, conforme comprovativo a fls. 37 (…)”.


9. Aquando ocupação do prédio descrito sob o n.º 545, melhor identificado em 3), o 1.º Requerido também ocupou o prédio contíguo descrito sob o n.º 136 da freguesia de S1, e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo 1549.


10. O prédio descrito em 3) encontrava-se dispensado da emissão de licença de habitabilidade.


11. O 1.º Requerido, em 20.01.2020, entregou na Conservatória do Registo Predial de Local 1 formulário intitulado “Requisição de Registo Conservatória do Registo Predial de Local 1”, através do qual requereu o averbamento de actualização à descrição do prédio descrito com o n.º 545, onde consta, além do mais, que:


“(…) Declaro que o prédio se situa na Rua 1, nº 3 e 5 e tem a área coberta de 178 m2 e a descoberta de 49 m2 e que a área correcta é a que consta da matriz e que a divergência de área decorre de erro de medição. Mais declarando que a configuração geométrica do prédio não sofreu alteração (…)”.


12. Apresentando, também, em 30.01.2024, junto do Serviço de Finanças de Local 1 formulário intitulado “Declaração para inscrição ou actualização de prédios urbanos da Matriz (modelo 1)”, relativamente ao prédio descrito sob o n.º 545/19990705, com artigo matricial 1220, declarando que tal prédio tem:


“(…)


afectação: hab.


n.º de pisos: 1


Tipologia/ n.º de divisões: T3


Área total do terreno: 227,00


(…)


Área de implantação do prédio: 178,00


Área bruta de construção: 178,00


Área bruta dependente: 0


Área bruta privativa: 178. (…)”


13. Aquando o descrito em 12), o 1.º Requerido entregou juntamente com tal Declaração duas plantas, onde constam os prédios identificados em 2) e 3).


14. Posteriormente, pela Ap. 2773 de 2022.07.13 foi registada a constituição de propriedade horizontal, do prédio descrito com o n.º 545, constando:


“(…)


Área total: 227 m2


Área coberta: 178 m2


Área descoberta: 49 m2


(…)


Fração: A Permilagem: 600


Fração: B Permilagem: 400


Destino: as duas frações para habitação.


Partes Comuns de uso exclusivo:


Da fração “A” – logradouro demarcado com 37 m2, situado a norte/poente


Da fração “B” – logradouro demarcado com 12 m2, situado a norte/nascente (…)”


15. O 1.º Requerido, ocupando os prédios descritos em 2) e 3) iniciou nestes prédios actividade de Alojamento Local.


16. Através do seu sócio-gerente, FF, a Requerente entrou em contacto com o 1.º Requerido no sentido de reaver a posse do prédio identificado em 2) livre de pessoas e bens, porém sem sucesso.


17. Através de escritura pública outorgada em 28.08.2023, no Cartório Notarial de ..., sito na ..., em ..., o 1.º Requerido AA declarou vender, livre de ónus e encargos aos 2.ºs Requeridos BB e CC que por sua vez declararam comprar, “(..) o prédio urbano, em regime de propriedade horizontal, sito em Rua 1, nº 3 e 5, freguesia de S1, concelho de Local 1, descrito na Conservatória do Registo Predial de Local 1 sob o número 545, da referida,


submetido ao regime de propriedade horizontal pela Ap. 2773, de 13.07.2022, e inscrito na respectiva matriz sob o artigo 1702 (…)”.


18. Tendo o legal representante da Requerente entrado em contacto com os 2.ºs Requeridos, através do seu representante em Portugal, não tendo também conseguido obter o acesso ao prédio identificado em 2).


DA OPOSIÇÃO DEDUZIDA


19. O descrito em 16) ocorreu em Julho de 2023.


20. No seguimento do descrito em 8), foi elaborado em 16.12.2019, documento intitulado “Auto de Arrombamento”, onde consta, além do mais, que:


“(…)


Processo de execução fiscal n.º ... e outros


Executado: Monotec Sociedade de Investimentos Imobiliários S.A. – NIPC ...


Aos dezasseis dias do mês de Dezembro de 2019, na Rua 1, nº 3 e 5, concelho de Local 1, KK, escrivão nestes autos, acompanhado do oficial de diligências, LL, em cumprimento do mandado para entrega de coisa certa, face à resistência do executado procedi ao arrombamento da porta do prédio urbano sito na Rua 1, nº 3 e 5, concelho de Local 1, inscrito na matriz predial urbana da freguesia de S. Bárbara de Padrões sob o artigo n.º 1220, adquirido por venda por meio de leilão electrónico, no processo de execução fiscal acima identificado, para entrega do bem ao adquirente, AA -NIF ... na presenta dos agentes da GNR (…)”.


