USUFRUTO
AÇÃO DE DESPEJO
LEGITIMIDADE ATIVA
Sumário

I - Sendo o usufruto, nos termos do disposto no art. 1439.º do Código Civil, o direito de gozar temporária e plenamente uma coisa ou direito alheio, sem alterar a sua forma ou substância, e prevendo o art. 1446.º que o usufrutuário pode usar, fruir e administrar a coisa ou o direito como faria um bom pai de família, respeitando o seu destino económico, o usufrutuário pode arrendar um imóvel do qual seja beneficiário, caducando o arrendamento quando termine o usufruto, a não ser que se verifique alguma das situações previstas legalmente.
II - Consequentemente, apenas o usufrutuário tem legitimidade para instaurar ação de despejo contra o arrendatário, uma vez que são esses, na relação jurídica de arrendamento, os titulares da relação material controvertida.
III - A exceção de não cumprimento do contrato apenas pode ser aceite como fundamento para o não cumprimento da prestação por uma das partes desse contrato, quando por via desse não cumprimento se assegure o equilíbrio entre as obrigações no âmbito dos contratos sinalagmáticos. Contudo, deve existir proporcionalidade entre a exceção de não cumprimento e o incumprimento da outra parte, proporcionalidade que deve ser encontrada com recurso às regras que obrigam os contraentes a agir de boa-fé no cumprimento dos contratos, nos termos do artigo 762.º do Código Civil.
IV - A não realização de obras de conservação pelo senhorio não pode motivar a falta de pagamento de rendas, salvo se da falta de realização das obras resultar a impossibilidade de uso do imóvel.

Texto Integral

Apelação 1904/24.0YLPRT.P1

Acordam na 3.ª Secção do Tribunal da Relação do Porto:

I - RELATÓRIO
AA, com o n.º de identificação fiscal ..., apresentou requerimento especial de despejo contra BB, com o n.º de identificação fiscal ..., nos termos do qual peticionou a desocupação do locado que identifica.
Alegou, em síntese, que celebrou com a Ré, em 30.06.2023, um contrato de arrendamento do imóvel melhor identificado nos autos, mediante contrapartida mensal de € 850,00 e que a mesma não procedeu ao pagamento das rendas que se vencerem em março, abril, maio, junho e julho de 2024, razão pela qual, procedeu à resolução do contrato através das missivas postais datadas de 12.07.2024 e 30.08.2024, remetidas através de correio registado com aviso de receção, as quais não foram, porém, reclamadas pela Ré, junto dos serviços postais.
Juntou, com o requerimento inicial de despejo, cópia do contrato de arrendamento, comprovativo de pagamento de imposto de selo e missivas postais, enviadas por correio registado à Ré e respetivos avisos de receção.

Regularmente notificada para deduzir oposição, a Ré confirmou que foi celebrado entre as partes o contrato de arrendamento em apreço, mas que, não obstante, vem estando parcialmente privada do pleno gozo do locado, uma vez que o Requerente, ao contrário do que fora acordado, nunca lhe concedeu o acesso à garagem e arrumos, o mesmo acontecendo relativamente às chaves da caixa do correio.
Mais alega que no âmbito da celebração do contrato foi ainda estipulado que o imóvel arrendado seria totalmente mobilado, o que, porém, tampouco foi cumprido pelo Requerente, e que o mesmo vem apresentando vestígios de humidade, danos nas paredes, piso e canalização, vestígios de bolor, mau isolamento térmico, circunstâncias relativamente às quais o Requerente nada fez, concluindo pela inabitabilidade do locado, invocando a exceção de não cumprimento do contrato, entendendo não ter que cumprir a sua obrigação de pagamento de rendas.

O requerente exerceu o contraditório em relação à exceção invocada.

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Foi realizada a audiência de julgamento, finda a qual foi proferida sentença que decidiu nos seguintes termos:
“Em face do exposto, decide-se:
a) Reconhecer a cessação do contrato de arrendamento celebrado entre as partes por resolução do senhorio, com efeitos a 12.09.2024, através de comunicação à Ré, relativamente ao locado sito na Rua ..., n.º ..., 12.º esquerdo, traseiras, Bloco ..., ..., ..., Vila Nova de Gaia.
b) Condenar a Ré a entregar o locado ao Autor livre e desocupado de pessoas e bens, no prazo de 30 (trinta) dias.
c) Decorrido o prazo referido na alínea b) sem que locado seja voluntariamente entregue pela Ré, autoriza-se a entrada imediata no domicílio.
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Fixa-se à causa o valor de € 25.000,00 (vinte e cinco mil e quinhentos euros) – cfr. artigo 26.º, do DL n.º 1/2013, de 7 de janeiro.
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Custas pela Ré – cfr. artigo 527.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Civil
Notifique, nos termos do artigo 15.º-EA, n.º 5, do NRAU, na sua versão atual, e registe.”.
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Não se conformando com o assim decidido, veio a Requerente interpor o presente recurso, que foi admitido como apelação, a subir nos próprios autos e com efeito suspensivo, efeito que, contudo, face ao disposto no art. 15.º-Q da Lei 6/2006, de27 de fevereiro, é meramente devolutivo.
Formulou, a apelante, as seguintes conclusões:
“1º A Douta Sentença não faz a correcta aplicação do direito aos factos.
2º A discordância decorre de três questões fundamentais:
3º Primeiramente, a Ré foi citada para apresentar oposição, sendo o Autor somente usufrutuário do imóvel em apreço.
4º Porém, o art. 30° do CPC consagra o conceito de legitimidade.
5º O art. 33° do CPC estipula o que é o Litisconsórcio necessário.
6º Já o art. 36° do CPC define o conceito de Coligação de autores e de réus.
