PROCESSO EXECUTIVO
INDEFERIMENTO LIMINAR
MANIFESTA FALTA DE TÍTULO EXECUTIVO
PROCESSO EQUITATIVO
Sumário

I – A rejeição oficiosa nos termos do art. 734º e 726º nº 2, al. a) do n.C.P.Civil pressupõe que a “falta” do título executivo seja evidente e incontroversa, e não uma situação que implique prévias diligências por parte do Tribunal.
II – A “insuficiência” do título executivo também legalmente prevista, tem necessariamente de apresentar as características de evidente, incontroversa, insuprível, definitiva, excecional, sendo esse o significado de “manifesta”.
(Sumário elaborado pelo Relator)

Texto Integral

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Acordam na 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra[1]                                                                                    *

1 – RELATÓRIO

AA, melhor id. nos autos, veio deduzir “Incidente de Nulidade do Título Executivo”, como representante de seu falecido pai (BB, executado nos autos principais), contra o Exequente nos mesmos, CC, também melhor id. nesses autos, sustentando uma alegada incapacidade acidental do falecido co-executado na outorga do título executivo, a saber, uma Escritura de Confissão de Dívida e Hipoteca (documento exarado por notário) e pedindo fosse julgado procedente o incidente de nulidade de título executivo, objecto daquela execução, ordenando-se a imediata sustação das penhoras sobre o património dos Executados (o casal) e consequentemente a extinção do processo de execução.

                                                           *

Em despacho liminar, o Exmo. Juiz de 1ª instância começou por sublinhar que na Execução, o falecido Executado BB havia sido citado a 06-04-2022, e não deduziu qualquer forma de Oposição à Execução, pelo que era «(…) pacífico na jurisprudência que o habilitado apenas assegura a representação processual da herança indivisa da Parte falecida, logo, o habilitado tem que aceitar a instância da Execução no ponto processual em que se encontra, seja quanto às faculdades processuais cujo exercício já se encontra precludido, seja quanto àquelas cujo exercício ainda é possível ou devido até à extinção da instância», prosseguindo nos seguintes concretos termos:

«(…)

No caso concreto:

Não tendo o falecido Executado BB exercido a faculdade de deduzir Oposição à Execução por Embargos de Executado, já não assiste à Requerente/Habilitada o direito de exercer uma faculdade processual que já se encontra precludida para a herança indivisa que processualmente representa.

Por outro lado, sempre o Requerimento da Requerente/Habilitada poderia ser integrado no art.º 734.º/1 CPC, o qual permite suscitar o conhecimento pelo Tribunal de questões que poderiam ter determinado o indeferimento liminar ou o aperfeiçoamento do Requerimento Executivo (RE).

Contudo, a Requerente/Habilitada não invoca qualquer nulidade formal do título executivo que pudesse configurar falta ou insuficiência do título executivo [art.º 726º/2/a) CPC].

Pelo contrário, o título executivo é uma confissão de dívida outorgada por escritura pública, logo, formalmente válida e dotada de exequibilidade à luz do art.º 703.º/1/b) CPC.

A nulidade que a Requerente/Habilitada invoca e que, em nosso entender, e sempre salvo o devido respeito por diferente e melhor juízo, erradamente qualifica como “nulidade do título executivo” é, verdadeiramente, uma nulidade da própria confissão de dívida com fundamento em falta ou vício da vontade.

Contudo, este fundamento de invalidade não colide com a regularidade formal do título executivo, mas sim com a validade da própria obrigação exequenda, logo, a sua alegação e demonstração apenas poderia ter tido lugar em sede de Oposição à Execução por Embargos de Executado, que é a forma processual que o executado dispõe para questionar a existência, a validade e a exigibilidade da obrigação exequenda.

Passado este momento na Acção Executiva, apenas em Acção declarativa própria poderá a aqui Requerente/Habilitada, enquanto herdeira ou agindo em representação da herança indivisa conjuntamente com os restantes representantes, discutir alguma causa de inexistência ou de invalidade da confissão de dívida cujo cumprimento coercivo é levado a cabo na presente Acção Executiva.

         ▬ § ▬

Pelo exposto:

1) Julga-se totalmente improcedente o presente incidente de nulidade do título executivo.

2) Fixa-se ao incidente o valor da Execução (€.98.771,07) [art.º 307.º/1 CPC].

3) Condena-se a Requerente/Habilitada no pagamento das custas.

*

Registe e notifique.

Notifique o(a) Sr.(a) Agente de Execução.»

                                                           *

Inconformado com essa decisão, apresentou a Requerente/Executada/Habilitada recurso de apelação contra a mesma, terminando as suas alegações com as seguintes “conclusões”:

«1-Os factos alegados relativos à nulidade da própria confissão de dívida com fundamento em falta ou vício da vontade, remete que a “nulidade do título executivo, pode o juiz conhecer oficiosamente, até ao primeiro acto de transmissão dos bens penhorados, das questões que poderiam ter determinado, se apreciadas nos termos do artigo 726ºdo C.P.Civil, o indeferimento liminar ou o aperfeiçoamento do requerimento executivo.

2-Até ao momento, dos autos de Execução não se operou qualquer transmissão sobre os bens objecto de penhora.

3-A falta ou insuficiência do título executivo prevista na al. a) do n.º 2 do artigo 726.º do CPC tem de se apresentar como “manifesta” face a todo o acima exposto.

4-Aquando da realização e outorga da confissão da divida, o Exequente já sabia e conhecia da incapacidade psíquica de que padecia o Executado e que o impedia de entender aquele acto que praticou.

5-A esse propósito, o Relatório Médico passado pelo Instituto da Medicina Legal e junto aos autos como Doc.nº3, e elaborado no decurso da Acção de Acompanhamento interposta contra o Executado, pai da Recorrente, que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca de Coimbra, Juízo Local Cível da Figueira da Foz – Juiz 2, com o processo nº1764/23.....

