Sumário:
I. A composição dos interesses patrimoniais conflituantes dos membros da união de facto, consequente à sua extinção, deverá assentar no instituto do enriquecimento sem causa, que disponibiliza uma tutela adequada àquela composição;
II. Se a edificação de uma moradia que constituía a casa de morada de família da Autora e do Réu foi feita num terreno deste mas a expensas não só de um empréstimo também subscrito pela Autora mas também com o seu contributo na aquisição de materiais e mão de obra e, se por via de tal edificação, o Réu valorizou o seu património, não pode a mesma deixar de comparticipar na mais valia por ele obtida.
III. Estamos no âmbito do enriquecimento por incremento de valor em coisas alheias, o que sucede quando alguém efectua despesas (gastos de dinheiro, trabalho ou materiais) em determinada coisa alheia.
ACÓRDÃO
I.RELATÓRIO
1. AA demandou BB, pedindo que:
- Seja reconhecido o empobrecimento da autora, à custa do enriquecimento do réu, sem causa justificativa (na modalidade de causa finita), pelo término da união de facto, sendo o réu condenado a restituir à autora, aquilo com que injustamente se locupletou;
- no cálculo do empobrecimento da autora, a restituir pelo réu, deverá ser tido em conta, não só a metade do valor comercial dos dois imóveis – casa de morada de família e loja – mas também o trabalho como arquiteta, desenvolvido pela autora, no valor de €15.000,00 (quinze mil euros); bem como as despesas em benefício do agregado familiar, que se calculam no montante de €102.000,00 (cento e dois mil euros) e o trabalho doméstico prestado, exclusivamente, pela autora, que se calcula num valor de €80.640,00 (oitenta mil seiscentos e quarenta euros), entre 2006 e 2020, num total de €197.640,00 (cento e noventa sete mil seiscentos e quarenta euros).
2. O réu contestou, em suma, invocando a prescrição do direito da autora e impugnando os factos alegados, concluindo pela procedência da exceção e absolvição do pedido ou, caso assim não se entenda, pela improcedência do pedido.
3. Realizou-se a audiência final e, subsequentemente, foi proferida sentença que culminou com o seguinte dispositivo:
“Pelo exposto, ao abrigo das citadas disposições legais, o Tribunal decide:
A) julgar a exceção perentória de prescrição improcedente, por não provada;
B) julgar a ação parcialmente procedente, por provada e, em consequência, condenar o Réu a pagar à Autora a quantia de €15.000,00, absolvendo do demais peticionado”.
4. É desta sentença que recorre a Autora, formulando na sua apelação as seguintes conclusões:
A) Existem diversas imprecisões nos factos considerados como provados pelo Tribunal a quo, as quais devem ser corrigidas para assegurar uma decisão justa e alinhada com os elementos constantes nos autos;
B) Embora o Tribunal tenha referido que os filhos do Réu se encontravam em guarda partilhada com residência alternada, a realidade é que, desde 2009, sem qualquer alteração judicial formal, estes passaram a residir permanentemente com ele e com a
Autora. Tal facto pode ser facilmente comprovado pela análise das despesas da Autora, que refletem encargos frequentes e elevados, adequados a agregado familiar, de 5 elementos;
C) O Tribunal a quo não mencionou expressamente que a moradia construída no prédio rústico se destinava a ser a casa de morada de família dos unidos de facto, sendo esse um aspecto essencial para a correta compreensão da relação patrimonial entre as partes;
D) No facto provado n.º 14, há um erro substancial ao indicar que apenas o Réu contraiu o empréstimo bancário para a construção da moradia, quando, na realidade, foi um compromisso assumido por ambos. Esta correção é essencial para garantir que se reconheça a responsabilidade partilhada, na assunção do financiamento;
E) O facto provado n.º 16 contém um equívoco ao sugerir que a Autora foi associada a uma conta do Réu já existente. Na verdade, foi aberta uma nova conta bancária de raiz, em nome de ambos, com o objetivo de gerir os encargos financeiros do casal;
F) O valor mencionado no facto provado n.º 18 não corresponde à realidade, sendo que o montante correto das transferências foi de 18.481,34 euros e não de 18.123,72 euros;
G) O Tribunal não considerou que o empréstimo de 9.000,00 €, formalmente obtido para fins de educação, foi, na verdade, utilizado exclusivamente pelo Réu para resolver dificuldades financeiras próprias, nomeadamente o pagamento de dívidas fiscais (IRS).
Este montante não foi utilizado em benefício da Autora, que, no entanto, continua a suportar mensalmente a sua liquidação, sofrendo um prejuízo direto;
H) O facto provado n.º 25 não reflecte corretamente a data da separação dos unidos de facto, uma vez que os documentos apresentados pela Autora, nomeadamente mensagens SMS anexadas aos autos em requerimentos datados de 18/11/2022 8/11/2024, demonstram que a separação ocorreu em setembro de 2020. Estes documentos são elementos probatórios diretos e objetivos, que não foram impugnados pelo Réu e que deveriam ter sido devidamente considerados pelo Tribunal;
I) O Tribunal a quo ignorou elementos probatórios essenciais, como os documentos bancários e o depoimento da Autora, que evidenciam de forma clara a participação desta no pagamento de materiais de construção da moradia, nas despesas gerais do agregado, bem como na afectação das rendas do apartamento de Local 1 ao pagamento do empréstimo contraído;
J) A sentença recorrida não fixou qualquer valor comercial para o imóvel construído nem indicou o valor que o terreno tinha antes da construção, aspectos fundamentais para uma decisão justa sobre a divisão patrimonial;
K) Além disso, não considerou que o apartamento em Local 1 tenha gerado rendas no montante de 32.081,67 €, das quais 16.040,84 € pertencem à Autora, o que demonstra que parte desse valor deveria ter sido tido em conta na análise financeira do caso;
L) A decisão de não considerar provado o facto b) não tem fundamento, pois existem provas documentais que demonstram que, desde 2009, a Autora passou a utilizar as suas contas pessoais para suportar as despesas do agregado familiar;
M) Os extractos bancários do Banco Montepio e das contas da Autora comprovam este facto, sendo evidente que a conta Montepio deixou de ser utilizada exclusivamente para os fins acordados entre as partes;
N) Aliás, o Tribunal a quo reconheceu que o Réu utilizava os montantes disponíveis na conta Montepio para despesas pessoais e profissionais, incluindo pagamentos do seu cartão de crédito, em contradição com o propósito original da conta, que era a liquidação do mútuo bancário e das despesas comuns do agregado;
O) Não faz sentido que o ponto e) tenha sido considerado um facto não provado, visto que existem elementos claros nos autos que demonstram que a Autora e o Réu contraíram um mútuo com hipoteca para a construção da moradia, em partes iguais, tendo sido desconsiderada a Assentada do Depoimento de Parte do Réu;
P) Considerando que os pagamentos relativos à construção da moradia foram efectuados com os fundos provenientes do empréstimo bancário comum, seria lógico presumir que os custos com materiais e mão de obra foram igualmente suportados por ambos.
Esta presunção deveria ter sido aplicada pelo Tribunal, reforçando a necessidade de correção do facto e);
Q) Os pontos f), g) e h), deveriam ter sido considerados como provados, uma vez que existem elementos nos autos que sustentam a sua veracidade.
R) Da mesma forma, os pontos j) e k) deveriam constar dos factos provados, dado que há provas documentais e testemunhais que os suportam.
