I - Questões de particular importância e atos da vida corrente são conceitos indeterminados, de que a lei se serve com o objetivo de «permitir que a norma se possa adaptar à variabilidade e imprevisibilidade das situações da vida, em especial, de cada família e de cada menor», atribuindo ao juiz a adaptação da norma às situações concretas.
II - Para se apurar se uma determinada situação da vida do menor reveste ou não “particular importância”, há que atender à situação em concreto, com os seus contornos particulares e à conciliação de todos os interesses da tríade criança-pai-mãe. E, acima de tudo, tendo em conta as características específicas da criança em causa, pois que esse é o interesse maior que norteia as decisões dos Tribunais, o superior interesse da criança. O elenco das “questões de particular importância” integra uma lista sempre inacabada.
III - Estando já decidido nos autos que as consultas de psicologia da menor integram atos de vida corrente, não incumbe ao Tribunal avaliar da necessidade (ou não) do consentimento do pai para as consultas, nem sobre as competências profissionais da psicóloga escolhida pela mãe.
ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO
I – Resenha do processado
1. Por apenso ao processo de regulação das responsabilidades parentais, veio AA interpor contra BB uma ação relativa a “falta de acordo entre os progenitores” ao abrigo dos artigos 44º e 28º do Regime Geral do Processo Tutelar Cível (RGPTC), aprovado pela Lei nº 141/2015, de 08 de setembro.
E peticionou ao Tribunal:
· Que a Requerida seja inibida de continuar a levar a CC às consultas de psicologia com acompanhamento da Sra. Psicóloga DD.
· Que as crianças CC e EE, sejam sujeitas a perícias psicológicas a levar a cabo pelo INML, no sentido de aferir se estas crianças têm necessidade ou não de serem orientadas por psicólogo.
· Que os progenitores sejam sujeitos a perícias psico-psiquiátricas, no sentido de se aferir das competências de parentalidade e despiste de qualquer patologia que possa influir positiva ou negativamente no exercício dessas competências.
Em resumo, estribou os seus pedidos alegando que a filha CC está a ser acompanhada pela Sra. Psicóloga à sua revelia, sendo as consultas sempre agendadas sem o seu conhecimento.
Ora, ficou inicialmente estipulado que seria necessário o consentimento de ambos os progenitores, o que não acontece porquanto ele já retirou esse consentimento; não obstante, a Sra. Psicóloga continuou a acompanhar a CC.
Mais refere falta de transparência e seletividade na informação que é partilhada com ambos os progenitores e ter sido informado que o acompanhamento que a CC necessitava deveria ser feito por uma Psicóloga Clínica e não por uma Psicóloga da Educação.
Face ao que vem sucedendo, o Requerente comunicou ao Conselho da Ordem Jurisdicional dos Psicólogos Portugueses, entidade que já procedeu à abertura de um processo disciplinar. 9 meses depois, a Sra. Psicóloga informou o Requerente que continua “a realizar uma intervenção terapêutica com base no Código de Ética e Deontologia da Ordem dos Psicólogos Portugueses”, o que considera constituir abuso de poder.
Considera que a Sra. Psicóloga não tem competência técnica para efetuar avaliações neuropsicológicas.
Por fim, que a Sra. Psicóloga enviou um e-mail para a Professora da CC, solicitando o preenchimento do questionário anexo, referindo-se à mãe como encarregada de educação, o que não é verdade. Tendo conhecimento dessa situação, o Requerente manifestou o seu não consentimento para que a Sr.ª Professora transmitisse qualquer dado pessoal da sua filha, o que comunicou à Sra. Psicóloga.
Recebida a petição, a Mmª Juíza ouviu o Ministério Público (Mº Pº), que promoveu o seguinte:
«O Ministério Público entende que o processo já possuiu elementos para o tribunal apreciar liminarmente o vertido na petição.