6-De acordo com o artº 257º do Código Civil, sob a epígrafe “incapacidade acidental”:

“1. A declaração negocial feita por quem, devido a qualquer causa, se encontrava acidentalmente incapacitado de entender o sentido dela ou não tinha o livre exercício da sua vontade é anulável, desde que o facto seja notório ou conhecido do declaratário.”

7-A referida confissão de divida, título executivo da Execução, não corresponde à verdade já que os Executados em nada são devedores ao Exequente, ora Recorrido, e assim,

8-Os Documentos agora juntos, por força do trabalho de levantamento e acompanhamento por parte da filha do Executado, são por si só suficientes para comprovar a sua alegada incapacidade, assim como, a incoerência do conjunto de acções e omissões em torno daquela inexistente divida,

9-Circunstancia, essa, salvo melhor opinião em contrário, justifica plenamente o suscitar do presente incidente de nulidade do respectivo título executivo,

10-Uma vez que, não só não existe título executivo que sustente a presente acção executiva, como, fica, igualmente, demonstrado,

11-Que os Executados encontravam-se condicionados em relação à acção executiva para produzir defesa útil, eficiente e atempada,

12-Para além dos negócios posteriormente efectuados entre Exequente e Executados deixarem bem patenteado que tudo não passou dum plano ardiloso perpetrado pelo Exequente de forma a locupletar-se do património dos Executados, senão veja-se:

13-Uma confissão de dívida obtida entre um filho e pai, este último com grave degeneração cognitiva, e que depois de obtida a confissão (título executivo em crise), da qual, resulta um acordo de pagamento em prestações mensais, logo de seguida, dois meses depois, invocando o incumprimento no pagamento, veio o filho executar os pais, tendo como objecto da penhora a sua reforma, ou seja, a sua única fonte de rendimento, para a seguir, decorridos outros 2 meses depois, na pendência daquela acção executiva (de evidente litigio), ainda assim, os executados “terem-se prontificado” a doar um prédio ao filho (Exequente) avaliado em 98.622,80€ e outorgarem uma escritura de Dação em Função do Pagamento, em que os Pais (Executados) declararam-se devedores ao filho (Exequente) na quantia de 98.622,80€, divida essa garantida pela hipoteca sobre o referido prédio rustico, para pagamento de parte da divida, doaram ao filho o dito prédio rustico – Doc.nº8 junto aos autos -, sendo que, o referido valor do prédio até hoje não foi deduzido ao valor da dívida exequenda.

14-Nos termos do regime geral do artigo 286.º do Código Civil, a nulidade pode ser invocada a qualquer momento, por qualquer interessado, e pode ser declarada oficiosamente pelo tribunal.

15-Fazendo-se, assim, prevalecer o princípio da justiça sobre o da segurança, pelo que,

16-Salvo o devido respeito, DEVERÁ a “autoridade do caso julgado”, no caso em apreço, ser sacrificada a fim de evitar o dano e as perturbações sequenciais á manutenção de uma decisão judicial intoleravelmente injusta,

17- Onde resulta manifestamente demonstrado que o documento que foi dado como título executivo na presente acção assenta em falsa factualidade.

18-Face a tal, seria intolerantemente injusto, dar como provada a existência duma divida e, em consequência, manter as penhoras sobre o património dos Executados que vêm desparecer, “a olhos vistos” as suas poupanças duma vida de trabalho e o restante património penhorado,

19-Tratando-se CLARAMENTE de um Acto de total Injustiça perante os Executados, condenados a verem todo o seu património penhorado por conta duma divida inexistente.

20-Apesar do presente incidente de nulidade de título executivo vir a ser só agora suscitado, extinto que se encontra, há muito, o direito de deduzir embargos à execução,

21-Ainda assim, face a todo o acima exposto, a referida nulidade pode ser apreciada a todo o tempo,

22-Ressalvando-se que no caso em apreço, de acordo com o nº1 do artigo 734º d C.P.Civil, estendido ao princípio da cooperação e da adequação processual previsto nos artºs 6 e 7 do C.P.C. e do princípio da tutela jurisdicional efectiva, previsto no artº 2 do C.P.C. e consagrado como direito fundamental no artº 20 da Constituição da Republica Portuguesa.

23-Ao Tribunal, uma vez mais, com todo o respeito por opinião em contrário, está vedado, com base em argumentos estritamente formais, recusar a apreciação da nulidade ou inexistência de título executivo, pois que a tal obsta o disposto nos artºs 2 do C.P.C, 20 e 202 nº2 da Constituição, preceitos que consagram o princípio da tutela jurisdicional efectiva, que tem em si implícito o direito de acesso aos tribunais.(…)” - Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, Proc. 296/10.0TBPBL-C.C1, 26-04-2022, www.dgsi.pt -.

24- Por outro lado a Recorrente apenas pode tomar mão do caso sub judice quando tomou conhecimento de toda esta factualidade, após o óbito do seu pai, Executado, investida que ficou na qualidade de herdeira legitima.

25-Não pode a Recorrente conformar-se com tal fundamento invocado na sentença a quo e que veio determinar o indeferimento do presente Incidente.

26-Ao decidir da forma como decidiu o tribunal a quo, violou o disposto nos artigos al. a) do n.º 2 do artigo 726º, nº1 do artigo 734º todos do Código de Processo Civil, conjugado com o artº 257º do Código Civil, podendo ser conhecida oficiosamente, visto ainda não ter existido a “transmissão dos bens penhorados”, pelo que,

27-Deve ser anulada a sentença recorrida, sustida de imediato e, consequentemente, extinta a presente acção executiva e determinado o cancelamento das penhoras em causa, ou quando assim não se entenda, no limite,

28-Seja ordenada a baixa dos autos ao Tribunal de 1ª Instância para julgamento e apreciação da prova para efeitos de fundamentação da decisão sobre a referida matéria de facto e de direito.