21. Aquando o descrito em 20) não se encontrava no local o legal representante da executada MONOTEC SOCIEDADE DE INVESTIMENTOS IMOBILIÁRIOS S.A., de nome FF.


22. Aquando o descrito em 20), procedeu-se ao arrombamento unicamente da porta com n.º de polícia n.º 3.


23. Em 05.01.2021, foi emitido pela Câmara Municipal de Local 1 documento intitulado “Alvará de Autorização de Utilização n.º 4/2021”, onde consta:


“(…) Nos termos do artigo 74.º do Decreto-Lei n.º 555/99, de 16 de dezembro, na atual redação, é emitido o alvará de autorização de utilização n.º 4/2024, em nome de AA, contribuinte fiscal n.º ..., que titula a autorização de utilização da FRAÇÃO A do edifício, sito na Rua 1, n.º 3, concelho de Local 1, descrito na Conservatória do Registo Predial de Local 1, sob o n.º 545/19990705 e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo n.º, 1220 da respectiva freguesia.


Por despacho do Presidente da Câmara datado de 5 de janeiro de 2021 foi autorizada a seguinte utilização: FRAÇÃO A – Edifício do rés-do-chão destinado a habitação unifamiliar, com área bruta de construção de 99,00 m2, e descoberta em logradouro com a área de 37,00 m2. (…)”.


24. Em 05.01.2021, foi emitido pela Câmara Municipal de Local 1 documento intitulado “Alvará de Autorização de Utilização n.º 5/2021”, onde consta:


“(…) Nos termos do artigo 74.º do Decreto-Lei n.º 555/99, de 16 de dezembro, na atual redação, é emitido o alvará de autorização de utilização n.º 5/2024, em nome de AA, contribuinte fiscal n.º ..., que titula a autorização de utilização da FRAÇÃO B do edifício, sito na Rua 1, n.º 5, concelho de Local 1, descrito na Conservatória do Registo Predial de Local 1, sob o n.º 545/19990705 e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo n.º, 1220 da respectiva freguesia.


Por despacho do Presidente da Câmara datado de 5 de janeiro de 2021 foi autorizada a seguinte utilização: FRAÇÃO B – Edifício do rés-do-chão destinado a habitação unifamiliar, com área bruta de construção de 79,00 m2, e descoberta em logradouro com a área de 12,00 m2. (…)”


25. Em 29.03.2021, o 1.º Requerido AA entregou junto da Câmara Municipal de Local 1 pedido de registo do estabelecimento de alojamento local, pedido que foi deferido e ao qual foi atribuído o alojamento local n.º 115305/AL.


26. O 1.º Requerido AA usou os prédios descritos em 2) e 3), com uma área total de 227,00 m2 e superfície coberta de 178,00m2, desde, pelo menos, o descrito em 20).


27. À vista de toda a gente e de forma ininterrupta desde o momento da compra, de forma pacífica e pública, à vista de todos os que por ali andam.


28. E sem oposição de ninguém até Julho de 2023.


29. Os 2.ºs Requeridos aquando o descrito em 17) receberam as chaves do prédio por estes adquirido.


30. E usaram os prédios urbanos descritos em 2) e 3), actuais fracções com descrições n.ºs 545-A e 545-B A, com uma área total de 227,00 m2 e superfície coberta de 178,00m2.


31. À vista e de forma ininterrupta desde o momento da compra, de forma pacífica e pública, à vista de todos os que por ali andam.


32. Liquidando os impostos relativos às actuais frações descritas sob os n.ºs 545-A e 545-B.


33. O 2.º Requerido BB, em 31.08.2023, entregou perante a Autoridade tributária e aduaneira declaração de início de actividade, a vigorar a partir de 01.09.2023, declarando como actividade efectivamente exercida “Alojamento mobilado para turistas” e “outros locais de alojamento de curta duração”.


34. O acesso ao prédio descrito em 2) e 3) era efectuado a partir da Rua 1 através das portas com n.ºs de polícia n.º 3 ou n.º 5, até, pelo menos, o descrito em 12).


35. A partir do descrito no ponto 12), o acesso ao prédio descrito em 2) é efectuado pela porta com n.º de polícia 5.


36. A partir do descrito no ponto 12), o acesso ao prédio descrito em 3) é efectuado pela porta com n.º de polícia 3.


37. Os 2.ºs Requeridos visam iniciar a exploração de um estabelecimento de alojamento local na fracção descrita sob o n.º 545 – B, com n.º de polícia 5.


38. Os 2.ºs Requeridos adquiriram móveis, eletrodomésticos, artigos têxteis, material recreativo, etc., com o objectivo de mobilar e equipar a fração com o n.º de polícia 5.