Em 17 de outubro de 2023 a progenitora já requereu resolução de diferendo quanto a autorização para acompanhamento psicológico à criança CC na Providência tutelar cível que recebeu a letra F e na qual no dia 22 de novembro de 2023 foi proferida a seguinte decisão: «O Tribunal acompanha a posição do Ministério Público e da própria requerente, que também corresponde à posição maioritária da jurisprudência dos nossos tribunais superiores, de que a decisão sobre o acompanhamento psicológico configura ato de vida corrente, pelo que qualquer dos progenitores poderá submeter a criança a sessões de psicologia sem o consentimento do outro progenitor, considerando que tal prática é, nos tempos que correm banalizada e não se centra no núcleo essencial, central, e fundamental da vida da criança, sendo que tal acompanhamento não importará um especial risco para a saúde da criança. Assim, cabendo à progenitora o exercício de atos de vida corrente da criança quando a mesma está consigo cabe-lhe também o poder de decisão sobre o acompanhamento psicológico da filha e tendo presente que a intervenção do Tribunal nos termos do artigo 44.º do RGPTC só poderá ocorrer quanto às questões de particular importância é de concluir pelo indeferimento liminar da pretensão da requerida por falta de fundamento legal para a resolução do diferendo em causa por parte do Tribunal. Nesta conformidade, por falta de fundamento legal para a resolução do diferendo nos termos do disposto no artigo 44.º do RGPTC, indefere-se liminarmente a apreciação do mesmo».
Foi posteriormente proferida sentença em 6/3/2024 de Alteração do Regime de Regulação do Exercício das Responsabilidades Parentais, a qual não contém estatuições / proibições no âmbito da definição da repartição e modo de exercício do poder paternal que contenda com a referida decisão.
Assim sendo e por igualdade de razões, promovo se indefira liminarmente o requerido.
Atenta a suscitada questão de que a Sra. Psicóloga não estar a exercer com idoneidade e respeito pelos princípios deontológicos que norteiam a intervenção psicológica e não ter competência para avaliação neuropsicológica, promovo que se informe a mesma que o progenitor e encarregado de educação de CC não aceita e consente a sua intervenção nas vertentes de regulação emocional e avaliação psicológica e/ou neuro psicológica, pelo que promovo se envie à mesma o segmento da decisão da sentença e se sugere que avalie se deve persistir nessa preconizada intervenção à Luz do Estatuto da Ordem dos Psicólogos (aprovada pela Lei n.º 57/2008, de 4 de setembro com a redação dada Lei n.º 138/2015, de 7 de setembro) que regula o exercício da profissão de Psicólogo e Regulamento n.º 15/2023 de 15/12, que aprovou o Regulamento Interno que define os atos dos psicólogos e Parecer OPP – Neuropsicologia, publicado pela Ordem dos Psicólogos Portugueses em 22/5/2023.»
Ouvido o Requerente sobre a posição do Mº Pº, o Requerente veio dizer que “reitera tudo quanto expendido no requerimento inicial”; “reitera e aplaude vivamente a douta promoção da digna Magistrada do Ministério Público” e terminou requerendo que o Tribunal “se digne ordenar a execução da douta promoção da Digna Magistrada do Ministério Público”.
Espontaneamente, a mãe das crianças veio aos autos e invocou as decisões tomadas nos apensos F e D, onde se decidiu que a “decisão sobre o acompanhamento psicológico configura ato de vida corrente, pelo que qualquer dos progenitores poderá submeter a criança a sessões de psicologia sem o consentimento do outro progenitor.”
A Mmª Juíza proferiu então a seguinte decisão:
«O exercício das responsabilidades parentais da criança CC foi regulado por sentença de 4 de março de 2024, que foi objeto de recurso e confirmada pelo Venerando Tribunal da Relação do Porto, por douto acórdão de 27 de janeiro de 2025 (publicado in www.dgsi.pt).