Termos em que com o muito douto suprimento de Vossas Excelências requer seja julgado procedente o presente recurso e revista a sentença que indeferiu o presente pedido de incidente, sustida de imediato e, consequentemente, extinta a presente acção executiva e com o consequente cancelamento das penhoras, ou quando assim não se entenda, no limite,

Devendo a mesma ser substituída por outra decisão judicial a admitir o referido incidente, ordenando a baixa dos autos ao Tribunal de 1ª Instância para julgamento e apreciação da prova para efeitos de fundamentação da decisão sobre a referida matéria de facto e de direito,

Com o que se fará sã e serena Justiça!»

                                                           *

Foram apresentadas contra-alegações pelo Exequente, das quais extraiu as seguintes “conclusões”:

«1. A Douta Decisão sub judice, de indeferimento liminar do requerimento inicial (R.I.), versa apenas sobre matéria de direito, assim, as alegações do recurso a que ora se responde apenas podem versar sobre matéria de direito.

2. A recorrente pretende a revogação da Douta Sentença e pede: - a título principal, a extinção imediata da ação executiva, o que é legalmente inadmissível, sempre existiriam questões de facto controvertidas, com necessidade de produção de prova; - e subsidiariamente, a baixa dos autos “para julgamento e apreciação da prova para efeitos de fundamentação da decisão sobre a referida matéria de facto e de direito”.

3. Entende a recorrente que cabia ao Tribunal a quo apreciar a sua invocação de “nulidade do título executivo” por uma alegada incapacidade acidental do falecido co-executado na outorga do título executivo (cujo vício, caso existisse, seria a anulabilidade) e não o tendo feito, segundo a recorrente, violou os artigos 726º, nº 2, alínea a) e 734º, ambos do CPC, e o artigo 257º do CC, porque crê que os (falsos) fundamentos (de anulabilidade) que invocou no R.I. são de conhecimento oficioso e “ainda não ter existido a “transmissão dos bens penhorados””.

4. A recorrente carece em absoluto de razão, a Douta Decisão sub judice não merece qualquer reparo, o Meritíssimo Tribunal a quo, face às questões que foram submetidas à sua apreciação, decidiu de forma correta e devidamente fundamentada, carecendo a recorrente de qualquer razão para alteração/revogação da Sentença.

5. Contrariamente às alegações da recorrida, o Tribunal a quo aplicou e interpretou devidamente os artigos 726º, nº 2, alínea a) e 734º do CPC, bem como o artigo 257º CC.

Senão vejamos,

6. A recorrente, em absoluta contradição com o que expressamente afirma no requerimento de recurso, num primeiro momento, aquando da apresentação do R.I., datado de 04-06-2024, apresentou-se na qualidade de “curadora ad litem” de seu pai, que apenas veio a falecer a 08-06-2024.

7. Só posteriormente, através da sentença de habilitação de herdeiros constante nos autos principais com a Ref.ª Citius nº 95120786 de 25-09-2024, quase 4 meses após a recorrente instaurar o presente incidente, é que esta foi julgada habilitada em representação da herança indivisa deixada pelo falecido executado BB, habilitada conjuntamente com outros 2 irmãos e com a executada DD.

8. É assim manifestamente falso o que a recorrente afirma nas suas alegações, para com isso tentar rebater a extemporaneidade dos (falsos) fundamentos que invocou e sobre os quais recaiu a Sentença recorrida, quando declara: “(…) o facto da referida execução assentar em título nulo, que a Recorrente, somente se encontrou em condições de constatar esse facto quando, ficou investida na qualidade de herdeira (do pai, Executado) (…)”. O que, salvo melhor opinião, consubstancia litigância de má fé.

9. De todo o modo, como bem refere a Douta Sentença sub judice, o falecido foi regularmente citado na execução a 06-04-2022 e não deduziu qualquer forma de oposição à execução.

10. E consta ainda que “o habilitado apenas assegura a representação processual da herança (…) logo, o habilitado tem de aceitar a instância da Execução no ponto processual em que se encontra”, pelo que “já não assiste à Requerente/Habilitada o direito de exercer a faculdade processual que já se encontra precludida para a herança indivisa que processualmente representa.“

11. Acresce que, em sede de processo executivo, atenta a fase em que se encontra, incidentes como o presente apenas são admissíveis relativamente a questões que poderiam determinar o indeferimento liminar ou o aperfeiçoamento do requerimento executivo, nos termos dos artigos 734º, nº 1 e 726º, ambos do CPC.

12. Nesta fase apenas seria admissível invocar os fundamentos, taxativamente elencados no artigo 726º, nº 2 do CPC: a) MANIFESTA falta ou insuficiência do título; b) Existência de exceções dilatórias, NÃO SUPRÍVEIS, DE CONHECIMENTO OFICIOSO; c) MANIFESTA inexistência de factos constitutivos ou existência de factos impeditivos ou extintivos da obrigação exequenda DE CONHECIMENTO OFICIOSO; mas o alegado pela recorrente não se enquadra em nenhum.

13. Foi nestes termos que o Acórdão do TRC de 26-04-2022, Proc. nº 296/10.0TBPBL-C.C1, disponível em www.dgsi.pt, citado pela recorrente, admitiu a tramitação de incidente de arguição de nulidade/inexistência de título executivo, porquanto nesse caso concreto, contrariamente ao presente, era manifesta a falta de título, o título executivo não estava assinado pelo executado/opoente. Debruçou-se sobre “vícios cuja demonstração não carece de alegação de factos novos nem de prova”, “limitado no entanto, às questões de conhecimento oficioso”.

14. Este Acórdão não vai assim de encontro com as pretensões da recorrente, ao tentar utilizá-lo para justificar a admissibilidade dos seus inadmissíveis e falsos fundamentos.

