JUNTA DE FREGUESIA
ALARGAMENTO DE VIA PÚBLICA
ANEXAÇÃO DE TERRENO PRIVADO ADJACENTE
COMPETÊNCIA DOS TRIBUNAIS COMUNS VS ADMINISTRATIVOS
Sumário

i) Se os AA pedem a condenação de Junta de Freguesia e/ou Município a: a) repor a extrema a norte do imóvel identificado no art. 1º. da p.i., nos termos definidos no art. 5º. e 6º., atendendo que ilegitimamente ocuparam, nos termos definidos no artigo 13, recolocando a terra ao nível de cerca de um metro de altura, criando condições para acesso ao prédio a norte e construindo um muro de suporte de terras sob pena de o mesmo ruir para a via pública; ou em substituição; b) indemnizar os AA pela área de terreno que se apropriarem ilegitimamente correspondente a 50 m2 a norte na confinância com a estrada, e bem assim os custos que possam implicar a colocação de um muro para suporte de terras e acesso/caminho ao prédio pela parte norte, e ainda indemnizar os AA por todos os incómodos criados, em quantia nunca inferior a 24.000 €; c) mais a condenação por quaisquer danos que possam ocorrer com as terras que a norte do prédio ident. no artigo 1º. foram colocadas, criando riscos para os utentes da via pública, não se trata de uma acção de reivindicação, mas antes estamos perante uma alegada atuação da(s) R(s) que violou o direito de propriedade dos AA, com pedidos de indemnização pela alegada prática de factos ilícitos, o primeiro, por reconstituição natural ou indemnização em espécie, os demais, por indemnização monetária;
ii) O art. 4º, nº 1, do ETAF, contempla expressamente, no âmbito da competência dos tribunais administrativos e fiscais, para além as situações referentes à efetivação da responsabilidade civil extracontratual das pessoas coletivas de direito público a que se refere a f), as que tenham por objeto questões relativas à condenação à remoção de situações constituídas em via de facto, em que a Administração atue sem título que a legitime, a que se refere a alínea i);
iii) Na situação descrita em i) o tribunal materialmente competente é o administrativo.
(Sumário elaborado pelo Relator)

Texto Integral


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I – Relatório

1. AA e marido BB, residentes em ..., propuseram acção declarativa contra Junta de Freguesia ..., Concelho ..., pedindo seja a ré condenada a:

a) Repor a extrema a norte do imóvel identificado no art. 1º. da p.i. dos AA, nos termos definidos no art. 5º. e 6º., atendendo que ilegitimamente ocuparam, nos termos definidos no artigo 13, recolocando a terra ao nível de cerca de um metro

de altura, criando condições para acesso ao prédio a norte e construindo um muro de suporte de terras sob pena de o mesmo ruir para a via pública

ou em substituição,

b) Indemnizar os A. pela área de terreno que se apropriarem ilegitimamente correspondente a 50 m2 a norte na confinância com a estrada, e bem assim os custos que possam implicar a colocação de um muro para suporte de terras e acesso /caminho ao prédio pela parte norte, e ainda indemnizar os AA por todos os incómodos criados, em quantia nunca inferior a 24.000 €, e conforme melhor resultar da perícia.

c) Ser a R. condenada por quaisquer danos que possam ocorrer com as terras que a norte do prédio ident. no artigo 1º. Colocou, criando riscos para os utentes da via pública.

Alegaram, em suma, ser a autora proprietária de prédio rústico que identificaram, batendo a extrema a norte de tal prédio, num comprimento de cerca de 60m2, com a estrada que existia com cerca de 2,50m de largura, extrema que era composta por uma pequena barreira de terra com cerca de 80 / 100 cm. A ré pediu se podia intervencionar o terreno para efeitos de alargamento da estrada, o que foi negado. A ré acabou por fazer intervenção no local, removendo toda a terra do prédio da A. a norte da confinância com a via pública, tendo, ainda, atirado outra parte para o terreno dos autores, levando a que ficasse uma barreira / cômoro térreo com declive cerca de 3 metros de altura desde o solo até altura da barreira a norte do prédio dos AA, sendo que actualmente tal barreira está até menor em cerca de 20/ 30cm, visto que tais terras estão em vias de ruir para a estrada e provocar um acidente. A extensão de terreno em falta do prédio da A. que a ré ocupou indevidamente aproxima-se de um total de cerca de 50m2, de que ilegitimamente se está a apropriar para a via pública.  

A ré contestou, suscitando, além do mais, a excepção de incompetência absoluta, alegando, em síntese, que o Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF, aprovado pela Lei nº 13/2002, de 19/2, na redação atualmente em vigor), contempla expressamente a competência dos Tribunais Administrativos e Fiscais para, além das situações referentes à efetivação da responsabilidade civil extracontratual das pessoas coletivas de Direito Público - alínea f) -, igualmente apreciar litígios que tenham por objeto questões relativas à condenação na remoção de situações constituídas em via de facto.

Os autores, responderam, pugnando pela competência material do tribunal judicial, alegando que aquilo que está em causa é uma acção de reivindicação e direitos reais. Bem como requereu a intervenção passiva do Município ..., o que foi admitido.

O Município contestou, tendo, além do mais, arguido a incompetência material do tribunal judicial.

Os AA responderam, pugnando pelo indeferimento de tal excepção.  

*

Foi proferida decisão que julgou verificada a excepção de incompetência absoluta do Tribunal e, por consequência, absolveu os RR da instância.

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2. Os AA recorreram, formulando as seguintes conclusões:

1. A presente ação tem por fundamento a restituição do prédio dos AA. ao seu estado anterior aos atos praticados pelas RR que decidiram entrar pelo prédio dos AA e nele efetuarem parte da estrada.

