Sumário:
Tendo-se provado que o condutor de um veículo conduzia sob o efeito do álcool, e com uma taxa elevada muito para além do permitido, e que, nessas circunstâncias, sem que tenha sido apurada qualquer outra razão ou motivo para tal, saiu inopinadamente da faixa de rodagem em que seguia e colidiu com o outro veículo que se encontrava estacionado na berma, é de concluir, que aquele condutor agiu com culpa exclusiva na produção do acidente, existindo um nexo de causalidade entre a condução sob o efeito do álcool, o acidente e os danos por ele causados.
Tribunal recorrido: TJ Comarca de Faro, Juízo Central Cível de Portimão – J1
Apelante: AA
Apelados: BB e Fundo de Garantia Automóvel
Acordam na 1.ª Secção do Tribunal da Relação de Évora
I – RELATÓRIO
BB intentou ação declarativa condenatória, sob a forma comum, contra FUNDO DE GARANTIA AUTOMÓVEL (FGA), pedindo a condenação do Réu a pagar-lhe:
a. por danos não patrimoniais, a indemnização de €20.000,00;
b. por danos corporais decorrentes da incapacidade parcial permanente, a indemnização de €160.000,00;
c. por danos não patrimoniais futuros e previsíveis nos próximos 2 anos, a indemnização de €30.000,00, relegando-se para execução de sentença o custo com eventuais intervenções cirúrgicas e internamentos e inerentes exames, bem como os preços dos medicamentos, tratamentos fisiátricos a que se revelem necessários para curar as lesões da autora;
d. juros de mora desde a data da citação até integral pagamento.
Para fundamentar a sua pretensão, alegou, em suma, que no dia 11-08-2020, pelas 19H20m, na EN 395, foi vítima de um acidente de viação quando se encontrava dentro do seu veículo estacionado na berma da estrada, tendo sido embatido na traseira por um veículo conduzido pelo seu proprietário, CC, que saiu da estrada onde seguia e invadiu a berma batendo no veículo da Autora, que, por sua vez, foi embater na traseira de outro veículo que se encontrava na berma à sua frente.
O referido condutor conduzia sob o efeito do álcool e não tinha seguro de responsabilidade civil automóvel válido.
Sofreu os danos que descreve na p.i. justificativos da indemnização peticionada.
Contestou o Réu por exceção (ilegitimidade passiva por não ter sido demandado o condutor do veículo) e por impugnação no que concerne ao circunstancialismo referente à ocorrência do acidente, danos sofridos pela Autora e valor dos mesmos.
Em sede de audiência prévia foi requerida e admitida a intervenção principal do condutor do veículo, CC, tendo o mesmo contestado a ação por exceção (ineptidão da p.i.) e por impugnação (questionou o grau de incapacidade, a existência da danos futuros e o quantum indemnizatório pedido), concluindo pela improcedência da ação.
Após ter sido facultado o contraditório em relação às exceções, em sede de audiência prévia realizada em 21-10-2022, foi admitido aperfeiçoamento da p.i., julgadas improcedentes as exceções, prosseguindo os autos para julgamento, ordenando-se, ainda, a realização de perícia médico legal.
Realizada a mesma, foi realizada audiência de discussão e julgamento, tendo sido proferida sentença que julgou a ação parcialmente procedente, condenando solidariamente, o Réu FGA e o Interveniente Principal a pagarem à Autora a quantia total de €25.000,00, sendo €15.000,00 a título de indemnização por dano biológico e €10.000,00 a título de indemnização por danos não patrimoniais, bem como em juros de mora, à taxa legal, desde a data do trânsito da sentença até integral pagamento, absolvendo os Réus do demais peticionado.