O regime do exercício das responsabilidades parentais é o regime legal do artigo 1906.º, n.º1 do Código Civil. As responsabilidades parentais relativas aos atos da vida corrente das crianças serão exercidas por cada um dos progenitores que em cada momento estiver com as filhas. As responsabilidades parentais relativas aos atos de particular importância para a vida das crianças serão exercidas por ambos os progenitores de comum acordo.
Conforme já referido no apenso D e que mantém atualidade na presente providência tutelar cível, o Tribunal acompanha a posição do Ministério Público, que também corresponde à posição maioritária da jurisprudência dos nossos tribunais superiores, de que a decisão sobre o acompanhamento psicológico configura ato de vida corrente, pelo que qualquer dos progenitores poderá submeter a criança a sessões de psicologia sem o consentimento do outro progenitor, considerando que tal prática é, nos tempos que correm banalizada e não se centra no núcleo essencial, central, e fundamental da vida da criança, sendo que tal acompanhamento não importará um especial risco para a saúde da criança.
Assim, tendo presente que a intervenção do Tribunal nos termos dos artigos 44.º do RGPTC só poderá ocorrer quanto às questões de particular importância é de concluir pelo indeferimento liminar da pretensão da requerida por falta de fundamento legal para a resolução do diferendo em causa por parte do Tribunal.
Nesta conformidade, por falta de fundamento legal para a resolução do diferendo nos termos do disposto no artigo 44.º do RGPTC, indefere-se liminarmente a apreciação do mesmo.
Por último, de referir que não cabe a este Tribunal imiscuir-se nas matérias referentes à atuação deontológica da senhora psicóloga Dra. DD, que está sujeita ao respeito de deveres deontológicos no exercício da sua atividade e a responsabilidade disciplinar a exercer pelo órgão próprio e não por este Tribunal, cabendo ao progenitor, se assim o entender, como aliás já o fez, efetuar e impulsionar as participações que achar por convenientes, bem como eventual denúncia por crime de usurpação de funções, se tiver elementos para tal, sendo que os autos foram com vista ao Ministério Público, que nada requereu do ponto de vista criminal e o Tribunal não dispõe de elementos suficientes para determinar oficiosamente extração de certidão e remessa ao Ministério Público para tais efeitos.»
2. Inconformado com tal decisão, dela apelou o Requerente, formulando as seguintes conclusões:
a) O tribunal a quo entendeu que, no que ao acompanhamento psicológico da menor CC diz respeito, não se trata de uma questão de particular importância, motivo pelo qual concluiu pelo indeferimento liminar da pretensão do recorrente.
b) Todavia, a questão central nestes autos é a falta de competência especializada da Dra. DD, enquanto Psicóloga de Educação, e não Psicóloga Clínica, para realizar o devido acompanhamento neuropsicológico da criança, como a mesma pretende.
c) A senhora psicóloga não tem formação em Neuropsicologia, não possui qualificações para o acompanhamento psicológico do qual a menor precisa.
d) E, como tal, devia abster-se de continuar a sua intervenção, ao invés de insistir num acompanhamento neuropsicológico que não foi consentido pelo progenitor e encarregado de educação, o que só revela a sua falta de profissionalismo, honestidade e lealdade.
e) O que se crê constituir uma questão de particular importância e, como tal, permitida por ambos os progenitores por comum acordo.
f) Tanto assim é que, a própria Ordem dos Psicólogos, instaurou, de imediato, um procedimento disciplinar contra esta psicóloga, após o progenitor se ter queixado da sua atuação.
g) A criança, neste momento, já apresenta défices comportamentais detetados pelo progenitor, mormente nos convívios com este.
h) Convívios estes, que a progenitora tudo vem fazendo no sentido de afastar as filhas do pai.