2. Assim, trata-se de uma ação de reivindicação sendo competentes os tribunais comuns, conforme entendimento maioritário da nossa jurisprudência.

3. Peticionaram os AA. como pedido principal “Repor a extrema a norte do imóvel identificado no art. 1º. da p.i. dos AA., nos termos definidos no art. 5º. e 6º., atendendo que ilegitimamente ocuparam, nos termos definidos no artigo 13, recolocando a terra ao nível de cerca de um metro de altura, criando condições para acesso ao prédio a norte e construindo um muro de suporte de terras sob pena de o mesmo ruir para a via pública”

4. Assim, salvo o devido respeito, discutem-se direitos reais, não estando em causa uma atuação das RR. ao abrigo de poderes públicos.

5. Nem tão pouco pretendem os AA. pôr em causa nenhum acto praticado no âmbito de um procedimento administrativo, pois como se vê não houve qualquer deliberação.

6. O Tribunal de Conflitos foi já chamado a pronunciar-se sobre esta questão de saber quais os tribunais competentes para dirimirem os litígios que tenham por objeto o reconhecimento do direito de propriedade, tendo concluído que são os tribunais da jurisdição comum e não os tribunais da jurisdição administrativa e fiscal.

7. Resulta do artigo 211.º, n.° 1, da Constituição da República (CRP), que os tribunais judiciais são os tribunais comuns em matéria cível e criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais.

8. Por outro lado, resulta do artigo. 212.°, n.° 3, daquele diploma que compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das ações e recursos contenciosos que tenham por objeto dirimir os «litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais».

9. A competência dos Tribunais Administrativos e Fiscais veio a ser concretizada no artigo 4.° do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, aprovado pela Lei n.° 13/2002 de 17 de fevereiro (Lei n.º 13/2002, de 19 de fevereiro, com as alterações decorrentes da Lei n.º 20/2012, de 14/05; da Lei n.º 55-A/2010, de 31/12; do DL n.° 166/2009, de 31/07; da Lei n.º 59/2008, de 11/09; da Lei n.º 52/2008, de 28/08; da Lei n.º 26/2008, de 27/06; da Lei n.º 2/2008, de 14/01; da Lei n.º 1/2008, de 14/01; da Lei n.º 107-D/2003, de 31/12; da Lei n° 4-A/2003, de 19/02 e objeto da Retificação n.º18/2002, de 12/04 e da Retificação n.º 14/2002, de 20/03 e Decreto-Lei n.º 214-G/2015, de 02/10.), no quadro das normas constitucionais acimas citadas, reafirmando-se no n.° 1 do artigo 1.° daquele diploma que «os tribunais da jurisdição administrativa e fiscal são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo nos litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais».

10. “Na determinação do conteúdo do conceito de relação jurídico administrativa ou fiscal, tal como referem J.J. GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, deve ter-se presente que «esta qualificação transporta duas dimensões caracterizadoras: (1) as ações e recursos incidem sobre relações jurídicas em que, pelo menos um dos sujeitos é titular, funcionário ou agente de um órgão de poder público (especialmente da administração); (2) as relações jurídicas controvertidas são reguladas, sob o ponto de vista material, pelo direito administrativo ou fiscal. Em termos negativos, isto significa que não estão aqui em causa litígios de natureza «privada» ou «jurídico civil». Em termos positivos, um litígio emergente de relações jurídico administrativas e fiscais será uma controvérsia sobre relações jurídicas disciplinadas por normas de direito administrativo e/ou fiscal» (Constituição da República Portuguesa, Volume II, Coimbra Editora, 2010, p.p. 566 e 567.).”

11. Por sua vez, resulta do artigo 64.° do Código de Processo Civil que «são da competência dos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional».

12. Na verdade, tal como emerge do pedido formulado pelos AA.., com base na causa de pedir descrita na petição inicial apresentada, o litígio a resolver não decorre de uma relação jurídico administrativa enformada pelo direito administrativo, sendo um litígio a resolver com base no direito privado, não se inserindo por esse motivo, na competência dos Tribunais Administrativos, tal como a mesma é definida nos artigos 1.º e 4.° do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, aprovado pela Lei n° 13/2002 de 17 de fevereiro.

13. Assim, a decisão recorrida violou o diposto nos artigos 64 CPC, 1º. E 4 do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais.

Termos em que.

Deve a decisão proferida ser revogada e consequentemente declarar-se que o Tribunal comum (Juízo de Competência Genérica de Tondela) é o competente para apreciação dos presentes autos, atendendo tratar-se de direito privado, ação de reivindicação.

3. A Junta de Freguesia contra-alegou, apresentando as seguintes conclusões:

A. A aqui Recorrida, pessoa coletiva de direito público, foi surpreendentemente demandada no Juízo de Competência Genérica de Tondela do Tribunal Judicial da Comarca de Viseu, numa ação cujo objeto (pedido e causa de pedir) se prende com a realização de uma obra pública – cfr. petição inicial a fls...

B. A sobredita obra pública foi realizada por uma pessoa coletiva de direito público e encontra-se num arruamento que integra o domínio público municipal.

C. A ora Recorrida defendeu-se na contestação por exceção alegando a incompetência absoluta do Tribunal Judicial para julgar este litígio, requerendo, como se impunha, a sua absolvição nos termos legais – pedido que veio a ser atendido pelo Tribunal Recorrido que, por entender estar em causa a alegada violação do direito de propriedade e respetivas consequência, decidiu pela competência da jurisdição administrativa (dos Tribunais Administrativos e Fiscais), nos termos legais.