S) O montante mencionado no ponto l) deveria ter sido corrigido para 5 €/hora, sendo então possível incluí-lo nos factos provados;
T) A Douta Sentença recorrida refere que a convicção do Tribunal, na decisão da matéria de facto, se alicerçou na análise crítica e ponderada de todos os meios de prova produzidos na Audiência Final, nos documentos juntos aos autos e nas perícias realizadas, valorados na sua globalidade, tendo em consideração as regras sobre repartição do ónus da prova e as regras da experiência;
U) Tal constatação é incompleta, desde logo, porque os extractos bancários das contas da Autora (e a respetiva compilação junta aos autos em 20 de outubro de 2024) não foram devidamente valorados nem sequer atendidos, tendo o Tribunal a quo dedicado atenção quase exclusiva à conta do Montepio, como se nada mais relevasse;
V) Os dados constantes destas informações bancárias reflectem a existência de um acordo implícito — à época verbalizado entre os ex-conviventes — para a repartição de despesas;
W) Acordo este que o Tribunal a quo considerou como não provado, apesar de ter considerado como provados o facto de que a Autora transferiu dinheiro para a conta do Réu para pagamento do empréstimo e de que suportou as despesas do agregado familiar a partir das suas contas pessoais;
X) A Sentença recorrida sustenta que, apesar da junção dos extractos bancários das contas pessoais da Autora, não se consegue extrair que todos os movimentos respeitem apenas a despesas do agregado familiar;
Y) Contudo, o Tribunal a quo não reconheceu que a Autora filtrou esses extratos, identificando os pagamentos efetuados em prol do agregado e eliminando os restantes, tendo ainda apontado as transferências do Réu, numa atitude de total lealdade para com o Tribunal;
Z) A Autora envidou um esforço significativo para apresentar essa informação de forma acessível, organizando-a em tabelas e gráficos anexados ao requerimento submetido em 20 de outubro de 2024, proporcionando assim uma análise clara e objetiva;
AA)Logo, a conclusão do Tribunal a quo de que não se consegue extrair que todos os pagamentos tenham sido feitos em benefício do agregado não encontra respaldo nos dados objetivos apresentados, chegando a afirmar-se que "nos supermercados também se compram móveis e livros";
AB)A Autora provou que contribuiu financeiramente de forma significativamente superior ao Réu, que, por sua vez, se eximiu de qualquer despesa deste género, limitando-se a contribuir — e em menor montante — para a liquidação do empréstimo, sendo inequívoco que o Réu teve essa capacidade financeira porque a Autora suportou todas as demais despesas;
AC)Sendo a proporção de contribuição foi de 77% da Autora contra apenas 23% do Réu;
AD)No que respeita à conta no Banco Montepio, o facto de o Réu já ser cliente do Banco não significa que não tenha sido criada uma nova conta especificamente para o empréstimo da construção, da qual a Autora também era titular;
AE)Aliás, a abertura de uma nova conta conjunta destinava-se a facilitar a gestão dos fundos destinados à construção e ao acompanhamento das despesas por ambos os membros do casal, o que, na prática, acabou por não acontecer devido ao uso unilateral do Réu para despesas pessoais e profissionais;
AF) As datas constantes dos Autos demonstram que a construção da moradia foi um projeto desenvolvido em conjunto, por Autora e Réu, e não uma ideia preexistente do Réu;
AG) E mesmo que o Réu tivesse essa intenção antes de 2006, tal não tem qualquer relevância jurídica para os efeitos do presente litígio;
AH)O que releva é que foi a Autora quem, com o Réu, concebeu, planeou e concretizou o projecto, com o firme convencimento de que estava a construir a casa de morada da família, no âmbito de um projeto amoroso de vida em comum;
AI) A Sentença recorrida falha ao desconsiderar esses factos e ao conferir um peso desproporcional a depoimentos isolados, ignorando a prova documental e testemunhal que demonstra o envolvimento integral da Autora no projecto da moradia.
AJ) A falta de apreciação crítica e detalhada da prova testemunhal e documental apresentada pela Autora gera um défice de fundamentação que compromete a decisão proferida pelo Tribunal a quo;
AK) A Sentença recorrida omitiu a análise detalhada da desproporção evidente das contribuições entre Autora e Réu, apesar da prova documental inequívoca e dos testemunhos consistentes que sustentam essa realidade;
AL)A não valoração dos documentos bancários juntos aos autos, cuja autenticidade não foi impugnada, constitui uma violação dos princípios da livre apreciação da prova e do dever de fundamentação das decisões judiciais;
AM) A prova produzida demonstra que a Autora suportou a esmagadora maioria das despesas do agregado durante 14 anos, contribuindo com 77% do total, em comparação com os 23% do Réu, o que configura um evidente desequilíbrio económico entre as partes;
AN) O Tribunal a quo, ao não extrair as devidas ilações desta disparidade, não valorou adequadamente a prova e não ponderou as consequências jurídicas que dela decorrem;
AO) A jurisprudência citada, nomeadamente o Acórdão da Relação de Coimbra de 16-12-2015, reforça que os factos provados por documentos não impugnados devem
ser considerados como provados sem necessidade de posterior confirmação testemunhal;
AP) E desse modo, a Sentença recorrida deveria ter reconhecido expressamente a desigualdade de contribuições entre Autora e Réu e, em consequência, deveria ter ajustado as suas conclusões de direito a essa realidade factual;
AQ) A ausência desta análise representa um erro de julgamento e de apreciação da prova, que importa corrigir, sob pena de se perpetuar uma decisão materialmente injusta e desconforme com a prova carreada para os autos;
AR) A não fixação de um valor concreto para o imóvel, na Sentença recorrida, gera uma incerteza jurídica inaceitável, impedindo uma justa repartição dos valores em causa e beneficiando indevidamente o Réu;
AS)O Tribunal a quo deveria ter considerado o valor mais actual da moradia, conforme a segunda avaliação pericial, pois reflecte a realidade do mercado imobiliário à data mais próxima da decisão;
AT)A valorização do imóvel ao longo dos anos deve-se, em larga medida, ao esforço financeiro e profissional da Autora, cuja intervenção directa foi essencial para a construção e licenciamento da moradia;
AU) A decisão do Tribunal a quo, ao não atribuir à Autora uma compensação proporcional ao seu contributo, desconsidera o impacto directo do seu esforço, pessoal e financeiro, no aumento do valor patrimonial do Réu;
AV) A ausência de uma compensação justa pelo esforço e investimento da Autora perpetua uma situação de desigualdade, indo contra os princípios da equidade e da boa-fé que devem nortear qualquer decisão judicial;
AW) A análise dos factos revela que a Autora e o Réu tinham uma divisão clara de
responsabilidades financeiras dentro do agregado familiar, ainda que não formalizada por escrito;
AX) A consistência das contribuições da Autora para as despesas correntes d agregado (e não só) e do Réu (apenas) para o pagamento da prestação do empréstimo confirma a existência de um acordo tácito;
AY) A decisão do Tribunal a quo em não reconhecer este acordo baseou-se excessivamente na falta de prova documental expressa, ignorando os fortes indícios da sua existência, em clara desconformidade com as regras da experiência comum e com a praxis do ex casal;
AZ) A decisão de considerar inexistente este acordo favorece desproporcionalmente o Réu, permitindo-lhe manter a totalidade do património valorizado sem compensar a Autora pelo seu esforço pessoal e financeiro;
BA) A ausência de contribuições directas do Réu para as despesas diárias do agregado familiar, somada ao uso dos fundos comuns para fins pessoais, demonstra um desequilíbrio financeiro que deveria ter sido considerado pelo Tribunal;
BB)A Autora, ao suportar a manutenção do agregado familiar, permitiu que o Réu
mantivesse os seus rendimentos disponíveis para outros fins, beneficiando-se assim da situação;
BC) Em última instância, o Tribunal deveria ter reconhecido a existência de um acordo tácito, pautado na divisão de encargos financeiros entre as partes, e consequente dever de compensação da Autora pelo Réu;
BD) A Autora era, na prática, a principal responsável pelo trabalho doméstico, o que inclui a preparação das refeições, limpeza da casa e cuidado da filha e enteados, visto o Réu estar ausente durante longos períodos devido ao seu trabalho;
BE) A decisão do Tribunal a quo de não considerar que a Autora desempenhou as tarefas domésticas de forma exclusiva parece desconsiderar provas cruciais, como os depoimentos de testemunhas, que demonstram que ela esteve sobrecarregada com essas responsabilidades;
BF) A contratação de uma empregada doméstica em 2018, durante a fase final de sua tese de doutoramento, é uma prova clara de que a Autora precisava de apoio devido à sobrecarga de tarefas, e não uma evidência de que ela não fosse a principal responsável pelas atividades domésticas;
BG)As testemunhas apresentadas pela Autora confirmam que ela assumiu a maior parte das tarefas domésticas e que precisou de ajuda externa em determinados momentos;
BH)No entanto, o Tribunal a quo ignorou estas evidências, ao avaliar a questão do trabalho doméstico como literalmente exclusivo, sugerindo que o Réu também contribuía, embora de forma limitada e esporádica;
BI) O Tribunal parece ter adoptado uma leitura restritiva e insuficiente das provas, como no caso das alegações sobre o tempo que o Réu passava fora de casa e o papel das irmãs da Autora, sem reconhecer que essas ajudas externas eram pontuais e não substituíam o esforço contínuo da Autora.
