Sumário:
I. Ao procuração forense é o instrumento jurídico unilateral que formaliza e materializa o contrato de mandato forense.
II. A emissão e junção aos autos de uma procuração forense pela parte sem o conhecimento e prévio conhecimento da Advogada assim mandatada, e sem que esta tenha previamente celebrado um contrato de mandato forense de suporte àquela procuração forense, torna-a imune em relação à obrigação de ressarcimento de eventuais prejuízos decorrentes da prática, ou falta de prática, de atos jurídico-processuais no âmbito do referido processo.
III. O que igualmente decorre do regime da responsabilidade específica dos Advogados prevista no EOA e demais legislação conexa, porquanto nenhum mandado forense foi celebrado entre as partes.
Tribunal recorrido: TJ Comarca Santarém, Juízo Local Cível de Ourém
Apelante: Livro Sábio – Livraria e Papelaria, Ld.ª
Apelada: AA e Seguradora XI Insurance Company Limited
Acordam na 1.ª Secção do Tribunal da Relação de Évora
I – RELATÓRIO
LIVRO SÁBIO – LIVRARIA E PAPELARIA, LD.ª intentou ação declarativa condenatória, sob a forma de processo comum, contra AA (1.ª Ré) e SEGURADORA XI INSURANCE COMPANY LIMITED (2.ª Ré) pedindo a condenação das Rés a pagarem-lhe €7.500,00 (correspondendo €5.315,81 a danos patrimoniais e €2.500,00 a danos não patrimoniais), acrescidos dos juros de mora vencidos desde a citação, até integral pagamento.
Para tanto, e em suma, alegou que através do seu legal representante, BB, outorgou procuração à 1.ª Ré, conferindo-lhe poderes de representação no processo n.º 1162/19.9..., a correr termos no Tribunal Administrativo e Fiscal de Leiria, na qual impugnou um determinado ato administrativo.
A 1.ª Ré não aperfeiçoou a petição inicial, nem juntou o ato administrativo impugnado, apesar de ter sido notificada pelo tribunal para esse efeito, nem disso deu conhecimento à Autora, como tão pouco lhe deu conhecimento da sentença proferida que julgou extinta a instância por falta de junção do ato impugnado e absolveu o Réu da instância.
Mais alegou que foi instaurada execução fiscal e realizada penhora sobre vários bens da Autora.
Concluindo que, com tal conduta, a 1.ª Ré incorreu em responsabilidade civil por lhe ter causado danos patrimoniais e não patrimoniais que pretende lhe sejam indemnizados.
Em relação à 2.ª Ré, alegou que a mesma responde pelos danos em causa por via do contrato de seguro de responsabilidade profissional de que é segurada a 1.ª Ré.
Contestou a 1.ª Ré, defendendo-se por exceção e por impugnação, alegando, em suma, que não celebrou qualquer contrato de prestação de serviços jurídicos, designadamente para intervir como mandatária no processo administrativo referido supra, pelo que não incumpriu quaisquer deveres contratuais, não incorrendo em responsabilidade civil, pedindo que a ação seja julgada improcedente.
Também deduziu pedido reconvencional pedindo a condenação da Autora a pagar-lhe uma indemnização de €12.000,00, desde a notificação da reconvenção até efetivo pagamento, pelos danos não patrimoniais sofridos.
Mais pediu a condenação da Autora como litigante de má-fé.
Também contestou a 2.ª Ré.
Por exceção, alegou a exclusão e/ou caducidade da cobertura da apólice por (i) os factos e circunstâncias em causa serem conhecidos da Autora e da 1.ª Ré, pelo menos, em 2020, ou seja, há mais de dois anos antes do início da vigência da apólice (01.01.2021); (ii) por terem sido apenas comunicados em 15.03.2021; (iii) por inexistência de mandato forense entre a Autora e a 1.ª Ré, tendo esta apenas auxiliado a Autora na assinatura de documentos.
Por impugnação, defendeu que não se encontram preenchidos os pressupostos da responsabilidade civil por perda de chance.
Concluiu pedindo a sua absolvição da instância ou dos pedidos.
Na sequência da notificação da Autora para se pronunciar sobre as exceções, defendeu a improcedência das mesmas, bem como a improcedência do pedido reconvencional.
O pedido reconvencional foi admitido e proferido despacho saneador que remeteu o conhecimento das exceções para final.
Realizada audiência de discussão e julgamento foi proferida sentença que julgou a ação improcedente, absolvendo os Réus do pedido, julgando igualmente improcedente a reconvenção, absolvendo a Autora do pedido reconvencional.
Mais julgou improcedente o pedido de litigância de má-fé.
Porém, esta sentença veio a ser anulada por acórdão desta Relação de Évora prolatado em 11-04-2024, a fim de ser ampliada a decisão de facto.
Devolvidos os autos à 1.ª instância, foi reaberta a audiência de discussão e julgamento, tendo nela sido prestadas declarações de parte pelo legal representante da Autora e pela 1.ª Ré.
Em 17-09-2024, foi proferida sentença que julgou a ação e a reconvenção improcedentes, absolvendo, respetivamente, as Rés e a Autora dos pedidos, julgando também improcedente o pedido de litigância de má-fé formulado contra a Autora.
Inconformada, a Autora interpôs recurso de apelação pugnando pela revogação da sentença e consequente procedência da ação, apresentando as seguintes CONCLUSÕES:
«1 – Sucede que, a douta sentença recorrida não só não deu como provada a matéria de facto adveniente do pedido/decidido pelo TR, como também não extraiu nenhuma consequência jurídica do mesmo no âmbito da ação.
2 - Mostra-se, assim necessário, ao abrigo do disposto no art.º 640º do Código de Processo Civil, que a Recorrente proceda à impugnação da decisão relativa à matéria de facto, com base nos fundamentos da sentença, como atrás ficou expendido.
3 - A Recorrente considera que existem pontos de facto incorretamente julgados porque totalmente omitidos na douta sentença, nomeadamente os dois pontos que se consideram preponderantes, a existência de mandato devidamente autorizado como se demonstra com prova documental e relativamente à notificação por parte do TAF do aperfeiçoamento da PI devidamente enviada à Recorrida na qualidade de mandatária, por notificação electrónica em 10 de Março de 2020.
4 - Atendendo a que toda a impugnação da matéria de facto tem por base (apenas e tão-só) omissão de factualidade que se pedirá seja dada como provada.
5 - Na verdade, a Recorrida, na sua contestação, não impugnou nenhum dos documentos juntos pela Recorrente, devendo o teor desses documentos serem dados como provados e porque pertinentes, como atrás se demonstrou.
6 – A Recorrida, vem alegar ter assinado de favor e simultaneamente recusar a tramitação por falta de pagamento dos honorários e depois alega falta de pagamento de fatura.