39. Entre o ano de 2002 e julho de 2023, FF em nenhum momento por si, ou na qualidade de representante legal, quer da Requerente, quer ainda da empresa Tremble Sociedade de Investimentos Imobiliários Lda, praticou atos de ocupação temporária ou permanente ou praticou atos de limpeza, conservação e/ou manutenção do prédio identificado em 2), nem incumbiu terceira pessoa de o fazer.


40. O prédio identificado em 2) esteve desocupado desde o ano de 2002 até o descrito em 20).

1. B. FACTOS NÃO INDICIARIAMENTE PROVADOS.


Com relevo para a decisão da causa, não resultaram indiciariamente provados os seguintes factos:


ANTERIORMENTE CONSIDERADOS INDICIARIAMENTE PROVADOS NA DECISÃO PROFERIDA3:

a. a. Os prédios descritos em 2) e 3) se encontrassem separados um do outro por uma parede, não existindo qualquer ligação entre ambos.

b. Em 17 de Junho de 2002, tivesse sido solicitada à Câmara Municipal de Local 1 a autorização para efectuar obras de remodelação nos prédios identificados em 2) e 3).

c. As obras realizadas no prédio identificado em 2) tivessem sido embargadas por parte da Câmara Municipal de Local 1.

d. Aquando do embargo referido em 6), as respectivas obras já se encontravam findas.

e. O 1.º Requerido tivesse mudado o canhão da fechadura que se encontrava na porta do prédio identificado em 2).

f. A Requerente, na pessoa do seu gerente, tivesse se enervado muito com toda esta situação, tentando chamar à razão os Requeridos.


DA OPOSIÇÃO DEDUZIDA

a. g. A Requerente, em momento algum, ao longo dos últimos 5 anos, se tivesse dirigido a quem quer que fosse e se apresentasse como proprietária do prédio descrito em 3).

h. O 1.º Requerido tivesse efectuado o arrombamento da porta dos prédios identificados em 2) e 3).

i. Os 2.ºs Requeridos visassem iniciar a exploração de um estabelecimento de alojamento local na fracção descrita sob o n.º 545-A.

j. O acto descrito em 25) tivesse sido praticado pelo 2.º Requerido.

k. Os 1.ºs e 2.ºs Requeridos tivessem conhecimento que o direito de propriedade do aludido prédio descrito em 2) se encontrava registado a favor da Requerente.

a. l. O descrito em 30) tivesse ocorrido sem oposição de ninguém.

m. O prédio descrito em 2) se encontrasse dispensado da emissão de licença de habitabilidade.»

C. Do Conhecimento das questões suscitadas no recurso

1. A questão essencial a decidir, como acima ficou enunciado, consiste em saber se estão preenchidos os pressupostos do decretamento do procedimento cautelar de restituição provisória com a consequente repristinação da decisão proferida antes do contraditório.

1. Importa começar a análise enunciando os requisitos necessários para o decretamento da restituição provisória de posse.


Estipula o artigo 1279.º do CC que «o possuidor que for esbulhado com violência tem o direito de ser restituído provisoriamente à sua posse, sem audiência do esbulhador», encontrando-se adjetivado este direito nos artigos 377.º a 379.º do CPC ao regular o procedimento cautelar especificado de restituição provisória de posse.


Por opção do legislador, trata-se de um procedimento decidido, numa primeira fase, sem audiência da parte requerida, afastando-se, assim, a regra basilar do prévio contraditório, não sendo, porventura, alheia a tal opção o facto de estar em causa uma reação a um ato violento – o esbulho.1


Posteriormente, decretada a providência, a lei concede ao requerido a possibilidade de impugnação (por via do recurso ou da dedução de oposição) contra o decretamento da providência e/ou contra a inversão do contencioso (artigo 272.º, n.º 1, alíneas a) e b), e n.º 2, do CPC).


Com o decorre do artigo 377.º do CPC, os únicos requisitos para a procedência da restituição provisória de posse são a existência da posse, o esbulho e a violência.


A falta de esbulho não deixa o desapossado sem tutela cautelar, pois como explicita o artigo 379.º do CPC, poderá socorrer-se, nos termos gerais, do procedimento cautelar comum, desde que preenchidos os respetivos pressupostos previstos no artigo 362.º do CPC, mormente o periculum in mora.


Os requisitos legais enunciados no artigo 377.º do CPC em relação à restituição provisória de posse, provêm já do CPC 1939 (artigo 400.º) e determinavam que o Prof. Alberto dos Reis defendesse que a «restituição provisória de posse não é rigorosamente uma providência cautelar. É, sem dúvida, uma providência preventiva e conservatória; mas não é uma providência cautelar, porque lhe falta a característica do periculum in mora».


