CUMPRIMENTO DO CONTRATO
PRAZO
INTERPRETAÇÃO DE DECLARAÇÕES NEGOCIAIS
PERDA DE INTERESSE DO CREDOR
PREÇO
Sumário

Sumário:
I. Saber se o estabelecimento do prazo de cumprimento duma obrigação é ou não essencial e se o seu decurso se traduz num incumprimento definitivo é tarefa que deve resultar não só da interpretação das cláusulas do contrato, como do comportamento anterior e posterior dos contraentes.
II. Tendo em consideração que do orçamento dado pela vendedora, com o qual a compradora concordou, apenas resulta que o tempo de entrega dos produtos é de “1/2 dias” e isto se o produto estiver disponível para envio desde as instalações do fornecedor da vendedora e que a compradora em momento algum fez notar que o produto lhe deveria ser entregue até à data X sob pena de deixar de ter interesse na sua aquisição e, bem assim, que no dia em que o mesmo lhe foi entregue não deixou de o aceitar, é de concluir que nunca esteve verdadeiramente em causa a estipulação de um prazo essencial de cumprimento por parte da vendedora.

Texto Integral

Processo: 374/22.2T8SSB.E1

ACÓRDÃO

I. RELATÓRIO

1. Quimigen, Unipessoal, Lda. demandou Qualidefender, Lda., pedindo que a Ré seja condenada a pagar o valor de € 17.936,30 (dezassete mil novecentos e trinta e seis euros e trinta cêntimos), correspondente a € 17.500,00 de capital e € 436,60 de juros vencidos desde a data de vencimento das faturas (28/01/2022) até à data petição inicial (09.06.2022.), acrescido de juros vencidos e vincendos, à taxa legal em vigor, até efetivo e integral pagamento, decorrente do não pagamento do preço dos objetos fornecidos pela A. à R.


Porém, veio mais tarde a requerer a redução do pedido, “no montante correspondente ao pagamento, entretanto, realizado, de € 9.400,00 (nove mil e quatrocentos euros), sendo que as custas de tal redução deverão ser imputadas à Ré nos termos do disposto no artigo 536º do CPC.”.

2. A Ré contestou por impugnação suscitando incumprimento contratual da A. no que concerne à entrega de parte da encomenda que foi extemporânea.

3. Foi realizado julgamento e subsequentemente foi proferida sentença que julgando a acção improcedente absolveu a Ré do pedido.

4. É desta sentença que recorreu a Autora formulando na sua apelação as seguintes conclusões:


“1.


A sentença recorrida padece de nulidades e de erro na apreciação da matéria de facto, e consequente erro de julgamento.


- Das nulidades:


2.


Primeiramente, a sentença recorrida é nula por falta de especificação dos fundamentos de facto que justificam a decisão, nos termos do artigo 615.º, n.º 1, al. b) do CPC. Isto porque,


3.


A sentença dá como provado, no ponto 5 da matéria de facto dada como assente, que a Recorrente contactou telefonicamente a Recorrida, informando que, devido a questões relacionadas com a disponibilidade dos produtos em armazém, apenas seria possível remeter de imediato 134 produtos, dos 350 encomendados. A restante parte da encomenda seria remetida posteriormente.


4.


No entanto, não consta dos factos dados como provados qualquer referência à alegada manifestação da Recorrida quanto à perda de interesse na encomenda, caso não a recebesse na sua totalidade até 30 de dezembro de 2021.


5.


Também não é mencionado nos factos provados que a entrega até essa data fosse considerada essencial pela Recorrida, nem que tal essencialidade tenha sido comunicada à Recorrente.


6.


Sucede que a sentença recorrida baseia a sua decisão de incumprimento da Recorrente, equiparando-o à impossibilidade da prestação, na suposta essencialidade, para a Recorrida, do recebimento da totalidade da encomenda até dia 30 de Dezembro de 2021.


7.


Ora, não constando a essencialidade como facto provado, tem-se que não é admissível, do ponto de vista legal, que o tribunal fundamente a sua decisão em factos que não constam expressamente da matéria de facto dada como assente.


8.


Este erro é particularmente grave, considerando a importância que o tribunal conferiu ao prazo de entrega na sua decisão.


9.


Esta falta de especificação dos concretos fundamentos de facto que levaram o tribunal a considerar como essencial a entrega da totalidade da encomenda até 30 de Dezembro de 2021 resulta na nulidade da sentença, nos termos do artigo 615.º, n.º 1, al. b) do CPC, o que desde já se invoca.


10.


A sentença recorrida padece igualmente de nulidade por omissão de pronúncia quanto à requerida junção de documentos, em violação do disposto no artigo 615.º, n.º 1, al. d) do CPC.


11.


Na primeira sessão da audiência de julgamento, a 25/10/2023, foi requerida a junção de documentos, tanto pela Recorrente, como pela Recorrida.


12.


Os documentos apresentados pela Recorrente incluem capturas de ecrã de mensagens de texto trocadas entre a testemunha AA e o legal representante da Recorrida.


13.


Posteriormente, por requerimento de 6/11/2023, a Recorrente juntou mais três documentos, no exercício do contraditório que lhe foi concedido na sequência da junção dos documentos pela Recorrida na primeira sessão da audiência de julgamento, a 25/10/2023.


14.


Contudo, sobre a junção destes documentos não recaiu qualquer despacho de admissão, o que constitui uma nulidade por omissão de pronúncia, nos termos do artigo 615.º, n.º 1, al. d) do CPC.


15.


De notar que os documentos juntos são prova cabal da questão fundamental aqui em causa: a Recorrida foi informada que parte da encomenda só podia ser entregue a 3 de Janeiro de 2022, na pessoa do seu legal representante, e aceitou essas condições.


16.


No mesmo sentido, a sentença recorrida é omissa quanto ao pedido de condenação da Recorrida por litigância de má-fé, deduzido por esta em requerimento datado de 17/02/2023, na sequência da contestação apresentada, solicitou a condenação da Recorrida como litigante de má-fé.


17.


Mesmo que a sentença tenha absolvido a Recorrida do pedido principal, o tribunal a quo tinha o dever de se pronunciar sobre todos os pedidos formulados, o que não ocorreu.


18.


Assim, a sentença é novamente nula por omissão de pronúncia, conforme previsto no artigo 615.º, n.º 1, al. d) do CPC.


- Do erro na apreciação da matéria de facto:


- Factos dados como provados:


19.


A sentença recorrida erra também na apreciação da matéria de facto.


20.