BJ) A Sentença recorrida desconsiderou de forma excessiva as provas apresentadas pela Autora, especialmente os extractos bancários que comprovam as suas contribuições substanciais para as despesas familiares;
BK) O Tribunal não avaliou corretamente a totalidade das provas apresentadas e minimizou o valor probatório de documentos essenciais, como os comprovativos de despesas em prol do agregado como alimentação, eletricidade e outros gastos domésticos.
BL) Além disso, o Tribunal a quo não analisou adequadamente os pagamentos realizados pela Autora em comparação com os do Réu;
BM) O Tribunal a quo adoptou uma postura excessivamente formalista, que não se alinha com a realidade de uma união de facto de longa duração;
BN)A análise das contribuições financeiras foi feita de forma segmentada, sem considerar o contexto global da união e sem ponderar adequadamente a natureza das despesas;
BO)Ao invés de avaliar a totalidade das contribuições e as circunstâncias do caso, o Tribunal a quo concentrou-se em detalhes que não invalidam as provas gerais apresentadas pela Autora.
BP) A presunção de igualdade de contribuições entre as partes foi inadequada, já que a Autora forneceu documentação detalhada que demonstrava as suas despesas, enquanto o Réu não apresentou nenhuma prova do que havia contribuído para o agregado familiar.
BQ)A decisão do Tribunal a quo ignorou o desequilíbrio evidente nas contribuições financeiras, favorecendo o Réu, que não assumiu as suas responsabilidades financeiras, enquanto a Autora se empenhou de forma significativa, especialmente em termos de despesas essenciais do agregado;
BR)A Autora contribuiu com mais de 50% das despesas, o que não foi devidamente reconhecido no julgamento, e o Tribunal não concluiu que tal representou um empobrecimento para a Autora e um enriquecimento ilegítimo para o Réu.
BS) A Autora, desde o início do processo, alegou que todas as contribuições, para a construção da moradia ou outras despesas do agregado, deviam ser analisadas de forma conjunta e não isolada;
BT) No entanto, o Tribunal a quo tratou estas questões de forma parcelar e mostrou-se incapaz de formular conclusões de forma global, o que compromete a análise da real situação financeira do casal.
BU)A decisão do Tribunal a quo como que exigia que a Autora provasse que o Réu não havia contribuído para as despesas, o que é uma exigência indevida, pois caberia ao Réu apresentar as suas contribuições financeiras;
BV)O Tribunal inverteu o ónus da prova, ao exigir da Autora a demonstração de um facto negativo, o que não se coaduna com a realidade do processo e os princípios processuais;
BW) A fundamentação da Sentença recorrida, ao desconsiderar as provas documentais da Autora, não impugnadas, e ao focar-se excessivamente em aspectos formais, leva à conclusão de que a decisão não reflecte adequadamente a verdade material do caso;
BX)O Tribunal não teve em conta as contribuições substanciais e regulares da Autora para as despesas do agregado familiar, enquanto o Réu não apresentou nenhum documento que comprovasse suas contribuições;
BY)A sentença recorrida padece de uma análise desequilibrada e formalista, desconsiderando a realidade financeira da união de facto e ignorando o esforço probatório da Autora;
BZ) A falha do Tribunal em reconhecer o desequilíbrio nas contribuições financeiras configura uma decisão injusta, que favorece a inércia do Réu em detrimento da Autora.
CA)Dado o exposto, é imperioso que a Sentença recorrida seja revista, levando em consideração todos os elementos de prova apresentados pela Autora e o contexto de uma união de facto prolongada, em que um dos membros (a Autora) assumiu a maior parte das responsabilidades financeiras;
CB)A aplicação dos princípios da equidade e da boa-fé processual deveria resultar num reconhecimento justo das contribuições da Autora e na reparação do desequilíbrio económico gerado pela falta de contribuição do Réu, e respectivo enriquecimento, à custa do empobrecimento da Autora;
Nestes termos e nos melhores de Direito, Requer-se a V. Exas. Venerandos Desembargadores da Veneranda Relação de Évora, se dignem aceitar o presente Recurso, declarando-o como totalmente procedente e, em consequência, ordenar:
• A revogação da Sentença recorrida e a sua substituição por outra que valorize corretamente a prova carreada para os Autos, que sane os erros na apreciação da prova e cuja fundamentação seja clara, precisa e suficiente, e que reconheça a preponderância das contribuições da Autora no sustento do agregado, a sua contribuição a nível de trabalho doméstico, tudo com a consequente declaração do enriquecimento sem causa do Réu, à custa do empobrecimento da Autora, condenando-o nos termos ab initio peticionados, fazendo assim a já Sã e Costumeira.... JUSTIÇA!
5. Contra-alegou o Réu pedindo a confirmação da sentença recorrida.
6. OBJECTO DO RECURSO
Ponderando que o objecto dos recursos é delimitado pelas conclusões neles insertas, salvo as questões de conhecimento oficioso - arts. 608º, nº2, 609º, 635º nº4, 639º e 663º nº2, todos do Código de Processo Civil – as questões cuja apreciação as mesmas convocam são as seguintes:
6.1. Impugnação da matéria de facto;
6.2. Reapreciação jurídica da causa: se a Autora tem direito a haver do Réu a integralidade das quantias peticionadas na sequência da dissolução da união de facto que os ligava.
II. FUNDAMENTAÇÃO
7. É a seguinte o teor da decisão de facto inserta na sentença recorrida:
“1- Em data não apurada do ano de 2006 a Autora e o Réu iniciaram relação de namoro.
2- Nessa data a Autora residia no Local 2, onde trabalhava como arquiteta, e o Réu residia em Local 1, onde trabalhava como funcionário no estabelecimento comercial do seu progenitor.
3- No início do ano de 2007 a Autora e o Réu passaram a residir numa casa arrendada, no Local 3.
4- Os filhos do Réu residiam com o progenitor em semanas alternadas, em regime de guarda partilhada com a respetiva progenitora.
5- A fração autónoma de que a Autora era proprietária e na qual habitava no Local 2 foi arrendada a terceiros, recebendo a mesma a respetiva renda.