E acrescentava: «Para obter a restituição o requerente não precisa de alegar e provar que corre um risco, que a demora definitiva na ação possessória o expõe à ameaça de dano jurídico; basta que alegue e prove a posse, o esbulho, a violência. O benefício da providência é concedido, não em atenção a um perigo de dano iminente, mas como compensação da violência de que o possuidor foi vítima.»2


Como decorre do artigo 378.º do CPC, a providência cautelar visada, na sua feição primeira, é a restituição de posse do requerente ofendida pelo esbulho violento perpetrado pela parte demandada.


Não se pode esquecer que a restituição provisória de posse é uma providência cautelar que depende de uma ação possessória (artigos 1276.º e 1278.º do Código Civil – CC) ou de reivindicação3 (artigo 1311.º do CC).


Atualmente, por via do artigo 369.º do CPC também pode ser cumulado tal pedido com a inversão do contencioso, o que pode ser decretado se verificados os requisitos previstos neste normativo.


A alegação e prova indiciária dos requisitos do decretamento da restituição provisória de posse, antes ou na fase pós contraditório, são sempre ónus de quem requer a tutela cautelar, atento o disposto no artigo 342.º, n.º 1, do CC.


Na fase pós contraditório, recai sobre o requerido que deduz oposição, a alegação dos factos não tidos antes em conta pelo tribunal e/ou apresentação de novas provas que sejam suscetíveis de afastar os fundamentos da providência ou determinem a sua redução (artigo 342.º, n.º 2, do CC).

2. Em relação à posse do requerente do procedimento cautelar, regem as normas que definem quem é possuidor (por oposição ao mero detentor – cfr. artigo 1253.º do CC).


Decorre da noção de posse inscrita no artigo 1251.º do CC, que a «Posse é o poder que se manifesta quando alguém atua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real».


É pacífico entre nós, em face da interpretação dos artigos 1251.º e 1253.º do CC, que o legislador acolheu uma conceção subjetivista da posse, ou seja, para haver posse é necessário o elemento material - o corpus - que se identifica com os atos materiais praticados sobre a coisa, e um elemento subjetivo - o animus - que se traduz na intenção de se comportar como titular do direito real correspondente aos atos praticados.


A situação possessória exige sempre o corpus (disponibilidade fáctica sobre a coisa).Por força do artigo 1252.º, n.º 2, do CC, presume-se o animus em quem tem o corpus (o inverso já não se verifica).


Em regra, o titular do direito de propriedade detém a posse, mas nem sempre assim é.


Por isso, a posse e o direito de propriedade não se confundem. A posse defende-se através do contencioso possessório previsto nos artigos 1277º e ss do CC. O segundo mediante a reivindicação prevista no artigo 1311º do mesmo diploma.


No contencioso possessório, onde se inclui o procedimento cautelar de restituição provisória da posse, não se exige, pois, ao requerente a alegação ou prova do domínio ou mesmo a sua plausibilidade, mas sim os factos constitutivos da posse, sendo suficiente a demonstração do corpus, porque como referido, presume-se o animus.


Todavia, nada impede que o proprietário também beneficie da tutela cautelar prevista para as situações de contencioso possessório desde que se verifique uma situação de posse e o seu desapossamento seja violento (artigo 1279.º do CC e artigos 377.º a 379.º do CPC).


Efetivamente, em regra, o proprietário terá a posse relativamente às coisas sobre as quais exerce o domínio (artigo 1305.º do CC). Pode haver exceções, pois o proprietário pode alienar a coisa ou a mesma ser detida ou possuída por terceiro de forma legal (cfr., por exemplo, a tutela possessória concedia ao locador, ao comodatário e ao depositário – artigos 1037.º, n.º 2, 1133.º, n.º 2 e 1188.º, n.º 2, do CC).


De qualquer modo, da posse deriva uma presunção ilidível da titularidade do direito, designadamente da propriedade (cf. artigo 1268.º, n.º 1, do CC), mas do registo da propriedade já não deriva uma presunção de que o proprietário tem a posse, mas apenas que «O registo definitivo constitui presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito, nos precisos termos em que o registo o define» (artigo 7.º do Código de Registo Predial).


Em suma, pressuposto desta medida cautelar é a qualidade de possuidor decorrente do exercício de poderes de facto sobre uma coisa correspondente ao direito de propriedade ou outro qualquer direito real de gozo (cf. artigo 1251.º do CC).

3. O esbulho corresponde a um ato pelo qual alguém priva outrem da posse de uma coisa determinada. Há esbulho, para efeito de aplicação do art.º 377.º do CC, sempre que alguém foi privado do exercício da retenção ou fruição do objeto possuído, ou da possibilidade de o continuar.


O esbulho pode ser constituído por vários comportamentos do esbulhador, incluindo atos de violência física contra coisas (artigos 1279.º e 1261.º, n.º 2, do CC).