No ponto 13 da matéria de facto dada como assente, a sentença refere que "O supra referido orçamento estipulava de forma expressa que o tempo de entrega dos produtos é de 1/2 dia após confirmar a encomenda", leitura esta que é incorreta, uma vez que o "1/2 dia" foi erroneamente interpretado como meio dia.


21.


Da análise da prova documental junta aos autos, bem como dos depoimentos das testemunhas e das declarações do legal representante da Recorrida, não se extrai, em momento algum, que o prazo indicado no orçamento remetido à Recorrida fosse de meio dia.


22.


Surpreendentemente, a decisão recorrida faz referência repetida a um prazo de entrega de meio dia.


23.


É de todo incompreensível a origem deste facto assente, considerando que tanto nas peças processuais, como nos documentos e depoimentos, sempre se mencionou um prazo de um a dois dias, e nunca de meio dia.


24.


É igualmente importante ressaltar que a Recorrente nunca se comprometeu a entregar a encomenda em meio dia.


25.


Além disso, este não é sequer um ponto controvertido: a própria Recorrida, no artigo 4.º da sua contestação, admite que o orçamento que recebeu estipulava um prazo de entrega de um a dois dias. Trata-se, portanto, de matéria assente.


26.


A sentença recorrida incorre em erro ao dar como provado apenas parte da frase constante no orçamento, ignorando a integralidade da mesma, onde se lê: "Tempo entrega: 1/2 Dias após confirmar a encomenda, se o produto está disponível para envio desde as instalações do nosso fornecedor".


27.


A frase completa é fundamental para o correcto entendimento das condições de entrega, pois o envio em um ou dois dias está claramente condicionado à existência de stock no fornecedor, o que altera substancialmente o sentido da afirmação.


28.


A sentença recorrida, ao desconsiderar esta condição essencial, distorceu o verdadeiro conteúdo do prazo de entrega, afectando diretamente a análise dos factos.


29.


A interpretação da sentença recorrida, que considera a expressão “se o produto está disponível para envio desde as instalações do nosso fornecedor” como vaga e genérica, é incorrecta e contrária aos princípios de interpretação dos negócios jurídicos, que devem atender à intenção das partes e às circunstâncias do caso.


30.


Esta interpretação errónea leva a uma conclusão equivocada de que o prazo de entrega não seria claro, quando, na verdade, a condição estabelecida é específica e determina claramente as responsabilidades da Recorrente quanto ao cumprimento do prazo.


31.


Conforme demonstrado pelos factos 5, 6, 8 e 15 da matéria de facto assente, bem como pelos factos 1, 2, 3 e 4, que deveriam ter sido dados como provados, a Recorrente, ao tomar conhecimento da falta de stock no fornecedor, prontamente informou a Recorrida sobre a nova data de entrega, à qual esta última anuiu.


32.


Em face do exposto, é evidente que a sentença recorrida se baseia em um grave equívoco quanto ao prazo de entrega supostamente acordado, comprometendo, assim, toda a fundamentação jurídica que levou à decisão.


33.


Este erro de interpretação quanto ao prazo de entrega não apenas desvirtua os factos apurados, mas também compromete a justiça da decisão, que deve ser revista e corrigida para refletir a verdadeira natureza do acordo celebrado entre as partes.


34.


Em consequência do exposto, o ponto 13 da matéria de facto assente deve ser alterado, passando a constar a seguinte redação: "13. O supra referido orçamento estipulava de forma expressa que o tempo de entrega dos produtos é de 1 ou 2 dias, se o produto estiver disponível para envio desde as instalações do fornecedor da Autora".


35.


É, por conseguinte, imprescindível a reformulação da sentença recorrida, corrigindo-se a matéria de facto assente, o que conduzirá, inevitavelmente, a uma decisão de sentido diverso.


36.


A sentença também incorre em erro na apreciação da matéria de facto não provada.


- Da matéria de facto dada como não provada:


37.


Relativamente ao ponto 1 da matéria de facto dada como não provada, ao contrário do que afirma a sentença recorrida, tal facto está devidamente corroborado pelo depoimento da testemunha AA, prestado na primeira sessão da audiência de julgamento, em 25/10/2023, onde afirmou peremptoriamente que a Recorrida aceitou telefonicamente a alteração da data da entrega, chamada essa efectuada pela própria testemunha, bem como que remeteu mensagem escrita com a mesma informação.


38.


Este facto é, pois, corroborado pelas capturas de ecrã das mensagens escritas entre a testemunha AA e o legal representante da Recorrida, documentos que foram juntos pela Recorrente na primeira sessão da audiência de julgamento e que não foram objecto de despacho de admissão.


39.


Nessa troca de mensagens, pode ler-se que, em 29/12/2021, pelas 16:18 horas, a testemunha AA enviou uma mensagem escrita ao legal representante da Recorrida, afirmando: "Como tal não conseguimos garantir entrega até dia 31. Por favor indique se quer aguardar pelo envio ou se prefere cancelar". A resposta da Recorrida foi clara: "Pretendo manter".


40.


Estes documentos não foram impugnados pela Recorrida, apesar de o tribunal a quo ter concedido prazo para que as partes se pronunciassem sobre os mesmos.


41.


Atendendo à prova testemunhal e documental existente e junta aos autos, deveria ter sido considerado provado que a informação acerca do atraso na entrega foi transmitida por chamada e mensagem escrita e que o representante legal da Recorrida concordou com a entrega nos termos informados.


42.


Ao considerar como não provados estes factos, a sentença recorrida incorre em erro de apreciação da prova, erro esse que deve ser corrigido para que os factos sejam devidamente reconhecidos.


43.


O ponto 2 da matéria de facto dada como não provada refere que "Na mesma data, a Autora remeteu ainda uma comunicação escrita, formalizando a informação já prestada telefonicamente".


44.


Ora, a referida comunicação escrita consta do ponto 15 da matéria de facto dada como provada, o que gera uma contradição manifesta ao considerar simultaneamente o mesmo facto como provado e como não provado.


45.


Diga-se que o facto 15 dado como provado refere-se a um email enviado pela Recorrente à Recorrida, redigido em língua inglesa.


46.


Sobre este documento, a sentença recorrida afirma: "A 30/12/2021 foi enviado um email pela Ré à Autora, escrito em inglês com a redação citada dos factos provados, consistindo este em prova documental que não foi impugnada, embora devesse ser traduzido para português, o que não sucedeu, pelo que não releva para efeitos de prova".


47.