3. A Requerida e o Mº Pº contra-alegaram, sustentando a improcedência da apelação.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
II - FUNDAMENTAÇÃO
4. Apreciando o mérito do recurso
O objeto do recurso é delimitado pelas questões suscitadas nas conclusões dos recorrentes, e apenas destas, sem prejuízo de a lei impor ou permitir o conhecimento oficioso de outras: art.º 615º nº 1 al. d) e e), ex vi do art.º 666º, 635º nº 4 e 639º nº 1 e 2, todos do Código de Processo Civil (CPC).
No caso, são as seguintes as questões a decidir:
· Tomar posição sobre os documentos juntos em sede de recurso Decidir sobre o mérito da decisão recorrida
· Sobre o mérito da decisão recorrida
4.1. Sobre os documentos juntos com a apelação
Com as suas alegações, o Apelante juntou dois documentos. Trata-se da sentença de alteração das responsabilidades parentais proferida no apenso D, dum parecer proferido pelo Conselho de Especialidade de Psicologia Clínica e da Saúde, intitulado “Recomendações acerca das competências necessárias para realizar avaliação neuropsicológica”, um de 2024 e outro de 2022.
Por sua vez, a Apelada juntou uma “declaração de funções” subscrita pela Sr.ª Psicóloga em que dá nota do seu percurso profissional, com data de março 2025.
Decorre da conjugação dos artigos 651º e 425º do CPC que só é permitida a junção de documentos em sede de recurso em situações excecionais, como sejam a apresentação não ter sido possível antes até àquele momento ou justificar-se por se ter tornado necessária em virtude do julgamento proferido na 1.ª instância.
«A jurisprudência e a doutrina sempre convergiram na ideia de que a previsão normativa se reporta às situações em que a 1.ª instância conhece oficiosamente de uma questão que não estava suscitada ou tratada pelas partes, toma em consideração meio de prova inesperadamente junto por iniciativa do tribunal ou se baseia em preceito jurídico com cuja aplicação as partes justificadamente não tivessem contado (por todos, Antunes Varela in Revista de Legislação e de Jurisprudência, Ano 115,º, pág. 95 e segs., e Antunes Varela, Miguel Beleza e Sampaio e Nora, in Manual de Processo Civil, 1ª edição, pág. 517).
O que releva é que a necessidade do documento não seja preexistente à decisão da 1.ª instância, não seja um dado com o qual a parte devesse contar já antes da decisão e independentemente desta, mas antes algo resultante da própria decisão, no sentido de que é a abordagem feita nesta que torna indispensável o documento e justifica que a parte não devesse contar antecipadamente com essa exigência.» [[1]]
No caso, seriam de rejeitar os documentos.
Porém, estamos no âmbito dum processo de jurisdição voluntária em que o Tribunal não está sujeito a critérios de legalidade estrita, antes devendo adotar a solução que julgar mais conveniente e oportuna para cada caso: art.º 987º do CPC.
Assim, pese embora não tenham sido considerados na decisão recorrida, admitem-se os documentos por poderem vir a relevar na decisão a aqui proferir.
4.2. Sobre o mérito da decisão recorrida
§ 1º - O art.º 1906º do Código Civil (CC) estabelece as seguintes regras gerais quanto ao exercício das responsabilidades parentais em caso de divórcio:
1 - As responsabilidades parentais relativas às questões de particular importância para a vida do filho são exercidas em comum por ambos os progenitores nos termos que vigoravam na constância do matrimónio, salvo nos casos de urgência manifesta, em que qualquer dos progenitores pode agir sozinho, devendo prestar informações ao outro logo que possível.
2 - Quando o exercício em comum das responsabilidades parentais relativas às questões de particular importância para a vida do filho for julgado contrário aos interesses deste, deve o tribunal, através de decisão fundamentada, determinar que essas responsabilidades sejam exercidas por um dos progenitores.
3 - O exercício das responsabilidades parentais relativas aos atos da vida corrente do filho cabe ao progenitor com quem ele reside habitualmente, ou ao progenitor com quem ele se encontra temporariamente; porém, este último, ao exercer as suas responsabilidades, não deve contrariar as orientações educativas mais relevantes, tal como elas são definidas pelo progenitor com quem o filho reside habitualmente.