Por sua vez, a violência está definida no artigo 1261.º n. 2 do CC como o uso de coação física ou de coação moral nos termos do artigo 255.º do mesmo Código, sendo pacificamente aceite que a violência, para efeitos de restituição provisória da posse, tanto pode incidir sobre as pessoas como sobre a coisa esbulhada.


É sabido que a jurisprudência tem oscilado entre duas teses no que concerne a determinar quando é relevante a violência sobre as coisas. Uma tese, mais restritiva, que defende que a violência relevante é a exercida contra a pessoa do possuidor; outra, mais lata, que defende que é bastante para integrar aquele requisito a violência sobre a coisa.


Tendo em conta que o conceito de violência se encontra plasmado no artigo 1261.º, n.º 1, do CC, que define como violenta a posse adquirida através de coação física ou de coação moral nos termos do artigo 255.º do mesmo Código, paulatinamente, a jurisprudência tem vindo a adotar o segundo critério, mas algo mitigado, ao defender que a violência relevante para haver esbulho não exige que seja praticada na presença do possuidor, mas o mesmo tem de ser privado da coisa contra a sua vontade e em consequência de um comportamento que lhe é alheio e que o impede de exercer a posse como até então a exercia.


Nestes termos, atualmente na jurisprudência consolidou-se o entendimento que a violência dirigida às coisas apenas será relevante para efeitos de restituição provisória de posse, a partir do momento em que, visando o possuidor, coloca-o numa situação de intimidação ou constrangimento (coação). Ou seja, em última linha, ainda que dirigida às coisas (mesmo não estando o possuidor presente), para que possa falar-se de violência, para efeitos de restituição provisória de posse, a mesma tem de representar uma forma de intimidação sobre o possuidor, pondo em causa a sua liberdade de determinação, impedindo-o, contra a sua vontade e consentimento de exercer a posse sobre determinada coisa.4


Veja-se, assim, a fundamentação vertida no acórdão do STJ de 09-11-20225, onde se lê: «(…) para justificar em que termos a violência seria relevante – escrevia o Prof. Manuel Rodrigues (in a posse, pág. 365 e ss):

“(…) pode perguntar-se se, em face do direito português, só é de atender à violência contra as pessoas ou também à violência contra as coisas; se só à violência física, ou também à violência moral.

A violência tanto pode ser contra as pessoas como contra as coisas. A história do art. 494.º do CPC de 1876, permite-nos fazer esta afirmação.

O projeto de Seabra não definia violência nem indicava os seus elementos; mas no primeiro projeto da Comissão Revisora, art. 366.º: «quer fosse exercida contra as coisas quer contra as pessoas».

(…)

O pensamento que dominava os redatores do Código era, pois, o que podia haver violência em qualquer dos casos. É certo que aquelas declarações foram depois suprimidas, mas a supressão foi apenas provocada pelo temor das definições.

Também o novo CPC nada diz, sendo de manter o pensamento tradicional.

A violência, porém, há-de exercer-se sobre as pessoas que defendem a posse, ou sobre as coisas que constituem um obstáculo ao esbulho, e não sobre quaisquer outras. (…)

A violência tanto pode consistir no emprego da força física, como em ameaças.

Efetivamente, embora o Código não o diga expressamente, não parece poder duvidar-se que a violência moral é suficiente para dar direito à ação de esbulho violento.

Em primeiro lugar, desde muito cedo se considerou a ameaça como suficiente para a violência; em segundo lugar, é o próprio Código Civil que ao definir coação no art. 666.º diz que esta pode consistir em fortes receios (de danos)”

Em função de tais ensinamentos, passou a considerar-se na jurisprudência que mudanças de fechaduras e substituições de cadeados para impedir a utilização de prédios – na medida em que pressupõem a destruição (e o inerente emprego de força física) de coisas (as anteriores fechaduras e cadeados) que constituíam obstáculo ao esbulho – preenchem o conceito de violência relevante[2]6; mas também se considerou que a mera colocação (sem qualquer prévia destruição e sem que qualquer obstáculo haja sido vencido) de fechaduras e cadeados não integra o conceito de violência[3]7.

E é neste ponto da discussão/divergência que o critério proposto pelo Prof. Lebre de Freitas – segundo o qual “é violento todo o esbulho que impede o esbulhado de contactar com a coisa possuída em consequência dos meios usados pelo esbulhador” (in CPC anotado, Vol. II, 2 ª Ed., pág. 78) – se nos afigura inteiramente pertinente; e consentâneo com a ideia de que também a coação moral – tendo presente que também é posse violenta a que foi obtida com coação moral (cfr. 1261.º/2 e 255.º do C. Civil) – preenche a violência, ou seja, integrará atuação violenta tanto aquela que se dirige diretamente à pessoa do possuidor como a que resulta duma ameaça que lhe é feita indiretamente (podendo tal ameaça respeitar à “pessoa, honra ou fazenda” – cfr. art. 255.º/2 do C. Civil).»