15. O que a recorrente alegou no R.I. não se enquadra assim no fundamento previsto no artigo 726º, nº 2, alínea a) do CPC, de MANIFESTA falta ou insuficiência do título executivo, os quais têm necessariamente de apresentar as características de evidente, incontroversa, insuprível, definitiva e excecional, como refere o Acórdão do TRL de 07-03-2024, Proc. nº 8073/11.4TBOER-A.L1-2, disponível em www.dgsi.pt.

16. O título dado à execução é um documento exarado por notário, que importa o reconhecimento de obrigação, enquadra-se no artigo 703º, nº 1, alínea b) do CPC e ninguém poem em causa que a obrigação é certa, líquida e exigível, pelo que a Escritura de Confissão de Dívida e Hipoteca cumpre o exigido no 703º do CPC (Doc.1 Contestação).

17. Como considerou a Douta Decisão recorrida, o fundamento de indeferimento liminar previsto no artigo 726º, nº 2, alínea a) do CPC aplica-se aos casos de nulidade formal do título executivo que possam configurar a sua falta ou insuficiência, o que não ocorre no caso, aqui o título executivo “é uma confissão de dívida outorgada por escritura pública, logo, formalmente válida e dotada de exequibilidade à luz do art.º 703.º/1/b) CPC.”

18. Não tem por isso qualquer cabimento a posição assumida pela recorrente, de que o Douto Tribunal a quo ao interpretar e aplicar o artigo 726º, nº 2, alínea a) do CPC da forma que o fez, não o fez corretamente, por, no entendimento da recorrente, se enquadrar nesse preceito legal a sua (falsa) invocação de incapacidade acidental do falecido executado na outorga do título executivo.

SEM DE TODO CONCEDER,

19. O exequente vê-se compelido a elucidar o Meritíssimo Tribunal ad quem, tal como o havia feito perante o Douto Tribunal a quo na Contestação, porque o alegado pela recorrente é calunioso, de pura demagogia, com meras suspeitas, conjeturas e falsidades e com contradições, para benefício próprio enquanto herdeira dos executados e pretendente a administradora do seu património, sem qualquer prova concreta do que alega. Em clara litigância de má fé.

20. Como o Exequente demonstra na sua Contestação e nas presentes alegações, inexiste qualquer invalidade, muito menos MANIFESTA, da obrigação exequenda, constando na Contestação a devida impugnação das (falsas) alegações de facto do R.I.

21. A recorrente alega (falsa) incapacidade acidental do executado marido na outorga do título executivo, datado de 20-01-2022 (Doc. 1 da Contestação), tentando suportar-se num relatório pericial (“Relatório Médico”) junto ao R.I. como seu Doc. 3, elaborado em 2024, no âmbito da ação de acompanhamento de maior, instaurada pela aqui recorrente em 23-11-2023, que correu termos pelo Juiz 2 do Juízo Local Cível da Figueira da Foz sob o nº 1764/23...., ação que está extinta por inutilidade superveniente da lide, sem que tenha sido proferida qualquer decisão a respeito de uma alegada incapacidade do executado marido (Docs. 12 e 13 da Contestação).

22. Esse relatório pericial, antes de mais, nunca poderia motivar o Douto Tribunal a quo face ao disposto no artigo 421º do CPC, porquanto na ação de acompanhamento de maior, no âmbito da qual foi elaborado, o recorrido não foi sequer parte, não gozou de quaisquer garantias de defesa, como o direito ao contraditório.

23. Em regra, os efeitos dos meios de prova, como as perícias, restringem-se ao processo em que foram produzidas, no entanto, dispõe o artigo 421º do CPC que podem estender-se a outros processos quando existe identidade da parte contra a qual seja invocada a prova, o que não ocorreu no caso.

24. A recorrente, aproveitou-se do facto de, desde meados de Junho de 2023, os executados terem cortado relações com o exequente, influenciados pelos seus outros dois filhos, não voltando o exequente a ter qualquer contato com seus pais, sendo certo que até essa data o seu pai estava lúcido, com capacidade mental para compreender e discernir os seus atos, de forma perfeitamente normal considerando a sua idade. Tudo levando a crer, por prova junta e/ou indicada na Contestação, que o posterior estado de saúde mental do falecido estava a ser manifestamente exagerado.

25. A recorrente utilizou o expediente de instaurar ação de acompanhamento de maior, sem indicar o recorrido como vogal, filho do falecido executado e aí requerido a acompanhado, com o intuito concretizado de coartar a sua intervenção nos autos e de moldar a realidade sem o devido contraditório, para ulteriormente usar, contra o exequente, uma alegada incapacidade do pai, indevidamente atestada, manipulada, com uma versão deturpada dos factos, como aqui o pretende fazer (Doc.1 do R.I. e Docs.2 e 3 da Contestação).

26. Nessa ação o exequente não teve direito ao contraditório, nem a possibilidade de colaborar para a descoberta da verdade, foi, inclusivamente, ordenado o desentranhamento da reclamação que apresentou contra o relatório pericial em questão, desentranhamento motivado precisamente por o ora exequente não ser, nem poder ser, parte nessa ação (Doc. 3 do R.I. e Docs.2 e 3 da Contestação).

27. Reclamação que contrariava, com prova apta para o efeito, os documentos que o perito teve acesso, exclusivamente fornecidos pela recorrente, nenhum elaborado por psiquiatra ou neurologista e que, na verdade, não atestam qualquer demência/declínio cognitivo, nos quais o perito se centrou na interpretação, o que se atesta do teor do relatório (Doc.3 do R.I. e Docs.2 e 3 da Contestação).

28. Não teve assim o recorrido direito ao contraditório nesses autos, não lhe foi permitido apresentar reclamação por deficiência, obscuridade, contradições, ou insuficiência da fundamentação do relatório pericial, ou pedir esclarecimentos, nos termos dos artigos 485º, nºs 1 e 2 e 486º, nº 1, precisamente por neles não ser parte, o que desde logo torna nula a junção aos presentes autos do relatório do sobredito exame pericial, por violar os artigos 421º, nº 1 em conjugação com o artigo 415º, todos do CPC.