4 - O progenitor a quem cabe o exercício das responsabilidades parentais relativas aos atos da vida corrente pode exercê-las por si ou delegar o seu exercício.
Questões de particular importância e atos da vida corrente são conceitos indeterminados, de que a lei se serve com o objetivo de «permitir que a norma se possa adaptar à variabilidade e imprevisibilidade das situações da vida, em especial, de cada família e de cada menor». [[2]]
Ou seja, ciente de que muitas vezes uma mesma realidade social comporta uma infinidade de variações, como é próprio das relações humanas, a previsão legal usa cláusulas gerais e conceitos indeterminados, atribuindo ao juiz a adaptação da norma às situações concretas.
Esse foi um propósito confesso do próprio legislador, como decorre da “Exposição de motivos do projeto de Lei nº 509/X, que esteve na génese da Lei nº 61/2008, de 31 de outubro, disponível em https://app.parlamento.pt/webutils/docs/doc.pdf?path=6148523063484d364c793968636d356c6443397a6158526c637939595447566e4c305276593356745a57353062334e4a626d6c6a6157463061585a684c7a5a6a5a6a566b5a44426b4c574d35596a41744e44686c4e4330344d3259334c54646d4d4441334f54526b4f574a6d4d69356b62324d3d&fich=6cf5dd0d-c9b0-48e4-83f7-7f00794d9bf2.doc&Inline=true:
«5. Responsabilidades parentais
Impõem-se o exercício conjunto das responsabilidades parentais, salvo quando o tribunal entender que este regime é contrário aos interesses do filho. O exercício conjunto, porém, refere-se apenas aos “actos de particular importância”; a responsabilidade pelos “actos da vida quotidiana” cabe exclusivamente ao progenitor com quem o filho se encontra. Dá-se por assente que o exercício conjunto das responsabilidades parentais mantém os dois progenitores comprometidos com o crescimento do filho; afirma-se que está em causa um interesse público que cabe ao Estado promover, em vez de o deixar ao livre acordo dos pais; reduz-se o âmbito do exercício conjunto ao mínimo – aos assuntos de “particular importância”. Caberá à jurisprudência e à doutrina definir este âmbito; espera-se que, ao menos no princípio da aplicação do regime, os assuntos relevantes se resumam a questões existenciais graves e raras, que pertençam ao núcleo essencial dos direitos que são reconhecidos às crianças. Pretende-se que o regime seja praticável – como é em vários países europeus – e para que isso aconteça pode ser vantajoso não forçar contactos frequentes entre os progenitores. Assim se poderá superar o argumento tradicional de que os pais divorciados não conseguem exercer em conjunto as responsabilidades parentais.»
§ 2º - O conceito de questões de particular importância tem sido objeto de apreciação jurisprudencial e doutrinal, existindo consenso no sentido de que, perante essa variabilidade e imprevisibilidade das situações da vida, tudo dependerá dos contornos particulares de cada menor e da tríade criança-pai-mãe.
Assim, acórdão do TRL de 02/05/2017, processo nº 897/12.1T2AMD-F.L1-1 [[3]]
IV- A delimitação entre os dois tipos de actos é difícil de estabelecer em abstracto, existindo uma ampla “zona cinzenta” formada por actos intermédios que tanto podem ser qualificados como actos usuais ou de particular importância, conforme os costumes de cada família concreta e conforme os usos da sociedade num determinado momento histórico.
V- Devem considerar-se “questões de particular importância”, entre outras: as intervenções cirúrgicas das quais possam resultar riscos acrescidos para a saúde do menor; a prática de actividades desportivas radicais; a saída do menor para o estrangeiro sem ser em viagem de turismo; a matrícula em colégio privado ou a mudança de colégio privado; mudança de residência do menor para local distinto da do progenitor a quem foi confiado.