7º Ora, apesar do Autor ter alegado e juntado somente o respetivo contrato de arrendamento, demonstrou ser somente Usufrutuário do imóvel e não proprietário do mesmo, não tendo junto aos autos qualquer documento comprovativo sequer dessa qualidade, quanto mais do efetivo proprietário.
8º Ou seja, o verdadeiro proprietário não consta nos presentes autos como Autor.
9º Nas acções de despejo o autor tem de fazer prova da sua qualidade de proprietário, para se aferir da sua legitimidade activa.
10º Na presente ação isso não sucedeu, tendo o Autor somente demonstrado a sua qualidade de Usufrutuário.
11º A presente ação deveria ter sido intentada pelo proprietário do imóvel, o que não aconteceu.
12º A admitir-se a intervenção do Autor, teria de ser sempre em conjunto com o proprietário do imóvel e não a título individual como aconteceu.
13º Pelo que, o Autor é parte ilegítima na presente ação.
14º Deveria, pois, pelo consagrado nos arts. 576°, n°2, 577°, al’ e) e 278°, n°1, al’ d) todos do CPC, ter sido tal ilegitimidade activa provada e a Ré ter sido absolvida da instância.
15º Porém, a ilegitimidade activa que foi invocada pela Ré, erradamente não foi deferida.
16º Seguidamente, a Ré nas suas declarações de parte explicou com clareza que na sua boa-fé, assinou o contrato de arrendamento, mas que quem o elaborou foi o Autor, com todas as cláusulas por este pretendidas.
17º E que assinou igualmente uma apólice de seguro exigida pelo Autor, explicando igualmente que era do conhecimento da Ré de que o Autor trabalhava na área de seguros.
18º Essa apólice que o Autor fez a Ré assinar salvaguardaria o pagamento do arrendamento, caso a Ré tivesse algum acidente ou qualquer doença que a impedisse de ter poder económico para liquidar mensalmente a quantia referente à renda do imóvel, assumindo assim o seguro tal pagamento.
19º Acontece que, tal como referiu a Ré, esta assinou tal apólice, mas não lhe foi entregue fotocópia alguma desta, nem tão pouco sabe se alguma vez foi a mesma acionada, uma vez que quem contratou tal seguro e exigiu a assinatura do mesmo foi o Autor.
20º Apesar do Autor negar tal apólice de seguro, a Ré assinou-a e o Autor levou todos os documentos relacionados com o mesmo.
21º O Tribunal deu como não provada tal matéria, mas na realidade a Ré explicou ao Tribunal com exatidão a existência de tal apólice.
22º Por fim, alegou a Ré que, quando foi assinado o respetivo contrato de arrendamento com o Autor, supostamente usufrutuário legalmente consagrado, no dia 30 de Junho de 2023, foi entregue por esta a quantia de 1.700.00 € a título de pagamento de um mês de renda (mês de Julho de 2023) e referente a um mês de caução exigida pelo Autor.
23º Tendo na data da assinatura do respetivo contrato de arrendamento, entregue a Ré assim ao Autor diretamente a quantia total de 1.700.00 €.
24º Importa salientar que tal arrendamento não teve a intervenção de nenhuma empresa do ramo imobiliário.
25º A procura de imóvel, a sua visita e toda a burocracia para a celebração do contrato de arrendamento, foi tudo tratado directamente com o Autor.
26º Entre as partes foi outorgado o arrendamento da fracção autónoma designada pela letra “CT”, destinada a habitação e da fração autónoma “ET” destinada a garagem, sitas na Rua ..., nº ..., 12° Esquerdo Traseiras, Bloco ..., freguesia ..., concelho de Vila Nova de Gaia, do prédio urbano em regime de propriedade horizontal, descrito na Conservatória do Registo Predial de Vila Nova de Gaia sob o n.º ..., inscrito na respetiva matriz sob o artigo ...., com licença de utilização nº ..., emitida pela Câmara Municipal ....
27º Para além da habitação, ficou ainda estipulado entre as partes o acesso aos arrumos pertencentes a este imóvel.
28º Porém, a designada garagem e a divisão de arrumos nunca foram disponibilizadas nem colocadas à disposição da Ré.
29º Esta contactou diversas vezes o Autor, para lhe entregar as chaves dessas frações e assim poder ter acesso às mesmas, mas sem sucesso, tal como ficou devidamente provado.
30º Desde a assinatura do contrato de arrendamento e até à presente data não tem acesso a Ré a tal fração, igualmente provado na Douta Sentença.
31º O que desde o início foi igualmente requerido pela Ré, foram as chaves da caixa de correio.
32º Acontece que, tal como foi solucionado o pedido de acesso ao lugar de garagem da fração, teve este igual tratamento.
33º Tal como demonstrou a Ré através das suas declarações de parte, somente passou a ter acesso à caixa de correio quando mandou substituir a fechadura da mesma.
34º Apesar de na celebração do contrato de arrendamento o Autor, como o imóvel só tinha praticamente as paredes, loiças sanitárias e cozinha, ter prometido que nos dias seguintes trataria de completar os moveis da cozinha, colocaria os eletrodomésticos, colocando igualmente todo o mobiliário de quartos e sala, o certo é que os dias foram passando e nada foi colocado como havia este prometido.
35º Vivendo a Ré numa casa nem mobiliário algum, sem qualquer eletrodoméstico, frigorifico, forno, placa de cozinha detinha e após muita insistência perante o Autor.
36º Foi a Ré obrigada a procurar e custear sozinha frigorífico, arca congeladora, micro-ondas, placa, forno, exaustor, a própria bancada para colocar a placa, a comprar todo o mobiliário para os quartos e para a sala que nada tinham.
37º Através das suas declarações de parte, a Ré demonstrou que foi esta que além de ter mobilado todo o imóvel, teve que comprar até o balcão para colocar a plana de indução e forno, que o imóvel nem tal detinha.