Inconformado, apelou o Interveniente Principal defendendo a revogação da sentença, apresentando as seguintes CONCLUSÕES:
«(…)1
5. E, é da sentença proferida nos presentes autos de que o Apelante recorre;
6. Entende o Apelante que, ao contrário na posição adotada pelo Tribunal a quo, não resulta dos factos provados que foi o único culpado pelo em causa nos autos e, como tal, não deve ser condenado ao pagamento de € 25.000,00 à Autora;
7. Não foi alegado pela Autora que o Réu foi o culpado pelo acidente;
8. A Autora também não alegou o nexo de causalidade entre a ocorrência do acidente e o facto do Interveniente conduzir sob o efeito de álcool, ou qualquer facto de onde se possa inferir a culpa do Interveniente;
9. Aliás pouco foi alegado quanto à dinâmica do acidente que permita aferir culpas;
10. Entende o Apelante que a decisão a que este douto tribunal estava adstrito foi além do thema decidendum, tratando-se, assim de um uso ilegítimo do poder jurisdicional em virtude de ter abordado e decidido questões de que não podia conhecer;
11. O Tribunal a quo ao conhecer factos não alegados e através deles fundamentar a sentença, incorre o Sentença na nulidade por excesso de pronúncia, prevista na alínea d) do nº 1 do artigo 615º do CPC, que está diretamente relacionado com o artigo 608°, n° 2, do CPC
12. O excesso de pronúncia, acaba por acobertar uma preterição do princípio do contraditório, princípio este com consagração nos artigos 3.º e 4.º do CPC e artigo 20.º, n.º 1 da CRP;
13. Ou seja, a sentença é intrinsecamente nula, por excesso de pronúncia;
14. No entanto, sem prescindir do excesso de pronúncia que se invoca, sempre se dirá que, não se alcança quer da prova produzida e da carreada para os autos, prova de onde seja possível concluir com certeza, que o Autor é o único culpado pelo acidente em causa nos autos;
15. O Tribunal a quo devia, nos termos da lei, ter ponderado toda a prova produzida, tê-la analisado e examinado criticamente;
16. Só depois desse exame podia, de forma coerente, lógica e sobretudo garantística dos direitos fundamentais do Recorrente, formar a sua convicção, devidamente sustentada nos meios probatórios no seu todo, e não de forma seletiva;
17. A culpa do Interveniente a ter sido alegada pela Autora (que não foi) teria de ter objeto de prova por parte desta (o que também não ocorreu);
18. A única coisa que se encontra provada nos autos é que o carro conduzido pelo Interveniente “saiu inopinadamente da faixa de rodagem em que seguia e colidiu com o seu veículo que se encontrava estacionado na berma”;
19. Não só não ficou provada a culpa do Interveniente no acidente, tão somente que este conduzia com uma taxa de alcoolemia superior ao legalmente permitido;
20. Como também, não se provou o nexo de causalidade adequada entre a condução sob o efeito do álcool e o acidente;
21. Pelo que, não provando a culpa do Interveniente na ocorrência do acidente, não lhe pode ser assacada responsabilidades;
22. Deveria, assim, numa boa aplicação do Direito, caso a nulidade invocada improceda, ser a sentença revogada e substituída por outra em que o Apelante seja absolvido dos presentes autos;
23. Ainda, por mera cautela de patrocínio, sem conceder, sempre se dirá que, considerou, o Tribunal a quo, fixar o quantum indemnizatório em € 25.000,00 (vinte e cinco mil euros), sendo € 15.000,00 a título de indemnização por dano biológico e € 10.000,00 a título de indemnização por danos não patrimoniais;
24. Ora, pese embora, o alegado suporte em tese jurisprudencial citado na douta decisão, para fixação do supra identificado montante, entende-se que não existiu um verdadeiro recurso; à equidade, porquanto, com todo o respeito, entende-se que não se encontra o devido suporte no valor fixado pelo Tribunal a quo;
25. Atenta toda a prova produzida nos presentes autos considera-se que o quantum indemnizatório fixado foi excessivo.
26. Pelo que, caso improceda a questão da má apreciação da prova, deverá, este Venerando Tribunal, em objetivação do princípio de equidade fixar o quantum indemnizatório em montante adequado para compensar os danos sofridos pela Recorrida.»
Na foi apresentada resposta ao recurso.
II- FUNDAMENTAÇÃO
A. Objeto do Recurso
Considerando as conclusões das alegações, as quais delimitam o objeto do recurso, sem prejuízo das questões que sejam de conhecimento oficioso e daquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras (artigos 635.º, n.ºs 3 e 4, 639.º, n.º 1 e 608.º, n.º 2, do CPC), não estando o tribunal obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes para sustentar os seus pontos de vista, sendo o julgador livre na interpretação e aplicação do direito (artigo 5.º, n.º 3, do CPC), no caso, impõe-se apreciar:
i. Nulidade da sentença;
ii. Impugnação da decisão de facto;
iii. Responsabilidade do Interveniente Principal;
iv. Do quantum da indemnização.