7 – A Recorrida, não se percebendo porquê, junta faturas que não respeitam à Recorrente.
8 – A Recorrida, nunca apresentou qualquer documento para pagamento
10 – O tribunal a quo reconhece que a notificação do TAF foi efectuada a dia 10 de Março de 2020, endereçada à Recorrente na qualidade de mandatária.
11 – A Recorrida, reconhece apenas em 20/10/2020 vir informar a recorrente que não dava tramitação processual, fazendo-o decorridos mais de 7 meses.
12 – A Recorrida só deu a conhecer a notificação de 10/3/2020 em Novembro de 2020, isto após muita insistência no pedido, conforme resulta provado dos documentos juntos aos autos.
13 – E, fê-lo após decorrido o prazo para aperfeiçoar a PI junto do TAF.
14 - No e-mail de 17/2/2020 a Recorrida aceitou que fosse junta a procuração
15- Acresce referir que a mesma fez a retenção de informação do tribunal não a fazendo chegar ao destinatário, senão da sentença final, isto apesar dos vários pedidos de informação sobre o processo, nada fazendo.
16- Contudo, como resultara da consulta ao processo do TAF a Recorrida nunca renunciou ao mandato.
17 – Ora, o que a Recorrida justifica, meramente por depoimentos, nunca pode ser aceite sem que haja má-fé pois que se não aceitava o mandato deveria renunciar assim que teve conhecimento da existência do mesmo.
18- O que não fez.
19 - A Recorrida, podia e devia pedir, a renuncia do mandato, disso informado a recorrente, só assim podia rescindir, o contrato de mandato a que estava adstrito.
20– Não o fazendo impossibilitara a Recorrente de procurar outro advogado que a representasse.
21 – A Recorrente entende que a Recorrida não salvaguardou os seus direitos e que não cumpriu devidamente o mandato que lhe conferiu, razão pela qual intentou a ação, direito que lhe assiste e que tal incumprimento lhe causou prejuízos.
22 – Nos tribunais, o advogado assegura que, em cada uma das fases do processo, se prossiga no sentido da liquidação da verdade processual.
23– Ora, a Recorrida desrespeitou da mais profunda forma a deontologia profissional da sua profissão.
24 - O tribunal a quo decidiu com fundamento num facto de não prova do mandato, pelo que não se apreciou devidamente os documentos juntos com a PI, em que a Recorrida assentiu na junção da procuração aos autos do TAF.
25 - Alega a Recorrida “que assinou por favor” mesmo considerando a sua existência como apregoa não a isenta de agir como homem diligente e com bom senso.
26 – Contudo alega não estar mandatada como o faz dizendo não terem sido pagos os honorários
27 - Assim, aplicando-se o direito, deve dar-se como provado o mandato, no âmbito do negociado entre as partes.
28 - O e-mail (DOC 1 ) consubstancia em simultâneo um acto de comunicação e uma acto de validade. É uma acto de comunicação por dela se depreender uma opção aceitação do declarante que assim se exterioriza. É um acto de validade porque com ele o declarante manifesta uma adstrição da própria vontade.
29- Ora, se a Recorrida não teve o papel de mandatária, como recebe correspondência do tribunal?
30 - Não a recusando.
31 - Não informando a Recorrente.
32 – Desta fora a recorrida teve uma conduta que se entende pouco diligente.
33 - O advogado que, no exercício de mandato judicial, viola os deveres de estudar com cuidado e tratar com zelo a questão de que seja incumbido, não utilizando todos os recursos da sua experiência, saber e atividade, incorre em responsabilidade contratual.
34 – Concluindo, a Recorrida nunca pode dizer que não estava mandatada, pois havia autorização e conhecimento, como se entende ter ficado provado.
35 - Caso não aceitasse devia renunciar nos termos legais e estatutários da Ordem dos Advogados
36 - Ora bem, a propósito do vicio da falta de consciência da declaração, prevista no artº 246º CC, afirma Ferreira de Almeida inequivocamente:
“É evidente que a falta de consciência em relação à declaração (de aceitação) pode ter mais do que um grau, conforme o elemento sobre que incide. Pode não haver consciência (representação intelectual) de que se emite um sinal (…) ou não se atribuir significado particular a um sinal emitido (…) ou ainda não ter consciência plena dos efeitos jurídicos que derivam de certo compromisso. Só os primeiros casos constituem falta de caracter negocial da declaração, porque o declarante não tem de se aperceber senão do significado do seu acto e não dos efeitos que lhe correspondem. A consciência da juridicidade ou mesmo só da integração do acto no tráfego jurídico é requisito bastante para que a declaração tenha, sob esse aspecto, valor negocial”
Também o prof. Menezes Cordeiro, na interpretação do artº 246º CC:
“O declarante que emita proposta ou outra declaração, em boa e devida forma, sem ter consciência do que faça, incorre, à partida, nos canais da eficácia jurídica. A declaração vai-lhe ser imputada com o sentido que lhe daria o declaratório normal (…) Tratado Direito Civil I Parte Geral – Tomo I, 2ª edição, Coimbra, Almedina, 2000, pg 575)
É, segundo Menezes Cordeiro, uma interpretação restritiva deste artigo 246º CC. Logo, uma declaração que é eficaz mesmo sem vontade.
37 - A Recorrida declarou o que pretendeu declarar/aceitando e assinando, isto é, não há qualquer divergência entre a vontade real e a vontade declarada. E, aliás, mesmo que ficcionando tal se entendesse, o certo é que os restantes requisitos do erro não estão, de todo preenchidos, nem tal foi alegado pela recorrida (quanto à assinatura de favor e recebimento das Notificações e dos e-mails que recebeu e aos quais não deu resposta).
38- A Recorrida declarou o que queria declarar, sem qualquer deficiência na vontade. Tem, pois, de assumir a responsabilidade que resultam da sua vontade/declaração.
39 – A Recorrida com a declaração aceitação mandato, autorizando a Procuração, e pelo atrás enunciado, celebra um contrato negocial. Este negócio é lícito.
40- O ónus da prova das causas de inexistência do mandato recai sobre a mesma, nos termos do artº 342º CC, não se tendo provado, a sentença do tribunal a quo deveria ter considerado o negócio válido e plenamente eficaz.
41- Ficando provado que a notificação no âmbito do processo do TAF em 10 de Março de 2020 à Recorrida na qualidade de mandatária.
42 - Assim, não estando provados quaisquer factos que impliquem a inexistência do mandato da recorrida, deve considerar-se a notificação plenamente válida e eficaz.
43-Pelo que a recorrida assumiu perante a recorrente uma obrigação (seja por favor ou não), que incumpriu quando não dá conhecimento das Notificações e não responde ao tribunal, deixando correr o prazo.