Nos termos do artigo 134.º, n.º 1, do CPC, quando são apresentados documentos escritos em língua estrangeira que careçam de tradução, o juiz, oficiosamente ou a requerimento de alguma das partes, deve ordenar que o apresentante junte a respetiva tradução.


48.


Daqui decorre que não existe qualquer obrigatoriedade de apresentar tradução de documentos redigidos em língua estrangeira, a menos que tal seja determinado pelo juiz ou requerido pela contraparte.


49.


No caso concreto, a tradução não foi solicitada, nem pela contraparte, nem pelo juiz.


50.


Contudo, não se compreende se o tribunal a quo considerou ou não o documento para efeitos de prova, visto que o dá como provado e como não provado.


51.


Dado que não era legalmente obrigatória a apresentação de tradução de documentos redigidos em língua estrangeira e considerando a abundante prova produzida, o facto 2 dado como não provado deve ser, ao invés, considerado como provado.


52.


No que concerne aos factos 3 e 4 dados como não provados, reproduz-se tudo quanto foi dito em relação ao ponto 1 da matéria de facto dada como não provada.


53.


Estes factos dados como não provados são corroborados pelo depoimento da testemunha AA, na primeira sessão de julgamento, no dia 25/10/2023, que depôs entre as 10h55 e as 11h46, a minutos 21:33 a 22:07, 22:18 a 22:25 e 29:46 a 30:52, quando afirmou de forma isenta que não foi informada de qualquer prazo específico para a entrega da encomenda em causa.


54.


É relevante notar que não foi apresentada qualquer prova em sentido contrário pela Recorrida, o que demonstra a incorrecção da decisão recorrida ao considerar esses factos como não provados.


55.


A versão dos factos apresentada pela Recorrida não tem suporte probatório e, consequentemente, não resulta demonstrada, evidenciando, assim, um erro grave na apreciação da matéria de facto por parte do tribunal a quo.


56.


Perante a prova produzida, impõe-se a revisão da sentença, de modo a incluir os factos 3 e 4, inicialmente considerados como não provados, na matéria de facto assente.


57.


Relativamente aos pontos 5 e 6 da matéria de facto dada como não provada, não se vislumbra qualquer fundamento para tal decisão, uma vez que estes factos se encontram devidamente corroborados pela prova documental constante dos autos.


58.


Em particular, os documentos n.º 6 e 7 juntos pela Recorrente na sua petição inicial, nomeadamente o email endereçado pelo representante legal da Recorrida a 2 de Fevereiro de 2022, demonstram o pedido da Recorrida para devolver os testes encomendados devido à perda de competitividade do preço, um risco de negócio que não pode ser imputado à Recorrente.


59.


O teor deste documento reforça a tese da Recorrente, evidenciando que a tentativa de devolução dos testes por parte da Recorrida decorreu de razões comerciais e não de incumprimento contratual por parte desta.


60.


O documento em causa não foi impugnado pela Recorrida, pelo que deve ser considerado admitido por acordo das partes, nos termos do artigo 574.º do CPC.


61.


Além disso, o envio do referido email foi confirmado pelo legal representante da Recorrida na primeira sessão da audiência de julgamento, realizada a 25/10/2023.


62.


A decisão do tribunal a quo de considerar este facto como não provado, apesar da existência de prova documental clara e inequívoca em sentido contrário, compromete a justiça da decisão e exige a sua correcção.


63.


Assim, os factos 5 e 6, dados inicialmente como não provados, devem ser considerados como matéria de facto assente, face à prova documental e testemunhal existente.


64.


Também se impugnam os factos 7, 8 e 9 da matéria de facto dada como não provada, uma vez que a prova existente nos autos demonstra que estes deveriam ter sido considerados como provados, por não se encontrarem controvertidos.


65.


Isto porque, ambas as partes, nas suas peças processuais, referem expressamente a tentativa de devolução dos produtos por parte da Recorrida, conforme se verifica nos artigos 22 a 24 da petição inicial.


66.


A própria sentença recorrida, na sua fundamentação, alude à tentativa de devolução dos produtos pela Recorrida, pelo que é incompreensível e injustificado o motivo pelo qual estes factos foram considerados como não provados.


67.


Perante estes erros flagrantes na apreciação da prova, é imperativo que os factos 1 a 9 da matéria de facto dada como não provada sejam devidamente reconhecidos e integrados na matéria de facto provada, assegurando-se, assim, uma justa apreciação e aplicação do Direito.


- Do erro de julgamento:


68.


A incorrecta apreciação da matéria de facto, tanto provada como não provada, conduz, inevitavelmente, a um erro de julgamento na decisão recorrida.


69.


Desde logo, o tribunal a quo considerou como relevante para a decisão da causa o entendimento de que a Recorrente incumpriu o prazo de entrega a que se teria alegadamente obrigado.


70.


Contudo, tal entendimento não pode ser aceite, uma vez que a prova documental existente é clara ao indicar que o prazo de entrega acordado era de um a dois dias, conforme a disponibilidade dos produtos no armazém, e não de meio dia, como erroneamente concluído.


71.


O tribunal a quo incorreu em erro ao interpretar o prazo de entrega como sendo de meio dia, quando tal prazo não foi sequer alegado por qualquer das partes, nem encontra suporte na prova produzida.


72.


Além disso, o tribunal errou ao considerar que o prazo de entrega de meio dia era essencial para a vontade da Recorrida em contratar, sustentando a sua decisão numa premissa que se baseia num prazo errado.


73.


Adicionalmente, ficou demonstrado que a Recorrente comunicou à Recorrida, em 30 de Dezembro de 2021, que uma parte da encomenda só poderia ser entregue a 3 de Janeiro de 2022, o que foi aceite pela Recorrida, conforme a prova testemunhal e documental produzida.


74.


A suposta essencialidade da recepção da totalidade da encomenda até 30 de Dezembro de 2021 é uma questão que surge apenas nas declarações de parte, não tendo sido demonstrada como um elemento essencial à vontade de contratar.


75.


Tal circunstância sugere uma tentativa de desresponsabilização por parte da Recorrida, que apenas em sede de declarações de parte invocou a essencialidade do prazo de entrega.


76.


O tribunal a quo também errou na apreciação e interpretação dos factos ao considerar que o depoimento da testemunha AA não foi convincente, quando esta afirmou ter informado o legal representante da Recorrida, tanto telefonicamente quanto por escrito, de que não seria possível garantir a entrega dos testes até ao final do ano, tendo este, mesmo assim, optado por manter a encomenda.


77.


O tribunal a quo não valorou correctamente a prova produzida nos autos, mormente o depoimento isento da testemunha AA e os documentos juntos pela Recorrente.