D. Não conformados – e, note-se, podendo sempre propor nova ação nos Tribunais Administrativos e Fiscais, o que de resto sempre se imporá por serem estes os Tribunais competentes –, os AA. optaram por interpor o presente recurso que se alicerça numa argumentação manifestamente ilegal e inconstitucional, mormente por conflituar com os preceitos que definem a competência dos tribunais (especial e particularmente com os art.ºs 4.º do ETAF e 212.º da Constituição da República Portuguesa).

E. Vejamos: os AA. (ora Recorrentes) alegam, em súmula, que se trata de uma ação de reivindicação, onde se discutem direitos reais – designadamente o reconhecimento do direito de propriedade –, não estando em causa uma atuação da R. ao abrigo de poderes públicos – cfr. alegações recursivas a fls...

F. Sucede, porém, que, salvo o merecido respeito, não assiste qualquer razão à tese dos Recorrentes.

G. Em primeiro lugar, e decisivamente, não está em causa qualquer ação de reivindicação e, bem assim, qualquer reconhecimento do direito de propriedade dos AA. (ora Recorrentes), pois que resulta do(s) pedido(s) e causa(s) de pedir, tal como configurados pelos AA. (ora Recorrentes), que o objeto da ação se prende com uma alegada violação do direito de propriedade (e respetivas consequências jurídicas) por parte de uma (ou duas) pessoas coletivas de direito público – cfr. autos a fls...

H. Veja-se bem: os AA. (aqui Recorrentes), que alegam ser titulares do direito de propriedade sobre um ou vários prédios, pretendem que a ora Recorrida seja condenada a repor a extrema do seu imóvel ou, em substituição, a indemnizá-los em função de uma situação de alegada responsabilidade da Freguesia – e tudo isto, não se olvide, emerge da realização de uma obra pública – cfr. autos a fls...

I. Ou seja, não é a titularidade do direito de propriedade sobre o prédio identificado nos autos que está em crise – e, por isso, que constitui objeto destes –, mas antes, e pelo contrário, uma suposta violação do direito de propriedade dos AA.

J. Com efeito, decorre da configuração da relação material controvertida dada pelos AA. (cfr. autos a fls... mormente pi.), que a eventual responsabilização das RR. a título de responsabilidade civil extracontratual surge no âmbito de uma alegada violação do direito de propriedade daqueles, encontrando-se as pretensões deduzidas por estes no seio de uma relação jurídico-administrativa, devendo, por isso, ser dirimidas na respetiva jurisdição – cfr. mormente artigo 4.º, n.º 1, al. f), do ETAF.

K. Neste mesmo sentido – no de que os tribunais judiciais não são competentes, em razão da matéria, para julgar uma ação, fundada na responsabilidade civil extracontratual, em que se demanda uma pessoa coletiva de direito público – tem-se pronunciado vasta jurisprudência, tal como demos conta supra e aqui damos por integralmente reproduzida.

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L. Ademais: ainda que se entendesse que a situação objeto dos presentes autos não era enquadrável na, referida e decalcada, alínea f) – o que não se aceita e apenas se adianta pro mera hipótese académica -, sempre teria cabimento na alínea i) do art.º 4.º, n.º 1 do ETAF que se refere à apreciação de litígios que tenham por objeto questões relativas com a condenação à remoção de situações constituídas em via de facto, sem título que as legitime.

M. Pois que, como já referimos (e repetimo-lo à saciedade), não é a titularidade do direito de propriedade sobre o prédio melhor identificado nos autos que constitui objeto destes; mas sim uma suposta violação do direito de propriedade dos AA. – a qual, segundo se depreende da causa de pedir formulada pelos AA., emerge alegadamente de uma “situação constituída em via de facto”, ou seja, uma atuação material da Administração que, sem base legal ofenda, de forma grave e manifesta, uma liberdade fundamental ou um direito de propriedade – cfr. autos a fls...

N. Tanto assim é que os AA. peticionam expressamente a reposição da extrema, no seu entender (e só aí, diga-se em abono da verdade) ilegitimamente ocupada.

O. Ora, como tem vindo a decidir reiteradamente a jurisprudência “O Decreto-Lei n.º 214- G/2015 de 2/10 veio alargar o âmbito da competência da jurisdição dos tribunais administrativos à apreciação de litígios que tenham por objeto questões relativas à condenação à remoção de situações constituídas em via de facto, em que a Administração Pública atue sem título que as legitime, e que se enquadram no artº. 4º, n.º 1, al. i) do ETAF e artº. 2º, nº. 2, al. i) do CPTA, na redação dada pelo citado DL 214- G/2015” – cfr. acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, datado de 25/03/2021, proferido no âmbito do proc. n.º 3802/20.8T8GMR.G1.

P. Enquadrando-se na referida previsão normativa as ações de reivindicação que têm por objeto situações em que entidades como a Ré (Junta de Freguesia) ocupam imóveis de propriedade privada sem para o efeito estarem munidas de título que as habilite ou legitime, nomeadamente sem proceder à respetiva expropriação – e, por isso, afigurando-se os tribunais administrativos materialmente competentes para dirimir o litígio emergente daquela relação jurídica administrativa – cfr. acórdão citado supra (neste mesmo sentido, v. por todos acórdão do TCA Norte, datado de 05/02/2021, proferido no âmbito do proc. 00278/16.8BEMDL).

Q. Acresce que a interpretação que os AA. (aqui Recorrentes) fazem do artigo 4.º do ETAF sempre se afigurará inconstitucional, mormente por flagrante violação do artigo 212.º, n.º 3 da Constituição da República Portuguesa, nos termos do qual “compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das ações e recursos contenciosos que tenham por objeto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais” – o que desde já se alega para todos os efeitos e com todas as legais consequências.