B- De Facto
A 1.ª instância proferiu a seguinte decisão de facto:
«1- No dia 11 de agosto de 2020, pelas 19:12 horas, a autora deu entrada no C.H.U.A-Unidade de Local 1, com prioridade laranja (muito urgente), por ter sido vítima de um acidente de viação (artº 1º da p.i.).
2- Esse acidente ocorreu quando veículo automóvel conduzido pelo interveniente nos presentes autos, e ao mesmo pertencente, saiu inopinadamente da faixa de rodagem em que seguia e colidiu com o seu veículo que se encontrava estacionado na berma, sendo que a descrição do acidente do auto da GNR do Posto Territorial de Local 2, que se encontra junta Factos Provados descrição do acidente do auto da GNR do Posto Territorial de Local 2, que se encontra junta aos autos como documento nº 2 da p.i., consta o seguinte:
“Das diligências efetuadas no local, presume-se que o acidente terá ocorrido da seguinte forma: O veículo n.º 1, transitava pela EN. 395 ao km 56, 300 Local 3, no sentido de marcha Local 4 para Local 2, quando junto ao café da ... em Local 3, foi colidir fora da faixa de rodagem como na traseira do veículo n.º 2, que se encontrava estacionado na berma, tendo este sido projetado com o embate contra a traseira do veículo n.º 3, que também se encontrava estacionado na berma.”;
E ainda: “Do acidente resultou ferimentos ligeiros à proprietária do veículo n.º 2, que na altura se encontrava dentro da viatura, tendo recebido os primeiros socorros e posteriormente sido transportada para o Hospital Central de Local 1.”;
E: “Em relação às viaturas ficaram bastante danificados, veículo nº 1, zona frontal completamente danificada.”;
E: “Veículo n.º 2 danificado na parte traseira lado esquerdo.”;
E, finalmente, “Veículo n.º 3 danificado na parte traseira frontal.” (artº 2º da p.i., com o aperfeiçoamento introduzido em sede de audiência prévia).
3- O veículo nº 1 pertence a AA, português, nascido a ...7...-12, titular do cartão de cidadão n.º ..., emitido pela República Portuguesa, válido até ...-...-2027, contribuinte fiscal n.º ..., residente na ... Local 2, freguesia de Local 2, concelho de ... (artº 3º da p.i.).
4- Trata-se de um carro ligeiro de passageiros, com a matrícula n.º ..-..-DG, marca Toyota, modelo Corolla, de cor azul, e circulava sem seguro (artº 4º da p.i.).
5- O veículo nº 2, propriedade e conduzido pela autora, trata-se de um carro ligeiro de passageiros, com a matrícula ..-AE-.., marca Audi, modelo A-3, de cor preta, e circulava com seguro válido (artº 5º da p.i.).
6- A autora tem um contrato de apólice de seguro n.º ..., com a seguradora Zurich- Companhia de Seguros Vida, S.A, Tipo Ramo não Vida, válida até 01-07-2021 (artº 6º da p.i.).
7- O acidente ocorreu na estrada nacional EM 395 KM 56,300, na freguesia das Local 4, concelho de ... (artº 7º da p.i.)
8- O condutor, AA, foi submetido ao teste de álcool pelo ar expirado em aparelho qualitativo, e apresentou indícios de álcool, sendo submetido ao teste de álcool pelo ar expirado, através de alcoolímetro quantitativo, tendo acusado um TAS de, pelo menos 3,031 g/l correspondente à TAS de 3,19 registada, deduzido o valor do erro máximo admissível, e que foi aberto um processo crime, sob o número 72/20.1... (artsº 8º a 10º da p.i.).
9- Assim, como foi aberto um processo de sinistro com a seguradora Zurich Insurance Plc-Sucursal em Portugal, com o n.º de processo n.º ..., código ASF (artº 11º da p.i.).