VI- Devem considerar-se “actos da vida corrente”, entre outros: as decisões relativas à disciplina, ao tipo de alimentação, dieta, actividades e ocupação de tempos livres; as decisões quanto aos contactos sociais; o acto de levar e ir buscar o filho regularmente à escola, acompanhar nos trabalhos escolares; as decisões quanto à higiene diária, ao vestuário e ao calçado ; a imposição de regras; as decisões sobre idas ao cinema, ao teatro, a espectáculos ou saídas à noite; as consultas médicas de rotina.
Em termos doutrinais:
Hélder Roque, tese doutoramento “Do princípio da igualdade dos progenitores ao princípio da inseparabilidade dos filhos a residência alternada como via privilegiada da sua afirmação e o biologismo como último sustentáculo do mito da perenidade do «casal parental»”, Universidade de Coimbra, dezembro, 2021, disponível em file:///F:/RELA%C3%87%C3%83O%20PORTO/SESS%C3%83O/resid%C3%AAncia%20alternada.pdf
«Com efeito, “a particular importância do acto parece, no entanto, que deve medir-se pelas suas qualidades objetivas, tendo em conta a pessoa ou o pecúlio do menor e não apenas o relevo subjetivo que lhe atribua qualquer um dos progenitores”.
Assim, para se concluir se uma determinada questão é de particular importância para a vida ou para o património do menor, devem equacionar-se, em especial, as suas circunstâncias objetivas, sem menosprezar, contudo, o ponto de vista dos pais, apelando-se, no preenchimento desse conceito, sobretudo, ao interesse superior da criança, integrado pelos valores essenciais comuns a todas elas, e pelas áreas circundantes em que releve a situação concreta do menor, em toda a sua magnitude. – pág. 115
(…) será, casuisticamente, que deverá ser apurada a existência de uma questão que, pelas suas implicações, ao nível do normal desenvolvimento do menor ou das repercussões na sua esfera patrimonial, assume particular importância. – pág. 117
A mais ampla abrangência possível do elenco das «questões de particular importância» para a vida dos filhos que exijam o "exercício em comum" deverá constar da decisão reguladora das responsabilidades parentais, de natureza homologatória ou contenciosa, constituindo um importante contributo preventivo e dissuasor de conflitos futuros.» – pág. 118-119
Helena Gomes de Melo, “Poder Paternal e Responsabilidades Parentais”, Quid Juris, 2009, pág. 136 e 138:
«conjunto dos atos de fundo que constituem as traves mestras da vida da criança ou do adolescente e que compõem o núcleo essencial dos seus direitos. Para menores com necessidades especiais, designadamente a nível de aprendizagem, ou de saúde frágil, o leque de atos que devam ser considerados de particular importância será certamente muito mais alargado do que para a generalidade das outras crianças e adolescentes. Neste pressuposto, é de admitir que num mesmo processo de Regulação das Responsabilidades Parentais, em que estejam em causa vários irmãos, o que seja questão de particular importância para um deles, possa ser um ato da vida corrente para o outro.»
MARIA CLARA SOTTOMAYOR, “Regulação do Exercício do Poder Paternal nos Casos de Divórcio”, 4ª edição revista aumentada e atualizada, Almedina, 2008, pág. 185, dá os seguintes exemplos:
«(…) a autorização para contrair matrimónio, a decisão sobre a orientação profissional da criança e sobre a questão de saber se esta deve ou não prosseguir os estudos ou arranjar um emprego antes de atingir a maioridade, a decisão de permitir aos menores usar anticoncetivos ou recorrer à interrupção voluntária da gravidez, a autorização para intervenções cirúrgicas que envolvam riscos, decisões quanto à religião da criança, decisões de mudança de escolas privadas para escolas públicas e vice-versa, ou qualquer mudança escolar que tenha consequências relevantes na educação da criança, decisões envolvendo problemas sérios de disciplina relativos à criança, autorizações para estadias da criança no estrangeiro, etc.»