6- Mediante escritura de doação, outorgada no dia 11 de outubro de 2006, os progenitores do Réu declararam doar-lhe, e este declarou aceitar a doação, o prédio rústico, sito no sítio da ..., freguesia de ..., concelho de Local 1, inscrito na matriz predial sob o art.º 44780, descrito na Conservatória do Registo Predial de Local 1 sob o n.º 3885 (cf. doc. 2 junto com a contestação, cujo teor se dá por reproduzido).
7- Em novembro de 2006 o Réu solicitou informação prévia sobre a viabilidade de construção de uma moradia no prédio rústico (cf. doc. 1 junto com a contestação, cujo teor se dá por reproduzido).
8- Apresentando um estudo prédio de construção elaborado pelo arquiteto por si contratado CC (cf. doc. 1 junto com a contestação, cujo teor se dá por reproduzido).
9- Por comunicação datada de 03 de abril de 2007 a Câmara Municipal de Local 1 informou da viabilidade de construção (cf. doc. 1 junto com a contestação, cujo teor se dá por reproduzido).
10- A Autora aceitou a proposta do Réu de passarem a residir na moradia a construir naquele prédio rústico.
11- A Autora realizou o projeto de arquitetura da moradia e submeteu-o a aprovação junto da Câmara Municipal de Local 1.
12- Os projetos de especialidades foram realizados por amigos da Autora de forma gratuita.
13- Foi a Autora quem tratou do processo camarário de licenciamento da obra (cf. doc. 2 junto com a petição, cujo teor se dá por reproduzido).
14- Para financiamento da construção o Réu recorreu ao Banco Montepio, onde era titular de uma conta bancária ordenado, aceitando a Autora subscrever o empréstimo a contrair.
15- Em 18 de fevereiro de 2008 a Autora e o Réu, na qualidade de mutuários, celebraram com o Banco Montepio, na qualidade de mutuante, contrato de mútuo com hipoteca, no valor de € 100.000,00 (cem mil euros), para a construção de um fogo no prédio rústico e com destino a habitação própria permanente (cf. doc. 1 junto com a petição, cujo teor se dá por reproduzido).
16- A Autora foi associada como titular da conta bancária ordenado, na qual seriam debitadas as prestações mensais referentes ao reembolso do empréstimo.
17- Para a concessão do empréstimo e respetivas condições foram considerados os rendimentos individuais auferidos pela Autora e pelo Réu.
18- Entre janeiro de 2009 e junho de 2017 a Autora transferiu para aquela conta bancária ordenado pelo menos €18.123,72 (cf. doc. 9 junto com a petição inicial, cujo teor se dá por reproduzido).
19- Os montantes transferidos e depositados na conta bancária ordenado foram utilizados para pagamento das prestações mensais referentes ao reembolso do empréstimo identificado em 15., para pagamento de outros empréstimos, cartão de crédito e para fins pessoais e/ou profissionais do Réu.
20- A partir de 2009 a Autora passou a efetuar o pagamento de despesas com alimentação, eletricidade, internet e TV Cabo do agregado familiar, composto por esta, o Réu, a filha menor de ambos e os filhos do Réu, apenas através das contas bancárias de que era titular no Banco Millenium BCP, S.A. e no Banco BPI, S.A..
21- Nas quais recebia a renda auferida pelo imóvel de que era proprietária no Local 2, o salário enquanto docente no ... em Local 4 e os honorários de trabalhos que executava.
22- A autora decidiu cursar o Doutoramento, pela Faculdade de Arquitetura da Universidade de Local 5, tendo contraído um empréstimo, o qual foi por si liquidado.
23- O Doutoramento foi iniciado no ano de 2009 e concluído no ano de 2019, auferindo entre os anos de 2014 e 2018 uma Bolsa em regime de exclusividade, também depositada em conta bancária de que era titular.
24- No ano de 2019 o Réu adquiriu um estabelecimento comercial, instalado numa fração autónoma, sito em Local 6, em regime de locação financeira, aceitando a Autora ser fiadora.
25- As tensões, discordâncias e conflitos entre a Autora e o Réu começaram em meados de 2018, agudizaram no ano de 2019 e no final deste ano deixaram de se relacionar como casal.
26- Em abril de 2021 a Autora deixou de residir na mesma habitação que o Réu, mudando-se com a filha de ambos para uma fração autónoma, sita em Local 1.
27- O prédio rústico doado ao Réu e a moradia nele edificada possuem um valor comercial entre os €220.000,00 e os €382.000,00. Alterado.
28- Um projeto de arquitetura para a construção de uma moradia realizado pela Autora possui um valor de mercado de aproximadamente € 15.000,00.
29- A fração autónoma identificada em 26. é compropriedade da Autora e do Réu (cf. docs. 7 e 8 juntos com a petição, cujo teor se dá por reproduzido).
Factos Não Provados
Não se provaram os demais factos alegados, concretamente e com relevo para a decisão:
a) no ano de 2007 a Autora acordou com o Réu que este suportava o pagamento da renda e aquela suportava as despesas com alimentação, água e eletricidade;
b) a Autora e o Réu criaram uma conta bancária na qual se comprometeram a realizar depósitos mensais de € 400,00 (quatrocentos euros) cada um, para fazerem face ao empréstimo bancário e às despesas do agregado familiar com alimentação, farmácia, higiene, TV satélite e eletricidade;
c) durante o ano de 2008 a Autora questionou o Réu relativamente à sua inclusão como proprietária da moradia;
d) após desconversar e protelar o Réu respondeu-lhe que estava tudo tratado e que a casa estaria em nome de ambos;
e) a Autora contribuiu, pelo menos em 50%, na compra de materiais e pagamento de mão-de-obra para a construção da moradia;
f) a Autora e o Réu acordaram que o Réu assumia o pagamento do empréstimo bancário e a Autora o pagamento das despesas do agregado familiar com alimentação, eletricidade, internet e TV cabo;
g) as despesas gerais com o agregado familiar ultrapassavam em €300,00 mensais as despesas com o empréstimo bancário;
h) a Autora suportou despesas do agregado familiar nos anos de 2007 a 2009 no valor de €500,00 por mês e a partir desse ano até 2020 no valor de €700,00 por mês;
i) no ano de 2015 foi penhorado o vencimento que a Autora auferia no âmbito de execução intentada pela AT por atraso nos pagamentos devidos a título de IRS;
j) o trabalho de tratamento das roupas, limpeza da casa, compras e confeção de refeições e de acompanhamento da filha de ambos foi assegurado, de forma exclusiva, pela Autora;
k) nas férias os 2 filhos do Réu e a filha em comum ficavam entregues à guarda e cuidados da Autora todo o dia;
l) em 2018, dada a necessidade de conclusão do Doutoramento, a Autora contratou, a suas expensas, uma empregada doméstica em regime de 4 horas semanais, para proceder à limpeza da casa, por €8,00 por hora;
m) a Autora realizou o projeto para o estabelecimento comercial adquirido pelo Réu, pagando equipamentos com proventos próprios;
n) a relação como casal entre a Autora e o Réu cessou em setembro/outubro de 2018.
8. Do mérito do recurso
8.1. Impugnação da matéria de facto
Relativamente aos factos provados:
A apelante começa por se insurgir contra algumas imprecisões na matéria de facto.
Porém, não indica de que elementos probatórios se socorre – e que este Tribunal possa analisar – para requerer a sua correcção.
Efectivamente:
Quanto ao facto nº4, pretende que, com base numa “rápida leitura das despesas” (?) se consigne que os filhos do Réu, a partir de 2009, passaram a viver em permanência com a Autora.
Revela-se impossível, sem indicação dos documentos em que se estriba para o efeito, satisfazer a sua pretensão.
Quanto ao facto nº14: Entende que omite a menção à Autora, aliás em contradição com o facto seguinte, donde decorre que o financiamento foi contraído por ambos.
Só por lapso pode ter sido feita tal arguição.