29. Tanto mais porque, a forma como as conclusões do relatório estão apresentadas e a fim de dissipar o subjetivismo que não pode ser aceite, mesmo no âmbito da prova pericial, esse relatório era por si só objetivamente passível de ser posto em causa com a realização de uma segunda perícia e/ou pedido esclarecimentos, por apelo ao direito legal de exercer o contraditório (artigo 3º, nº 3 do CPC), designadamente com a assistência à diligência por um assessor técnico (artigo 480º, nº 3 do CPC).

30. A junção ilegal desse exame pericial, mesmo que incompleto, tenta toldar a convicção deste Douto Tribunal, e, obviamente, influi no exame e decisão da causa, sendo por isso nulo e deve assim ser desentranhado dos autos, o que, por mera cautela, se requereu na Contestação e aqui se reitera para todos os devidos e legais efeitos, nos termos dos artigos 195º, 197º e 199º do CPC.

31. Não pode, por isso, o referido relatório, sequer, ser considerado como meio de prova, razão pela qual não é possível extrair do mesmo qualquer efeito.

32. Sem conceder, para além de não ser verdade que o falecido executado estivesse incapacitado de querer e entender os atos que a recorrente refere, muito anteriores ao sobredito Relatório Pericial (“Relatório Médico”), que nunca chegou a ser concluído,

33. o Douto Tribunal dos referidos autos considerou-o “frugal nalguns pontos decisivos, «maxime» PARA ESTABELECER O GRAU DE INCAPACIDADE DO REQUERIDO E A DATAÇÃO DA MESMA”, pontos fundamentais para atestar o que a recorrente alega, sendo certo que o Sr. Perito nunca completou o relatório nem prestou os necessários esclarecimentos, não sendo assim apto a comprovar o que a recorrente pretende (Doc.13 da Contestação).

34. Pelo que esse relatório, também por estes motivos, nunca poderia servir para formar qualquer convicção, muito menos de que o falecido executado não alcançou o sentido das declarações que produziu no título executivo, bem como a respeito de tudo o mais que a recorrente agora alega no seu requerimento de recurso.

35. Conforme decorre da factualidade mencionada nos artigos 40º a 43º, 45º, 66º a 137º da Contestação, o falecido executado, pelo menos até meados de 2023 e, no que aqui interessa, no primeiro semestre de 2022, estava plenamente capacitado para entender o alcance e querer atuar de livre vontade em todos os atos que a recorrente refere nas suas alegações de recurso (Doc. 8 do RI e Docs. 1, 11, 12, 13, 14, 15, 16, 17, 18, 19, 20, 21, 22, 23 da Contestação e Ref.ª Citius nº 7257033 de 09-05-2022 dos autos principais).

36. Aliás, de toda a documentação constante dos autos resulta que, pelo menos até meados de 2023 (um ano depois), nunca foi prescrito ao falecido executado qualquer antidemencial, O QUE TORNA MANIFESTAMENTE INVEROSÍMIL A EXISTÊNCIA DE QUALQUER QUADRO DEMENCIAL DO FALECIDO EXECUTADO, QUANDO NENHUM DOS MÉDICOS QUE O OBSERVARAM, PRESCREVEU ALGUM ANTIDEMENCIAL, O QUE SERIA ESSENCIAL CASO SE VERIFICASSE TAL PATOLOGIA, E/OU REMETEU O PACIENTE PARA CONSULTA DE PSIQUIATRIA – TAL COMO REFERE UM MÉDICO PSIQUIATRA FORENSE Português (Doc.18 da Contestação).

37. Nem, em lado algum se refere qualquer EXAME RECENTE AO CÉREBRO e, surpreendentemente, ao longo de tantos anos INEXISTE QUALQUER RELATÓRIO DE EXAME DE MÉDICO PSIQUIATRA OU MEDICAÇÃO PARA O EFEITO.

38. E saliente-se, a recorrente no seu R.I. apenas alega que o executado marido estava incapacitado, mas não a executada mulher, ninguém põe em causa a vontade livre e esclarecida da executada, a qual admitiu a existência da dívida contraída, pelo que, independentemente da intervenção do seu esposo, sempre a executada mulher seria devedora do exequente/responsável pelo pagamento da quantia exequenda.

39. E é manifesto que, se a alegada incapacidade do executado marido existisse, a executada mulher e sua companheira de vida disso teria conhecimento.

40. Sem conceder, de todo, a recorrente vem agora, APENAS EM SEDE DE ALEGAÇÕES DE RECURSO, SEM QUE ANTES ALGUMA VEZ O FIZESSE, invocando os artigos 734º e 726º, nº 2, alínea a) do CPC, e sem qualquer concretização factual, afirmar “Que os executados encontravam-se condicionados em relação à acção executiva para produzir defesa útil, eficiente e atempada”.

41. Primeiro, em consonância com o que acima se referiu, tal não é fundamento enquadrável no artigo 734º, nem no artigo 726º, nº 2, alínea a), ambos do CPC, nem é matéria de conhecimento oficioso, não conseguindo o recorrido descortinar o que a recorrente pretende com tal (falsa) alegação.

42. Segundo, a mera junção de documentos não basta para se considerar “implícita” a invocação seja do que for, nem os mesmos fazem qualquer prova da (falsa) alegação da recorrente transcrita em 40.

43. Aliás, tal como foi referido na Douta Sentença, tanto o executado marido, como a executada mulher, foram regularmente citados a 06-04-2022, o que a recorrente não pôs em causa no seu R.I.

44. Quanto aos restantes argumentos, de carater vago e infundamentado, que a recorrente apresenta nas suas conclusões, para tentar fazer valer a sua pretensão, são: - os executados não pagaram as prestações acordadas; - foram efetuadas penhoras no âmbito da presente execução; - e houve uma dação em pagamento para amortização parcial da dívida exequenda através do bem dado em hipoteca como sua garantia.