Tomé D´ Almeida Ramião, “O Divórcio e Questões Conexas – Regime Jurídico Atual”, 3ª edição, Quid Juris, pág. 165:
«as questões de particular importância serão as «questões existenciais graves, que pertençam ao núcleo existencial dos direitos do filho, as questões centrais e fundamentais para o seu desenvolvimento, segurança, saúde, educação e formação, todos os atos que se relacionem com o seu futuro, a avaliar em concreto e em função das suas circunstâncias».
Desta resenha jurisprudencial e doutrinal, resulta uma certeza: para se apurar se uma determinada situação da vida do menor reveste ou não “particular importância”, há que atender à situação em concreto, com os seus contornos particulares e à conciliação de todos os interesses da tríade criança-pai-mãe. E, acima de tudo, tendo em conta as características específicas da criança em causa, pois que esse é esse o interesse maior que norteia as decisões dos Tribunais, o superior interesse da criança.
E, como cada criança, cada família, são sempre únicas, o elenco das “questões de particular importância” integra uma lista sempre inacabada.
§ 3º - Face ao que acabamos de concluir, vejamos o caso em concreto.
A questão das consultas de psicologia da menor foi suscitada pela 1ª vez pela mãe em 17/10/2023, Apenso F, referindo que desde agosto desse ano a menor demonstrava ansiedade, dificuldade em dormir, querendo dormir na cama da mãe, ter regredido na sua autonomia, tendo crises de choro e não querendo interagir com terceiros.
Mais referiu que lhe foi aconselhado pelo pediatra o acompanhamento psicológico, sendo que a progenitora procurou a psicóloga infantil, Dr.ª DD, o que comunicou ao pai da menor, o qual referiu não estar de acordo.
Considerando estar-se perante uma questão de particular importância, terminou pedindo a resolução do diferendo entre os progenitores no que se refere à frequência das consultas de Psicologia por parte da menor.
Ouvido o Mº Pº, promoveu o indeferimento liminar, considerando que a frequência de psicologia infantil não se integra como questão de particular importância, afigurando-se-lhe ser questão de vida corrente.
Em 22/11/2023 foi proferida sentença nesse apenso F, indeferindo liminarmente a apreciação da questão, considerando «que a decisão sobre o acompanhamento psicológico configura ato de vida corrente, pelo que qualquer dos progenitores poderá submeter a criança a sessões de psicologia sem o consentimento do outro progenitor, considerando que tal prática é, nos tempos que correm banalizada e não se centra no núcleo essencial, central, e fundamental da vida da criança, sendo que tal acompanhamento não importará um especial risco para a saúde da criança.». Esta decisão não foi objeto de recurso.
§ 4º - É sabido que no âmbito dos processos de jurisdição voluntária, o valor do trânsito em julgado das decisões é limitado à manutenção das circunstâncias tidas em conta na decisão tomada.
Ou seja, não vigora o princípio da imutabilidade do trânsito em julgado, já que a decisão pode ser alterada, desde que circunstâncias supervenientes assim o justifiquem.
Porém, não existindo essa mudança de circunstâncias, também aqui as decisões proferidas assumem força de caso julgado, obrigando dentro e fora do processo.
Assim o preceitua o art.º 988º do CPC: Nos processos de jurisdição voluntária, as resoluções podem ser alteradas, sem prejuízo dos efeitos já produzidos, com fundamento em circunstâncias supervenientes que justifiquem a alteração; dizem-se supervenientes tanto as circunstâncias ocorridas posteriormente à decisão como as anteriores, que não tenham sido alegadas por ignorância ou outro motivo ponderoso.
Daqui resulta que está decidido nos autos que o acompanhamento da menor por psicóloga constitui ato da vida corrente pelo que, como se refere na decisão recorrida, não compete ao Tribunal a resolução do diferendo entre os progenitores. Tratando-se de ato da vida corrente, não incumbe avaliar da necessidade (ou não) do consentimento do Apelante para as consultas.