38º Alegou ainda a Ré através da sua oposição, que o imóvel arrendado, nos primeiros meses de arrendamento estava com ótimo aspeto visual, aparentava ser um imóvel renovado há pouco tempo.
39º No entanto, com a utilização do mesmo, rapidamente se apercebeu que os materiais existentes no imóvel eram de fraquíssima qualidade.
40º A título de exemplo, evidenciou: as paredes e tetos do imóvel encontram-se danificadas, com rachaduras e cheias de marcas da humidade.
41º O piso de madeira todo danificado, riscado e a levantar em certas áreas por causa da humidade sentida no imóvel.
42º A canalização deficitária em todo o imóvel.
43º Não somente descreveu tais factos, como juntou aos autos fotogramas que comprovavam isso mesmo, mas que não foram tidos em consideração pelo Tribunal “a quo”
44º A Ré alegou ainda a falta de condições de habitabilidade, que comprometeram e continuam a comprometer seriamente o uso e fruição do locado.
45º Condições essas que colocaram e continuam a colocar em risco a saúde de quem lá habita, não só a Ré como os seus filhos menores.
46º A Ré esteve grávida, com uma gravidez de risco, actualmente reside no imóvel com os seus três filhos, um bebé de 1 mês, uma filha de 8 anos e outra de 13 anos.
47º No tempo mais húmido ficou variadíssimas vezes doente, tendo mesmo que receber tratamento hospitalar.
48º O imóvel situa-se no 12° andar de um prédio, a Ré, com a chegada das primeiras chuvas rapidamente se apercebeu de que o imóvel padecia de muita humidade.
49º Humidade essa que se agravou com o passar do tempo e com o inverno chuvoso.
50º Esta até esclareceu que, quando o tempo está húmido, a água escorre pelas paredes, fazendo inclusive que parte do chão continue a levantar.
51º Causando sérios riscos de segurança aos adultos e crianças que residem no imóvel.
52º Quando as paredes secam apresentam manchas, pelo facto da água ter escorrido em dias de chuva.
53º Chegando ao ponto dos quartos de dormir ficarem inabitáveis.
54º Até existe mobiliário que contém bolor.
55º Mobiliário esse propriedade da Ré, uma vez que o imóvel foi arrendado sem mobiliário algum.
56º Alegou ainda a insistência perante o Autor através de vários contactos telefónicos e presenciais para a resolução de todos os problemas relatados.
57º Resolução essa que nunca chegou.
58º Sem nunca ninguém sequer ter tido a preocupação de ir verificar os danos, defeitos e humidade existentes.
59º Até se pode verificar a eficiência do imóvel pelo respetivo certificado energético, onde lhe foi atribuído a classificação F ou seja a pior classificação.
60º O imóvel padece efetivamente de isolamento término e cujos matérias de construção e/ou remodelação são de fraca qualidade.
61º O imóvel não é eficiente, muito pelo contrário.
62º Além do mais, o imóvel, em dia de chuva, torna-se inabitável, não cumprindo com a expetativa aquando a celebração do contrato de arrendamento.
63º A garagem da fração nunca foi colocada à disposição da Ré.
64º Existindo assim privação parcial do gozo da fração de habitação e privação total do gozo da fração de garagem e dos arrumos.
65º Tendo a Ré invocando a exceção do não cumprimento do contrato.
66º Facto esse desvalorizado pelo Tribunal “a quo”.
67º Nos termos do artigo 1022.º do CC, a “locação é o contrato pelo qual uma das partes se obriga a proporcionar à outra o gozo temporário de uma coisa, mediante retribuição”.
68º No entanto, o contrato de arrendamento apresenta-se como um contrato de natureza bilateral, derivando o mesmo de obrigações, quer para o locador (artigo 1031.º do CC), quer para o locatário (artigo 1038.º do CC).
69º Existe neste contrato um vínculo de sinalagmaticidade, reciprocidade ou interdependência entre as obrigações do senhorio e as obrigações do arrendatário.
70º Onde, para o Arrendatário nasce o dever de pagar as rendas e para o senhorio o dever de garantir o gozo da coisa por parte do arrendatário.
71º Da análise do artigo 1022.º do CC pode, com rigor, afirmar-se que são três os elementos constitutivos do contrato de locação: concessão do gozo de um prédio urbano, isto é, o aproveitamento das suas utilidades, seja pelo simples uso, seja pelo seu uso e fruição, no todo ou em parte; feita por certo prazo; mediante o pagamento de uma retribuição.
72º Ora, dispõe o artigo 428º, n.º 1, do CC, que “Se nos contratos bilaterais não houver prazos diferentes para o cumprimento das prestações, cada um dos contraentes tem a faculdade de recusar a sua prestação enquanto o outro não efectuar a que lhe cabe ou não oferecer o seu cumprimento simultâneo”.
73º Ora, uma vez que não foi assegurado à Ré, enquanto arrendatária, o gozo do imóvel para os fins a que se destina, o arrendatário pode invocar a «exceptio non adimpleti contractus» para recusar o pagamento da renda.
74º Ou seja, a «exceptio» pressupõe a inexecução temporária do contrato.
75º A este respeito podemos ler no Acórdão da Relação de Lisboa de 09.05.96, In Col. Jur., 1996, 3, 87, o seguinte “se o locatário paga a renda e o locador não repara as deteriorações do imóvel que é obrigado a garantir, aquele pode suspender o pagamento de toda a renda, quando se trata de não cumprimento que exclua totalmente o gozo da coisa ou de parte dela, no caso de privação parcial do gozo imputável ao locador”.
76º Continuando, “Se nos contratos bilaterais não houver prazos diferentes para o cumprimento das prestações, cada um dos contraentes tem a faculdade de recusar a sua prestação enquanto o outro não efectuar a que lhe cabe ou não oferecer o seu cumprimento simultâneo.”