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R. Por fim, referir apenas que não se depreende qual a relevância, para efeitos de determinação da competência do Tribunal em razão de matéria, da alegação dos Recorrentes atinente às normas por si invocadas, pois que, como é sabido, o Tribunal nem sequer está obrigado a aceitar o enquadramento jurídico que as partes oferecem para os factos alegados.

Termos em que, atento o exposto, o presente recurso jurisdicional deve ser julgado totalmente improcedente, por não provado, mantendo-se integralmente a decisão recorrida, para todos os efeitos e com todas as consequências legais, só assim se fazendo JUSTIÇA!

4. O Município também contra-alegou concluindo que:

I. Numa tentativa de colocar em crise a douta Sentença recorrida, na qual o Tribunal “a quo” julgou verificada a exceção dilatória de incompetência absoluta do Tribunal em razão da matéria, os Recorrentes, nas Conclusões 1) a 5) das suas Alegações de Recurso, forçam a qualificação do caso sub judice como uma ação de reivindicação.

II. Olvidam, contudo, que, nos termos e ao abrigo do disposto no n.º 1 do art. 1311.º do CC, o objeto e objetivo de uma ação de reivindicação é permitir que o proprietário de determinada coisa exija judicialmente de qualquer possuidor ou detentor da mesma (i) o reconhecimento do seu direito de propriedade e, (ii) a consequente restituição do que lhe pertence.

III. Sendo certo que o sinal verdadeiramente distintivo da “Ação de reivindicação” e que a qualifica como tal é o pedido de restituição (a reivindicação) do objeto do direito de propriedade, tem entendido, uniformemente, a Jurisprudência dos nossos Tribunais que, neste tipo de ação, o pedido tem, obrigatoriamente, de coincidir com o reconhecimento do direito de propriedade do reivindicante sobre a coisa e a restituição desta àquele.

IV. No caso sub judice nem o objeto do litígio, nem os pedidos formulados permitem a qualificação da ação como uma “ação de reivindicação”, porquanto não se discute o direito de propriedade dos Recorrentes sobre o prédio identificado na douta p.i.; não foi formulado qualquer pedido de reconhecimento do direito de propriedade dos Autores, ora Recorrentes, sobre o referido prédio; nem o Recorrido Município ..., nem a Recorrida Freguesia ... são possuidores ou, sequer, detentores do prédio em referência; tão pouco foi peticionada pelos Autores a sua restituição (nem o poderia ser).

V. Neste mesmo sentido decidiu – e bem – a douta Sentença recorrida, que, após esclarecer que “não estamos perante direitos reais, mas antes perante uma alegada atuação da Ré que violou o direito de propriedade dos Autores, com consequências várias.”, concluiu que a presente ação tinha “por objeto questões relativas à responsabilidade civil extracontratual das pessoas coletivas de direito”, competindo, por conseguinte, à jurisdição administrativa a apreciação e julgamento do litígio, em conformidade com o preceituado na al. f) do n.º 1 do art. 4.º do ETAF.

Sucede que,

VI. Partindo (erradamente) do pressuposto de que estamos perante uma ação de reivindicação, os Recorrentes invocam, nas Conclusões 6) a 13) das suas Alegações de Recurso, que a douta Sentença recorrida violou o disposto no n.º 1 do art. 64.º do CPC e no art. 4.º do Estatuto dos Tribunal Administrativos e Fiscais («ETAF») ao julgar verificada a exceção dilatória de incompetência absoluta do Tribunal “a quo”.

VII. Para atingir a sua pretensão, os Recorrentes citam uma série de trechos jurisprudenciais, que julgam os tribunais comuns competentes para decidir ações de reivindicação.

VIII. Porém, como vimos, no caso sub judice não estamos envoltos numa discussão sobre direitos reais, tão pouco perante o suprarreferido tipo de ação.

Efetivamente,

IX. Ao contrário do que alegam os Recorrentes, os três pedidos por si formulados na p.i. (a., b. e c.), traduzem-se ou reconduzem-se a pedidos de indemnização pela alegada prática de factos ilícitos.

X. O primeiro, por reconstituição natural ou indemnização em espécie; os demais, por indemnização monetária.

XI. Sendo a determinação da indemnização a atribuir aos Autores (caso se provasse a ilicitude, o dano e o nexo de causalidade) a única questão que se levanta nos presentes autos, resulta inequívoco que estamos perante uma ação de responsabilidade civil extracontratual de pessoas coletivas de direito público – como muito bem decidiu a douta Sentença recorrida.

Ora,

XII. O n.º 3 do art. 212.º da CRP determina a competência dos tribunais administrativos e fiscais para julgar “as ações e recursos contenciosos que tenham por objeto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais”.

XIII. Acrescentando a alínea f) do n.º 1 do art. 4.º do ETAF, que “Compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham por objeto questões relativas a: (…) f) Responsabilidade civil extracontratual das pessoas coletivas de direito público, incluindo por danos resultantes do exercício das funções política, legislativa e jurisdicional, sem prejuízo do disposto na alínea a) do n.º 4;”.

XIV. Estando, precisamente, em causa uma ação de responsabilidade civil extracontratual de pessoas coletivas de direito público, dúvidas não podem subsistir de que o presente litígio entra na jurisdição dos tribunais administrativos e fiscais.