Basta ler o facto inserto em tal ponto: 14- Para financiamento da construção o Réu recorreu ao Banco Montepio, onde era titular de uma conta bancária ordenado, aceitando a Autora subscrever o empréstimo a contrair.( sublinhado e realce nossos).
De tal facto se extrai que o empréstimo para financiamento da construção foi também contraído pela Autora. Nada mais há a precisar.
Insurge-se contra a redacção dada ao facto nº 16 mas não indica o meio de prova que no seu entender deve ser tido em consideração para o modificar, como pretende.
O mesmo se diga do ponto 18 que refere conter uma imprecisão no valor dele constante mas não explica a razão do seu dissenso.
No ponto19 entende haver omissão no que concerne à titularidade do cartão de crédito (do Réu). Sem razão. É que da redacção de tal facto se extrai que o cartão de crédito era do Réu: “19- Os montantes transferidos e depositados na conta bancária ordenado foram utilizados para pagamento das prestações mensais referentes ao reembolso do empréstimo identificado em 15., para pagamento de outros empréstimos, cartão de crédito e para fins pessoais e/ou profissionais do Réu”.( sublinhado e realce nossos)
Quanto ao facto 22: Mais uma vez, a apelante não indica os meios de prova concretos (fazendo, apenas, alusão a “documentos juntos pela Autora”) que justificam a sua pretensão. E por esse motivo a mesma não pode ser atendida.
As declarações de parte, por si só, desacompanhadas da indicação dos demais meios de prova susceptíveis de serem valorados com referência a cada um dos concretos e especificados factos que são objecto da impugnação, não podem ter a virtualidade de alterar o decidido.
Relativamente ao facto nº25 – atinente à data em que ocorreu a separação de facto – refere que as mensagens sms carreadas para os autos nos requerimentos de 18.11.2022 e 8.11.2024 provam que a separação ocorreu em Setembro de 2020.
O Tribunal deu como provado o seguinte: “25- As tensões, discordâncias e conflitos entre a Autora e o Réu começaram em meados de 2018, agudizaram no ano de 2019 e no final deste ano deixaram de se relacionar como casal.”.
Para justificar o assim decidido, disse-se na sentença:
“Assim, perscrutando nos depoimentos e documentos juntos, evidencia-se que, pelo menos desde meados de 2018/2019, a relação entre as partes não seria a ideal, com conflitos e discordâncias a surgirem, mas que não significavam uma rutura da relação em definitivo.
Neste sentido, a testemunha DD referiu que se notava que as coisas não estavam bem, que existiam palavras, indiretas da parte do Réu para a Autora, que esta se sentia cansada e fugia para evitar um conflito maior (nas férias no verão dos anos de 2018 e de 2019 foi com a filha para a Local 7).
Também a testemunha EE referiu que nos últimos anos (da relação) não costumava ver o Réu e que o casal não jantava fora, os amigos em comum deixaram de frequentar a casa.
De igual modo, a testemunha FF, amiga da Autora, a quem confidenciou que saiu de casa porque não se sentia bem, por ser maltratada verbalmente, referiu que ainda viveram um/dois anos sob o mesmo teto mas já não se davam bem, não tinham uma relação de afeto como casal, segundo relato daquela.
Destes depoimentos extraímos que, pelo menos a partir de meados de 2018, começaram a existir desentendimentos entre a Autora e o Réu, o que não quererá significar que tenha logo aí cessado a relação que mantinham.
Aliás, a coabitação manteve-se até abril de 2021, data em que a Autora admitiu ter saído da casa de morada de família, quando já em setembro de 2020 havia relatado às irmãs que não mantinha com o Réu a relação como casal.
A data de saída da casa de morada de família foi confirmada pela testemunha GG, que tratou da troca de fechadura do apartamento para onde a Autora se mudou com a filha.
Também os filhos do Réu relataram que a Autora, antes de sair de casa, já não mantinha com o Réu relacionamento como casal, dormindo em quartos separados (primeiro a Autora dormia no quarto com a filha e depois passou a dormir no escritório).
O que encontra respaldo no depoimento da testemunha HH, empregada de limpeza na habitação nos anos de 2018/2019, que referiu que a cama do casal nunca estava desfeita e que nos sofás da sala e do quarto de hóspedes/escritório estavam mantas, almofadas, lençóis.
Não conseguiu, no entanto, precisar quem ali dormia e se o fazia diariamente, pois apenas se deslocava à moradia às segundas e sextas-feiras.
No entanto, sem conseguir precisar datas em concreto, mencionou não ouvia conversas entre a Autora e o Réu. Ele entrava e saia da casa sem que trocassem palavra.
Nas comunicações trocadas entre as partes, referentes ao ano de 2020, evidencia-se um distanciamento que não é próprio de quem mantém um relacionamento amoroso estável. Aliás, numa comunicação datada de setembro de 2020 a Autora refere mesmo que há muito que a relação havia acabado- fls.804.
E em muitas das comunicações trocadas e juntas não se percebe se as mensagens enviadas pelo Réu se dirigem à Autora ou à filha de ambos (que também surge muitas vezes fotografada). Embora numa comunicação de novembro de 2019 seja obvio que o Réu se dirigia à Autora como marido (cf. fls. 147).
Também das declarações de rendimentos juntas aos autos pela Autora e pelo Réu deflui que entre os anos de 2011 e 2019 foram apresentadas em conjunto, deixando de o ser a partir desse ano fiscal (fls.238 e ss e 358).
O que reforça a convicção que, apesar de se manterem a residir na mesma habitação, existindo coabitação, não existia vida em comum, partilha de cama e mesa pelo menos desde finais de 2019.
Isto apesar de nesse ano de 2019 o Réu admitir ter passado a passagem de ano com a Autora e a filha, justificando que o fez para estar com esta última (note-se que no período das férias de verão ambas se deslocaram para a Local 7, pelo que a explicação adiantada será plausível).
Ou seja, da conjugação dos meios de prova referidos, resulta evidenciado que a coabitação cessou com a saída da habitação em abril de 2021 mas a Autora e o Réu não faziam vida em comum, como se de marido e mulher se tratassem, pelo menos desde finais do ano de 2019.
Não demonstrando o Réu, com os meios de prova oferecidos e com a necessária certeza, que desde setembro/outubro de 2018 já não existia comunhão de cama e mesa, conforme alegou.
Donde, tenham sido considerados provados os factos referidos nos pontos 25 e 26 e não provados os factos mencionados na alínea n).”.
A questão está em saber se os documentos que corporizam mensagens enviadas pelo Réu à Autora são susceptíveis de alterar o assim decidido.
Vejamos.
A fls. 137 consta um relatório da GNR junto pela Autora, datado de 26.9.2020, respeitante a uma denúncia de distúrbios entre A. e R. do qual consta, designadamente, que a A. informou que: “o seu marido chegou à residência na companhia de um amigo ( aparentemente alcoolizados) e que fizeram barulho na zona da cozinha, acordando a ora denunciante”.
“Denunciante disse que em acto contínuo o seu marido deitou-se no sofá da sala, onde a denunciante costuma pernoitar.
Denunciante informa que está em processo de separação (…)”.
A fls. 138 está uma mensagem de proveniência e destinatário desconhecidos, com data de 3 de Maio de 2020, que não é reveladora de que o casal ainda o fosse nessa data.
A fls. 141 e segs, constam mensagens enviadas por ou para “ BB” que também não são suficientemente reveladoras da existência ( ou subsistência) em Setembro de 2020 de uma relação de “casal”. Mas a verdade é que já nessa altura a A. declarara ao agente da GNR que estava em processo de separação.
Admite-se no entanto que tal “ processo de separação” só se tenha iniciado após Abril de 2020, já que há ainda nesse mês mensagens amorosas trocadas pelo casal e, por isso, admitimos que só no final de 2020 (e não de 2019) é que a relação entre ambos tenha terminado por completo.