77º Seguidamente, “Daqui decorre que subjacente à excepção de não cumprimento do contrato deve estar em causa a relação sinalagmática, que justifica e delimita o seu campo de aplicação, relação essa que ocorre, como antes já vimos, no contrato de arrendamento”.
78º Assim, nas palavras de Calvão da Silva “justifica-se a recusa do credor a cumprir, alegando a exceptio non adimpleti contractus, porque a sua prestação é o correlativo da contraprestação do devedor, porque as respectivas obrigações estão ligadas entre si por um nexo de causalidade – uma é o motivo determinante da outra – ou de correspectividade.
Logo, se o devedor não cumpre, não quer cumprir ou não pode cumprir, ainda que não imputavelmente, o credor pode suspender o cumprimento da sua obrigação, dada a ausência de contrapartida e reciprocidade que liga causalmente a prestação debitória e a prestação creditória. Sendo as obrigações interdependentes, com uma a constituir a causa determinante da outra, o não cumprimento de uma (que não tem de ser necessariamente imputável a dolo ou culpa do devedor) faz desaparecer a sua contrapartida – causa e razão de ser da outra -, o que legitima a exceptio, meio de conservação do equilíbrio sinalagmático. Pouco importa, por conseguinte, que o devedor não cumpra a sua obrigação por não querer e estar de má fé ou por não poder em virtude, por exemplo, de se encontrar em estado de impotência económica, porquanto aquilo que legitima a exceptio non adimpleti contractus é a ausência de correspondência ou de reciprocidade que está na origem das obrigações (sinalagma genético) e que deve continuar a estar presente no seu cumprimento (sinalagma funcional). (Cumprimento e Sanção Pecuniária Compulsória, 4ª ed., pág. 330)”.
79º Prossegue dizendo que “no entanto, importa não esquecer que no cumprimento da obrigação, assim como no exercício do direito correspondente, devem sempre as partes proceder de boa-fé (cf. art.º 762º, nº2 do Código Civil).”
80º Tal como refere João José Abrantes, em a A Excepção de Não Cumprimento do Contrato, Almedina, 3ª ed., págs. 110/112 “para que a invocação da “exceptio” não seja julgada contrária à boa-fé, exige-se a verificação de uma tripla relação entre o incumprimento do outro contraente e a recusa de cumprir por parte do excipiente: relação de sucessão, de causalidade e de proporcionalidade entre uma e outra”.
81º Assim, ao contrário do que ficou explanado na Douta Sentença, assiste sim, à Ré o direito de suspender o pagamento das rendas, enquanto não for proporcionado o efectivo e total gozo do locado.
82º Muito mal andou a Douta Sentença que nem se preocupou em fazer uma inspeção ao imóvel em questão.
83º Onde não foi devidamente valorizada a prova documental crucial apresentada pela Ré.
84º Finalizando, a Douta Sentença recorrida, viola por errada interpretação a aplicação do disposto nos art. 428° do CC e artºs 2º, 9º, 13º, 18º e 20º da CRP.
NESTES TERMOS, DEVE SER DADO PROVIMENTO AO RECURSO E REVOGADA A DOUTA SENTENÇA RECORRIDA.”
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O Recorrido apresentou contra-alegações, concluindo pela manutenção da decisão recorrida.
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Após os vistos legais, cumpre decidir.
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II – OBJETO DO RECURSO
O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso – cfr. arts. 635º, nº 4, 637º, nº 2, 1ª parte e 639º, nºs 1 e 2, todos do Código de Processo Civil.
Atendendo às conclusões das alegações apresentadas pela apelante, as questões a apreciar são as seguintes:
- A (i)legitimidade do autor;
- A (in)existência de um contrato de seguro ligado ao arrendamento;
- A entrega, ou não, de valor correspondente a um mês de renda a título de caução;
- O objeto do arrendamento, o incumprimento por parte do senhorio e a exceção de não cumprimento do contrato.
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III – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
O tribunal de 1ª instância considerou provada a seguinte matéria de facto (que, aliás, não foi impugnada):
1. Por acordo escrito intitulado de «Contrato de Arrendamento com prazo certo para fins habitacionais e finança» datado de 30.06.2023, AA declarou ceder para fins habitacionais a BB a fração autónoma designada pela letra “CT”, correspondente a um T3, do prédio sito na Rua ..., n.º ..., 12.º esquerdo, traseiras, Bloco ..., ..., ..., Vila Nova de Gaia, descrito na Conservatória do Registo Predial de Vila Nova de Gaia com o número ..., da freguesia ... e inscrito na respetiva matriz sob o artigo ... e, bem assim, um lugar de garagem e um arrumo.
2. Em contrapartida, BB declarou comprometer-se ao pagamento de uma quantia mensal no montante de € 850,00 (oitocentos e cinquenta euros) a realizar entre o dia 1 e o dia 8 do próprio mês a que dissesse respeito.
3. O acordo supramencionado foi celebrado pelo período de 1 ano, com início em 01.07.2023 e termo em 30.06.2024, renovável por sucessivos períodos de um ano, caso não fosse denunciado por alguma das partes.
4. No acordo referido em 1., estipularam as partes que as notificações e comunicações entre ambas seriam remetidas por carta registada com aviso de receção, dirigidas para a Rua ..., n.º ..., 1.º esquerdo, ..., Vila Nova de gaia, sendo-o para o senhorio, e para a Rua ..., n.º ..., 12.º esquerdo, traseiras, Bloco ..., ..., ..., Vila Nova de Gaia, sendo-o para a arrendatária e fiadores.
5. Desde o mês de março de 2024 (inclusive) até ao presente, e com exceção da referente ao mês de novembro de 2024, a Ré não entregou ao Autor qualquer quantia pecuniária por conta da contrapartida mensal acordada pela cedência do imóvel descrito em 1.