Sem prescindir,

XV. Mesmo que assim se não entendesse (o que não se admite, nem se concede) sempre teriam os tribunais administrativos e fiscais competência em razão da matéria para decidir a presente ação por via da aplicação da alínea i) do n.º 1 do art. 4.º dos ETAF, de acordo com o qual “Compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham por objeto

questões relativas a: (…) Condenação à remoção de situações constituídas em via de facto, sem título que as legitime;”

XVI. Muito embora, no passado, se tenha discutido, doutrinal e jurisprudencialmente, a competência dos tribunais para dirimir os litígios decorrentes de situações de vias de facto que envolvessem entidades públicas, existindo, inclusive, uma corrente de entendimento que defendia que as ações de defesa da propriedade se encontravam reservadas aos tribunais judiciais, devendo ser estes a julgá-las, em 01 de dezembro de 2015, a discussão foi legislativamente resolvida, com a entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 214-G/2015, de 02 de outubro, que veio alterar o ETAF.

XVII. A partir desse momento, a nova redação da alínea i) do n.º 1 do artigo 4º deixou clara a intenção do Legislador de atribuir aos tribunais administrativos a competência para dirimir este tipo de conflitos (cfr. Tribunal de Conflitos, no Acórdão proferido no âmbito do Processo n.º 048/18 e o Supremo Tribunal de Justiça, no Acórdão proferido em 06/07/2023, no âmbito do Proc. n.º 485/21.1T8EVR.E1.S1, relatado por Rijo Ferreira).

Assim,

XVIII. Considerando que, no presente caso, teríamos, no limite, uma atuação de entidades públicas (Rés) suscetível de ofender o direito de propriedade dos Recorrentes, sempre estaríamos perante uma competência dos tribunais administrativos em razão da matéria, em conformidade com o disposto na alínea i) do n.º 1 do artigo 4º do ETAF.

XIX. Pelo que, a jurisdição competente para julgar a presente ação é a jurisdição administrativa, quer por força do disposto na al. f), quer na al. i) do n.º 1 do art. 4.º do ETAF.

XX. Nada há, pois, a censurar à decisão do Tribunal a quo, que contrariamente ao que os Recorrentes alegam, encetou uma correta interpretação e aplicação do direito ao caso concreto.

Termos em que, em face do exposto e do mais que, por certo, não deixará de ser por V. Exa. doutamente suprido, deve negar-se provimento ao presente recurso, confirmando-se a douta Sentença recorrida, com o que este Tribunal fará a costumada JUSTIÇA!

II – Factos Provados

A factualidade a considerar é a que decorre do Relatório supra.

III – Do Direito

1. Uma vez que o âmbito objectivo dos recursos é delimitado pelas conclusões apresentadas pelos recorrentes (arts. 635º, nº 4, e 639º, do NCPC), apreciaremos, apenas, as questões que ali foram enunciadas.

Nesta conformidade, a única questão a resolver é a seguinte.

- Competência material.

2. Na decisão recorrida escreveu-se que:

“Quanto à competência em razão da matéria, estipula o artigo 40.º da Lei da Organização do Sistema Judiciário (Lei n.º 62/2013, de 26/08, na redação atualmente em vigor, doravante LOSJ) o seguinte:

1 - Os tribunais judiciais têm competência para as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional.

2 - A presente lei determina a competência, em razão da matéria, entre os juízos dos tribunais de comarca, estabelecendo as causas que competem aos juízos de competência especializada e aos tribunais de competência territorial alargada.

Os Tribunais administrativos e fiscais fazem parte de outra ordem jurisdicional, encontrando constitucionalmente consagrados no artigo 209.º n.º 1 alínea b) da Constituição da República Portuguesa.

Ora, para determinação da competência em razão da matéria de um Tribunal, é necessário atender-se ao pedido e especialmente à causa de pedir formulados pela Requerente, pois é desta forma que se pode caracterizar o conteúdo da pretensão da Demandante e as questões a conhecer (neste sentido, ponto I do sumário do Ac. Tribunal de Conflitos de 09/12/2014, Relator: Cons. Garcia Calejo, Proc. n.º 07/14).

No caso em apreço, em face dos pedidos e da causa de pedir, o que temos é que os Autores alegam que a Freguesia ... realizou obra pública que atingiu o prédio daqueles, o que culminou em passar cerca de 50m2 desse prédio para a via pública, peticionando a final que seja reposta a extrema norte do prédio dos Autores ou, em substituição, que a Ré seja condenada no pagamento àqueles de uma indemnização pela apropriação ilegítima e de uma indemnização por todos os incómodos criados.

Não estamos perante direitos reais, mas antes perante uma alegada atuação da Ré que violou o direito de propriedade dos Autores, com consequências várias.

Ora, constata-se que compete à jurisdição administrativa a apreciação de litígios que tenham por objeto questões relativas à responsabilidade civil extracontratual das pessoas coletivas de direito público [cfr. artigo 4.º n.º 1 alínea f) do ETAF].

São disso exemplo inúmeros Acórdãos dos Tribunais Centrais Administrativos:

- Ac. TCAN datado de 21/05/2021, Processo n.º 00407/10.5BEPNF, Relator: Des. Rogério Paulo da Costa Martins, que trata de um caso de responsabilidade civil extracontratual por facto ilícito de um município por danos causados num prédio particular com obras levadas a cabo numa estrada municipal;

- Ac. TCAN datado de 05/02/2021, Processo n.º 00278/16.8BEMDL, Relatora: Des. Helena Canelas, já indicado pela Ré Freguesia ... e cujo sumário se encontra transcrito na contestação, sendo novamente de sublinhar o ponto III do respetivo sumário: “III - O Tribunal Administrativo é materialmente competente para decidir a ação, sendo de configurar o litígio como emergente de uma relação jurídica administrativa, se o autor alega que o terreno de que é proprietário foi ilegal e ilicitamente tomado, em parte, por uma pessoa coletiva de direito público, no caso uma Freguesia, através dos atos materiais consubstanciados na destruição ou remoção de taludes para alargamento de um caminho, com derrocada de parte do terreno e alteração da respetiva configuração do prédio, e com abertura de uma vala ao longo dele, de que terá resultado, simultaneamente, o impedimento de acesso ao mesmo, em termos que deva o terreno ser reposto na situação anterior, ou então, indemnizado pelos danos causados, mormente quanto ao valor da área do terreno que foi, alegadamente, ocupado e retirado”.