44- A declaração da Recorrida alegando que se tratava de favor é uma confissão com força probatória plena, não podendo ser afastada por prova testemunhal, nos termos do artº 332,/2 CC.
45 - Ora, a Recorrente está, assim, perante a realidade de um facto que lhe é desfavorável e favorece a parte contrária. É mais que evidente. Ora, é esta a definição que o artº 352º CC de confissão.
46-Nos termos do artº 358º/2 CC, a confissão extrajudicial neste caso em e-mail considera-se provada nos termos aplicáveis a esse documento e, se for feita à parte contrária, tem força probatória plena.
47-A recorrida declarou o que consta no e-mail, artº 376º/1 CC).
48-E, mais, fica assim provado com força probatória plena que a recorrida se obrigou perante a Recorrente.
49 - É erro grave, de novo, a desconsideração da força probatória plena de uma declaração confessória.
50 – A douta sentença recorrida deve ser anulada, porquanto assenta em fundamentos de facto e de direito incorretos.
51 - Entende a Recorrente que teve prejuízos sérios coma conduta da recorrida, e mais concretamente com a sua falta de diligência na condução do mandato forense outorgado pelo recorrida, o que pode originar uma responsabilidade civil e disciplinar.
52 - A Recorrida enquanto Mandatária, estava obrigada a responder ao Tribunal e também comunicar ao mandante, as notificações que recebesse, apresentando soluções ou pareceres, nunca se devendo limitar a nada fazer.
53 - A Recorrida alega falta de pagamento, pergunta-se de quê?
54 - Nunca a recorrente foi interpelada para fazer qualquer pagamento, sendo que no caso foram pagos valores sem emissão de documento. Sendo que o documento apresentado não se entende o seu alcance pois em nada estão relacionados com a Recorrente.
55 - Os documentos doc. 1 junto com a PI fazem prova documental plena dos factos (artº 371º/1CCiv), no caso o assentimento da Recorrida na junção aos autos do processo do TAF da procuração a seu favor .
56-Logo aceitou o mandato.
57- Os documentos facturas da recorrida juntas deviam ter sido desentranhados por nada terem a ver com a recorrente.
58 - Os actos necessários à execução do mandato (artº 1160º CCiv) são todos os actos acessórios, subordinados ou instrumentais.
59 - Será, pois, de concluir que o mandato foi abrangido pela vontade das partes, pelo menos implicitamente com a aceitação da junção da Procuração Forense, no quadro da celebração do contrato de mandato.
60 - Nunca a falta de pagamento poderá prevalecer para suportar a inexistência do mandato.
61 - Ocorre a verificação de uma conduta ilícita e culposa da Recorrida, Mandatária da Recorrente, no caso em que, notificado do aperfeiçoamento da PI, no âmbito de uma oposição numa execução fiscal, não veio dar cumprimento e apresenta-la devidamente aperfeiçoada, uma vez que tal configura uma violação dos deveres de diligência a que o R. se encontrava adstrito, violação que, por aplicação do art. 799º, n.º 1, do CC, se presume culposa
62 - Não dando a Recorrida conhecimento ao seu cliente do teor dos ofícios recebidos do tribunal, nem corrigindo o que era solicitado, informando, e isto após muita insistência da Recorrente, fazendo-o já após a sentença desfavorável às suas pretensões formuladas na ação que o mandatou para instaurar a fim de fazer valer as mesmas, impedindo com isso o mandante de dela interpor recurso (e sem aquele não o tenha feito, desconsiderando o prazo legal estatuído para o efeito, e permitindo que aquela decisão transitasse em julgado), impossibilitando-o, assim, de atacar essa decisão e de ver reapreciada a sua posição junto de um tribunal superior, tal comportamento omissivo é suscetível de configurar um autónomo dano por “perda de chance processual” ou perda de oportunidade, e como tal sujeito a indemnização.»
Foi apresentada resposta ao recurso pela 2.ª Ré onde pugna pela confirmação do decidido e, para o caso da procedência do recurso, ao abrigo do artigo 636.º do CPC, requereu a ampliação do objeto do recurso, apresentando as seguintes CONCLUSÕES:
«1.ª A impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto e reapreciação das provas é claramente inadmissível e improcedente, pois:
- A prova documental carreada para os autos é manifestamente insuficiente e dela não resulta, por qualquer forma – ao contrário do que a Recorrente pretende fazer crer - a prova dos factos alegados na p.i. e dados como não provados pelo Tribunal “a quo”;
- A impugnação realizada pela Recorrente é claramente excessiva e infundada, indo muito para além do que está consagrado na lei processual civil quanto à sindicabilidade em sede de recurso da matéria de facto fixada na 1ª instância;
- A valoração da prova feita pelo Tribunal a quo não pode ser sindicada em sede de recurso por este douto Tribunal, tanto mais que não estão em causa, nem a ora recorrente invocou ou demonstrou – como lhe competia (v. art. 342º do C. Civil) – quaisquer “erros evidentes” ou “excepcionais erros de julgamento”;
- A apreciação do Meritíssimo Juiz a quo, efetivada no contexto da imediação da prova, tem iniludível assento na prova documental apresentada e produzida e em que declaradamente se alicerçou, nada justificando a alteração da matéria de facto.
2.ª A decisão proferida sobre a matéria de facto não enferma de qualquer erro de julgamento na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa, sendo as alterações propostas pela Recorrente manifestamente irrelevantes e improcedentes para a decisão do presente processo (v. arts. 639º, 640º e 662º do CPC).
3.ª A A. Recorrente não alegou, demonstrou ou provou a existência de qualquer Dano, consistente na “supressão ou diminuição duma situação jurídica favorável que estava protegida pelo Direito” (v. Menezes Cordeiro, Direito das Obrigações, 1980, Vol. II, AAFDL, p.p. 283; cfr. Gomes da Silva, O Dever de Prestar e o Dever de Indemnizar, 1944, 80), consubstanciado em perda de oportunidade ou de “chance” que fundamente a pretensão indemnizatória peticionada na p.i., não tendo minimamente ficado provado ou sequer sido alegado quaisquer créditos e/ou pretensos direitos que consubstanciem a indemnização peticionada (v. arts. 483º e segs. e 798º e segs. do C. Civil; cfr. art. 342º do C. Civil).
4.ª A Recorrente não invocou ou demonstrou – como lhe competia (v. art. 342º do C.Civil) -, nem se verificam in casu os pressupostos de que dependeria a responsabilidade da R. Segurada AA pelos pretensos danos e prejuízos invocados (os quais nem provou) (v. arts. 9º, 342º, 496º, 483º e segs., 562º a 566º, 798º e segs., do C. Civil).