Assim, altera-se o facto vertido em 25, que passa a ter a seguinte redacção: 25- As tensões, discordâncias e conflitos entre a Autora e o Réu começaram em meados de 2018, agudizaram no ano de 2019 e no final de 2020 deixaram de se relacionar como casal.”
Quanto ao facto 27, salienta a apelante que deveria ter sido fixado o valor comercial do imóvel, assim como o valor que o terreno teria tido antes da construção.
No ponto 27, consta o seguinte: “O prédio rústico doado ao Réu e a moradia nele edificada possuem um valor comercial entre os €220.000,00 e os €382.000,00”.
Para justificar o assim decidido, diz-se na sentença:
“No que respeita aos factos referentes ao valor comercial do prédio rústico e da moradia edificada, o decidido teve em consideração os relatórios periciais (fls.381/386 e 487/505), em conjunto com os esclarecimentos prestados em audiência, dos quais deflui que cada perito utilizou um critério subjetivo, em que valorizaram mais determinados aspetos, em detrimento de outros, mormente a acessibilidade e localização.
Certo é que os imóveis que o Sr. perito II tomou como referência coincidem, em parte, na localização com o prédio em questão, mas não nas respetivas características, o que assume relevância (trata-se de local isolado, sem acessibilidade de transportes públicos e sem saneamento básico público).
Pelo que, perante a conjugação de todos os referidos aspetos, foi pelo Tribunal dada a resposta aos factos conforme consta do ponto 27.”.
Vejamos.
No relatório pericial que consta de fls. 381 e segs. foi fixado o objecto da perícia nos seguintes termos: Avaliação da vivenda (…) com vista à fixação do seu valor comercial actual; valor do terreno onde foi implantada a moradia, presumindo a inexistência desta, e valor atribuído, em “mais valia” ao conjunto “Parcela de terreno, moradia” com a edificação desta.
O valor da vivenda foi fixado em €220.000; o da parcela de terreno em €69.000. e a mais valia obtida pela construção da moradia no terreno, €151.000.
No segundo relatório que consta de fls.487 e segs., o valor da vivenda foi fixado em €382000,00; o da parcela de terreno em €72.000. e a mais valia obtida pela construção da moradia no terreno, €51.421, “correspondendo à margem de lucro estimada com a aplicação do método do custo”.
O método do primeiro relatório para alcançar a mais valia resultante da edificação da moradia no terreno é fácil de atingir (valor da moradia deduzido do valor do terreno).
O do segundo relatório tem em consideração o valor do imóvel novo–€ 394.230 – ao qual deduz o valor total do custo da construção (€ 241.163) os custos indirectos ( €30.145) e o valor do terreno ( €71.500).
Cremos que o que se pretendia era efectivamente saber qual o acréscimo de valor obtido pelo dono do terreno com a construção da moradia (não considerando, obviamente, o valor despendido com a construção).
E, por isso, entendemos que o facto em apreço deve ser modificado de modo a contemplá-lo, assim como o valor comercial do imóvel e o valor da mais valia adveniente da construção da moradia no terreno.
Assim, o facto em apreço passa a ter a seguinte redacção:
27. “O prédio rústico doado ao Réu com a moradia nele edificada possuem um valor comercial entre os €220.000,00 e os €382.000,00, sendo a mais valia adveniente da construção da moradia no terreno – cujo valor comercial oscila entre €69.000 e €720000- não inferior a €51.421,00.
Relativamente aos factos não provados:
Refere a apelante ser de difícil compreensão o facto b) (a Autora e o Réu criaram uma conta bancária na qual se comprometeram a realizar depósitos mensais de € 400,00 (quatrocentos euros) cada um, para fazerem face ao empréstimo bancário e às despesas do agregado familiar com alimentação, farmácia, higiene, TV satélite e eletricidade ) “visto haver prova suficiente, tanto nos extractos do Banco Montepio, como nos extractos das contas pessoais da Autora, a qual decidiu, a partir de 2009, passar a usá-las para as despesas com o agregado familiar;
E fê-lo por não conseguir controlar a conta Montepio, visto que, como o Tribunal a quo também reparou, o Réu usava os montantes lá disponíveis para despesas pessoais, profissionais e do seu cartão de crédito”.
Porém, mais uma vez, não indica em concreto o documento em que se alicerça para sustentar a sua pretensão.
Como está bem de ver, não incumbe ao Tribunal de recurso descobrir no processo (que no caso tem perto de 1000 páginas) os extractos a que alude a apelante.
As declarações da Autora, só por si, não têm a virtualidade de confirmar esta factualidade.
Por isso, também mais uma vez, por esse motivo improcede a sua pretensão de ver modificada a resposta dada pelo Tribunal “a quo”.
Quanto ao facto referido em e) (a Autora contribuiu, pelo menos em 50%, na compra de materiais e pagamento de mão-de-obra para a construção da moradia) refere a apelante que o Réu confessou tal facto em audiência ( cfr. acta de 25.11.2024) mas que o Tribunal desprezou tal confissão.
Para além disso, se contraíram ambos um empréstimo para custear tal construção e se foram utilizados os fundos de tal empréstimo para esse efeito deve-se presumir que a construção foi custeada em partes iguais pelo casal.
Vejamos.
Na acta, consta o seguinte:
O depoente admite que a autora comparticipou no pagamento de materiais relativos à construção da moradia e no pagamento de despesas de eletricidade e em serviços de internet e que as rendas recebidas do apartamento de Local 1, até determinada data, que não sabe quantificar, serviram para pagar as prestações do empréstimo pela aquisição desse imóvel e da moradia.
Por outro lado, ficou provado que: “15- Em 18 de fevereiro de 2008 a Autora e o Réu, na qualidade de mutuários, celebraram com o Banco Montepio, na qualidade de mutuante, contrato de mútuo com hipoteca, no valor de € 100.000,00 (cem mil euros), para a construção de um fogo no prédio rústico e com destino a habitação própria permanente” e, bem assim, que: “
Por conseguinte, é inequívoco que pelo menos parte do custo da construção da moradia (€100.000) foi custeado por um empréstimo contraído por ambos e cujas prestações mensais eram liquidadas através duma conta contitulada e alimentada também por ambos ( e cujos fundos se presumem de ambos em quotas iguais ) sendo que, para além disso, a própria Autora, como confessado pelo Réu, suportou a compra de materiais para a construção da moradia, sendo de presumir que fez, tal contribuição também em partes iguais.
Assim, o facto em apreço transita para o elenco dos factos provados, com a seguinte redacção: A Autora contribuiu, em partes iguais com o Réu, na compra de materiais e pagamento de mão-de-obra para a construção da moradia.
Insurge-se, igualmente, a apelante contra a decisão de dar como não provados, os factos insertos nas alíneas f), g) e h) ,j) e k).
Porém, limita-se a manifestar a sua discordância para com a decisão da matéria de facto, tecendo considerações sobre a valoração da prova e quanto ao ónus probatório, transcrevendo depoimentos a esmo e entremeando-os com citação de acórdãos.
O recurso não pressupõe a reapreciação total do acervo dos meios de prova produzidos, que serviram de fundamento à decisão recorrida, mas antes uma reapreciação autónoma sobre a justeza da decisão do tribunal a quo quanto aos “concretos pontos de facto” que o recorrente especifique como incorrectamente julgados.
Por isso, não basta pedir que os factos não provados sejam dados como provados (e vice-versa) sem que se explicite, no tocante a cada um, os fundamentos concretos (com referência ao(s) específicos meios probatórios) que alicerçam essa pretensão.