45. As alegações da recorrente não são aptas a afastar a verdade, plenamente provada por confissão em documento autêntico, são manifestamente insuficientes para alcançar a falsa pretensão da recorrente, são meras falsas suspeitas e conjeturas infundadas, aliás, como amplamente demonstrado na Contestação do presente incidente.

46. E sempre se diga, como se atesta nos autos principais, foram penhorados, APENAS E TÃO SÓ, os seguintes saldos penhoráveis da conta bancária dos executados com o IBAN PT50 ...01...: no valor de €1.571,04, correspondente ao saldo penhorável no dia 08-09-2023; e, no valor de €320,70, correspondente ao saldo penhorável no dia 11-10-2023 (Refs.ª Citius, dos autos principais, nº 8313693 e nº 8313694, de 16-09-2023, nº 8385130 e nº 8385138, de 16-10-2023).

47. E, já depois da prolação da Douta Sentença recorrida, foi penhorado o direito e ação da executada DD na herança aberta por óbito de seu falecido marido, NADA MAIS (Refs.ª Citius, dos autos principais, nº 9318667 de 26-11-2024).

48. O que, de forma flagrante, demonstra a falsidade e má-fé do alegado nas conclusões da recorrente, quando afirma: “13- (…) veio o filho executar os pais, tendo como objeto da penhora a sua reforma, ou seja a sua única fonte de rendimento, para a seguir, decorridos outros 2 meses depois (…)”, “18- (…) executados que vêm desaparecer, “a olhos vistos” as suas poupanças duma vida” e “19- (…) os Executados, condenados a verem todo o seu património penhorado”.

49. A drástica, substancial e concreta diminuição do património imobiliário dos executados ocorreu, mas muitos anos antes e perpetrada a favor da recorrente e dos outros dois irmãos habilitados nos autos, quando em 27-10-2005 os pais lhes doaram, por conta da quota disponível, a propriedade do imóvel avaliado em €420.000,00, com reserva de usufruto até à morte do último dos doadores (Docs.4 e 5 Contestação).

50. Doação efetuada pelos executados aos irmãos do exequente com o intuito de o prejudicar, de forma a priva-lo de herdar o único prédio urbano de seus pais, de longe o mais valioso no património, uma vez que, com a morte dos executados a propriedade total se irá concentrar exclusivamente na requerente e nos outros irmãos habilitados nos autos (Docs.4 e 5 da Contestação).

51. Após a sobredita doação, os executados apenas ficaram com um mero prédio rústico, aquele que a recorrente refere, o qual foi, de forma livre e esclarecida, objeto de dação em função do pagamento pelos executados para amortizar a sua dívida perante o exequente (Doc.8 do R.I.).

52. Prédio rústico que sempre lhe caberia na partilha das heranças por morte dos devedores, seja para preenchimento da sua legítima, face ao preenchimento dos quinhões de seus irmãos com a sobredita doação do prédio urbano, incluindo a quota disponível, seja porque constava de testamento a seu favor, outorgado pelos executados em 21-08-2019, de forma livre e esclarecida (Doc.7 Contestação).

53. Aliás, os executados em 11-08-2017 já haviam doado ao exequente, de forma livre e esclarecida, o sobredito rústico, com reserva de usufruto, a qual veio a ser cancelada em 04-09-2019 e só em 30-01-2022 foi onerado com hipoteca para garantir a dívida exequenda (Ref.ª Citius nº 7257033 de 09-05-2022, dos autos principais).

54. Resulta que o exequente não retirou qualquer benefício com a dação em função do cumprimento, ao invés, amortizou na dívida de seus pais perante sí o valor de um bem que já lhe estava destinado e muito inferior à divida (Doc.1 Contestação e Doc.8 R.I.)

55. E, contrariamente ao que a recorrente quer fazer crer, a amortização da dívida foi comunicada e requerida pelo exequente à Agente de Execução, por duas vezes (Refs.ª Citius, nos autos principais, nº 7529658 de 25-09-2022 e nº 7701232 de 05-12-2022).

56. Apenas se podendo entender como de manifesta má fé da recorrente as suas afirmações constantes nas alegações de recurso: - de que o prédio rústico foi doado ao exequente (Escrituras de Doação de 1/20 indiviso do Prédio Rústico e de Dação Em Função do Pagamento dos restantes 19/20 indivisos); - e de que esse prédio rústico está avaliado em €98.622,80, precisamente o valor que consta no Título Executivo, alegação que não consta no R.I. e que não tem qualquer sustentação factual, aliás tal afirmação da recorrente é mesmo contrariada por documentos autênticos, como a própria admite (Doc. 8 do R.I.).

57. O exequente não tem necessidade de se locupletar ao património de ninguém, possui recursos suficientes para si, para a sua família e, no caso, para emprestar aos pais, tanto mais que, como se comprova, as quantias concedidas pelo exequente aos executados, no valor global de € 98.622,80, foram todas retiradas pelo exequente das suas contas, destinadas a cobrir a totalidade dos gastos que os executados pretendiam fazer e que se referem em 61º e 62º da Contestação (Doc.8 da Contestação).

58. Razão pela qual os executados se confessaram devedores da quantia exequenda, o que fizeram de forma livre e esclarecida (Doc.1 da Contestação).

59. É assim, face a tudo o exposto, flagrantemente falso o que a recorrente alega nas suas conclusões, de que “os Executados em nada são devedores ao Exequente”.

Nestes termos e nos demais de direito, que V.Exas. Doutamente suprirão deverá assim o recurso que ora se responde ser julgado integralmente improcedente, devendo a execução prosseguir os seus normais e ulteriores termos até final.

ASSIM SE FAZENDO INTEIRA JUSTIÇA».

                                                           *

Colhidos os vistos e nada obstando ao conhecimento do objeto do recurso, cumpre apreciar e decidir.