5.ª A douta sentença recorrida não enferma assim de quaisquer erros de julgamento e não merece qualquer censura (v. arts. 9º, 342º, 473º e segs., 496º, 483º e segs., 562º a 566º, 570º, 592º e 798º e segs., do C. Civil).
6.ª No caso sub judice, nos termos e para os efeitos do disposto no art. 636º do CPC, o âmbito do presente recurso, perante a possibilidade da sua procedência – o que apenas por mera hipótese se admite – deverá ser ampliado, conhecendo-se as seguintes questões:
- Da apólice:
a) Nos anos de 2021, a responsabilidade civil profissional dos Advogados com inscrição em vigor na Ordem dos Advogados encontrava-se transferida para a ora Recorrente através da apólice ES00013615EO21A, proporcionando total cobertura a atos e omissões dos quais resulta responsabilidade civil se o sinistro e/ou Primeira Reclamação for feita durante o seu período de vigência, ou seja, entre 2021.01.01 e 2021.12.31, o que não sucedeu in casu;
b) Nos termos do artigo 3º das Condições Especiais da Apólice ES00013615EO21A estabelece-se ainda que ficam expressamente excluídas da cobertura da presente APÓLICE as RECLAMAÇÕES: “a) Por qualquer facto ou circunstância conhecidos do SEGURADO à Data de Início do PERÍODO DE SEGURO, e que já tenha gerado ou possa razoavelmente vir a gerar RECLAMAÇÃO”;
c) Conforme resulta da petição inicial apresentada e dos documentos juntos, apesar dos alegados atos e omissões imputados à Segurada AA terem-se verificado, alegadamente, em 2020, a Primeira Reclamação (à ora Recorrente) emergente dos referidos atos e omissões que lhe são imputados na presente ação ocorreu apenas em 15.03.2021, ou seja, fora do âmbito material da apólice outorgada com a ora Recorrente, pelo que a apólice da ora Recorrente está excluída (v. Ac. STJ de 2016.12.14, Proc. 5440/15.8T8PRT-B.P1.S1, www.dgsi.pt);
d) Até à citação para a presente ação, os Recorrentes nunca comunicaram e/ou participaram o presente sinistro à ora Interveniente, pelo que existe falta de legitimidade passiva substantiva da R. para a presente ação e consequente exclusão da apólice, maxime face à inaplicabilidade da apólice de seguro contratada com a ora R., pelo que a R. deve ser absolvida do respetivo pedido (v. arts. 576º/2, 578º e 579º do CPC CPC; cfr. arts. 30º, 278º/1/e), 576º/2, 577º/e, 578º e 579º do CPC); e
e) In casu, a ora Recorrida, definiu de forma adequada e suficiente a franquia contratualizada no valor de € 5.000,00, que foi alegada na sua contestação e provada, não merecendo qualquer contestação nessa parte por qualquer dos intervenientes processuais dos presentes autos pelo que do montante limite de indemnização contratualizado na referida apólice – sempre deveria ser descontada a franquia geral contratada, no montante de €5.000,00 a qual, nos termos contratualizados, fica a cargo exclusivo dos Segurados e pelo qual a ora Recorrida não poderá ser responsabilizada (v. Ac. RE de 2010.07.08, Proc. 1190/08.0TBSTC.E1, www.dgsi.pt; Cfr. RC 2012.04.24, Proc. 347/11.0TJCBR.C1, www.dgsi.pt).»
Foram colhidos os vistos.
II- OBJETO DO RECURSO
Delimitado o objeto do recurso pelas conclusões apresentadas, sem prejuízo das questões que sejam de conhecimento oficioso e daquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras (artigos 635.º, n.ºs 3 e 4, 639.º, n.º 1 e 608.º, n.º 2, do CPC), não estando o tribunal obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes para sustentar os seus pontos de vista, sendo o julgador livre na interpretação e aplicação do direito (artigo 5.º, n.º 3, do CPC), as questões a decidir no recurso são as seguintes:
Recurso da Autora: (i) Impugnação da decisão de facto; (ii) Contrato de mandato forense, seu incumprimento e indemnização pelos danos causados;
Ampliação do Recurso por parte da 2.ª Ré (sendo conhecida): Se o contrato de seguro profissional cobre o evento em causa nestes autos e, na afirmativa, em que termos.
III- OS FACTOS
A 1.ª instância proferiu a seguinte decisão de facto:
FACTOS PROVADOS
«1- Correu termos um processo de acção administrativa com o nº 1162/19.9..., no Tribunal Administrativo e Fiscal de Leiria, que foi instaurada pela aqui A. e na qual veio impugnar a decisão proferida pelo Instituto de Emprego e Formação Profissional, que determinou a restituição pela aqui A. da quantia 2.766,85 euros, devido pelo não cumprimento das obrigações assumidas no âmbito da concessão de apoio financeiro, tendo formulado nesse processo o seguinte pedido: “nestes termos…deverá o pedido de restituição do montante de 2.766,85 euros impugnado ser anulado”.
2- A petição inicial do processo referido em 1) deu entrada no dia 17-6-2016, tendo sido elaborada e junta ao processo pela A.
3- Em 20 de Fevereiro de 2020, foi junta pela A. ao processo referido em 1), uma procuração em que a A. conferia poderes à R. AA, como sua mandatária, para a representar nesse processo.
4- A procuração e o requerimento de junção da mesma ao processo, referidos em 3), cujas cópias se encontram juntas a fls. 248 e 249, foram elaborados pela A.
5- A A. não informou previamente a R. AA da elaboração da procuração referida em 3) e da junção da mesma ao processo mencionado em 1).
6- Em 3-3-2020 foi proferido despacho no processo referido em 1), cuja cópia se encontra junta a fls. 251, que convidava a A. a apresentar uma petição inicial devidamente aperfeiçoada, e ainda para juntar aos autos o acto administrativo impugnado, no prazo de 10 dias.
7- Em 10 de Março de 2020, foi enviada à R. AA, na qualidade de mandatária da A. no processo mencionado em 1), a notificação electrónica do despacho referido em 6).
8- Após receber o mail junto a fls. 8, datado de 20 de Outubro de 2020, que lhe foi enviado pela A., cujo conteúdo se dá aqui por reproduzido, em que A. lhe solicitava que verificasse o estado da situação de alguns processos incluindo o referido em 1), em data situada entre 20-10-2020 e 4-11-2020, a R. AA consultou pela primeira vez o processo referido em 1).
9- Na ocasião referida em 8), a R. AA tomou conhecimento pela primeira vez de que havia sido constituída mandatária pela A. no processo referido em 1), do despacho mencionado em 6), e a ainda da notificação desse despacho, referida em 7).