6. Desde a data da celebração do acordo mencionado em 1., e apesar de diversas vezes interpelado pela Ré para o efeito, o Autor não procedeu à entrega das chaves que permitem o acesso à garagem e aos arrumos mencionados em 1.
7. Atualmente, e desde data não concretamente apurada, a Ré tem acesso à caixa do correio.
8. O imóvel descrito em 1. tem um deficiente isolamento térmico e apresenta mofo na divisão da sala.
9. No dia 16.07.2024, o Autor, mediante carta registada com aviso de receção, enviou uma missiva à Ré, para a morada constante em 4., da qual consta, entre o mais, o seguinte:
«Na qualidade de procuradora e em nome do m/cliente AA, venho pelo presente comunicar a V. Exa. a denúncia ao Contrato de Arrendamento celebrado em 30/06/2023, respeitante ao prédio sito na Rua ..., número ..., 12° esquerdo traseiras, Bloco ..., na freguesia ..., concelho de Vila Nova de Gaia, prédio inscrito na matriz predial urbana ..., fração "CT" e "ET", descrito na Conservatória do Registo Predial do, Porto sob o n.º ..., em virtude da mora superior a três meses no pagamento da renda, e conforme prevé a lei:
"SECÇÃO VII - Arrendamento de prédios urbanos SUBSECÇÃO IV - Cessação
DIVISÃO III - Resolução
"Artigo 1083.0 - (Fundamento da resolução)
3. É inexigível ao senhorio a manutenção do arrendamento em caso de mora igual ou superior a três meses no pagamento da renda, encargos ou despesas que corram por conta do arrendatário ou de oposição por este à realização de obra ordenada por autoridade pública, sem prejuízo do disposto nos n.ºs 3 a 5 do artigo seguinte.
Interpelo ainda V/Ex.a para o pagamento em dívida de parte das rendas correspondente aos meses de Março, Abril, Maio, Junho e Julho que ascende os 4.250,00€.
O valor total em dívida é de 5.100,00€ correspondente as rendas não pagas na totalidade, acrescido de 20% de agravamento, conforme previsto, nos termos da legislação em vigor artigo 1041.0 do Código Civil.
Assim, pela presente, deverá V. Exa. considerar-se formalmente interpelado, para no prazo de 08 dias (corridos) após a sua receção, proceder ao pagamento da quantia em dívida de 5.100,00€ (cinco mil e cem euros) para o IBAN ..., do Banco 1....
Informo que o não pagamento VOLUNTÁRIO do montante em dívida no prazo limite e a entrega do locado dentro de 30 dias seguidos a contar da receção da presente carta, acarretará a adição de todas as despesas, custas de parte e taxa de justiça inerentes à cobrança COERCIVA por força do PROCESSO JUDICIAL, fixada no montante de 2.500,00€ (dois mil e quinhentos euros), sem necessidade de nova interpelação»
10. A missiva referida em 9. foi devolvida contendo menção de «objeto não reclamado», mais contendo indicação de «não atendeu» às 12h02 do dia 17.07.2024.
11. No dia 02.09.2024, o Autor, mediante carta registada com aviso de receção, enviou nova missiva à Ré, para a morada constante em 4., com idêntico teor ao da missiva referida em 9.
12. A missiva referida em 11. foi devolvida ao remetente.

E deu como não provados os factos seguintes:
Com relevância para a decisão da causa, ficou por provar o seguinte:
a. No momento da celebração do acordo referido em 1., a Ré assinou uma apólice de seguro exigida pelo Autor, que salvaguardaria o pagamento das quantias mensais acordadas, caso a Ré tivesse algum acidente ou qualquer doença que a impedisse de ter poder económico para liquidá-las.
b. No âmbito do acordo referido em 1., Autor e Ré verbalmente acordaram que o primeiro colocaria eletrodomésticos na cozinha, e todo o mobiliário dos quartos e sala do imóvel referido em 1.
c. As paredes e tetos do imóvel referido em 1. apresentam fissuras.
d. O piso de madeira do imóvel referido em 1. encontra-se riscado e em certas áreas não está fixado.
e. A canalização do imóvel referido em 1. apresenta entupimentos.
f. A humidade existente no imóvel coloca em risco a saúde de quem nele habita.
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IV – MOTIVAÇÃO DE DIREITO
a) Da (i)legitimidade do autor
Entende a recorrente que o autor/recorrido é parte ilegítima no processo, por ser mero usufrutuário do imóvel dado de arrendamento.
Mas sem razão.
O usufruto é, nos termos do disposto no art. 1439.º do Código Civil, o direito de gozar temporária e plenamente uma coisa ou direito alheio, sem alterar a sua forma ou substância, sendo que, o art. 1446.º prevê que o usufrutuário pode usar, fruir e administrar a coisa ou o direito como faria um bom pai de família, respeitando o seu destino económico, o que significa que pode arrendar, direito que também resulta do disposto nos arts. 1051.º e 1052.º do mesmo diploma legal, relativos ao contrato de locação.
Ou seja, o usufrutuário pode arrendar um imóvel do qual seja beneficiário, caducando o arrendamento quando termine o usufruto, a não ser que se verifique alguma das situações previstas legalmente.
E, consequentemente, apenas o usufrutuário tem legitimidade para efetuar a denúncia do contrato de arrendamento, no qual figure como senhorio (neste sentido, cfr. Ac. do Tribunal da Relação de Lisboa, de 01-07-2014, Processo 3084/13.8YlPRT.L1-7, disponível em dgsi.pt).
Aliás, numa qualquer ação de despejo, no que diz respeito aos pressupostos processuais inerentes às partes, a ação deverá ser proposta pelo senhorio contra o inquilino, uma vez que são esses, na relação jurídica de arrendamento, os titulares da relação material controvertida, critério a ter em conta nos termos do disposto no art. 30.º do CPC.