10- A autora foi ressarcida pela ré no montante de € 2.376,00 (dois mil trezentos e setenta e seis euros), a título de anos patrimoniais (abate do veículo e despesas médicas) (artº 12º da p.i.).
11- A autora sofreu sequelas físicas que deram origem a danos permanentes no corpo (artº 13º da p.i.).
12- De acordo com o relatório resumo de episódio de urgência, quando a autora deu entrada no Hospital de Local 1, veio por dorsalgia e dor retroesternal + amnesia para o sucedido, com grande traumatismo e com dor severa (artº 14º da p.i.).
13- “O estudo ósseo da base e da calote craniana não evidenciou sinais de fraturas.
Ligeiras calcificações ateromatosas murais dos sifões carotídeas.” (artº 15º da p.i.).
14- Foi feito um TC da Coluna Lombar que descreveu uma acentuação da curvatura lordótica lombar, e a apreciação dos elementos esqueléticos estudados não demonstraram traços fracturários (artº 16º da p.i.).
15- Foi-lhe medicado Cetorolac 30 mg/1 ml, Metamizol Magnésio 2000 mg/5 ml, Metoclopramida 10 mg/2 ml, Pantoprazol 40 mg, Metoclopramida 10 mg/2ml, Tramadol 100 mg/2 ml, Paracetamol 10 mg/ml, Cloreto de Sódio 9 mg/ml (artº17 º da p.i.).
16- A autora teve alta por neurocirurgia, com analgesia (artº 18º da p.i.).
17- Seis dias depois a autora regressou ao Hospital deLocal 1 por problemas oftalmológicos (artº 19º da p.i.).
18- No entanto, saiu do hospital com alta para o domicílio (artº 21º da p.i.).
19- Contudo, a autora continuou com dores na coluna (artsº 22º, 23º e 25º da p.i.)
20- A dificuldade na utilização da visão por parte da A. manteve-se por 100 dias (artsº 20º e 24º da p.i.).
21- No dia 18 de novembro de 2020, a autora teve uma consulta com o oftalmologista Dr. DD no Centro Hospitalar Universitário do Algarve, onde se efetuou o seguimento do que lhe fora diagnosticado aquando dos episódios de urgência hospitalar, uma paresia traumática do IV par direito, classificada nesta consulta como “resolvida” (artº 26º da p.i.).
22- E no dia 05/02/2021, em consulta com o Dr. EE, médico ortopedista, ficou relatado o seguinte:
“- A doente apresenta várias patologias osteoarticulares degenerativas, que ocasionam limitação funcional. Passo a descrever:
- Cervicalgia e rigidez cervical crónica por espondilodiscartrose avançada;
- Omalga e rigidez da glenoumeral esquerda, por patologia degenerativa da coifa dos rotadores;
- Epicondilite bilateral fortemente sintomática;
- Lombalgia mecânica com diminuição da força muscular e radiculalgia dos membros inferiores. Este quadro relaciona-se com espondilodiscartrose lombar severa e listése degenerativa L4- e L-5 com compressão de raízes. Instabilidade lombossagrada. Tem rigidez dorsolombar e ciática persistente. De referir agravamento destas queixas dolorosas após acidente de viação sofrido a 11/8/2020.
- Rigidez acentuada do retropé direito, relacionada com artrose da mediotársica e tenossinovite crónica do tibial posteriores.”, sendo que em tal ocasião este clínico considerado essas incapacidades e atribuído uma incapacidade parcial permanente de 67,75%.” (artº 27º da p.i.)
23- A autora, por resultado do acidente de viação, agravou a sintomatologia dolorosa a nível da coluna dorso-lombar, inerente a patologia degenerativa grave que já apresentava à data do acidente (sendo que nessa altura já apresentava uma incapacidade de 66%, desde o ano de 2015, a qual fora feita constar do Atestado Médico Multiusos que foi junto à p.i. como documento nº 7), agravação fixada em sede pericial, de acordo com a Tabela Nacional de Incapacidades, em 2 pontos (artsº 28º da p.i., 6º da contestação do R. e 24º e 34º da contestação do interveniente).