4. Vejamos, então, se no caso em apreço se verificam os pressupostos do decretamento da restituição provisória de posse supra referidos.


Previamente, e considerando as Conclusões 1 a 17, nas quais é transcrita parcialmente a decisão de facto da decisão inicialmente proferida, alegando a recorrente que a decisão recorrida incorre em erro de julgamento, importa dizer que, comparada a decisão de facto transcrita com a inscrita na sentença em recurso, os únicos factos que deixaram de se ter como indiciariamente provados dos alegados inicialmente pela Requerente reportam-se à inexistência de uma parede a separar os dois prédios. Efetivamente, no ponto 4 dos factos indiciariamente provados da sentença de 11-03-2024 consta que os dois prédios se encontravam separados «por uma parede, não existindo qualquer ligação entre ambos», matéria que, na decisão de 09-12-2023, passou a constar como não indiciariamente provada na alínea a. dos factos anteriormente considerados indiciariamente provados.


Do mesmo modo, no ponto 12 da decisão de 11-03-2024 tinha sido dado como indiciariamente provado («Uma vez que o primeiro Requerido não dispunha da chave da casa que pertence à Requerente, tal ocorreu através da mudança do canhão da fechadura que se encontrava na porta») passou a constar como não indiciariamente provada na alínea e. dos factos anteriormente considerados indiciariamente provados.


A que se acrescentou a matéria relacionada, alegada na oposição, e que ficou a constar da alínea h. dos factos não indiciariamente provados, ou seja, também não ficou indiciariamente provado que «O 1.º Requerido tivesse efetuado o arrombamento da porta dos prédios identificados em 2) e 3).»


Apesar da matéria dada como indiciariamente não provada ser de relevância extrema para a caracterização do esbulho violento, e, consequentemente, para o decretamento da providência invertendo-se o decidido na sentença recorrida para voltar a vingar a decisão inicialmente proferida, a Apelante não impugna a decisão de facto.


Não estando em causa matéria de conhecimento oficioso e não tendo a recorrente dado cumprimento ao disposto no artigo 640.º do CPC, o quadro factual indiciariamente apurado na decisão em recurso mantém-se incólume para efeitos de apreciação do presente recuso.

5. Concretizemos agora a análise em termos de preenchimento dos pressupostos da providência cautelar de restituição provisória de posse.


Em relação ao primeiro requisito (posse da Requerente), o tribunal a quo com base nos factos indiciariamente provados n.ºs 39 e 40, entendeu que não se encontrava indiciada a posse do imóvel (matriz 136), mencionando expressamente:

«No presente caso, não existe nenhum estado de facto para salvaguardar, pois não são praticados actos materiais de posse por parte da Requerente, e dos ante possuidores do prédio de que esta se roga proprietária há mais de 21 anos!

Por outro lado, temos dados como indiciados factos de que, pelo menos desde 16.12.2019 o 1.º Requerido, e posteriormente, a partir de 28.08.2023 os 2.ºs Requeridos fazem uso do prédio de que a Requerente se roga proprietária, ocupando o mesmo, praticando actos de conservação e manutenção do mesmo prédio, à vista de todos.

Pelo exposto, e atentos os factos indiciariamente dados como provados, é claro inexistir uma probabilidade de situação de posse por parte da Requerente, o que vale por dizer que, no caso vertente, a Requerente não indicia ter a posse bastante para fundamentar a restituição provisória.»


Não se pode sufragar tal entendimento.


Como acima se referiu a propósito da análise deste requisito, nada impede que o proprietário que, em regra, tem o corpus e o animus possa intentar ações de defesa da sua posse, para além da ação de reivindicação, sendo que o corpus faz presumir o animus.


Ora, a perda da posse ocorre nos termos previstos na lei, com o prevê o artigo 1267.º do CC, prescrevendo entre as situações em que tal ocorre, o abandono.


Todavia, o abandono não corresponde a mera inação ou inércia do titular que, negligentemente, deixa de cuidar e de vigiar a coisa.


Como referem PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA em anotação ao artigo 1267.º do CC, «(…) o abandono, que pressupõe um acto material praticado intencionalmente de rejeição da coisa ou do direito. (…) Abandona a posse ou a coisa possuída (situação diferente da simples inacção ou inércia do titular) desaparecem os dois elementos constitutivos dela – o corpus e o animus – pelo que seria juridicamente impossível a sua manutenção.»8


Ora, o que decorre dos pontos provados 39 e 40 da decisão de facto, não corresponde ao conceito de abandono que determine a perda da posse do imóvel por parte da Requerente.