Também o Tribunal de Conflitos já se pronunciou neste sentido recentemente, designadamente no Ac. datado de 22/11/2022, Processo n.º 07040/22.7T8PRT.S1, Relatora: Cons. Maria dos Prazeres Pizarro Beleza, cujo sumário se transcreve: “Sendo o réu uma pessoa coletiva de direito público e fundando-se a causa em responsabilidade civil extracontratual, a competência para conhecer da ação de indemnização cabe aos Tribunais Administrativos e Fiscais”.

Por conseguinte, cremos que assiste inteira razão à Ré Freguesia ..., razão pela qual são competentes os Tribunais Administrativos e Fiscais. Assim, nos termos do disposto no artigo 96.º al. a) do Código de Processo Civil, a infração das regras de competência em razão da matéria e da hierarquia e das regras de competência internacional determinam a incompetência absoluta do Tribunal.

Estamos perante uma exceção dilatória, de conhecimento oficioso, a qual, uma vez julgada verificada, implica a absolvição do Réu da instância ou o indeferimento em despacho liminar, quando o processo o comportar [arts. 97.º n.º 1, 99.º n.º 1, 576.º n.º 2 e 577.º al. a) do CPC].”.

Os recorrentes discordam, face às razões apresentadas nas suas conclusões de recurso, essencialmente por entenderem estar-se perante uma acção de reivindicação. Enquanto os recorridos pugnam pela manutenção do decidido, adicionando um outro fundamento jurídico, além do invocado na decisão recorrida, a constante da i) do referido art. 4º, nº 1, do ETAF.

Analisando, brevitatis causa, dada a relativa simplicidade da causa.

O art. 4º, nº 1, do ETAF, dispõe que “Compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham por objeto questões relativas a:

(…)

f) Responsabilidade civil extracontratual das pessoas coletivas de direito público, incluindo por danos resultantes do exercício das funções política, legislativa e jurisdicional, sem prejuízo do disposto na alínea a) do n.º 4;

(…)

i) Condenação à remoção de situações constituídas em via de facto, sem título que as legitime;”.

No nosso caso não está em jogo nenhuma acção de reivindicação, tal como é definida no art. 1311º, nº 1, do CC – exigência judicial a qualquer possuidor ou detentor da coisa do reconhecimento pelo proprietário do seu direito de propriedade e consequente restituição do que lhe pertence -, e tal como é doutrinalmente configurada – o reconhecimento do direito de propriedade, por um lado, e a restituição da coisa, por outro, devendo entender-se que se o reivindicante se limita a pedir a restituição da coisa, não formalizando expressamente o pedido de reconhecimento do seu direito de propriedade, deve este pedido considerar-se implícito naquele (segundo A. Varela, em CC Anotado, Vol. III, 2ª Ed., nota 2 ao artigo 1311º, pág. 113, L. Carvalho Fernandes, Lições de D. Reais, 5ª Ed., pág. 272, e José Alberto Vieira, D. Reais, 1ª Ed., 2008, págs. 488/495).

Ora, os AA alegam que a Freguesia ... realizou obra pública que atingiu o prédio daqueles, o que culminou em passar cerca de 50 m2 desse prédio para a via pública, peticionando a final que seja reposta a extrema norte do prédio dos AA ou, em substituição, que a R. seja condenada no pagamento àqueles de uma indemnização pela apropriação ilegítima, e bem assim pagamento dos custos que possam implicar a colocação de um muro para suporte de terras e acesso/caminho ao prédio pela parte norte, e ainda indemnizar os AA por todos os incómodos criados, em quantia nunca inferior a 24.000 €. Ou seja, com o pedido substitutivo os AA admitem perder a aludida faixa de terreno a troco de uma indemnização.

Sucede, pois, que atento a causa de pedir tal como formulada pelos AA, o reconhecimento do direito de propriedade está longe de se constituir como o objeto do litígio dos autos, já que, conforme se depreende da p.i., nenhum conflito existiu no que concerne à titularidade do imóvel em causa nos autos.

Não estamos, portanto, perante uma acção de reivindicação, mas antes perante uma alegada atuação da R. que violou o direito de propriedade dos AA, com consequências várias. Como acertadamente diz o R. Município nas conclusões das suas contra-alegações, os três pedidos formulados pelos recorrentes na p.i. (a., b. e c.), traduzem-se ou reconduzem-se a pedidos de indemnização pela alegada prática de factos ilícitos. O primeiro, por reconstituição natural ou indemnização em espécie; os demais, por indemnização monetária.

Sendo a determinação da indemnização a atribuir aos AA a única questão que se levanta nos presentes autos, resulta inequívoco que estamos perante uma ação de responsabilidade civil extracontratual. No caso de pessoas coletivas de direito público, a Freguesia e/ou o Município.

E como tal, responsabilidade civil extracontratual prevista na aludida f) do art. 4º, nº 1, do ETAF.