Não ocorre, pois, a arguida exceção de ilegitimidade do autor, tal como resulta da decisão genérica proferida pelo tribunal a quo quanto aos pressupostos processuais, pelo que improcede o recurso quanto a esta parte.
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b) Da (in)existência de um contrato de seguro ligado ao arrendamento
Diz a recorrente que nas suas declarações de parte explicou que assinou uma apólice de seguro exigida pelo Autor, explicando igualmente que era do conhecimento da Ré que o Autor trabalhava na área de seguros e que essa apólice que o Autor fez a Ré assinar, salvaguardaria o pagamento do arrendamento, caso a Ré tivesse algum acidente ou qualquer doença que a impedisse de ter poder económico para liquidar mensalmente a quantia referente à renda do imóvel assumindo assim o seguro tal pagamento.
Tal factualidade foi dada como não provada, não se compreendendo totalmente o que a recorrente pretende com tal alegação, desde logo, porque não impugna devidamente, conforme exigido pelo art. 640.º do CPC, a decisão sobre a matéria de facto, mas também porque não se compreende qual a pretensão da recorrente com tal alegação, já que, ainda que se aceitasse a existência do alegado contrato de seguro (o que não é o caso, uma vez que a recorrente não fez qualquer prova desse facto, quer juntando a apólice quer alguma prova do pagamento do respetivo prémio, por exemplo), nunca o mesmo teria qualquer relevância para a decisão, já que a recorrente/ré não alega sequer, na sua oposição, que se verifica algum facto que pudesse levar ao acionamento da alegada apólice.
Nada há, assim, a alterar na decisão recorrida, quanto a esse aspeto.
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c) Da entrega, ou não, de valor correspondente a um mês de renda a título de caução
Alegou a Ré/recorrente, ainda, que, quando foi assinado o respetivo contrato de arrendamento com o Autor, no dia 30 de junho de 2023, foi entregue por esta a quantia de 1.700.00 € a título de pagamento de um mês de renda (mês de julho de 2023) e referente a um mês de caução exigida pelo Autor.
Aceita-se tal factualidade, até porque a mesma resulta do próprio contrato de arrendamento, do qual consta da cláusula 4.ª.
Contudo, a recorrente não retira de tal factualidade qualquer contribuição para o desfecho da ação, até porque não existe, já que a ação visa a desocupação do locado e não o pagamento das rendas em atraso, altura em que a factualidade em causa poderá ter interesse.
Nada sendo pedido, nada há a decidir quanto a essa questão.
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d) Do objeto do arrendamento, do incumprimento por parte do senhorio e da exceção de não cumprimento do contrato
No que diz respeito ao objeto do arrendamento, parece não haver dúvidas que o mesmo incluía, para além da fração em si, também uma garagem e uma divisão para arrumos, como, aliás, resulta do próprio contrato.
Mostra-se provado (facto provado 6) que “Desde a data da celebração do acordo mencionado em 1., e apesar de diversas vezes interpelado pela Ré para o efeito, o Autor não procedeu à entrega das chaves que permitem o acesso à garagem e aos arrumos mencionados em 1.”.
Tal como se mostra provado que “8. O imóvel descrito em 1. tem um deficiente isolamento térmico e apresenta mofo na divisão da sala.”.
Invoca a recorrente tais factos, com vista a justificar a exceção de não cumprimento do contrato.
E apenas estes já que os demais que alega não resultaram provados, nem foi a matéria de facto impugnada nos termos exigidos por lei, como já referido supra, sendo certo que em qualquer caso não existe prova sobre a verificação dos mesmos, nomeadamente no que diz respeito ao mobiliário da casa e equipamentos da cozinha, já que nenhuma prova existe que possa confirmar as declarações da recorrente, ao que acresce que nada disso consta do contrato de arrendamento.
Posto isto, vejamos.
Tendo em conta o que resulta do disposto nos arts. 1022.º, 1023.º e 1064.º do Código Civil, entre o autor e a ré foi celebrado um contrato de arrendamento urbano, enquanto acordo em que uma das partes se obriga a proporcionar à outra o gozo temporário de uma coisa imóvel, mediante retribuição.
Também é certo que da celebração de um contrato de arrendamento decorrem obrigações recíprocas e sinalagmáticas: cabe ao locador entregar a coisa locada e assegurar o gozo da mesma para os fins a que a coisa se destina (cfr. artigo 1031.º do Código Civil), cabendo ao arrendatário, no que para o caso interessa, o pagamento da renda e a restituição da coisa findo o contrato (cfr. artigo 1038.º, alíneas a) e i), do Código Civil).
Ora, no caso em apreciação temos, desde logo, como assente que a recorrente não cumpre com a sua obrigação de pagamento das rendas desde o mês de março de 2024 (com exceção do mês de novembro), o que, nos termos do disposto no artigo 1083.º, n.º 3, e 1084.º, n.º 1, do Código Civil, torna inexigível ao autor/senhorio a manutenção do arrendamento, dado que a ré se encontra em mora por falta de pagamento de renda igual ou superior a três meses, assistindo, por isso, ao senhorio o direito de fazer operar a resolução do contrato.
E foi isso que o autor/recorrido fez, extrajudicialmente, através de comunicação à ré/recorrente, por carta registada com aviso de receção para o domicílio convencionado no contrato (cf. artigo 1084.º, n.º 2, do Código Civil, e 9.º, n.º 7, alínea c), do NRAU) – cfr. pontos 9. e 11. dos factos provados.
E uma vez resolvido o contrato, tem o senhorio o direito de exigir a entrega do locado – art. 1081.º, nº 1 do Código Civil, tendo o autor utilizado, para o efeito, o procedimento especial de despejo, previsto no art. 15.º da lei 6/2006, de 27 de fevereiro.