78.


Sendo que, alguns desses documentos se referem a mensagens escritas trocadas entre esta testemunha e o representante legal da Recorrida, que corroboram cabalmente o depoimento da testemunha, em contradição com as declarações do legal representante da Recorrida, pelo que não se percebe como é que o tribunal decide valorar as declarações da parte, directamente interessada no litígio, ao invés da testemunha.


79.


É surpreendente que o tribunal tenha desconsiderado a importância de certos documentos como prova, atribuindo maior peso ao depoimento do principal interessado no desfecho da causa (ou seja, o legal representante da Recorrida), cujas declarações são, por natureza, suscetíveis de variações, quando comparadas a declarações escritas.


80.


O legal representante da Recorrida assistiu a toda a produção de prova, prestando as suas declarações de parte apenas no final da primeira sessão da audiência de julgamento e na segunda sessão, ao passo que a testemunha AA, uma trabalhadora da Recorrente não diretamente interessada no litígio, prestou um depoimento isento.


81.


De salientar que existem várias contradições entre as declarações do legal representante da Recorrida, proferidas na primeira sessão da audiência de julgamento e na segunda.


82.


A título de exemplo, na sessão de 25/10/2023, no seu depoimento entre as 12h03 e as 12h33, ao minuto 1:45 a 1:50, o legal representante da Recorrida afirmou que falava com a testemunha AA por WhatsApp e telemóvel, enquanto na sessão de 19/12/2023, no seu depoimento entre as 10h44 e as 11h03, ao minuto 9:24 a 9:32, declarou não se recordar de trocar mensagens com a referida testemunha.


83.


É incompreensível que o tribunal a quo tenha atribuído maior relevância ao depoimento do legal representante da Recorrida, parte directamente interessada no litígio e perante tais contradições e teses inverosímeis aventadas, em detrimento de outros elementos de prova mais consistentes.


84.


A jurisprudência tem entendido que as declarações de parte devem ser valoradas com cautela, sendo necessário conjugá-las com outros elementos de prova que possam corroborar a veracidade dos factos alegados.


85.


A inconsistência das declarações de parte do legal representante da Recorrida compromete a credibilidade do seu depoimento e põe em causa a veracidade dos factos alegados, exigindo uma avaliação cautelosa e crítica por parte do tribunal.


86.


Ao não observar estas orientações, o tribunal a quo falhou na sua apreciação da prova, ao não valorizar devidamente as declarações da parte interessada.


87.


Em contrapartida, o depoimento da testemunha AA é corroborado pela prova documental constante dos autos, ao contrário das declarações do legal representante da Recorrida, que se revelam sistematicamente contraditórias com os documentos apresentados.


88.


Por último, a sentença recorrida incorreu em erro de julgamento ao considerar como relevantes as declarações da testemunha BB e do legal representante da Recorrida, que afirmaram ter tentado devolver a segunda parte da encomenda recebida e que, no lugar da sede da Recorrente, encontraram um gabinete de contabilidade.


89.


Considerar este facto como provado unicamente com base nas declarações da testemunha e do legal representante não seria problemático, não fosse o facto de, logo em seguida, a sentença afirmar: "Estas circunstâncias revelaram pouca transparência da Autora, o que não abona em seu favor quanto à credibilidade da sua tese e dos seus meios de prova".


90.


Não é surpreendente que as devoluções de encomendas não sejam aceites na sede da Recorrente, especialmente considerando que a Recorrida sabia que as encomendas eram expedidas a partir de França.


91.


O que é de estranhar, no entanto, é a pretensão da Recorrida em impor unilateralmente a sua vontade, sem primeiro assegurar a concordância da contraparte quanto à devolução, particularmente quando já tinha sido informada pela Recorrente de que a devolução não seria aceite.


92.


Nesta conjuntura, é evidente que a decisão se baseou em factos que não têm correspondência com os depoimentos prestados pelas testemunhas durante as sessões da audiência de julgamento.


93.


Uma análise criteriosa dos elementos de prova existentes, conduzindo a conclusões correctas, teria inevitavelmente conduzido a uma decisão em sentido oposto, evitando assim o comprometimento da justiça no caso concreto.


94.


Impõe-se, portanto, a substituição da sentença recorrida por outra que analise criticamente a prova produzida, aplicando correctamente os factos ao Direito, de modo a assegurar uma decisão justa e equitativa.


95.


Em face dos erros de julgamento demonstrados, impõe-se que os factos dados como não provados nos pontos 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8 e 9 da matéria de facto sejam considerados como provados, e que o facto 13, actualmente dado como assente, seja considerado como não provado.


96.


Em consequência, a decisão final deve ser totalmente revista, concluindo-se pela inexistência de qualquer incumprimento por parte da Recorrente, devendo a Recorrida ser condenada nos termos do pedido, conforme os artigos 798.º e seguintes, 406.º, n.º 1, 762.º (a contrario) e 804.º, todos do Código Civil.


- Da condenação por custas:


97.


Adicionalmente, a sentença recorrida condena a Recorrente ao pagamento de custas pela totalidade do valor da acção, o que se revela manifestamente incorrecto.


98.


Sucede que a Recorrente requereu a redução do pedido, em virtude de um pagamento efectuado pela Recorrida já após a entrada da acção, no valor de € 9.400,00 (nove mil e quatrocentos euros), conforme requerimento datado de 17/02/2023.


99.


Mais uma vez, a sentença recorrida é omissa quanto à mencionada redução, limitando-se a imputar as custas à Recorrente, sem ter em conta o pagamento realizado pela Recorrida já no decurso da acção.


100.


Tendo sido realizado o pagamento que fundamentou o pedido de redução já após a entrada da acção, as custas decorrentes dessa redução devem ser imputadas à Recorrida, nos termos do artigo 536.º, n.º 3 e 4, e 607.º, n.º 6, ambos do CPC.”.

5. A Ré contra-alegou defendendo a manutenção do decidido.

6. Subsequentemente, veio a ser proferido despacho pelo Tribunal “a quo” no qual se pronunciou sobre as nulidades suscitadas, nos seguintes termos:


“Reforma Parcial da Sentença Recorrida.