10- No dia 4 de Novembro de 2020, a R. AA enviou um mail ao legal representante da A., BB, em que lhe solicitava o envio da petição inicial apresentada no processo referido em 1) com a junção do acto administrativo impugnado, na medida em que lhe estavam a solicitar a P.I. aperfeiçoada nesse processo.
11- Em resposta ao mail mencionado em 7), por mail enviado em 5 de Novembro de 2020 para a R. AA, o referido BB declarou que estava a satisfazer o solicitado.
12- A R. AA não enviou a petição inicial aperfeiçoada ao processo referido em 1) porque já tinha decorrido o prazo concedido no despacho referido em 6) para o fazer.
13- No dia 5 de Novembro de 2020, foi proferida sentença no processo referido em 1) em que, atenta a falta de junção do acto impugnado pela A., em incumprimento do despacho de aperfeiçoamento referido em 3), foi determinada a absolvição do R. da instância e julgou-se extinta a acção em causa.
14- A R. AA foi notificada da sentença referida em 13), através de notificação datada de 9-11-2020.
15- Através de mail datado de 18-11-2020, a R. AA remeteu ao referido BB a sentença mencionada em 13).
16- A A. enviou à R. AA, tendo esta recebido a mesma, a carta datada de 25-11-2020, cuja cópia se encontra junta a fls. 15, cujo conteúdo se dá aqui por reproduzido, em que alega que a R. AA não tinha cumprido as suas
obrigações contratuais da prestação dos serviços jurídicos no âmbito do processo referido em 1), que dessa forma a A. teria sofrido prejuízos, que se consistiriam na taxa de justiça no valor de 306 euros, no valor penhorado na execução da decisão referida no processo mencionado em 1), que condenou a A. na restituição da quantia de 2.766,85 euros, e nas custas processuais finais, intimando a R. AA a pagar esses valores num determinado prazo.
17- Foi instaurado contra a aqui A., pela Autoridade Tributária e Aduaneira o processo de execução fiscal nº ..., para ser executada a decisão proferida pelo Instituto de Emprego e Formação Profissional, que determinou a restituição pela aqui A. da quantia 2.766,85 euros, que se encontra mencionada no processo referido em 1), onde consta a indicação que a dívida exequenda teria o valor de 3.345,38 euros, na qual foram penhorados os bens pertencentes à A., que se encontram descritos no auto de penhora junto de fls. 16, verso, a 20.
18- A R. AA enviou ao referido BB um mail datado de 18 de Janeiro de 2021, onde constava o seguinte: No seguimento de várias solicitações a factura nº 1000042, de 1-2-2018, nunca me foi liquidada, apesar de o ter solicitado diversas vezes. Agradeço que proceda ao pagamento da mesma no prazo de 5 dias.
19- A Ordem dos Advogados e a R. Seguradora celebraram o contrato de seguro de responsabilidade civil profissional referente aos advogados inscritos na Ordem dos Advogados, que abrange a R. AA, cuja cópia se encontra junta de fls. 58 a 74, cujo conteúdo se dá aqui por reproduzido, com a apólice nº ES00013615EO21A.
20- No contrato referido em 19) encontra-se coberta a responsabilidade civil profissional da R. AA decorrente do exercício da advocacia, com um limite de 150.000 euros, e uma franquia de 5.000 euros, não oponível a terceiros lesados.
21- O contrato de seguro referido em 19) entrou em vigor no dia 1-1-2021, e tinha a duração de 12 meses.
22- Consta do Ponto 7 das Condições Particulares do contrato referido em 19), sob a epígrafe “Âmbito de Cobertura”, a seguinte cláusula: “O segurador assume a cobertura da responsabilidade do segurado por todos os sinistros reclamados pela primeira vez contra o segurado ou contra o tomador do seguro ocorridos durante a vigência das apólices anteriores, desde que participados após o início da vigência da presente apólice, sempre e quando as reclamações tenham fundamento em dolo, erro, omissão ou negligência profissional, coberta pela presente apólice, e mesmo ainda, que tenham sido cometidos pelo segurado antes da data de efeito da entrada em vigor da presente apólice, e sem qualquer limitação temporal da retroatividade”.
23- Consta do ponto 12, do Artigo 1º das Condições Especiais do contrato referido em 19), que se considera como Reclamação “Qualquer procedimento judicial ou administrativo iniciado contra qualquer segurado, ou contra o segurador, quer por exercício de ação direta, quer por exercício de direito de regresso, como suposto responsável de um dano abrangido pelas coberturas da apólice”.
24- Consta do Artigo 3º das Condições Especiais do contrato referido em 19), sob a epígrafe “Exclusões”, além do mais, que “ficam expressamente excluídas da cobertura da presente apólice, as reclamações: (…) a) Por qualquer facto ou
circunstância já anteriormente conhecido(a) do Segurado, à data de início do período de seguro, e que já tenha gerado, ou possa razoavelmente a vir gerar, reclamação;”
25- Consta do Artigo 8º das Condições Especiais do contrato de seguro referido em 19), o seguinte: “1. Notificação de Reclamações ou Incidências: O tomador do seguro ou o segurado deverão, como condição precedente às obrigações do segurador sob esta apólice, comunicar ao segurador tão cedo quanto seja possível: a) Qualquer reclamação contra qualquer segurado, baseada nas coberturas desta apólice; b) Qualquer intenção de exigir responsabilidade a qualquer Segurado, baseada nas coberturas desta apólice; c) Qualquer circunstância ou incidente concreto conhecida(o) pelo segurado e que razoavelmente possa esperar-se que venha a resultar em eventual responsabilidade abrangida pela apólice, ou determinar ulterior formulação de uma petição de ressarcimento ou acionar as coberturas da apólice.”
26- Através de comunicação datada 15-3-2021, cuja cópia se encontra junta de fls. 76, verso, e 77, cujo conteúdo se dá aqui reproduzido, a A. reclamou junto da R. Seguradora a ocorrência da situação em causa nos autos, e ainda, por aplicação do contrato de seguro referido em 19), o pagamento de uma indemnização pelos danos alegadamente sofridos devido ao comportamento da R. AA.
27- A R. AA remeteu ao referido BB o mail datado de 26-10-2020, cuja cópia se encontra junta a fls. 79, verso, cujo conteúdo se dá aqui por reproduzido, no qual consta designadamente: “Em relação a este e-mail, que me envia, como sabe, eu não tenho responsabilidade alguma em relação aos mesmos, apenas fiz o especial favor de assinar, pois se assim não fosse teria de contratar o serviço. O que foi pedido seria no sentido de assinar os documentos, não mais que isso, em relação à consulta dos mesmos a tramitação processual, o Dr. Terá de verificar como pretende resolver. Como sabe estou-lhe a prestar um favor de poder intentar as acções, posteriormente a isso, será trabalho que não me compete a mim assegurar, como bem deve entender”.