24- A autora tem ajuda de terceiros, nomeadamente da dos filhos, para as atividades da vida diária, sendo que em sede de perícia ficou referido o seguinte:
“− A data da consolidação médico-legal das lesões é fixável em 18/11/2020 (i.e.,
100 dias após o evento traumático);
− Período de Défice Funcional Temporário Total fixável em 45 dias;
− Período de Défice Funcional Temporário Parcial fixável em 55 dias;
− Período de Repercussão Temporária na Atividade Profissional Total fixável em
100 dias;
− Quantum Doloris fixável no grau 4/7;
− Défice Funcional Permanente da Integridade Físico-Psíquica fixável em 2
pontos;
− Em termos de Repercussão Permanente na Atividade Profissional, as sequelas
descritas são compatíveis com o exercício da atividade habitual, mas implicam esforços
suplementares;
− Não há lugar à valorização de Dano Estético Permanente;
− Repercussão Permanente nas Atividades Desportivas e de Lazer fixável no grau 3/7” (artsº 30º, 33º, 34º e 36º da p.i.).
25- A autora sofreu quando estava no hospital, e sofre em casa atualmente ainda com dores (artsº 31º e 32º da p.i.).
26- A. apresentava, à data do acidente, os seguintes antecedentes médicos, feitos constar em registo de episódio de urgência: “Cólica renal (Diagnóstico, Em investigação, 16-Nov-2015), cólica renal (Diagnóstico, EM investigação, 26-Abr-2016), Doenças e lesões (Diagnóstico, Confirmado, 04-Fev-2016), Metrorragia (Diagnóstico, Em investigação, 04-Fev-2016), Anemia aguda pós-hemorrágica (Diagnóstico, Em investigação, 04-Fev-2016), Cólica renal (Diagnóstico, Em investigação, 08-Jul-2017), Abuso de drogas, sem dependência (Diagnóstico, Em investigação, 08-Jul-2017), Contusão da parede torácica (Diagnóstico, Em investigação, 12-Ago-2020), Cegueira e visão subnormal (Diagnóstico, Em investigação, 17-Ago-2020)” (artº 25º da contestação do interveniente).»
Factos Não Provados
«Não se respondeu à matéria dos artºs 29º e 38º a 41º da p.i., 4º, 5º e 7º a 10º da contestação do R. e 9º a 23º, 26º a 33º e 35º a 53º da contestação do interveniente, por se considerar o respetivo teor conclusivo.
Considerou-se a matéria dos artºs 1º a 3º da contestação do R. e 1º a 8º da contestação do interveniente prejudicadas em face da decisão das exceções em sede de saneamento (ilegitimidade, que veio a ser sanada, e ineptidão, que foi julgada improcedente) Foi considerado genericamente insuscetível de resposta o artº 37º da p.i. (o que decorre da mera leitura do mesmo).»
C. Do Conhecimento das questões suscitadas no recurso
1. Nulidade da sentença
Nas Conclusões 5 a 12, o Apelante vem arguir a nulidade da sentença por excesso de pronúncia, nos termos do artigo 615.º, n.º 1, alínea d), conjugado com os artigos 608.º, n.º 2, 3.º e 4.º do CPC, e artigo 20.º, n.º 1, da CRP.
No essencial, alega que não resulta dos factos provados que foi o único culpado do acidente, facto que a Autora não alegou; nem tão pouco o nexo de causalidade entre o acidente e o facto do mesmo conduzir sob a influência do álcool. Ademais, acrescenta que o tribunal foi além do thema decidedum e conheceu de questões de que não podia conhecer.
Vejamos, então, se a sentença é nula.
As nulidades da sentença encontram-se taxativamente elencadas nas várias alíneas do n.º 1 do referido artigo 615.º, do CPC e correspondem a vícios formais que afetam a decisão em si mesma, mas não se confundem com erros de julgamento de facto ou de direito, suscetíveis de determinar a alteração total ou parcial da decisão proferida.
A nulidade prevista no artigo 615.º, n.º 1, alínea d), do CPC, na vertente da omissão de pronúncia, está diretamente relacionada com o comando do artigo 608.º, n.º 2, do mesmo Código, reportando-se ao não conhecimento das questões (que não meros argumentos ou razões2) alegadas relativas à consubstanciação da causa de pedir e do pedido formulado pelo autor e da reconvenção e/ou das exceções invocadas na defesa3, conforme as concretas situações que os autos apresentam.