A Recorrente, Quimigen, Unipessoal, Lda., Autora na presente ação comum, nas alegações de recurso veio arguir a nulidade da sentença recorrida, proferida pela Juiz signatária, por falta de especificação dos concretos factos que justificam a decisão, nos termos do artigo 615.º, n.º 1, al. b) do CPC. A sentença padece ainda, alegada a Recorrente, de nulidades por omissão de pronúncia quanto a elementos de prova juntos e sobre os quais não recaiu despacho de admissão, bem como por omissão de pronúncia quanto ao pedido de litigância de má-fé requerido pela Recorrente, nos termos do artigo 615.º, n.º 1, al. d) do CPC. Por último, no que respeita ao decaimento em custas, a sentença recorrida não se pronuncia sobre a redução do pedido requerida pela Recorrente, decorrente de um pagamento efetuado pela Recorrida já após a entrada da ação. Porém, condena a Recorrente na totalidade das custas, sendo certo que a Recorrida é responsável pelas custas na proporção da redução do pedido a que deu azo, nos termos do artigo 536.º, n.º 3 e 4 e 607.º, n.º 6, ambos do CPC.


Notificado para contra-alegar, a Ré/Recorrida, Qualidefender, Lda. deduziu contra-alegações de recurso, respondendo quanto às arguidas nulidades da sentença.


Cumpre apreciar.


Lida a sentença, vemos que efetivamente não consta dos factos provados que era essencial para Ré e condição nesta contratação celebrada com a Autora, que os testes fossem entregues até 30 de dezembro de 2021, o que deve passar a integrar a factualidade assente pois está fundamentada a essencialidade desse prazo para Ré conforme o escrito na fundamentação de facto artigo 617.º, n.º 2 e artigo 615.º, n.º 1 alínea b), ambos, do Código de Processo Civil (CPC).


Procede, aqui, com efeito, a nulidade invocada.


No que respeita à omissão de pronúncia quanto aos elementos documentais de prova juntos pela Autora, improcede a nulidade da sentença porquanto na fundamentação de facto da sentença faz-se menção e se explica por que razão não relevaram os documentos juntos pela Recorrente aos autos, conforme se escreveu nomeadamente que:


“A A., em sede de alegações finais na audiência de discussão e julgamento, alegou que os documentos por si juntos à ação não foram impugnados pela R.


Todavia, para além dos documentos juntos pela A. ao processo terem natureza meramente particular (não são autênticos ou autenticados com forma probatória plena ou semiplena), tal documentação foi contrariada pelo depoimento da testemunha da R. e pelo representante legal da R., na medida e nos termos do depoimento e declarações supra, sendo certo que a A. não requereu declarações de parte do seu legal representante.


Foram considerados como meios de prova todos os documentos juntos com a contestação na medida em que foram confirmados pela testemunha BB e pelo declarante de parte”.


Pelo que, deve improceder esta segunda alegada nulidade da sentença – artigo 615.º, n.º 1 alínea d) a contrario do CPC.


Por fim, no que concerne à invocada nulidade equivalente ao não conhecimento da litigância de má fé da Ré/Recorrida, o que efetivamente a Juiz signatária omitiu da sentença recorrida.


Cumpre apreciar – artigo 615.º, n.º 1 alínea d) do CPC.


Ora, não foram alegados e, consequentemente, provados ou não provados factos que consubstanciem a atuação dolosa ou com negligência grave necessários à condenação da Ré/Recorrida como litigante de má fé, conforme resulta do preceituado no corpo do n.º 2 do artigo 542.º do Código de Processo Civil.


De todo o modo, a Ré foi absolvida do pedido, pelo que teve fundamento na sua defesa alegada na respetiva contestação.


Termos em que deve a Ré/Recorrida, Qualidefender, Lda., ser absolvida do pedido de condenação como litigante de má fé – artigo 542.º n.º 1 e 2 al. a), b), c) e d) a contrario do CPC.


Por último, no que respeita ao decaimento em custas da Autora/Recorrente, a condenação está correta porque decaimento foi da totalidade do pedido já reduzido, devendo ser alterado o valor da ação, na medida em que a tributação processual é feita por referência ao valor da ação, para 8.536,30 euros (oito mil quinhentos e trinta e seis euros e trinta cêntimos), tendo em consideração a previsão do nº 1 do artigo 527.º e o disposto nos artigos 296º, n.º 1, 297.º, n.º 1, 306.º, n.ºs 1 e 2 e 616.º, n.º 1, todos, do CPC.


Pelo exposto, decido:


- Julgar verificada a primeira das nulidades da sentença invocadas, passando a integrar da mesma como facto provado 23. que, era essencial para Ré e condição nesta contratação celebrada com a Autora, que os testes fossem entregues até 30 de dezembro de 2021;


- Julgar improcedente a alegada nulidade da sentença da não pronúncia sobre os elementos documentais de prova juntos aos autos pela Autora/Recorrente;


- Julgar verificada a terceira das nulidades da sentença invocadas, conhecendo do pedido de condenação da Ré/Recorrida como litigante de má fé, mas absolvendo-a deste pedido;


- Reformar a sentença quanto ao valor da ação, que se passa a fixar em 8.536,30 euros (oito mil quinhentos e trinta e seis euros e trinta cêntimos).


Notifique.

7. A Autora requereu, ao abrigo do disposto no artigo 617.º, n.º 3 do CPC, o alargamento do âmbito do recurso por si apresentado de modo a que o facto 23 (aditado no despacho antecedente) fosse eliminado do rol dos “Provados”.

8. O objecto do recurso - delimitado pelas conclusões do recorrente (cfr.art.ºs 608ºnº2,609º,635ºnº4,639ºe 663º nº2, todos do CPC) ) reconduz-se , após a prolação do despacho antecedente no qual foram apreciadas e/ou supridas as nulidades suscitadas, à apreciação das seguintes questões:

1. Impugnação da matéria de facto:


- Se o facto 13 dado como provado deve ter outra redacção e se o facto 23 deve transitar para o elenco dos “não provados”;


- Se os factos dados como não provados nos pontos 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8 e 9 da matéria de facto devem ser considerados como provados.