28- Os documentos referidos no mail mencionado em 27), respeitavam a um outro processo diferente e autónomo do referido em 1).»
FACTOS NÃO PROVADOS
«A- O legal representante da A., BB, em sua representação, solicitou os serviços jurídicos da R. AA, para patrocinar a A. em processo fiscal.
B- Na sequência, a R. AA aceitou prestar serviços jurídicos e representar a A. como mandatária no âmbito do processo referido em 1), designadamente para apresentar oposição neste processo.
C- A A. encontra-se impossibilitada de recorrer a financiamentos e apoios comunitários e do IEFP.
D- A A. obteve um benefício na liquidação do IVA, no valor de 92 euros, na sequência da actividade da R. AA.
E- O legal representante da A., BB, foi alertada várias vezes pela R. AA que enquanto os honorários não fossem liquidados, não lhe prestava qualquer serviço.
F- Em resposta, o legal representante da A., BB, anuiu e referiu que iria liquidar os honorários em dívida.
G- A A. vem propalando, fora dos processos, que a R. AA lhe negou informação do processo e que violou deveres enquanto profissional, com o objectivo de enxovalhar o bom nome e a reputação profissional da R.
H- Na sequência do facto referido em G), a R. AA sofreu preocupações, angústias e incómodos.
I- A R. AA solicitou à A. que esta enviasse directamente para o processo mencionado em 1), a procuração em que a A. a constituiu como mandatária para a representar nesse processo.
J- A A. juntou ao processo referido em 1), a procuração mencionada em 4), com o conhecimento e a aceitação da R. AA.»
IV- CONHECIMENTO DAS QUESTÕES COLOCADAS NO RECURSO
Identificadas supra as questões a decidir, passamos à sua análise.
1. Recurso da Autora
1. Impugnação da decisão de facto
A Apelante vem impugnar parcialmente a decisão de facto invocando ao longo das Conclusões que existem erros de julgamento por haver matéria de facto relevante que deveria ter sido dada como provada e não o foi por não ter sido devidamente valorada a prova documental, essencialmente o documento 1 junto com a p.i. que, no seu entender, prova o conhecimento e autorização da 1.ª Ré para a emissão e junção aos autos da procuração forense, ficando, desse modo, comprovada a existência de um mandato forense. Mais defendendo que esse documento não foi impugnado e, por isso, tem a força probatória plena de uma declaração confessória, nos termos do artigos 371.º, n.º 1, e 376.º, n.º 1, do CC.
Acrescentando ainda que decorre das declarações da 1.ª Ré confissão no sentido de ter assinado de favor, o que igualmente tem força probatória plena do facto confessado, que não pode ser afastado por prova testemunhal, nos termos do artigo 332.º, n.º 2, do CC.
Vejamos, então, se lhe assiste razão.
Começando por mencionar que decorre da conjugação dos artigos 640.º e 662.º do CPC os requisitos que conferem ao Tribunal da Relação o poder-dever de reapreciar a decisão de facto quando a mesma seja impugnada pelo recorrente.
Os requisitos da impugnação da decisão de facto previstos no artigo 640.º do CPC correspondem a ónus a cargo do recorrente impugnante, determinando a falta de acatamento dos mesmos a rejeição da impugnação na parte afetada, sendo que a jurisprudência tem vindo a proclamar em diversos arestos que não é admissível o convite ao aperfeiçoamento quanto ao cumprimento destes ónus.1
Assim, decorre deste normativo que o ónus de impugnação da matéria de facto julgada exige que, cumulativamente, o recorrente indique os pontos de facto que considera incorretamente julgados, os concretos meios probatórios que constem dos autos ou do registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão diversa sobre os pontos da matéria de facto impugnados, e a decisão que, o seu entender, deveria ter sido proferida sobre as questões impugnadas, e, finalmente, a indicação das exatas passagens dos depoimentos que os integrem que determinariam decisão diversa da tomada em primeira (artigo 640.º, n.º 1, alíneas a, b), e c) , e n.º 2, do CPC).
Como se verifica das Conclusões de recurso, a Recorrente impugnante não menciona quais os concretos pontos que impugna e que pretende ver reapreciados (embora o tenha feito no corpo da motivação do recurso).
Embora se entenda, em termos abstratos, que a falta de indicação dos concretos pontos de facto impugnados, determina a rejeição da impugnação da decisão de facto, não se pode deixar de considerar que, respeitado devidamente o princípio do contraditório como ocorre com a notificação do recurso à parte contrária (artigo 3.º, n.º 3, do CPC), a decisão de rejeição deve ser sempre aferida em concreto por assim o exigir os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade, ínsitos no conceito de processo equitativo que abarca a garantia de acesso ao direito e ao duplo grau de jurisdição no julgamento da matéria de facto (artigo 20.º, n.º 4, da CRP).
Nesse sentido, desde que seja perfeitamente percetível qual a matéria de facto impugnada não deve ser rejeitada a impugnação ainda que não seja expressamente indicada a numeração dos concretos pontos de facto impugnados.
Afigura-se-nos ser precisamente essa a situação que as Conclusões de recurso evidenciam em relação a parte da impugnação.
Veja-se, assim, o que textualmente se encontra escrito na Conclusão 3:
«3 - A Recorrente considera que existem pontos de facto incorretamente julgados porque totalmente omitidos na douta sentença, nomeadamente os dois pontos que se consideram preponderantes, a existência de mandato devidamente autorizado como se demonstra com prova documental e relativamente à notificação por parte do TAF do aperfeiçoamento da PI devidamente enviada à Recorrida na qualidade de mandatária, por notificação electrónica em 10 de Março de 2020.»
E na Conclusão 4 refere-se:
«4 - Atendendo a que toda a impugnação da matéria de facto tem por base (apenas e tão-só) omissão de factualidade que se pedirá seja dada como provada.»
Em face destas Conclusões é inquestionável que a recorrente impugna a decisão de facto em relação à matéria referente à elaboração da procuração forense emitida a favor da ora 1.ª Ré e junção da mesma aos autos administrativos; a data (momento) em que a 1.ª Ré tomou conhecimento pela 1.ª vez que tinha sido constituída mandatária naqueles autos e em que consultou os mesmos, o que corresponde à factualidade dada como provada nos pontos 5, 8, 9 e 10, e, em contraponto, à dada como não provada nas alíneas A), B) e J).
Nestes termos, passa-se a reapreciar a correspondente decisão de facto.
No que concerne ao conhecimento da emissão da procuração forense e sua junção aos autos, a Recorrente socorre-se do documento 1 junto com a p.i. onde foram incorporados e-mails, referindo que, no e-mail de 17-02-2020, a 1.ª Ré aceitou que fosse junta aos autos a procuração (cfr. Conclusão 14).