§ 5º - Numa outra vertente, resulta dos autos que o Apelante acabou por dar o seu consentimento às consultas com a psicóloga e até esteve presente.
O que acontece é que alega agora ter perdido a confiança na psicóloga em causa, por várias razões, designadamente o tratamento diferenciado que concede aos 2 progenitores, não lhe ter sido dado conhecimento do relatório junto ao processo a pedido da mãe, bem como a falta de competências profissionais para avaliação neuropsicológica.
Ora, também aqui se concorda com a decisão recorrida. Não compete ao Tribunal, no âmbito dum processo de regulação das responsabilidades parentais, apreciar/decidir se um psicólogo é ou não competente ou se cumpre eficazmente as suas funções no estrito respeito pelos deveres deontológicos.
Se um profissional viola as legis artis, é tema a apreciar numa ação de responsabilidade civil ou num processo de responsabilidade disciplinar. Neste último caso, o Apelante já desencadeou procedimento junto do Conselho da Ordem Jurisdicional dos Psicólogos Portugueses, entidade competente para avaliar da competência técnica da psicóloga em causa para a avaliação neuropsicológica.
Assim, a apelação terá de improceder.
5. Sumariando (art.º 663º nº 7 do CPC)
…………………………………………………………..
…………………………………………………………..
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III. DECISÃO
6. Pelo que fica exposto, acorda-se nesta secção cível da Relação do Porto em julgar improcedente a apelação, mantendo-se a decisão recorrida.
Custas do recurso a cargo do Apelante, face ao decaimento.
Porto, 08 de maio de 2025
Relatora: Isabel Silva
1º Adjunto: Judite Pires
2º Adjunto: Isoleta Almeida Costa
_____________________
[[1]] In acórdão desta Relação do Porto, de 09(11/2023, processo nº 16989/22.6T8PRT-A.P1, disponível em www.dgsi.pt/, sítio a atender nos demais arestos que vierem a ser citados sem outra menção de origem.
[[2]] Hélder Roque, “Os conceitos indeterminados em Direito da Família e sua integração”, Lex Familiae Revista Portuguesa de Direito da Família, Ano 2, n.º 4, pág. 93-94.
[[3]] Com interesse, vejam-se ainda: acórdão do STJ de 21/10/2020, processo nº 9527/18.7T8LSB-C.L1.S1 (sobre a mudança de escola de duas crianças que frequentam o ensino básico, de um concelho para outro); acórdão deste TRP de 10/07/2024, processo nº 1058/20.1T8VCD-E.P1 (sobre a matrícula duma criança no 1.º ano do 1.º ciclo do ensino básico); acórdão deste TRP de 25/09/2018, processo nº 4597/16.5T8PRT-C.P1 (sobre a submissão de um menor a consultas de psicologia clínica); acórdão deste TRP de 11/10/2017, processo nº 2782/07.0TMPRT-C.P1 (sobre a saída do menor do território nacional com o pai); acórdão do TRE de 19/12/2019, processo nº 77/19.5T8PSR-C.E1 (sobre a escolha da escola); acórdãos do TRG de 17/12/2019, processo nº 271/15.8T8BRG-I.G1 e de 26/04/2018, processo nº 4142/16.2T8MTS-C.G1 (sobre a escolha de ensino particular ou oficial para a escolaridade do filho); acórdão do TRL de 21/06/2012, processo nº 2366/09.8TMLSB-B.L1-2 (sobre o batizado de uma criança); acórdão do TRC de 13/01/2009, processo nº 364/04.7TMAVR-B.C2 (em que se questionava se as atividades extracurriculares seriam desnecessárias ou excessivas) e acórdão do TRL de 04/06/2020, processo nº 1742/19.2T8ALM-A.L1-2 (sobre consultas pediátricas).