No presente caso, a causa de pedir desta ação em que assenta o petitório, é constituída pelos factos relacionados com um acidente de viação alegadamente causado por culpa exclusiva do Interveniente Principal (alegação que ficou aperfeiçoada aquando da Audiência Prévia realizada em 21-10-2022, tendo ali ficado mencionado que ficava esclarecido que a Autora pretende ser ressarcida dos danos que lhe foram causados pelo acidente, acrescentando-se à p.i. que «o veículo automóvel conduzido pelo interveniente nos presentes autos, e ao mesmo pertence, saiu inopinadamente da faixa de rodagem em que seguia e colidiu com o seu veículo que se encontrava estacionado na berma»), afigura-se-nos inquestionável que as questões decidendas e controvertidas nos autos se reportam, como de resto se enunciou aquando da menção do objeto do litígio e da discriminação dos temas da prova, ao apuramento do direito da Autora ao ressarcimento dos danos causados pelo acidente, o que passava por apurar a dinâmica do acidente, os danos sofridos e futuros e, ainda, se havia lesões pré-existentes que concorriam ou interferiam com as decorrentes do acidente.
Ora, todas estas questões têm como pressuposto o apuramento da responsabilidade civil do Interveniente Principal enquanto condutor do veículo que causou o acidente, o que pressupõe a apreciação dos requisitos do artigo 483.º do Código Civil (CC), relevando nesse apuramento, todos os elementos previstos no referido precito (a existência de um facto voluntário praticado pelo agente lesante, a ilicitude, a culpa, o dano e o nexo de causalidade entre o facto e o dano), no caso, com especial enfoque na aferição da culpa do agente e na existência de nexo de causalidade entre o facto e o dano.
Todas estas questões foram analisadas e decididas na sentença, pelo que não existe qualquer excesso de pronúncia.
Nestes termos, improcede a arguida nulidade da sentença.
2. Impugnação da decisão de facto
Nas Conclusões 14 a 17, o Apelante alega que da prova produzida e carreada para os autos, não resulta que o mesmo é o único culpado do acidente, questionando se o tribunal a quo fez uma correta e criteriosa apreciação e valoração da prova.
Apesar desta alegação, o Apelante nunca refere (como também não o faz na motivação do recurso) que pretende impugnar a decisão de facto. Tão pouco concretiza os factos que merecem o juízo crítico quanto à decisão de facto levada a cabo pelo tribunal a quo, limitando-se a invocar de forma genérica a prova carreada para os autos sem qualquer concretização.
Mesmo na Conclusão 18 quando alude ao que apenas ficou provado (com reporte ao ponto 2 dos factos provados), coloca a questão em termos de não resultar daquela factualidade a sua culpa e o nexo de causalidade. Nunca menciona que pretende impugnar a decisão de facto, em que termos e com que fundamentos.
Ora, em face da alegação do Apelante é imperioso concluir que o mesmo não impugna a decisão de facto, porquanto não resulta da sua alegação o cumprimento dos requisitos da impugnação previstos no artigo 640.º do CPC.
Efetivamente, para além de não expressar a vontade de impugnar a decisão de facto, também não identifica a matéria da facto objeto de erro de julgamento, não identifica os concretos meios probatórios, constantes do processo ou da gravação nele realizada, que impunham decisão diversa, não menciona a decisão que deveria ter sido proferida, nem indica as passagens da gravação em que funda a discordância.
Assim sendo, nem sequer se pode considerar que a decisão de facto se encontra impugnada e, mesmo que assim se não entendesse, sempre a mesma seria alvo de rejeição por completa falta de cumprimento dos requisitos do artigo 640.º do CPC, que constituem ónus a cargo do impugnante e cujo incumprimento determina a rejeição da impugnação.
3. Responsabilidade do Interveniente Principal
Nas Conclusões 18 a 22, o Apelante questiona a sua responsabilidade (culpa exclusiva) pela produção do acidente, alegando que apesar de ter sido ficado provado que conduzia com uma taxa de alcoolemia superior ao legalmente permitido, não se provou o nexo de causalidade entre a condução sob o efeito do álcool e o acidente.