No corpo da alegação também menciona um e-mail datado de 15-02-2020, enviado pela Autora à 1.ª Ré, anexando o ofício do TAF de Leiria, informando-a que era o último dia para juntar a procuração, recebendo no mesmo dia um e-mail da 1.ª Ré dizendo que «sim pode» juntar a procuração que estava em falta.
Todavia, da análise dos vários e-mails que foram juntos como documento 1 da p.i. não se consegue concluir em conformidade com esta alegação da Recorrente. Efetivamente, está junto um e-mail datado de 17-02-2020 enviado pela 1.ª Ré para «Dr. CC» onde consta «Sim pode» e um outro, sem que nele se veja a data, emitido por CC dirigido à 1.ª Ré onde consta: «Hoje é o último dia, aguardo a sua autorização», não estando concretizada a autorização que era aguardada.
Da audição da 1.ª Ré em sede de julgamento decorre que declarou que estes e-mails não se reportavam à ação do TAF referida nestes autos, nem à junção da procuração aos mesmos autos, reportando-se antes a outros processos e assuntos que a mesma estava encarregada de tratar a pedido do pai do legal representante da Autora, que tinha outras empresas e assuntos judiciais pendentes.
Ora, o próprio legal representante da Autora, BB, no seu depoimento de parte confirmou que era o pai (aparentemente, o autor das mensagens por e-mail supra referidas) quem teve intervenção na questão relacionada com a ação intentada no TAF e que o declarante nunca contactou diretamente com a 1.ª Ré. Também confirmou que o pai mantinha contato com a 1.ª Ré por causa de outros processos e assuntos jurídicos. E também confirmou que quem elaborou e enviou a pi. da ação instaurada no TAF e quem elaborou e enviou para o processo a procuração, foi o pai e que só depois deu conhecimento à 1.ª Ré.
Por outro lado, foi comprovado por ofício provindo do TAF onde correu a referida ação, que a procuração forense a favor da Dr.ª AA foi junta naqueles autos em 20-02-2020 através de requerimento assinado pela ora Recorrente e enviada via CTT.
Todos estes elementos indiciam em termos probatórios a veracidade da tese apresentada nestes autos pela 1.ª Ré, ou seja, que nenhuma intervenção teve na elaboração da p.i. e da procuração junta na ação administrativa e, consequentemente, também é plausível, por essa mesma razão, que a mensagem de e-mail da autoria da 1.ª Ré onde consta «Sim pode» se refira a outro assunto/processo que não a referida ação administrativa.
No que concerne ao momento em que a Recorrida teve conhecimento da ação a correr termos no TAF e o consultou pela primeira vez, os elementos probatórios carreados para os autos indiciam que o conhecimento da Recorrida apenas ocorreu na sequência do recebimento do e-mail da Autora datado de 20-10-2020, pois se a 1.ª Ré desconhecia a pendência da ação e a junção da procuração a que se vem aludindo, e não sinalizando o sistema de informação de suporte à atividade dos tribunais administrativos e fiscais (SITAF) o envio de notificações aos I. Mandatários, é credível que a 1.ª Ré apenas tenha tido conhecimento da notificação que o sistema emitiu quando para tal foi alertada pela Recorrente.
Foi isso mesmo que a 1.ª Ré esclareceu no seu depoimento e o e-mail de 20-10-2020 indicia precisamente que a Recorrida não tinha contatado a Recorrente antes dessa data a respeito desse processo, o que se afigura compatível e plausível com o desconhecimento que tinha da existência do processo e da sua constituição como mandatária no mesmo.
Também a 1.ª Ré esclareceu a razão de ter pedido o envio da p.i. por e-mail de 04-11-2020 («porque o tribunal tinha pedido» uma p.i. aperfeiçoada), mas também disse que já nada pôde fazer porque o prazo já estava esgotado, o que não se afigura contraditório com os factos dados como provados nos pontos 8 e 9.
Assim sendo, em face da análise que este Tribunal ad quem faz dos meios de prova supra referidos, alcançou-se convicção idêntica à formada na 1.ª instância em relação à factualidade impugnada, pelo que se julga improcedente a sua impugnação.
Cumpre ainda mencionar que da leitura das Conclusões de recurso não se identifica outra factualidade impugnada (reiterando-se que inexiste menção concreta aos pontos e alíneas da decisão de facto). Sublinhando-se que, os pontos 18 e 27 dos factos provados a que a Recorrente alude no corpo da motivação, não se encontram refletidos em termos de impugnação nas Conclusões de recurso. O que determina a rejeição da impugnação nessa parte (cfr. artigo 640.º, n.º1, alínea a), do CPC).
Em acrescento, sempre se dirá que nem sequer se afigura que no corpo da alegação a Recorrente impugne o ponto 18 dos factos provados, pois apenas refere que a fatura nada tem a ver com ela e, nessa perspetiva, também não pode dizer respeito ao mandato forense na ação administrativa a que se alude nestes autos.
Em relação ao ponto 27 dos factos provados, a alegação nem sequer é impugnativa mas sim argumentativa no sentido de concluir que assinar de favor e intentar ações significa que tem de haver um mandato, o que não dispensa a prova da existência do referido mandado forense, tanto mais que no ponto 28 dos factos provados consta que a menção ao e-mail referido no antecedente ponto 27 respeita a outro processo que não o mencionado processo administrativo.
Em relação à alínea C dos factos não provados trata-se de matéria que também não vemos refletida nas Conclusões de recurso, o que determina a rejeição da impugnação, nos termos do artigo 640.º, n.º 1, alínea a), do CPC.
De qualquer modo, trata-se de alegação conclusiva, que sempre justificaria a sua inclusão nos factos não provados.
Finalmente, a Recorrente menciona que, o nome do seu legal representante referido na alínea F dos factos não provados, está incorreto, mas trata-se de um erro despiciendo porquanto o facto está dado como não provado e a razão nada tem a ver com o lapso em relação ao nome, mas sim porque não foi provado que tenha havido anuência do legal representante da Autora em liquidar honorários em dívida.
Em face do exposto, mantêm-se toda a decisão de facto (positiva e negativa) tal como consta na sentença recorrida.
1.2. Contrato de mandato forense, seu incumprimento e indemnização pelos danos causados
A Autora apresenta como causa de pedir desta ação um conjunto de factos relacionados com a emissão de uma procuração forense a favor da 1.ª Ré conferindo-lhe poderes para a representar num determinado processo administrativo, invocando que a 1.ª Ré não cumpriu os deveres contratuais e deontológicos que tal instrumento jurídico pressupõe, mormente ao ter deixado esgotar o prazo concedido à Autora naquela ação (a aqui Recorrente) para apresentar um aperfeiçoamento da p.i. e juntar o ato administrativo, sem disso dar conhecimento à Autora, o que determinou a extinção da instância e absolvição da ali Ré da instância.