                                                           *

2 – QUESTÕES A DECIDIR, tendo em conta o objeto do recurso delimitado pela Requerente/Executada/Habilitada nas conclusões das suas alegações (arts. 635º, nº4, 636º, nº2 e 639º, ambos do n.C.P.Civil), por ordem lógica e sem prejuízo do conhecimento de questões de conhecimento oficioso (cf. art. 608º, nº2, “in fine” do mesmo n.C.P.Civil), face ao que é possível detetar o seguinte:

- errada subsunção jurídica [designadamente porque tendo arguido a nulidade do “título executivo”, tal era questão de conhecimento oficioso, a dever ser conhecida no quadro do previsto no art. 734º, nº1 do n.C.P.Civil (por referência ao disposto no art 726º, nº1, al. a) do mesmo normativo), acrescendo que esse conhecimento era imposto pelo princípio da tutela jurisdicional efetiva].

                                                           *

3 - FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

 A matéria de facto a ter em conta para a decisão do presente recurso é, no essencial, a que consta do relatório que antecede.

                                                           *

4 - FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

Apreciando a linha de argumentação da Requerente/Executada/Habilitada ora recorrente, vejamos da questão suscitada, a saber, a que se prende com o desacerto da decisão recorrida, designadamente porque tendo arguido a nulidade do “título executivo”, tal era questão de conhecimento oficioso, a dever ser conhecida no quadro do previsto no art. 734º, nº1 do n.C.P.Civil (por referência ao disposto no art 726º, nº1, al. a) do mesmo normativo), acrescendo que esse conhecimento era imposto pelo princípio da tutela jurisdicional efetiva.

Começando pelo 1º aspeto em causa – o do alegado incumprimento do dever imposto pelo conhecimento oficioso – diremos que não assiste qualquer razão à Requerente/Executada/Habilitada ora recorrente.

Vejamos, antes de mais, o quadro legal relevante para o efeito.

Dispõe o art. 734º, nº1 do n.C.P.Civil que «O juiz pode conhecer oficiosamente, até ao primeiro ato de transmissão dos bens penhorados, das questões que poderiam ter determinado, se apreciadas nos termos do artigo 726.º, o indeferimento liminar ou o aperfeiçoamento do requerimento executivo.»

Sendo que no art. 726º do mesmo n.C.P.Civil estão, para o que ora releva, enunciadas as questões que autorizam o indeferimento liminar (total ou parcial) do requerimento executivo pelo Juiz, sendo elas as constantes do seu nº2, a saber, quando:

«a) Seja manifesta a falta ou insuficiência do título;

(…)

c) Fundando-se a execução em título negocial, seja manifesta, face aos elementos constantes dos autos, a inexistência de factos constitutivos ou a existência de factos impeditivos ou extintivos da obrigação exequenda de conhecimento oficioso.

(…)» [com destaques da nossa autoria]

Recorde-se que, no caso vertente, a Requerente/Executada/Habilitada sustentou uma alegada incapacidade acidental do falecido co-executado na outorga do título executivo, a saber, uma Escritura de Confissão de Dívida e Hipoteca (documento exarado por notário).

Sendo que invocou, de forma mais enfática e consistente, para atestar a dita incapacidade psíquica de que padecia o Executado e que o impedia de entender aquele acto que praticou (e conhecida do Exequente), «o Relatório Médico passado pelo Instituto da Medicina Legal e junto aos autos como Doc.nº3, e elaborado no decurso da Acção de Acompanhamento interposta contra o Executado, pai da Recorrente, que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca de Coimbra, Juízo Local Cível da Figueira da Foz – Juiz 2, com o processo nº1764/23....».

Que dizer?

Temos desde logo que in casu o título executivo sendo como era uma confissão de dívida outorgada por escritura pública, em termos incontroversos, era formalmente válido e dotado de exequibilidade à luz do art. 703º, nº1, al.b) do n.C.P.Civil.

Depois, importa não olvidar que no art. 257º do Código Civil, com a epígrafe de incapacidade acidental”, se preceitua o seguinte:

«1. A declaração negocial feita por quem, devido a qualquer causa, se encontrava acidentalmente incapacitado de entender o sentido dela ou não tinha o livre exercício da sua vontade é anulável, desde que o facto seja notório ou conhecido do declaratário.»

Como é bom de ver, este normativo inculca pelos próprios termos da sua redação, uma necessária prova, caso a caso, da “incapacidade acidental” nele prevista.

Sendo certo que nos termos expressos das duas supra citadas alíneas do nº 2 do art. 726º do n.C.P.Civil [as alíneas “a)” e “c)”], o indeferimento liminar nessa situações é possível desde que os fundamentos em causa resultem sem necessidade de produção de prova.

Será então que a Requerente/Executada/Habilitada assentou o requerimento através do qual deduziu o incidente de nulidade de título executivo, em fundamentos/razões que dispensavam, na circunstância, a produção de prova?

Salvo o devido respeito, a nossa resposta é claramente de sentido negativo.

Recorde-se que in casu o fundamento era o Relatório Médico passado pelo Instituto da Medicina Legal elaborado no decurso de Ação de Acompanhamento de Maior do visado – o falecido executado BB.

Sucede que, compulsado o documento correspondente, se conclui insofismavelmente que nele apenas se alude a que o sujeito em causa «(…) apresenta antecedentes que sugerem a presença de critérios para considerar a formulação de diagnóstico da seguinte perturbação neurocognitiva, de acordo com a Classificação internacional de Doenças da Organização Mundial de saúde (CID-11): Demência devido a doença vascular cerebral (…)», mas, quanto à pergunta da “data provável do seu início”, a resposta foi «Apesar de os dados disponíveis não permitirem fazer uma afirmação conclusiva em relação ao início da incapacidade atual, pode-se afirmar que que desde o ano de 2012 existe evidência de deterioração cognitiva com impacto na autonomia do beneficiário. Os défices cognitivos atuais e a consequente incapacidade funcional são irreversíveis, apesar das medidas de tratamento.»