Como se refere no ac. de 5.2.2021do TCAN, em www.dgsi.pt, referido na decisão recorrida, num caso com imensas parecenças com o nosso, “3.15 Se aos Tribunais Administrativos não compete, …, a declaração e o reconhecimento do direito de propriedade privada, …, já lhes competes, por se configurar como litígio emergente de uma relação jurídica administrativa, apreciar e decidir se o imóvel de cuja propriedade o autor se arroga foi ilegal e ilicitamente tomado, em parte, por uma pessoa coletiva de direito público, no caso a ré FREGUESIA, através dos atos materiais consubstanciados na destruição ou remoção de taludes para alargamento de um caminho, com derrocada de parte do terreno e alteração da respetiva configuração do prédio, e com abertura de uma vala ao longo dele, de que terá resultado, simultaneamente, o impedimento de acesso ao mesmo, em termos que deva o terreno ser reposto na situação anterior, ou então, indemnizado pelos danos causados, mormente quanto ao valor da área do terreno que lhe foi, alegadamente, ocupado e retirado.”.

Acresce, que a situação em apreço nos autos, também preenche a previsão da i) do nº 1 do art. 4º do ETAF acima transcrita, que contempla as situações que tenham por objeto questões relativas à condenação à remoção de situações constituídas em via de facto, em que a Administração atue sem título que a legitime - cfr. o preâmbulo do DL. 214-G/2015, de 2.10, que adicionou tal alínea ao indicado artigo 4º, dizendo que “Neste sentido, estende-se o âmbito da jurisdição administrativa e fiscal às ações de condenação à remoção de situações constituídas pela Administração em via de facto, sem título que as legitime (…)”.

Como se explana no Ac. do STJ de 6.7.2023, Proc.485/21.1T8EVR, em www.dgsi.pt, que a partir de agora acompanhamos, por merecer a nossa concordância.
“A propósito desta alteração, Mário Aroso de Almeida (in Manual do Processo Administrativo, Almedina, 2016, 2ª Edição, página 171) pronuncia-se no sentido de que o ETAF “passou a atribuir à jurisdição administrativa e fiscal a competência para dirimir os litígios decorrentes de situações de vias de facto, em que a Administração atue sem título que a legitime, designadamente ocupando imóveis de propriedade privada sem proceder à respetiva expropriação. No passado, como a competência para as ações de defesa da propriedade e de delimitação da propriedade pública em relação à propriedade privada era reservada aos tribunais judiciais, também estas situações eram atribuídas à competência destes tribunais. Diferentemente, a nova alínea i) do n.º 1 do artigo 4º do ETAF atribui a competência aos tribunais administrativos, atenta a natureza claramente administrativa dos litígios em causa, que têm por objecto pretensões de restituição e restabelecimento de situações enquadradas no exercício, ainda que ilegítimo, do poder administrativo” (sublinhado nosso).

Sobre a alínea acabada de citar, o Acórdão do Tribunal dos Conflitos proferido no processo n.º 048/18 desenvolve ainda a seguinte análise, que, por relevante para a apreensão dos contornos da alteração legislativa sob escrutínio, se deixa aqui reproduzida:

Com a Reforma de 2015, a al. i), do nº 1, do art. 4º do ETAF passou a atribuir à jurisdição administrativa a competência para apreciar litígios que tenham por objeto questões relativas a "condenação à remoção de situações constituídas em via de facto, sem título que as legitime".

Sem entrar agora na análise das origens e da evolução do instituto (Cf., por todos, Carla Amado Gomes, Contributo para o Estudo das Operações Materiais da Administração Pública e do seu Controlo Jurisdicional, Coimbra Editora, 1999, páqs. 298-345. Na jurisprudência, cf. o ac. do STJ de 5.2.2015, proferido no proc. nº742/10.2TBSJM.P1.S1, disponível em www.dgsi.pt), pode, no essencial, afirmar-se que a "via de facto" corresponde a uma atuação material da Administração que, sem base legal (Designadamente por ausência de atos jurídicos anteriores que legitimem essas operações materiais ou em que esses atos jurídicos são juridicamente inexistentes - v. Jorge Pação, ob.cit., pág. 194-195.),ofenda, de forma grave e manifesta, uma liberdade fundamental ou um direito de propriedade.

Com a referida previsão normativa procurou-se dar resposta às dúvidas que então se suscitavam quanto a saber se o julgamento das situações de «via de facto» competia aos tribunais administrativos ou aos tribunais judiciais, ficando com a revisão de 2015, assegurado que "o pedido de restabelecimento de direitos ou interesses violados a que se refere a al. i), do nº 1, do art. 37º, do ETAF pode ser deduzido, não apenas para obter a remoção de efeitos produzidos por atos administrativos ilegais, mas também para reconstituir a situação jurídica que deveria existir, na sequência de operações materiais praticadas pela Administração sem título que o legitime.” (V. Mário Aroso de Almeida e Carlos Cadilha, Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos, Almedina, 2017, pág. 259.)

Defendendo a solução legal, agora consagrada no CPTA e no ETAF, explicava Vieira de Almeida (ln «"A Via de Facto", perante o juiz administrativo» comentário ao ac. do TCAS, de 22.11.2012, processo 5515/09, Cadernos de Justiça Administrativa, n.º 104, março/ abril de 2014, pág. 44. ) que a «via de facto», enquanto atuação material manifestamente ilegal de um órgão da Administração, não deixa de ser uma atuação no âmbito do direito público, tal como o é uma atuação jurídica portadora de uma ilegalidade tão grave que implique a inexistência do ato ou a sua nulidade. Por isso, dizia aquele autor, não se pode afirmar que a «via de facto» coloca a Administração numa posição idêntica à do simples particular por ficar desprovida da posição de supremacia em que se encontra na atuação ilícita.”.