O que causou prejuízos à ora Autora que se viu confrontada com uma execução fiscal e realização de penhora sobre vários bens da mesma, pretendo obter o respetivo ressarcimento.
Por sua vez, a 1.ª Ré contrapõe que não celebrou com a Autora qualquer contrato de prestação de serviços, designadamente para a patrocinar no referido processo administrativo, não incorrendo, por essa razão, na responsabilidade civil que lhe é assacada.
Em face do modo como a Autora apresentou a sua pretensão em tribunal, competia-lhe alegar e provar não só a existência da referida procuração (facto que ficou provado), mas igualmente que a sua emissão decorria de um acerto de vontades entre a Autora e a 1.ª Ré em relação à emissão da procuração e sua junção aos autos, ou seja, que tais atos assentavam na existência de um contrato de mandato forense, uma vez que tais factos são constitutivos do direito que vem invocar em juízo (artigo 342.º, n.º 1, do CC).
Efetivamente, a emissão de uma procuração forense destinada a ser junta a um processo judicial indicia a existência de um mandato forense conferido ao Advogado a quem é emitida a procuração (cfr. artigos 43.º, 44.º e 47.º do CPC).
Como decorre do artigo 5.º da Lei n.º 10/2024, de 19-01, «Considera-se mandato forense o mandato judicial conferido a advogado ou solicitador para ser exercido em qualquer tribunal, incluindo os tribunais ou comissões arbitrais e os julgados de paz», o que igualmente vem reiterado no artigo 67.º, n.º1, alienas a) e b) do EOA (Lei n.º 145/2015, de 09-09, e alterações subsequentes) ao prescrever: «1- Sem prejuízo do disposto no Regime Jurídico dos Atos de Advogados e Solicitadores, considera-se mandato forense:
a) O mandato judicial para ser exercido em qualquer tribunal, incluindo os tribunais ou comissões arbitrais e os julgados de paz;
b) O exercício do mandato com representação, com poderes para negociar a constituição, alteração ou extinção de relações jurídicas; (…).»
É consabido que a jurisprudência tem entendido o mandato forense como um contrato bilateral encontrando-se simultaneamente sujeito ao regime civilístico do mandato (artigos 1157.º e ss do CC) e ao regime especial do EOA, mais concretamente os deveres deontológicos plasmados nos artigos 97.º e seguintes.
A procuração forense, por sua vez, é um ato unilateral e, por isso, não se confunde com o mandato, embora seja o ato jurídico que formaliza e materializa o contrato de mandato forense.
Como se refere no Ac. do STJ de 13-05-2021:2
“I. Procuração e mandato não se confundem: o mandato é um contrato; a procuração é um acto unilateral. O primeiro impõe a obrigação de celebrar actos jurídicos por conta de outrem; o segundo confere o poder de os celebrar em nome de outrem.
II. Porém, o mandato e a procuração podem coexistir ou andar dissociados: aquele sem esta, esta sem aquele.
III. O que, efectivamente, origina os poderes existentes no mandatário não é a procuração; a procuração, no sistema do CC actual, mais não é que o meio adequado para exercer o mandato; representa apenas a exteriorização do poder negocial que é conferido ao mandatário pelo mandante através do mandato.”
Todavia, em regra, o mandato forense coexiste com a emissão de uma procuração forense, mormente quanto a mesma é junta a um processo judicial, habilitando o advogado a praticar atos jurídicos no âmbito do contrato de mandato (forense) que lhe foi concedido pelo seu constituinte.
O que se afigura de todo desajustado a esta realidade contratual é a emissão de uma procuração forense constituindo um determinado Advogado como mandatário de uma parte num processo, sem que esse Advogado tenha tido prévio conhecimento e dado assentimento à sua emissão e junção aos autos. A suceder tal, como se comprovou nestes autos, tem de se concluir que a 1.ª Ré, ainda que aparente e formalmente tenha sido constituída Advogada da Autora, não era sua mandatária por a emissão da procuração não assentar na existência de um contrato de mandato celebrado entre as partes, nem sequer ter tido conhecimento da existência da emissão e junção da procuração ao processo judicial em curso.
Entende-se, assim, que dos factos provados tem de se concluir que a Autora não celebrou com a 1.ª Ré qualquer contrato de prestação de serviços jurídicos para que esta representasse aquela e agisse como sua mandatária num processo judicial.
Consequentemente, a junção aos autos da referida procuração forense, dada a natureza unilateral daquele instrumento, sem conhecimento e consentimento da Ré, não supre a inexistência de um acordo negocial prévio e fundante da relação de mandato forense.
Desse modo, não impendia sobre a Ré o cumprimento de um contrato de mandato inexistente no que concerne à prestação de serviços jurídicos no âmbito do referido processo administrativo, o que a torna imune em relação à obrigação de ressarcimento de eventuais prejuízos que a Autora tenha sofrido decorrentes da prática e/ou omissão de atos jurídico-processuais no âmbito do referido processo.
O que decorre do regime geral da responsabilidade civil, mormente do disposto nos artigos 406.º, 762.º, 483.º e 562.º e ss do CC.
Bem como do regime da responsabilidade específica dos Advogados prevista no EOA e demais legislação conexa, porquanto nenhum mandado forense foi celebrado entre as partes.
É o quanto basta para fazer claudicar a presente ação e a consequente improcedência do recurso da Autora, confirmando-se a sentença na parte recorrida.
Deste modo, em face do artigo 608.º, n.º 2, do CPC, fica prejudicada a apreciação da ampliação do recurso apresentado pela 2.ª Ré.
V- DECISÃO
Nos termos e pelas razões expostas, acordam em julgar improcedente a apelação, confirmando a sentença recorrida e, consequentemente, consideram prejudicado o conhecimento da ampliação do recurso formulado pela 2.ª Ré.
Custas pela apelante (artigo 527.º do CPC).
Évora, 08-05-2025
Maria Adelaide Domingos (Relatora)
Sónia Moura (1.ª Adjunta)
Maria João Sousa e Faro (2.ª Adjunta)
________________________________________
1. Cfr, entre outros, Ac. STJ, de 14-02-2023, proc. n.º 1680/19.9T8BGC.G1.S1 (Jorge Dias); Ac. STJ, de 02-02-2022, proc. n.º 1786/17.9T8PVZ.P1.S1 (Fernando Samões), em www.dgdi.pt↩︎
2. Proc. n.º 1021/16.7T8CSC.L2.S1 (Rel. Fernando Baptista), em www.dgsi.pt↩︎