Contudo, a ré/recorrente invocou a exceção de não cumprimento do contrato, alegando que não tinha que proceder ao pagamento das rendas porque não dispunha do pleno gozo do bem objeto do contrato de arrendamento, mencionando os aspetos já referidos de não ter acesso à garagem e arrumos e de o imóvel apresentar defeitos que o tornam inapto para o fim a que se destina.
Como já referido, uma das obrigações do senhorio consiste em assegurar o gozo do locado para os fins a que a coisa se destina, neste caso, para fins habitacionais.
Ora, o art. 428.º do Código Civil, quanto à exceção de não cumprimento do contrato, dispõe que “Se nos contratos bilaterais não houver prazos diferentes para o cumprimento das prestações, cada um dos contraentes tem a faculdade de recusar a sua prestação enquanto o outro não efetuar a que lhe cabe ou não oferecer o seu cumprimento simultâneo.”.
No caso em apreciação, apesar de tudo que a recorrente alega, apenas se provou, quanto ao invocado incumprimento por parte do autor/senhorio, que este não disponibilizou à Ré o acesso à garagem e aos arrumos e que o imóvel tem um deficiente isolamento térmico e apresenta mofo na divisão da sala (cfr. pontos 6. e 8. dos factos provados).
Cabe, assim, decidir se estes factos são suficientes para se considerar que o senhorio está a incumprir a sua obrigação de assegurar o gozo do locado para os fins a que a coisa se destina.
O fim principal do arrendamento é, no caso, a habitação da recorrente e seus filhos.
O facto de o imóvel ter um deficiente isolamento térmico, não nos parece ser motivo para se considerar que não tem condições de habitabilidade, sendo conhecido que um grande número de habitações, em Portugal, não beneficia de um isolamento térmico adequado, não deixando, por esse motivo, de ser habitáveis.
Quanto à disponibilização da garagem e arrumos, o senhorio encontra-se efetivamente em falta, como resulta do facto provado referido, sendo, contudo, certo que se entende que tal falta não justifica que a arrendatária deixe de pagar a totalidade da renda, mantendo o uso da fração onde habita e que é, sem dúvida, a parte principal do arrendamento.
Como se decidiu no Acórdão desta Secção do Tribunal da Relação do Porto, de 26-01-2023, Processo 1344/20.0T8VRL.P2, Relator: CARLOS PORTELA, “(…) subjacente à excepção de não cumprimento do contrato deve estar em causa a relação sinalagmática, que justifica e delimita o seu campo de aplicação, relação essa que ocorre, como antes já vimos, no contrato de arrendamento.
(…)
No entanto, importa não esquecer que no cumprimento da obrigação, assim como no exercício do direito correspondente, devem sempre as partes proceder de boa-fé (cf. art.º 762º, nº2 do Código Civil).
Deste modo, para que a invocação da “exceptio” não seja julgada contrária à boa-fé, exige-se a verificação de uma tripla relação entre o incumprimento do outro contraente e a recusa de cumprir por parte do excipiente: relação de sucessão, de causalidade e de proporcionalidade entre uma e outra. (neste sentido cf. João José Abrantes, A Excepção de Não Cumprimento do Contrato, Almedina, 3ª ed., págs. 110/112).
Assim, atenta a referida relação de sucessão, não pode recusar a sua prestação, invocando a “exceptio”, o contraente que foi o primeiro a cair numa situação de incumprimento, ou seja, a recusa de cumprir do excipiente deve ser posterior à inexecução da obrigação da contraparte, deve seguir-se-lhe e não precedê-la.
Por outro lado, a relação de causalidade impõe que haja um nexo de causalidade ou de interdependência causal entre o incumprimento da outra parte e a suspensão da prestação do excipiente.
Dito de outra forma, esta última deve ter unicamente por causa tal incumprimento, deve surgir como sua consequência imediata.
Finalmente, por força do princípio da equivalência ou proporcionalidade das inexecuções, a recusa do excipiente deve ser equivalente ou proporcionada à inexecução da contraparte que reclama o cumprimento, de modo que, se a falta desta for de leve importância, o recurso à excepção pode até ser ilegítimo.
Para Almeida Costa, Direito das Obrigações, 11ª ed., pág. 364, o funcionamento da “exceptio” deve ser compaginado com o princípio da boa-fé, daí resultando “a exigência de uma apreciação da gravidade da falta, que não pode mostrar-se insignificante, bem como se impõe a regra da adequação ou proporcionalidade entre a ofensa do direito do excipiente e o exercício da excepção.”
No seguimento de tal entendimento e agora na Revista de Legislação e Jurisprudência”, nº 119, pág. 144, refere-se ainda que “seria contrário à boa-fé que um dos contraentes recusasse a sua inteira prestação, só porque a do outro enferma de uma falta mínima ou sem suficiente relevo. Na mesma linha, surge a regra da adequação ou proporcionalidade entre a ofensa do direito do excipiente e o exercício da excepção. Uma prestação significativamente incompleta ou viciada justifica que o outro obrigado reduza a contraprestação a que se acha adstrito. Mas, em tal caso, só é razoável que recuse quanto se torne necessário para garantir o seu direito”.
E como se refere, ainda, no acórdão que acabamos de citar, é consabido que o funcionamento da exceção de não cumprimento do contrato, invocada pelo arrendatário com vista ao não pagamento da renda por limitação do gozo da coisa locada, tem vindo a ser admitida de forma restrita pela nossa jurisprudência.
Assim, no Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 03.03.2016, Processo 328/14.2T8VCT.G1 (disponível em dgsi.pt), diz-se que “2. A excepção de não cumprimento do contrato é de admitir sempre que, existindo um nexo de causalidade ou de correspectividade entre as prestações, ocorra um desiquilíbrio, injustificado e contrário à boa-fé, entre as prestações a cargo das partes contraentes, configurando-se a exceptio como um meio de repôr o dito equilíbrio (sinalagma) contratual.