Na apreciação desta questão, remete-se para a sentença recorrida onde foram analisados de forma fundamentada os pressupostos do artigo 483.º do CC acima referidos, concluindo-se pelo seu preenchimento por conduzir um veículo sob o efeito do álcool («TAS de, pelo menos, 3,031g/l, correspondente à TAS de 3,19 registada» – cfr. facto provado 8) e no decurso da condução ter «sai[do] inopinadamente da faixa de rodagem em que seguia e colidiu com o seu veículo [da Autora] que se encontrava estacionado na berma» (cfr. facto provado 2), provocando no veículo e na Autora os danos descritos nos factos provados 10 a 25.
A sentença recorrida imputou ao ora Recorrente a culpa exclusiva pela produção do acidente por conduzir com excesso de álcool, circunstância que teve como causal do acidente, responsabilizando-o, ainda, por não possuir seguro válido.
Em relação a este último facto, o ora Recorrente nada diz na sua alegação.
Analisada a sentença, concorda-se em absoluto com o decidido.
Vejamos, porquê.
Por um lado, em face dos factos provados, não resulta que a conduta da Autora seja subsumível à prática de qualquer infração estradal ou de outra natureza, como, aliás, se menciona na sentença após analisar os artigos 11.º, n.º 2, 13.º, 48.º, n.º 1 a 3, 49.º e 50.º do Código da Estada - CE (Decreto-Lei n.º 114/94, de 03-05), sem que o Recorrente tal questione.
Por contrário, já a conduta do conduta do condutor do veículo é ilícita e viola com culpa o direito da Autora, uma vez que se apurou que conduzia com uma taxa de alcoolemia. Efetivamente, ficou provado que conduzia, pelo menos, com uma TAS de 3,031g/l, correspondente à TAS de 3,19 registada, o que é passível de ser enquadrado no artigo 81.º, n.º 1 e 2, do CE, que proíbe a condução sob a influência de álcool, considerando este preceito que tal sucede quando o «condutor [que] apresente uma taxa de álcool no sangue igual ou superior a 0,5 g/l ou que, após exame realizado nos termos previstos no presente Código e legislação complementar, seja como tal considerado em relatório médico».
Além disso, a taxa de alcoolemia apurada nos autos, também pode ser subsumível à prática do crime p.p. no artigo 292.º do Código Penal, por ser superior a 1,2 g/l.
Ora, tendo-se provado que o condutor conduzia sob o efeito do álcool, e com uma taxa elevada muito para além do permitido, e que, nessas circunstâncias, sem que tenha sido apurado qualquer outra razão ou motivo para tal, «saiu inopinadamente da faixa de rodagem em que seguia e colidiu com o seu veículo [da Autora] que se encontrava estacionado na berma», é de concluir, até por juízos de razoabilidade e de verosimilhança4, que o condutor agiu com culpa exclusiva na produção do acidente, existindo um nexo de causalidade entre a condução sob o efeito do álcool, o acidente e os danos por ele causados.
Ademais, cabe referir que o estabelecimento do nexo de causalidade nas situações em que o condutor provoca o sinistro conduzindo sob o efeito do álcool, pode até ter-se verificado por via de presunção, como a jurisprudência vem defendendo no âmbito da ação de regresso intentada pela seguradora contra o condutor que provocou um acidente encontrando-se sob o efeito do álcool. Efetivamente, atualmente, em face do artigo 27.º, alínea c), do Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21-08, tem sido entendido que deve ser afastada a força persuasiva da jurisprudência fixada pelo AUJ n.º 6/2002. Ou seja, mesmo naquelas ações, o direito de regresso da seguradora contra o condutor que, no exercício da condução, tenha dado causa ao acidente, conduzindo com uma taxa de alcoolemia superior à legalmente admitida, não exige a prova do nexo causal entre a ocorrência do acidente e a condução sob o efeito do álcool, pois a lei presume-o. Sem prejuízo do segurado proceder à elisão da presunção, provando que a ocorrência do acidente não se ficou a dever à sua condução sob o efeito do álcool, impedindo, assim, o direito de regresso da seguradora.5
Estabelecidos os requisitos da responsabilidade civil extracontratual do Interveniente Principal, que determinam a responsabilidade exclusiva deste pela produção do acidente, e não existindo à data do sinistro seguro de responsabilidade civil automóvel válido, por força dos artigos 47.º, n.º 1, 48.º, n.º1, alínea a), 49.º, n.º 1e n.º 2, 49.º, n.º 1, alíneas a) a c), e n.º 2, 54.º e 62.º, n.º1, do Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21-08, são solidariamente responsáveis pelo pagamento dos danos mencionados no já referido artigo 49.º, n.º 1, alíneas a) a c), o FGA e o proprietário/condutor do veículo, ou seja, no caso, o ora Recorrente.