 Tendo sido face a este teor pouco conclusivo e esclarecedor, que o Exmo. Magistrado do MºPº, em “vista” que teve nos autos de Acompanhamento de Maior em causa, após a receção desse Relatório, logo promoveu, entre o mais, que fosse esclarecido pelo Exmo. Perito que o havia subscrito, «qual a sua amplitude e como, em concreto, esse défices o afectam, nas suas capacidades cognitivas e volitivas (em qualidade e intensidade);» e «considerando que a demência tem vários estados – começando por simples perdas esporádicas de memória, dificuldade em fazer novas aprendizagens e perda de objectos, ou esquecimento no exercício de actos da vida diária –, a partir de que momento a alegada demência o incapacitou de reger a sua pessoa e bens.»

Sucede que não resulta dos elementos a que esta instância de recurso teve acesso, que esses esclarecimentos tivessem sido prestados e/ou que a Perícia se possa ou deva considerar como tendo sido concluída…

Ora se assim é, cremos que é insofismável a conclusão de que para efeitos do incidente de nulidade do título executivo, a prova estava por fazer, isto é, que não estavam ab limine verificados os requisitos para o pretendido/invocado indeferimento liminar.

Dito de outra forma: in casu, a incapacidade acidental do falecido co-executado na outorga do título executivo não resultava apurada/verificada sem necessidade de produção de prova, isto é, não era “manifesta” face aos elementos de prova constantes dos autos.

Donde, nada a censurar à opção do Exmo. Juiz de 1ª instância de ter considerado não ser caso de proferir decisão de indeferimento liminar (total ou parcial) do requerimento executivo, assim julgando totalmente improcedente o incidente de nulidade do título executivo!

Aliás, cremos ser pacífico este entendimento de que a rejeição oficiosa nos termos do art. 734º e 726º, nº 2, al. a) do n.C.P.Civil pressupõe que a falta do título executivo seja evidente e incontroversa, e não uma situação que implique prévias diligências por parte do Tribunal.[2]

Assente isto, vejamos agora do 2º aspeto em causa no recurso, a saber, que o conhecimento da nulidade do “título executivo” era imposto pelo princípio da tutela jurisdicional efetiva.

Salvo o devido respeito, cremos que a resposta negativa a tal questão recursiva já inteiramente se adivinha.

Aliás, a invocação de tal instituto só se compreende por um qualquer equívoco ou deficiente compreensão da dogmática em causa.

Senão vejamos.

O acesso ao direito e tutela jurisdicional efetiva previsto no art. 20º da Constituição da República Portuguesa, representa e significa a consagração de que todos têm direito a que uma causa em que intervenham decorra mediante um processo equitativo (parte final do nº4).

É, afinal, o direito fundamental de qualquer pessoa a um processo justo, a um processo que apresente garantias de justiça, no que concerne à sua estrutura, e que o art. 10º da Declaração Universal dos Direitos do Homem também consagra, ao consignar que “toda a pessoa tem direito, em plena igualdade, a que a sua causa seja equitativa e publicamente julgada por um tribunal independente e imparcial que decida dos seus direitos e obrigações ou das razões de qualquer acusação em matéria penal que contra ela seja deduzida”.

Este direito a um processo equitativo - ou nas expressões inglesas due process of law ou fair trial - fair hearing - também se encontra consagrado no art. 6º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem e no art. 14º do Pacto Internacional Relativo aos Direitos Civis e Políticos.[3]

Ora se assim é, não é por a Requerente/Executada/Habilitada não ter obtido procedência ou deferimento substancial da sua pretensão – formulada através do incidente de nulidade de título executivo que deduziu! – que a mesma deixou de ter uma tutela jurisdicional efetiva.

A tutela jurisdicional efetiva foi-lhe dada na medida em que ela viu a sua pretensão ser efetivamente apreciada, em prazo e com imparcialidade, por um Juiz independente e imparcial.

Não sendo por ter sido indeferida a pretensão que esta conclusão é ou tem de ser diversa!

Improcede assim igualmente o alegado neste particular.

                                                           *                                                          

5 - SÍNTESE CONCLUSIVA (…).

                                                           *

6 - DISPOSITIVO

Pelo exposto, nega-se provimento ao recurso, confirmando-se integralmente a decisão recorrida.

Custas pela Requerente/Executada/Habilitada.

                                                           *


Coimbra, 29 de Abril de 2025

      Luís Filipe Cravo

João Moreira do Carmo

        Carlos Moreira



[1] Relator: Des. Luís Cravo
  1º Adjunto: Des. João Moreira do Carmo
  2º Adjunto: Des. Carlos Moreira
[2] Cf, inter alia, a nível jurisprudencial, o acórdão do TRG de 28-01-2021, proferido no proc. nº 7911/19.8T8VNF.G1, e o acórdão do TRL de 24-09-2019, proferido no proc. nº 35949/11.6TYYLSB-L1-7, estando ambos os arestos acessíveis em www.dgsi.pt, sendo que no segundo deles se conclui que, «[a] insuficiência de título executivo prevista na al. a) do nº 2 do art. 726º do Cód. Proc. Civil, que importa o indeferimento liminar do requerimento executivo, tem necessariamente de apresentar as características de evidente, incontroversa, insuprível, definitiva, excepcional, sendo esse o significado de “manifesta”.»
[3] Na lição de GOMES CANOTILHO, in “Direito Constitucional e Teoria da Constituição”, 7ª edição, a págs. 274, do princípio do Estado de Direito, previsto no art. 2º da Lei Fundamental, «deduz-se sem dúvida, a exigência de um procedimento justo e adequado de acesso ao direito e de realização do direito. Como a realização do direito é determinada pela conformação jurídica do procedimento e do processo, a Constituição contém alguns princípios e normas designados por garantias gerais de procedimento e de processo».