Apesar da negligência da Requerente, não deixou de ter domínio de facto sobre a coisa, traduzido no exercício efetivo de poderes materiais sobre ela ou na possibilidade física desse exercício, nem deixou de verificar-se o animus possidendi, consubstanciado na intenção de exercer sobre a coisa, como seu titular, o direito real correspondente àquele domínio.


Nesse aspeto, não se pode corroborar este segmento da decisão recorrida, considerando-se, ao invés, que à data do alegado esbulho violento, a Requerente tinha a posse sobre o prédio inscrito na matriz sob o n.º 136.

6. E terá havido esbulho violento?


Na sentença recorrida também se considerou que não, justificando-se deste modo:

«Por um lado, a Requerente alegou, sem mais, que o 1.º Requerido teria trocado o canhão da porta do prédio de que se roga proprietária, sem mais, tendo tal facto sido dado como não provado. De facto, não foi dado como provado qualquer acto que permita qualificar a conduta do 1.º Requerido como conduta esbulhadora e violenta.

O 1.º Requerido adquiriu um prédio no âmbito de venda realização no processo de execução fiscal, tendo por sua vez, no âmbito desse processo de execução fiscal sido realizado o arrombamento da porta do prédio por si adquirido pelas autoridades com competência para o acto, que modo lícito (factos indiciariamente dados como provados, constantes dos pontos 8) e 20)), e posteriormente sido facultada uma chave ao mesmo para acesso a tal prédio, numa área total de 227,00 m2, dando, sendo possível deambular dentro dos prédios identificados em 2) e 3) dos factos dados como indiciados como se um só prédio se tratasse, sendo possível deambular entre as divisões internas dos mesmos sem a existência de qualquer obstáculo (inexistência de parede/muro divisório interno).

Nesta senda, “(…) A entrega judicial do imóvel ao exequente, a quem foi adjudicado no respectivo processo executivo, é um acto lícito que não importa esbulho relativamente a quem o vinha possuindo (…)” (cfr. Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 01.07.2014, proc. n.º 78/11.1TBMDB.P1, relator M. Pinto dos Santos, disponível em www.dgsi.pt).

Assim, não logrou a Requerente provar que o 1.º Requerido praticou facto que modificou, destruiu ou danificou a coisa como forma de expressar uma atuação contra a vontade do possuidor e não apenas sem a sua vontade, inexistindo factos indiciados que permitam afirmar ter existido por parte do 1.º Requerido uso de força física sobre o prédio de que a Requerente se roga proprietária.

Conclui-se, assim, pela não verificação do segundo e terceiro pressuposto – inexistência de prova de factos indiciados que consubstanciem actos qualificáveis como esbulho violento.»

Discorda a Recorrente alegando que existem dois prédios autónomos e que o 1.º Requerido ocupou o prédio contíguo ao adquirido e, desse modo, passou a usufruir de uma área superior e que pediu a retificação da área do imóvel que tinha adquirido, o que conseguiu concretizar, e depois conseguiu constituir a propriedade horizontal e, finalmente, vender o imóvel a terceiros.


Analisados os factos indiciariamente dados com o provados na sentença em recurso, resulta claro que o imóvel adquirido em sede executiva foi apenas o inscrito na matriz sob o n.º 545, com uma área total de 165m2, e que esse prédio é distinto e autónomo do prédio inscrito na matriz sob o artigo 136 (encontram-se descritos no registo predial em descrições diferentes e autónomas, daí resultando a sua autonomia registral – cfr. artigo 91.º, n.º 1, do Código de Registo Predial). Também resulta que o 1.º Requerido, desde a data em que foi empossado no prédio que adquiriu no processo executivo fiscal (em 16-12-2019), passou a ocupar os dois prédios (545 e 136) e neles iniciou uma atividade de alojamento local (cfr. pontos indiciariamente portados sob os n.ºs 2, 3, 4 a 15, 20, 26 a 28).


Apesar disso, e salvo o devido respeito, dos factos indiciariamente provados não resulta o esbulho violento.


Em relação ao apossamento do 1.º Requerido, o que decorre dos factos indiciariamente provados é que o mesmo adveio de um ato de empossamento praticado ao abrigo de um processo judicial executivo.


Ainda que não suscite dúvidas que no processo executivo foi adjudicado ao 1.º Requerente o imóvel 545 (e não o 136), no Auto de Arrolamento o prédio 545 (descrição 1220) é tido como correspondendo a dois números de polícia (3 e 5) e ali é dito que apenas foi arrombada a porta com o número de polícia n.º 3, dando acesso, assim, aos dois prédios, pelo que, a partir dessa altura, o 1.º Requerido passou a ocupar os dois prédios a coberto daquele ato judicial.