Improcedem, assim, as Conclusões de recurso no que concerne a esta questão.
4. Do quantum da indemnização
Nas Conclusões 23 a 26, o Apelante questiona o quantum da indemnização fixada, alegando que, apesar da sentença se ter socorrido da jurisprudência que cita, o mesmo não foi fixado atendendo à equidade. Defende o Apelante que o mesmo é excessivo, pugnando para que seja fixado um «quantum indemnizatório em montante adequado».
Deste modo singelo, o Recorrente questiona a fundamentação do decidido, sem que na verdade, nada adiante de substancial, já que nem sequer refere qual seja, no seu entender, o montante adequado.
Ora, da leitura da sentença em relação à fundamentação dos montantes indemnizatórios, percebe-se que o tribunal a quo se socorreu do disposto no artigo 496.º do CC, que elege como regra a equidade para aferir e valorar os danos não patrimoniais e o quantum da indemnização pelo dano biológico, que, no caso, assume uma feição essencialmente não patrimonial por a lesada se encontrar reformada, tendo ficado afetada com um défice funcional permanente de integridade físico-psíquica fixado em 2 pontos e com sequelas que são compatíveis com o exercício da atividade habitual, mas implicam esforços complementares.
Socorrendo-se, ainda, da análise de vários casos extraídos da jurisprudência com alguma similitude com o presente, como impõe o artigo 8.º, n.º 3, do CC, tendo, assim, alcançado valores indemnizatórios dentro dos parâmetros habituais fixados pelos tribunais que, a pecarem é por defeito e não por excesso, considerando as lesões e os danos apurados.
Nestes termos, também improcede este segmento do recurso.
Em suma, nenhuma censura merece a sentença recorrida.
Dado o decaimento, as custas ficam a cargo da Apelante (artigo 527.º do CPC), sendo a taxa de justiça do recurso fixada pela tabela referida no n.º 2 do artigo 6.º do RCP, sem prejuízo do benefício do apoio judiciário que lhe foi concedido.
III- DECISÃO
Nos termos e pelas razões expostas, acordam em julgar improcedente a apelação, confirmando a sentença recorrida.
Custas nos termos sobreditos.
Évora, 08-05-2024
Maria Adelaide Domingos (Relatora)
Francisco Xavier (1.º Adjunto)
Manuel Bargado (2.º Adjunto)
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1. Omitem-se as Conclusões a 1 a 4 porque apenas relatam a tramitação processual até à prolação da sentença não incluindo qualquer questão a conhecer nesta sede de recurso (cfr. artigo 639.º do CPC).↩︎
2. Cfr., entre outros, AC. STJ, de 06/05/2004, proc. n.º 04B1409 e AC. STJ, de 27/10/2009, proc. n.º 93/1999.C1.S2, em www.dgsi.pt↩︎
3. Cfr, entre outros, Ac. STJ, de 16/09/2008, proc. n.º 08S321, em www.dgsi.pt↩︎
4. Cfr. Ac. RC, de 18-10-2020, proc. n.º 2599/19.9T8GMR.G1, em www.dgsipt↩︎
5. Neste sentido, cfr. entre outros, Ac. STJ, de 10-12-2020, proc. n.º 3044/18.2T8PNF.P1.S1; AC. RL, de 02-05-2019, proc. n.º 71/18.3T8AGH.L1-6; Ac. RE, de 28-06-2023, proc. n.º 37/19.6T8CCH.E2; AC. RC, de 26-09-2023, proc. n.º 746/22.2T8PBL.C1; Ac. RC, de 21-05-2024, proc. n.º 545/23.4T8PMS.C1, todos em www.dgsi.pt↩︎