3. Destarte, por princípio, a excepção de não cumprimento do contrato é aplicável no âmbito do contrato de arrendamento.
4. Todavia, regra geral, a mora do senhorio na realização de obras não justifica a invocação da exceptio, por inexistência de correspectividade entre a obrigação de pagamento da renda a cargo do arrendatário e a obrigação do senhorio de efectuar, em determinadas condições, obras no locado; Só assim não será se a omissão das ditas obras implicar directamente com o gozo do imóvel, gerando uma situação de privação, total ou parcial, desse gozo por parte do arrendatário.
5. Por outro lado, ainda, a circunstância de o locado, por força de vícios ou patologias supervenientes, não vier a proporcionar boas condições de habitabilidade, a exceptio apenas é de admitir se o arrendatário ficar privado, total ou parcialmente, do gozo do locado, mas já não o será se, a despeito de tais patologias ou vícios, o arrendatário permanecer no gozo do mesmo, designadamente se aí continuar a habitar, assim como o respectivo agregado familiar.
6. Em tais condições, a falta de pagamento da renda por parte do arrendatário, a coberto da alegada exceptio, mostra-se injustificada e constitui justa causa de resolução do contrato de arrendamento por parte do senhorio.
7. A exceptio constitui uma excepção material dilatória, cujo ónus de alegação e prova (do respectivo substracto factual) incumbe ao arrendatário.”
E no Acórdão deste Tribunal da Relação do Porto de 14.03.2017, Processo 27468/15.8T8PRT-A.P1 (disponível em dgsi.pt) foi decidido que “I - Excepcionalmente, é legítimo, é um direito que assiste à ré, poder invocar contra o pedido de despejo imediato, outros meios de defesa para além da prova do pagamento ou do depósito das rendas vencidas na pendência da acção, sob pena de violação do disposto no art.º 20.º da C.R.Portuguesa.
II – Esses meios de defesa terão de ser respeitantes ou estarem directamente correlacionados com a obrigação de pagamento da renda, para poderem ter a virtualidade de impedir, modificar o extinguir tal obrigação durante a pendência da acção, (v.g. a mora do senhorio, a compensação, a excepção de incumprimento).
III - Não constitui meio de defesa legítimo e eficaz em relação ao direito potestativo da autora/senhoria de despejo imediato por falta de pagamento de rendas na pendência da acção, a alegação de que esta se encontra em situação de incumprimento quanto à obrigação de realização de obras de conservação e de reparação no locado.”.
No mesmo sentido, decidiu o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 13-11-2023, Processo 401/22.3T8AVR-A.P1, referindo que “I – A exceção do não cumprimento do contrato apenas pode ser aceite como fundamento para o não cumprimento de uma (contra)prestação desse contrato, quando por via desse não cumprimento se assegure o equilíbrio entre as obrigações no âmbito dos contratos sinalagmáticos.
II – A proporcionalidade na exceção de não cumprimento deve ser encontrada com recurso às regras que obrigam os contraentes a agir de boa-fé no cumprimento dos contratos, como resulta do artigo 762º do Código Civil. Trata-se da consagração do princípio neminem laedere em matéria de execução do contrato.
III - A não realização de obras de conservação pelo senhorio não pode motivar a falta de pagamento de rendas na pendência de ação de despejo de imóvel para habitação, salvo se da falta de realização das mesmas resultar a impossibilidade de uso do imóvel.”.
E, ainda, o recente Acórdão desta 3.ª Secção do Tribunal da Relação do Porto, de 06-02-2025, Processo 2366/23.5YLPRT.P1, Relator: ISOLETA DE ALMEIDA COSTA, no qual se decidiu que “I - No contrato de arrendamento para habitação, ocorrendo diminuição parcial do gozo do locado por razões estranhas à pessoa do arrendatário regula o artigo 1040º do CC, norma que contém afloramento do princípio de exceção de não cumprimento do contrato impressa no artigo 428º do CC a qual tem subjacente a relação sinalagmática, que justifica e delimita o seu campo de aplicação.
II - Sendo o pagamento pontual da renda, a contrapartida do gozo do locado haverá lugar à exceção ao não cumprimento, não sendo exigível o pagamento pontual e integral da renda, se o locatário é privado do gozo integral da coisa ou de uma parte de tal modo essencial do gozo do locado que o fim deste, no caso, a habitação do arrendatário, se frustrou e deixou de poder concretizar-se .
III - Decorre ainda deste regime legal específico do arrendamento previsto no artigo 1040º do CC, que a consequência contratual para uma diminuição parcial do gozo da coisa arrendada que não ponha em causa o fim essencial do arrendamento é uma redução proporcional à respetiva diminuição e extensão do montante estipulado para a renda.”.
Voltando ao caso dos autos, e como já adiantamos supra, a recorrente não logrou fazer a prova de que a fração objeto de arrendamento se mostra inabitável, até porque a mesma aí continua a residir, recusando entrega-la ao recorrido, pelo que o não pagamento das rendas não se mostra justificado.
Quanto ao facto de a recorrente não ter acesso à garagem a aos arrumos, poderia, eventualmente, dar lugar a uma redução da renda, mas não ao não pagamento total da mesma, o que se afigura, desde logo, desproporcional, não justificando a exceção de não cumprimento.
De qualquer modo, nos presentes autos apenas está em causa a entrega/desocupação do locado, tendo apenas isso sido determinado pelo Tribunal a quo, pelo que, na improcedência dos fundamentos do recurso, se mantém a decisão recorrida nos seus precisos termos.
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V - DISPOSITIVO
Pelos fundamentos expostos, acordam os Juízes desta Secção Cível do Tribunal da Relação do Porto, em julgar a apelação improcedente e, em consequência, confirmam, integralmente, a decisão recorrida.
Custas pela apelante – art. 527º, nº1 e 2, do CPC.

Porto, 2025-05-08
Manuela Machado
João Venade
Paulo Dias da Silva