Por outro lado, eliminada dos factos indiciariamente provados a matéria referente à existência de uma parede a separar os prédios, que são contíguos, e, por outro lado, tendo também sido eliminada dos factos indiciariamente provados a matéria referente ao arrombamento do canhão da fechadura do prédio 136 (ou do prédio 545) por parte do 1.º Requerido, a conclusão a retirar é que não existem factos indiciariamente provados em relação ao esbulho violento sobre o prédio 136.


Na verdade, não só ficou indiciariamente demonstrado que a tomada de posse do 1.º Requerido teve na sua origem um ato judicial, que aparentemente ocorreu em relação aos dois imóveis, sem que se tenha apurado a concreta razão de tal sucedido (erro ou outro motivo não concretamente apurado), pois a venda judicial apenas se reportou a um imóvel (545), também não ficou indiciariamente demonstrado que o 1.º Requerido tenha exercido contra a coisa qualquer ato violento que, por essa razão, tenha causado algum constrangimento na Requerente no que concerne à utilização e disposição do imóvel 136.


Os atos posteriores praticados pelo 1.º Requerente (alteração da área inscrita, constituição da propriedade horizontal e venda do imóvel), exatamente por serem posteriores ao empossamento só seriam relevantes para efeitos de decretamento da providência de restituição provisória de posse se tivessem tido na sua origem um ato de esbulho violento que, pelas razões sobreditas, não se encontra indiciariamente demonstrado em sede cautelar.


O que basta para fazer claudicar a específica tutela cautelar requerida.


Sendo que a revogação do antes decidido encontra respaldo no n.º 2 alínea b) do artigo 372.º do CPC, no caso, essencialmente por, para além de terem sido produzidos outros meios de prova, foram estes conjugados com os inicialmente carreados e produzidos nos autos, donde resultou uma valoração diferente de alguns dos factos essenciais à decisão a proferir.


Consignando-se, ainda, que os autos não fornecem elementos que permitam a convolação oficiosa para o procedimento cautelar comum por não se encontrarem alegados factos referentes ao periculum in mora (artigo 379.º e 376.º, n.º 3, do CPC).


Em face do exposto, improcede a apelação, confirmando-se a decisão de 09-12-2024.

2. Responsabilidade tributária:


Dado o decaimento, as custas ficam a cargo da Apelante, sendo a taxa de justiça do recurso fixada pela tabela referida no n.º 2 do artigo 6.º do RCP, sem prejuízo de ser atendida, a final, na ação respetiva se for instaurada (artigos 527.º e 539.º do CPC).


III- DECISÃO


Nos termos e pelas razões expostas, acordam em julgar improcedente a apelação, confirmando a decisão recorrida.


Custas nos termos sobreditos.


Évora, 08-05-2025


Maria Adelaide Domingos (Relatora)


Ricardo Miranda Peixoto (1.º Adjunto)


Francisco Xavier (2.º Adjunto)

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1. Neste sentido, JOSÉ ALBERTO GONZÁLEZ, in 35.º Aniversário da Constituição de 1976, Coimbra Editora, 2012, p. 271 e JOSÉ ALBERTO C. VIEIRA, Direitos Reais, Coimbra Editora, 2008, p. 622.↩︎

2. ALBERTO DOS REIS, Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, 3ª ed., Reimp.,Coimbra Editora, p. 670.↩︎

3. Cfr. Ac. RP, de 12-09-2011, proc. n.º 83/11.8TBVLC.P1 (Rel. Mendes Coelho), em www.dgsi.pt; MARCO CARVALHO GONÇALVES, Providências Cautelares, Almedina, 2015, p. 260.↩︎

4. Cfr. Ac. STJ, de 19-10-2026, proc. n.º 487/14.4T2STC.E2.S1 (Rel. Fernanda Isabel Pereira), em www.dgsi.pt↩︎

5. Ac. STJ, de 09-11-2022, proc. n.º 150/22.2T8PTG-E1.S1 (Rel. António Barateiro Martins), em www.dgsi.pt↩︎

6. Esta nota tem o seguinte teor: «Cfr. Ac. STJ de 03-05-2000 (Relator Lopes Pinto); Ac. STJ de 07-07-1999, in BMJ 489.º/338; e Ac STJ de 12-06-1997 (Relator Herculano Namora).»↩︎

7. Esta nota tem o seguinte teor: «Cfr. Ac. STJ de 26-05-1998, in BMJ 477.º/506; e Ac STJ de 15-12-1999 (Relator Pais de Sousa).»↩︎

8. Código Civil Anotado, Vol. III, 2.ª ed., act., 2010, Wolters Kluver/Coimbra Editora, p. 32 (3).↩︎