8.2. Reapreciação jurídica da causa: Da (in) existência de incumprimento do contrato pela Autora. Consequências.

II. FUNDAMENTAÇÃO

9. É o seguinte o teor da decisão de facto da 1ª instância:


“ Factos Provados


Com interesse para a decisão da causa resultaram provados os seguintes factos:


1. Em dezembro de 2021, a Autora foi contactada pela Ré para aquisição de 8.750 unidades de kits para teste rápido antigénio de deteção do vírus SARS-CoV-2, vendidos em pacotes/produtos de 25 (vinte e cinco) unidades cada, pelo que pretendia adquirir 350 (trezentos e cinquenta) produtos;


2. O preço definido foi de € 50,00 (cinquenta euros) por cada produto/pacote de 25 testes, o que pressupunha um valor de € 2,00 (dois euros) por cada kit unitário de teste antigénio;


3. Nesta cadência, foi remetida à Ré a nota de encomenda com a cotação/orçamento aplicada/o, perfazendo um valor total a pagar de € 17.500,00 (dezassete mil e quinhentos euros) pelos produtos que pretendia adquirir;


4. O que foi aceite pela Ré;


5. No dia seguinte, a Autora contactou telefonicamente a Ré tendo informado que devido a questões relacionadas com a disponibilidade dos produtos em armazém, apenas seria possível remeter de imediato 134 (cento e trinta e quatro) produtos;


6. Sendo que os restantes 216 (duzentos e dezasseis) produtos seriam remetidos na semana seguinte, a partir do dia 3 de janeiro de 2022;


7. A Autora expediu 134 produtos a 30 de dezembro de 2021, fazendo acompanhar os mesmos da fatura correspondente, no valor de € 6.700,00 (seis mil e setecentos euros);


8. Os restantes 216 produtos foram expedidos a 3 de janeiro de 2022 e acompanhados da fatura correspondente, no valor € 10.800,00 (dez mil e oitocentos euros);


9. A Ré remeteu à Autora, através de mandatária, carta de resolução do contrato em causa alegando o não cumprimento por parte desta;


10. O que a Autora não pode aceitar;


11. A Requerente tem como objeto social “Comercialização, importação, exportação e representação de reagentes químicos para laboratórios, bem consumíveis e pequenos instrumentos laboratoriais;


12. A Requerente procedeu ao envio de um orçamento, no passado dia 29 de dezembro de 2021, no valor de € 17.500,00 (dezassete mil e quinhentos euros);


13. O supra referido orçamento estipulava de forma expressa que o tempo de entrega dos produtos é de 1/2 dia após confirmar a encomenda; - Modificado conforme decisão infra.


14. A confirmação por parte da Ré foi enviada via e-mail datado de 29 de dezembro de 2021;


15. Após a confirmação realizada pela Ré, enviou a Autora, no dia 30 de dezembro de 2021, um email a informar acerca do atraso no envio dos produtos, no qual se lê:


“Due to our Warehouse facilities, we will be shipping your order as follows: 134 kits are shipped today with following FedEx documents: 288170807970, 288170972831, 288171091173, 288171133243, 288171168476, 288171305113 and 288171348403. 216 kits will be shipped next Monday January 3rd. We hope it does not cause you any inconvenience.”


16. Foi remetida comunicação escrita datada de 18 de fevereiro de 2022, a solicitar que a A. remetesse à R. a morada para devolução dos produtos recebidos fora de prazo;


17. À comunicação referida no número anterior, foi dada resposta pela A. por carta datada de 28 de fevereiro de 2022, e na qual reiterava a posição de que inexistia qualquer incumprimento a si imputável;


18. Respondeu, então, a Ré, informando a Autora de todas as variantes que rodearam o presente negócio, por carta datada do pretérito dia 18 de março de 2022, e solicitando novamente os detalhes para devolução do produto;


19. Por carta datada de 30 de março de 2022, vem a A. reiterar a sua posição que se traduz na inexistência de incumprimento contratual da sua parte;


20. Nesta senda, solicitou a Ré, por comunicação escrita datada de 7 de abril de 2022 que os detalhes para pagamento do montante correspondente à compra dos produtos recebidos no dia 30 de dezembro de 2021, dentro do prazo de entrega estipulado;


21. Assim, efetuou a Ré o pagamento do montante de € 9 400,00 (nove mil e quatrocentos euros) no dia 17 de junho de 2022;


22. A receção do referido pagamento foi confirmada pela Mandatária da A., via email datado de 28 de junho de 2022.


23. Era essencial para Ré e condição nesta contratação celebrada com a Autora, que os testes fossem entregues até 30 de dezembro de 2021. Eliminado conforme decisão infra.


Factos não provados.


Com interesse para a decisão resultou não provado o seguinte:


1. A Ré concordou com as condições telefonicamente, escrita no facto provado 6.;


2. Na mesma data, a Autora remeteu ainda uma comunicação escrita, formalizando a informação já prestada telefonicamente;


3. Não tendo recebido qualquer oposição por parte da Ré a tais condições, e sendo certo que esta já havia concordado verbalmente, a Autora procedeu conforme referido;


4. Não recebeu qualquer oposição ou reclamação por parte da Ré;


5. Volvido cerca de um mês após a entrega e aceitação dos produtos, veio a Ré pôr em causa a sua própria vontade na conservação de parte dos produtos, justificando tal intenção com a dificuldade de escoamento dos mesmos;


6. A 2 de fevereiro de 2022 a Ré remeteu uma comunicação à Autora, tendo informado que devido a alterações do valor de mercado para aqueles produtos, os produtos recebidos já não eram competitivos, pelo que apelava à boa vontade da Autora no sentido de esta aceitar a devolução parcial dos produtos, mais concretamente, de 9 cartões;


7. Todavia, tendo a Ré sido informada de que, face à natureza dos produtos já não seria possível a sua devolução, esta remeteu nova comunicação, a 8 de fevereiro de 2022, informando que consideravam ter existido incumprimento no prazo de entrega por parte da Autora, e comunicando que iriam proceder à devolução de 162 produtos (4050 testes);


8. O que efetivamente sucedeu em 14 de fevereiro;


9. Contudo, a Autora não os aceitou, tendo devolvido uma vez mais à Ré os 162 produtos em causa;


10. A Ré pagou o valor remanescente faturado.”.

10. Do mérito do recurso


10.1. Impugnação da matéria de facto:


Entende a apelante que o facto 13 (O supra referido orçamento estipulava de forma expressa que o tempo de entrega dos produtos é de 1/2 dia após confirmar a encomenda ) dado como provado deve ter a redacção que emerge do documento junto à p.i. já que o teor do assente não corresponde à verdade.


Sem grandes delongas dir-se-á que assiste razão à apelante:


Não se descortina sequer como é que o documento foi interpretado pelo Tribunal “a quo” no sentido que veio a ser consignado na sentença.


Por conseguinte, tendo em conta o que consta do documento junto à p.i. o facto em apreço passa a ter a seguinte redacção:


13. O supra referido orçamento estipulava de forma expressa que o tempo de entrega dos produtos é de “1/2 dias”( i.e. um ou dois dias) se o produto estiver disponível para envio desde as instalações do fornecedor da Autora”.