Como se explica no Acórdão do STJ de 16.1.2024 ( L. Espírito Santo) : “I. A alínea b) do nº 1 do artigo 640º do Código de Processo Civil impõe ao impugnante a obrigação processual que consiste no dever de efectuar a correspondência directa, concreta e objectiva, entre os meios probatórios por si indicados e a justificação (por eles representada) para a modificação dos pontos de facto considerados incorrectamente valorados.
II – O que significa que não é suficiente, para se considerar cumprida a exigência da alínea b) do nº 1 do artigo 640º do Código de Processo Civil, a mera reunião aglomerada dos diversos meios de prova entendidos por relevantes, feita genericamente e em estilo descritivo, numa amálgama indiferenciada, sem nenhuma referência concreta e objectiva aos pontos de facto em causa, individualmente identificados (…)”.
Ao não ter cumprido este ónus de, no tocante à especificação dos pontos de facto que considera mal julgados, referenciar cada um com o correspondente meio de prova que se indica para o evidenciar, a apelante, mais uma vez, inviabilizou o conhecimento por este Tribunal da impugnação destes pontos da matéria de facto.
Termos em que deles se não conhece por esse motivo.
8.2. Reapreciação jurídica da causa
Como vimos, na presente acção, pretende a Autora – que viveu com o Réu em união de facto durante cerca de 13 anos - que o mesmo, por via do instituto do enriquecimento sem causa - seja condenado a restituir-lhe:
1. Metade do valor comercial de dois imóveis (casa de morada de família e loja);
2. O valor do seu trabalho que, como arquiteta, incorporou na moradia que construíram (€15.000,00);
3. O montante por si suportado com despesas em benefício do agregado familiar (€102.000,00), assim como, o valor do trabalho doméstico por si exclusivamente prestado entre 2006 e 2020 (€80.640,00)
Na sentença recorrida apesar de se considerar que Autora e Réu viveram em união de facto e que tal união se encontra dissolvida, entendeu-se só haver fundamento para condenar o Réu a pagar-lhe a quantia de €15.000 referente ao valor do seu trabalho como arquitecta, absolvendo-o dos demais pedidos.
A Autora discorda, entendendo dever ser compensada tendo em consideração a contribuição para a construção da casa de morada de família e de modo preponderante, para as despesas do agregado familiar, integrado também pelos filhos do Réu.
Desde já se diga que a questão da existência da união de facto e da sua dissolução, que ora se fixou em finais de Setembro de 2020, não vem questionada.
Assim, comprovada a existência da união de facto e a sua dissolução, o que está em causa é apenas a tutela dos direitos patrimoniais decorrentes da cessação da união de facto, concretamente, saber se a recorrente tem direito à restituição financeira peticionada.
Com interesse para esse desiderato, ficou provado o seguinte:
- Em 18 de fevereiro de 2008 a Autora e o Réu, na qualidade de mutuários, celebraram com o Banco Montepio, na qualidade de mutuante, contrato de mútuo com hipoteca, no valor de € 100.000,00 (cem mil euros), para a construção de um fogo no prédio rústico, que havia sido doado ao Réu, e com destino a habitação própria permanente;
- A Autora foi associada como titular da conta bancária ordenado, na qual seriam debitadas as prestações mensais referentes ao reembolso do empréstimo.
- Para a concessão do empréstimo e respetivas condições foram considerados os rendimentos individuais auferidos pela Autora e pelo Réu.
- Entre janeiro de 2009 e junho de 2017 a Autora transferiu para aquela conta bancária ordenado pelo menos €18.123,72 ;
- Os montantes transferidos e depositados na conta bancária ordenado foram utilizados para pagamento das prestações mensais referentes ao reembolso do empréstimo identificado em 15., para pagamento de outros empréstimos, cartão de crédito e para fins pessoais e/ou profissionais do Réu.
- A partir de 2009 a Autora passou a efetuar o pagamento de despesas com alimentação, eletricidade, internet e TV Cabo do agregado familiar, composto por esta, o Réu, a filha menor de ambos e os filhos do Réu, apenas através das contas bancárias de que era titular no Banco Millenium BCP, S.A. e no Banco BPI, S.A..
- Nas quais recebia a renda auferida pelo imóvel de que era proprietária no Local 2, o salário enquanto docente no ... em Local 4 e os honorários de trabalhos que executava.
- A autora decidiu cursar o Doutoramento, pela Faculdade de Arquitetura da Universidade de Local 5, tendo contraído um empréstimo, o qual foi por si liquidado.
- O Doutoramento foi iniciado no ano de 2009 e concluído no ano de 2019, auferindo entre os anos de 2014 e 2018 uma Bolsa em regime de exclusividade, também depositada em conta bancária de que era titular.
- No ano de 2019 o Réu adquiriu um estabelecimento comercial, instalado numa fração autónoma, sito em Local 6, em regime de locação financeira, aceitando a Autora ser fiadora.
- O prédio rústico doado ao Réu com a moradia nele edificada possuem um valor comercial entre os €220.000,00 e os €382.000,00, sendo a mais valia adveniente da construção da moradia no terreno – cujo valor comercial oscila entre €69.000 e €720000 - não inferior a €51.421,00.
- A Autora contribuiu, em partes iguais com o Réu, na compra de materiais e pagamento de mão-de-obra para a construção da moradia.
Como se disse, a Autora fundou o pedido nas regras do enriquecimento sem causa.
Determina o art.º 473.º do Código Civil que “[a]quele que, sem causa justificativa, enriquecer à custa de outrem é obrigado a restituir aquilo com que injustamente se locupletou” (n.º 1), sendo que “[a] obrigação de restituir, por enriquecimento sem causa, tem de modo especial por objecto o que for indevidamente recebido, ou o que for recebido por virtude de uma causa que deixou de existir ou em vista de um efeito que não se verificou” (n.º 2).
Acresce que, nos termos do artigo 479º do Código Civil, “[a] obrigação de restituir fundada no enriquecimento sem causa compreende tudo quanto se tenha obtido à custa do empobrecido ou, se a restituição em espécie não for possível, o valor correspondente” (nº 1), e “[a] obrigação de restituir não pode exceder a medida do locupletamento à data da verificação de algum dos factos referidos nas duas alíneas do artigo seguinte” (nº 2).
O enriquecimento sem causa é, assim, uma fonte de obrigações que cria uma obrigação de restituir, em que figura como credor o sujeito à custa de quem o enriquecimento se verificou e como devedor o beneficiário desse.
É uniformemente entendido, que só há enriquecimento sem causa, quando o património de certa pessoa ficou em melhor situação, se valorizou ou deixou de desvalorizar, à custa de outra pessoa, sem que para tal exista causa justificativa.
O enriquecimento traduz-se na obtenção de um valor, de uma vantagem de carácter patrimonial susceptível de avaliação pecuniária, resultando da comparação entre a situação em que se encontra actualmente o património do enriquecido, e aquela que se verificaria se não se tivesse dado o enriquecimento.
Em suma, dir-se-á que o facto que enriquece uma pessoa tem de produzir o empobrecimento de outra.
Para que exista enriquecimento sem causa é, pois, necessário que, cumulativamente, se verifiquem os seguintes requisitos (incumbindo o ónus da prova ao empobrecido – cf. artigo 342º, n.º 1, do Código Civil): (i) que alguém obtenha um enriquecimento, (ii) à custa de outrem e (iii) que o enriquecimento não tenha causa justificativa.
O primeiro requisito consiste, pois, na obtenção de uma vantagem de carácter patrimonial, traduzindo-se por regra num aumento do activo patrimonial e, o último, exige uma correlação entre o enriquecimento e o empobrecimento, no sentido de que a vantagem patrimonial alcançada por um sujeito resulte do sacrifício económico correspondente suportado pelo outro.