Também no preâmbulo do Decreto-Lei n.º 214-G/2015, pode ler-se que, no que “respeita ao ETAF, clarificam-se, desde logo, os termos da relação que se estabelece entre o artigo 1.º e o artigo 4.º, no que respeita à determinação do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal, e, por outro lado, dá-se mais um passo no sentido, encetado pelo actual ETAF, de fazer corresponder o âmbito da jurisdição aos litígios de natureza administrativa e fiscal que por ela devem ser abrangidos. Neste sentido, estende-se o âmbito da jurisdição administrativa e fiscal às acções de condenação à remoção de situações constituídas pela Administração em via de facto, sem título que as legitime (…)”.

Face à configuração normativa acabada de analisar e aplicando-a à problemática sob escrutínio, parece-nos, pois, que a atual alínea i) do art. 4.º do ETAF tem plena aplicação ao caso concreto, que tem por objeto uma situação em que a Ré (entidade expropriante do terreno em causa, que não obstante tratar-se de uma sociedade é concessionária de infra-estrutura rodoviária e, por conseguinte, equiparada a pessoa colectiva de direito público, nos termos do nº 5 do artigo 1º do Regime da Responsabilidade Civil do Estado e demais Entidades Públicas), tomou posse administrativa do terreno do autor sem que, depois, prosseguisse com os atos próprios da expropriação, tendo desistido da mesma e continuando a ocupar aquela parcela, a partir daí sem qualquer título legítimo que a habilitasse a tal.

(…)

Parece-nos, pois, evidente que a ação judicial do autor tem por objeto essencial a atuação material da ré, enquanto entidade expropriante que, por via da desistência da expropriação, deixou de o ser, procurando obter uma condenação desta entidade à adoção das condutas necessárias ao restabelecimento do direito violado. Ora, em função do exposto, tal ação só poderá ser intentada, ao abrigo das alíneas f) e i) do n.º 1 do art. 4.º do ETAF, nos tribunais administrativos.

É esta também a conclusão alcançada por Jorge Pação (in Carla Amado Gomes, Ana F. Neves e Tiago Serrão, Comentários à Legislação Processual Administrativa, Vol. I., 2020, pág. 394), que escreve, a este propósito, que “ainda que a alegação pelo autor da titularidade do direito de propriedade seja parte integrante da causa de pedir, este aspeto não tem o “condão” de alterar o efeito jurídico por ele pretendido.” (in ob. cit., pág. 395).

(…)

… entendemos, que estando em causa nos autos, como está, a apreciação da responsabilidade extracontratual (conforme a acima citada al. f) do n.º 1 do art. 4.º do ETAF) que envolve a atuação da ré, entidade expropriante que tomou posse administrativa de uma parcela de terreno do autor e que, por via da desistência da expropriação, deixou de ter legitimidade para aí permanecer (o que fez, cristalizando uma situação de facto sem título válido para o efeito – aplicando-se, por isso, também a al. i) do n.º 1 do art. 4.º do ETAF), a presente ação cabe no âmbito da competência dos tribunais administrativos.

(…)

Veja-se, ainda sobre esta temática, o Acórdão do Tribunal de Conflitos de 21/04/2016 (proc. n.º 042/15), que, pronunciando-se sobre uma situação similar à dos autos no que concerne à delimitação do pedido e causa de pedir, defendeu: “o facto de se pedir o reconhecimento da propriedade do terreno e das árvores cortadas, não faz, só por si, com que se esteja perante uma acção real de reconhecimento da propriedade e consequente restituição da coisa, nos termos do art. 1311.º do Código Civil.

Na verdade, no caso dos autos, os autores não pedem a restituição do terreno, mas apenas que se reconheça que ocorreu a violação do seu direito de propriedade sobre o terreno e as árvores, de tal forma que se dê como verificada a ilicitude da conduta do réu e, consequentemente, lhes seja concedida uma indeminização em dinheiro. Trata-se, assim, de uma acção de responsabilidade civil extracontratual.”.

Importa acrescentar que a circunstância de ter existido desistência da expropriação não só não obstaculiza a conclusão a que se chegou quanto à competência material para apreciar e decidir a presente ação, como conduz à situação de “via de facto” que faz, como vimos, subsumir o caso vertente à al. i) do n.º 1 do art. 4.º do ETAF.”.

Ou, como se invoca, no citado aresto de 5.2.2021, do TCAN, em que se refere a este propósito Jorge Pação, em Comentários à Revisão do ETAF e do CPTA, AAFDL EDITORA, 2ª edição, 2016, pág. 197, que defende ser de concluir que “(…) com a revisão do contencioso administrativo português de 2015, os tribunais administrativos são os tribunais competentes para apreciação das situações de “via de facto”, de apropriação irregular e, consequentemente, de expropriação indireta, visto ser uma mera “ramificação” da figura da apropriação irregular, e que, aliás, traz à colação o princípio da intangibilidade da obra pública, de natureza puramente administrativa, devendo este último ser trabalhado e aplicado pelos tribunais administrativos desde 1 de dezembro de 2015, em detrimento da jurisdição comum”.        

Concluímos assim, como a 1ª instância, pela incompetência em razão da matéria dos tribunais comuns para conhecer da acção.

3. Sumariando (art. 663º, nº 7, do NCPC): (…)

IV – Decisão

Pelo exposto, julga-se o recurso improcedente, assim se confirmando a decisão recorrida.

*

Custas pelos AA/recorrentes. 

*

                                                                           Coimbra, 29.4.2025

                                                                           Moreira do Carmo

                                                                           Alberto Ruço

                                                                           Fonte Ramos