Insurge-se igualmente a apelante contra a decisão de se considerar provado que: [23] “Era essencial para Ré e condição nesta contratação celebrada com a Autora, que os testes fossem entregues até 30 de dezembro de 2021”.


Para justificar esta sua decisão, escreveu-se na sentença recorrida o seguinte: “A testemunha BB, comercial empregado na Ré, afirmou, quanto ao tema da entrega dos produtos encomendados pela R. à Autora, que para a primeira era essencial o recebimento dos testes antigénio à Covid.19 antes da passagem de ano, porque os clientes da Ré precisavam dos mesmos para conviver em grupo em segurança nessa noite. A procura dos testes era para o fim de ano e foi exclusivamente no pressuposto da entrega dos testes antes do dia da passagem de ano que a Ré contratou com a Autora, a compra dos testes. Os clientes finais da Ré eram, na sua maioria, farmácias, como disse, e ainda estavam na época de pandemia com grau de transmissão elevado, o que, aliás, é facto notório por ser do conhecimento geral. Este facto essencial na contratação com a Autor, tinha sido informado à Ré, como disse, o que foi confirmado pelo representante legal da R., em declarações de parte. Alguns dos clientes já tinha antecipadamente pago os testes e por que não foram entregues em tempo útil pela A., a Ré teve de devolver o dinheiro a esses clientes correspondente a esse pagamento, disse a testemunha e afirmou o declarante de parte..


Portanto era essencial para Ré e condição nesta contratação celebrada com a Autora, eu os testes fossem entregues até 30 de dezembro de 2021, conforme o referido pela testemunha da Qualidefender, Lda. e pelo seu representante legal, o que seria possível dado o prazo de entrega da mercadoria previsto no orçamento, de meio dia após a confirmação da encomenda pela Ré o que ocorreu no dia 29.12.2021. através do primeiro email/resposta remetido pela R. à A.”.


Não havendo lastro documental desta afirmada essencialidade, o que é certo é que ficou demonstrado que a encomenda foi confirmada pela Ré no dia 29 de Dezembro e que no orçamento apresentado pela Autora se estipulava de forma expressa que o tempo de entrega dos produtos seria de um ou dois dias se os mesmos estivessem disponíveis para envio desde as instalações do fornecedor da Autora.


De acordo com os dados da experiência comum e da normalidade social – à luz dos quais a prova deve ser também interpretada - ninguém efectua no dia 29 de Dezembro uma encomenda destinada à passagem de ano, sabendo que a mesma pode demorar um ou dois dias a ser entregue e isto apenas no caso de haver stock nas instalações do fornecedor!


Mas ainda que o fosse, ninguém formula uma encomenda sem expressar formalmente (mais a mais tendo em conta os valores envolvidos) que só teria interesse na mesma se fosse entregue até à véspera da passagem de ano.


Mas há mais: Esta “história” da passagem de ano não foi alegada na contestação, como seria exigível (caso fosse verdadeira).


A este propósito, o que a Ré alegou foi o seguinte: “Nestes termos, e tendo em conta que era expectável que as restrições relacionadas com a pandemia causada pelo Vírus Covid-19 legalmente previstas fossem reduzidas drasticamente a partir do início do corrente ano de 2022, é facilmente apreensível pela Requerente que o prazo de entrega dos produtos era um elemento manifestamente essencial à vontade negocial da Requerida.”.


Por conseguinte, os referidos depoimentos na parte em que fazem alusão a um compromisso da Ré para a passagem de ano não nos merecem qualquer credibilidade.


Ademais, os documentos juntos aos autos inculcam precisamente o contrário: o de que a Ré estava ciente que parte da encomenda só podia ser entregue a 3 de Janeiro de 2022 e o aceitou.


Entendemos, assim, que apesar de tais inéditos depoimentos, não se provou que a Ré tenha manifestado junto da Autora, caso fosse verdadeira, a essencialidade de um prazo de entrega da mercadoria até dia 30 de Dezembro.


E, por isso, se decide eliminar o ponto 23. da matéria de facto do rol dos factos provados.


Cuidemos agora de apreciar os factos 1 a 4 do elenco dos “Não provados”.


Entendeu a 1ª instância não ter ficado provado que: “1. A Ré concordou com as condições telefonicamente, escrita no facto provado 6.”.


Este facto está relacionado com os assentes nos pontos 5 ( No dia seguinte, a Autora contactou telefonicamente a Ré tendo informado que devido a questões relacionadas com a disponibilidade dos produtos em armazém, apenas seria possível remeter de imediato 134 (cento e trinta e quatro) produtos) e 6 ( Sendo que os restantes 216 (duzentos e dezasseis) produtos seriam remetidos na semana seguinte, a partir do dia 3 de janeiro de 2022 ).


Dos mesmos decorre que tendo a Ré confirmado a encomenda no dia 29 de Dezembro, foi, logo no dia imediato, alertada telefonicamente pela Autora que uma parte da encomenda seria apenas remetida a partir do dia 3 de Janeiro.


E, foi-o igualmente por escrito nesse mesmo dia (cfr. ponto 15).


Por conseguinte, a questão que se coloca é: qual foi a resposta da Ré a tal comunicação?


A Autora afirmou que a mesma Ré concordou com tais condições telefonicamente (art.º 10º da p.i.) e que não recebeu qualquer oposição por parte da mesma a tais condições na sequência da comunicação escrita ( art. 12º da p.i.).


E a sua testemunha, AA, confirmou-o, adiantando também que foram igualmente trocadas mensagens escritas com o” senhor CC”, das quais resulta ter sido manifestada a intenção de manter a encomenda não obstante ter sido alertado pela dita testemunha de que não conseguiriam garantir a entrega até dia 31.


Tais mensagens foram juntas pela Autora através de documento junto em audiência (25.10.2023) e conquanto não tivessem sido objecto de despacho sobre a sua (in) admissibilidade, foram ponderados pelo Tribunal “ a quo” que entendeu, todavia, não ser de lhes atribuir fidedignidade por “terem natureza meramente particular (não são autênticos ou autenticados com forma probatória plena ou semi-plena)” acrescentando, também, que “tal documentação foi contrariada pelo depoimento da testemunha da R. e pelo representante legal da R., na medida e nos termos do depoimento e declarações supra, sendo certo que a A. não requereu declarações de parte do seu legal representante”.


O certo é que a veracidade destes depoimentos é muito duvidosa tendo em consideração que não foi refutado pertencer ao “senhor CC” o número de telemóvel do qual a mensagem de assentimento foi expedida.