A falta justificativa, em situações de enriquecimento de prestação, tem-se por verificada quando alguém tenha recebido coisa indevidamente, isto é, sem qualquer fonte ou título jurídico a suportá-la, ou que tendo por base causa, esta tenha deixado de existir, ou quando a prestação assim efectuada tivesse em vista um efeito que acabou por não se verificar.
Em que medida é que se pode lançar mão deste instituto aquando da ruptura da união de facto?
É inequívoco que “a comunhão de vida -a vida em condições análogas às dos cônjuges – tendo uma dimensão eminentemente pessoal , coenvolve de modo quase inelutável uma “ interpenetração” ou “confusão” dos patrimónios que se revela com toda a acuidade quando se torna necessário destrinçá-los”.
Na imagem de um autor, o amor pode criar a ilusão de que o Direito é dispensável enquanto perdura, mas quando o amor cessa e começam a fazer-se contas a necessidade do Direito surge ainda mais intensa. E a importância social crescente das uniões de facto torna essa intervenção indispensável para procurar assegurar, como veremos, que em nome dos sentimentos e da liberdade, a união não se transforme num instrumento para o locupletamento à custa de outrem”. 1
A jurisprudência tem entendido que a composição dos interesses patrimoniais conflituantes dos membros da união de facto, consequente à sua extinção, deverá assentar no instituto do enriquecimento sem causa, que disponibiliza uma tutela adequada àquela composição2.
Ora, no caso concreto, constata-se que a edificação da moradia que constituía a casa de morada de família da Autora e do Réu foi feita num terreno deste mas a expensas não só de um empréstimo também subscrito pela Autora mas também com o seu contributo na aquisição de materiais e mão de obra.
Mercê da edificação de tal moradia no seu terreno, durante a vivência em união de facto com a Autora, é inquestionável, como se provou, que o Réu valorizou o seu património.
Estamos no âmbito do enriquecimento por incremento de valor em coisas alheias, o que sucede quando alguém efectua despesas (gastos de dinheiro, trabalho ou materiais) em determinada coisa alheia.3
E tal sucedeu, como se disse, com o contributo da Autora que financiou também tal construção onde viria a ser instalada (como o veio a ser) a casa de morada de família.
Não pode, pois, a Autora deixar de comparticipar na mais valia que o Réu obteve, relativamente à casa de morada de família e para a qual contribuiu, mais valia essa que, como se provou, ascende a valor não inferior a €51.421,00.
Com efeito, o enriquecimento por incremento de valor de coisas alheias decorrente de despesas realizadas por outrem não se confunde, todavia, com o reembolso das respectivas despesas4.
Tendo em consideração que essa comparticipação foi feita através do débito de uma conta bancária, por ambos contitulada, cujos fundos se presumem comuns ( e para a qual comprovadamente a Autora transferiu quantias monetárias pessoais elevadas ) e bem assim, através do pagamento, em partes iguais, de materiais e mão de obra destinados à construção da dita moradia, deverá o Réu restituir-lhe metade dessa mais valia, ou seja, €25 710,50, que se considera ter sido obtida à custa da Autora ( art.º 479º, nº1 do Cód. Civil).
Relativamente “à loja”, apenas ficou provado que: “24- No ano de 2019 o Réu adquiriu um estabelecimento comercial, instalado numa fração autónoma, sito em Local 6, em regime de locação financeira, aceitando a Autora ser fiadora.”.
Por conseguinte, caso a mesma Autora venha, como fiadora, a responder pelas rendas da locação financeira, deverá, em sede própria, reaver do Réu tais quantias por via do art.º 644º do Cód. Civil.
Nesta acção não há fundamento para lhe atribuir o que quer que seja com relação a tal “loja”.
Por último, pretendia, também, a Autora que lhe fosse restituído o montante por si suportado com despesas em benefício do agregado familiar (€102.000,00), assim como, o valor do trabalho doméstico por si exclusivamente prestado entre 2006 e 2020 (€80.640,00).
Relativamente ao trabalho de serviço doméstico nada se provou.
Ainda assim, sempre se diga, que não bastava ter-se provado que a Autora tinha desempenhado tarefas domésticas; era, também, necessário revelar-se que o havia feito com sacrifício da sua vida profissional em prol da família e que, por isso, tivesse contribuído para o incremento patrimonial do Réu.
Em função da factualidade provada, não há da parte da Autora, neste tocante, qualquer empobrecimento, nem sacrifício a tal equiparado, muito menos com correspondência directa no enriquecimento patrimonial do Réu.
Relativamente às despesas que teve com o agregado familiar:
Provou-se apenas que a partir de 2009 a Autora passou a efetuar o pagamento de despesas com alimentação, eletricidade, internet e TV Cabo do agregado familiar, composto por esta, o Réu, a filha menor de ambos e os filhos do Réu, apenas através das contas bancárias de que era titular no Banco Millenium BCP, S.A. e no Banco BPI, S.A..
Desconhece-se se tais despesas constituíam a maior parte das despesas correntes do casal e se não houve uma repartição equitativa das mesmas.
Como nos dá conta Júlio Gomes5 , “ [o] enriquecimento sem causa tem sido , por conseguinte, invocado frequentemente com sucesso, sobretudo quando se verificam deslocações patrimoniais significativas de um dos membros da união a favor do doutro: por exemplo, embora um prédio seja adquirido em nome apenas de um dos membros da união, o preço em dívida é pago pelos dois; ou um dos membros da união financia , total ou parcialmente, a construção de um prédio em terreno do outro [ ou participa com o seu trabalho nessa mesma construção]. Relativamente à participação dos membros da união nas despesas e nos encargos correntes do dia-a-dia, a tendência é considerar que essas despesas e trabalho realizado não são restituíveis , invocando-se em muitos ordenamentos e tal como sucede entre nós, o cumprimento de obrigações naturais”.
Nesta senda, o Ac STJ de 20/3/2014 ( Nuno Cameira) refere «tudo o que sejam as despesas normais e correntes próprias de quem vive, embora “informalmente”, a “plena comunhão de vida” de que fala o artº 1577º do CC não é repetível, finda a relação, mediante a aplicação do regime do artº 476º deste mesmo diploma; e isto porque se considera que houve então uma causa justificativa para tais atribuições patrimoniais impeditiva da conclusão de que o prestado foi indevido; essa causa justificativa reside, precisamente, na subsistência da união de facto, para a qual cada um dos membros contribuiu em termos materiais pela forma tacitamente acordada pelo casal enquanto a relação se manteve.»
Em suma: neste tocante não tem como se alterar o decidido na sentença.
III.DECISÃO
Por todo o exposto, se acorda em julgar a apelação parcialmente procedente e, em consequência, condena-se, também, o Réu a pagar à Autora a quantia de € 25 710,50 (vinte e cinco mil, setecentos e dez euros e cinquenta cêntimos) mantendo-se o demais decidido na sentença da 1ª instância.
Custas por apelante e apelado na proporção do decaimento.
Évora, 8 de Maio de 2025
Maria João Sousa e Faro (relatora)
Ana Pessoa
Filipe César Osório
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1. Assim, Júlio Gomes In “O Enriquecimento sem Causa e a União de Facto, in Cadernos de Direito Privado n.º 58, Centro de Estudos Jurídicos do Minho, 2017” pag. 7/8 .↩︎
2. Assim, dentre outros Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 12.9.2023 (Henrique Antunes) e jurisprudência aí citada.↩︎
3. Assim, Luís Menezes Leitão in Direito Das Obrigações, vol.I, 2016, pag. 396.↩︎
4. Assim, Pires de Lima - A. Varela, Código Civil Anotado, vol II, 4ª ed., p. 757.↩︎
5. In Estudo citado, pag. 16.↩︎