Por isso, a decisão da 1ª instância não se pode manter.


Termos em que considera provado o seguinte: “A Ré assentiu em manter a encomenda apesar do que lhe foi comunicado pela Autora (em 5 e 6)”.


Entendeu a 1ª instância não se ter provado que: “2. Na mesma data, a Autora remeteu ainda uma comunicação escrita, formalizando a informação já prestada telefonicamente”.


Porém, deverá ter-se olvidado que a existência desta missiva já consta do ponto 15 dos factos provados (Após a confirmação realizada pela Ré, enviou a Autora, no dia 30 de dezembro de 2021, um email a informar acerca do atraso no envio dos produtos, no qual se lê:


“Due to our Warehouse facilities, we will be shipping your order as follows: 134 kits are shipped today with following FedEx documents: 288170807970, 288170972831, 288171091173, 288171133243, 288171168476, 288171305113 and 288171348403. 216 kits will be shipped next Monday January 3rd. We hope it does not cause you any inconvenience.”).


Por isso, sob pena de uma intolerável contradição, decide-se eliminar este facto do elenco dos “Não Provados”.


O facto vertido em 3. (Não tendo recebido qualquer oposição por parte da Ré a tais condições, e sendo certo que esta já havia concordado verbalmente, a Autora procedeu conforme referido) tem natureza conclusiva e redundante. Por isso, se decide eliminá-lo.


Redundância essa igualmente presente no facto vertido em 4. (Não recebeu qualquer oposição ou reclamação por parte da Ré). Por isso, se decide igualmente eliminá-lo.


Os demais factos que resultaram não provados (vertidos nos pontos 6 a 9) não revestem qualquer interesse para o conhecimento do objecto do processo, cingindo-se a sua eventual relevância ao conhecimento do pedido de condenação da Ré como litigante de má-fé.


Porém, no despacho a que se alude supra em 6., o Tribunal “ a quo” entendeu não ocorrer litigância de má-fé por parte da Ré, sendo que relativamente a esta decisão, a Autora não ampliou o recurso.


Por consequência, tal segmento da decisão transitou em julgado e o conhecimento da impugnação de tais factos tornou-se completamente inútil.


Nesta senda e por via da proibição da prática de actos inúteis (art.130º do CPC) não se conhecerá da impugnação destes factos.


10.2. Reapreciação jurídica da causa: Da (in) existência de incumprimento do contrato pela Autora. Consequências.


Como se viu, entre as partes foi celebrado um contrato consubstanciado no fornecimento de 8.750 unidades de kits para teste rápido antigénio de deteção do vírus SARS-CoV-2 por parte da autora à ré.


Ora, se é certo - atenta a materialidade provada - que a autora cumpriu com as suas obrigações de fornecimento dos Kits, enjeitou a ré cumprir a sua obrigação de pagamento do respectivo preço com o argumento de que aquela não havia cumprido o prazo de entrega a que se comprometera.


Ora bem. Uma parte da encomenda foi, como vimos, entregue em 30 de Dezembro, ou seja, no dia imediato à sua confirmação.


Mas o certo é que nem a correspondente factura liquidou a Ré tempestivamente. O que é sintomático…


Só o veio a fazer já no decurso da presente acção, no dia 17 de junho de 2022 (cfr. ponto 21).


O Tribunal “a quo” eximiu-a de liquidar o remanescente em dívida correspondente aos 216 produtos que foram entregues no dia 3 de Janeiro, com o argumento de que era essencial para Ré e condição nesta contratação celebrada com a Autora, que os testes fossem entregues até 30 de dezembro de 2021.


O ponto que corporizava este facto – o 23- foi eliminado, tendo, aliás, resultado provado que a Ré assentiu em manter a encomenda apesar do que lhe foi comunicado pela Autora no dia 30 de Dezembro: de que seria possível remeter de imediato 134 produtos e que os restantes 216 produtos seriam remetidos na semana seguinte, a partir do dia 3 de janeiro de 2022.


De todo o modo, cremos que nunca esteve verdadeiramente em causa a estipulação de um prazo essencial de cumprimento, i.e de um prazo susceptível de ser ultrapassado sem perda objectiva de interesse do credor (e que, por isso, determina, desde logo, o incumprimento definitivo da obrigação- art.º 808º do Cód. Civil).


Com efeito, saber se o estabelecimento do prazo de cumprimento duma obrigação é ou não essencial e se o seu decurso se traduz num incumprimento definitivo é tarefa que deve resultar não só da interpretação das cláusulas do contrato, como do comportamento anterior e posterior dos contraentes1.


Ora, do orçamento dado pela A. com o qual a Ré concordou apenas resulta que o tempo de entrega dos produtos é de “1/2 dias” e isto se o produto estiver disponível para envio desde as instalações do fornecedor da Autora. Em momento algum a Ré fez notar que o produto deveria ser entregue até à data X sob pena de deixar de ter interesse na sua aquisição, sendo certo que no dia 3 de Janeiro não deixou de aceitar a entrega que lhe foi feita.


Por conseguinte, não há, como nunca houve, qualquer fundamento legal para eximir a Ré do pagamento do preço ainda em dívida dos fornecimentos efectuados pela Autora e respectivos juros de mora, à taxa dos juros comerciais, até integral pagamento (artigos 804º a 806º n.º 1 e 559º n.º 1, todos do Cód. Civil).


Portanto, não poderá a ré deixar de ser condenada no pagamento do valor correspondente à diferença entre o valor do pedido - €17.936,30 e respectivos juros vincendos desde a data da propositura da acção - e o valor de € 9 400,002 pago no dia 17 de junho de 2022.

III. DECISÃO


Por todo o exposto se acorda em julgar a apelação procedente e em consequência, revogando a sentença recorrida, condena-se a Ré a pagar à Autora a quantia de €17.936,30 ( dos quais € 17.500,00 de capital e € 436,60 de juros vencidos, à taxa de juros comercial desde a data de vencimento das facturas - 28/01/2022 - até à data da propositura da acção) acrescida de juros vincendos desde a data da propositura da acção, à taxa de juros comercial, e até integral pagamento deduzida da quantia de € 9 400,00 paga no dia 17 de junho de 2022.


Custas pela apelada.


Évora, 8 de Maio de 2025


Maria João Sousa e Faro (relatora)


Manuel Bargado


Fernando Marques da Silva

1. ANA PRATA in “O Contrato-Promessa…” cit., p. 636, in fine.↩︎

2. Que pelos nossos cálculos excede o valor da factura referida em 7. e respectivos juros de mora.↩︎