ACIDENTE DE VIAÇÃO
CULPA DO LESADO
CONCORRÊNCIA DE CULPAS
Sumário

I – O art. 505º do Código Civil deve ser interpretado de modo actualista, em conformidade com o direito comunitário, sendo possível a concorrência entre um facto do lesado e o risco do veículo lesante.
II – Se o processo causal que leva à ocorrência do acidente se situa todo do lado da actuação do condutor menor de uma bicicleta, que embate num veículo automóvel ligeiro, não existindo qualquer contribuição de qualquer concreto risco de circulação deste para o embate, nem para a produção ou o agravamento dos danos, não há que assacar qualquer responsabilidade à seguradora do veículo automóvel.
III – O dever de vigilância dos pais integra a adequada formação da personalidade do menor, através da sua educação, e os cuidados e cautelas que, em concreto, devem ser adoptados em cada momento e em cada situação.
IV – Não está afastada a culpa in vigilando se não resulta provado que os pais do menor, com 12 anos de idade, causador do embate, quando conduzia uma bicicleta, levando um outro menor como passageiro na garupa, lhe deram instruções sobre a forma de utilizar com cuidado um tal veículo e sobre regras de circulação no mesmo, o ensinaram que não poderia transportar passageiros na bicicleta e o alertaram para os perigos que dessa conduta poderiam advir, o sensibilizaram para as consequências da utilização indevida e descuidada da bicicleta e lhe inculcaram noções sobre a circulação estradal.
V – Mesmo nas situações em que não há disposição a prever expressamente a concorrência da culpa presumida com a culpa do lesado, como é o caso do art. 491º do Código Civil, o nº 2 do art. 570º do Código Civil não estabelece uma preclusão absoluta do direito à indemnização baseado em presunção de culpa quando se demonstre culpa efectiva do lesado.
VI – A exclusão da responsabilidade do lesante (com base em culpa presumida) só ocorre quando se verifique que o evento danoso foi unicamente devido, de forma adequada e determinante, à culpa do lesado.
VII – Quando a culpa do lesado não for a única causa, ou quando estiver apenas em questão o agravamento dos danos, há que aplicar o disposto no nº 1 do art. 570º do Código Civil.

Texto Integral

Processo: 3603/21.6T8VLG.P1

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Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

I – AA, na qualidade de representante legal do seu filho menor BB intentou, no Juízo Local Cível de Valongo do Tribunal Judicial da Comarca do Porto, acção declarativa, com processo comum, contra “A... - Companhia de Seguros, S.A.”, CC e mulher, DD, e EE, pedindo a condenação da 1ª R. a pagar-lhe a quantia de € 15.000,00 e a quantia que se vier a liquidar, a título de indemnização por danos de ordem patrimonial e não patrimonial, acrescidas de juros de mora, à taxa legal, desde a citação até integral pagamento.
Subsidiariamente pede a condenação dos 2ºs e 3º RR. no mesmo pedido.
Subsidiariamente ainda pede a condenação de todos os RR. “na proporção da culpa com que a segurada da 1ª e o 3º contribuíram para o acidente e/ou os danos” sofridos pelo menor.
Alegou para tal ter sofrido danos não patrimoniais no referido montante, bem como que ficou com sequelas ainda não determinadas e irá necessitar de se submeter a cirurgias de correcção futuras, o que lhe irá causar mais danos patrimoniais e não patrimoniais, na sequência de acidente de viação em que foram intervenientes o velocípede sem motor (bicicleta), conduzido pelo 3º R., menor, filho dos 2ºs RR., que permitiram que tal facto ocorresse, e no qual o A. seguia, como passageiro, na garupa, e um veículo automóvel segurado na 1ª R., tendo dúvidas quanto à medida da responsabilidade de cada um dos veículos na ocorrência do embate.
A 1ª R. contestou, invocando que na petição inicial não foram alegados factos de onde se possa concluir que a representante legal do A. detém essa qualidade em exclusivo, sendo que se não for esse o caso, então ambos os progenitores têm de propor a acção, sob pena de ilegitimidade, impugnando os factos atinentes à dinâmica do acidente e aos danos sofridos, imputando a responsabilidade do acidente ao menor condutor do velocípede e ao menor A., que com ele seguia.
Os 2ºs e o 3º RR. contestaram, invocando a excepção de falta de capacidade judiciária do A. e a excepção de ilegitimidade dos 2ºs e 3º RR., impugnando os factos atinentes à dinâmica do acidente e aos danos sofridos, e alegando que o A. circulava apeado um pouco atrás da bicicleta onde seguia o 3º R., tendo sido ambos colhidos pelo veículo automóvel quando já se encontravam no final do atravessamento da faixa de rodagem, sendo a responsabilidade do embate exclusivamente da condutora deste, para o qual os 2ºs RR. nada contribuíram, nem para os danos sofridos pelo A..
Pediram ainda a condenação da representante legal do A. como litigante de má fé, no pagamento de indemnização.
O A. respondeu, defendendo não se verificar a excepção de ilegitimidade passiva dos 2ºs e 3º RR. e requerendo a intervenção principal provocada do seu pai, a fim de sanar a irregularidade da sua representação.
Por despacho de 07/07/2022, e não tendo havido oposição, decidiu-se admitir a intervenção principal provocada de FF, pai do A., configurando-se a situação como de “preterição de litisconsórcio necessário”. Citado o pai do A., o mesmo nada disse.
Foi realizada audiência prévia, na qual foi elaborado despacho saneador, onde se julgou improcedente a excepção de ilegitimidade passiva invocada, fixou-se o objecto do litígio e dispensou-se a enunciação dos temas da prova.
Por requerimento de 23/01/2024, na sequência do exame pericial realizado, o A. veio “liquidar e ampliar o pedido”, mantendo para os danos não patrimoniais o mesmo montante de € 15.000,00 já liquidado na petição inicial, e peticionando o pagamento da quantia de € 23.855,97 a título de dano patrimonial futuro, por diminuição da sua capacidade aquisitiva, e da quantia a liquidar respeitante ao tratamento para colocação de implantes dentários.
Todos os RR. se pronunciaram pelo indeferimento da pretensão do A., por os danos em questão serem passíveis de correcção (requerimentos de 31/01/2024 e de 05/02/2024).
A ampliação do pedido foi admitida por despacho de 14/02/2024, por ser o desenvolvimento do pedido inicialmente deduzido.
Procedeu-se a julgamento e, após, foi proferida sentença, na qual se decidiu julgar a acção improcedente e, em consequência, absolver os RR. do pedido.
Desta decisão veio o A. interpor recurso, pretendendo a condenação da 1ª e dos 2ºs RR. no pedido, tendo, na sequência da respectiva motivação, apresentado as seguintes conclusões, que se transcrevem:
«1 - Por resultarem inequivocamente provados pela prova documental existente nos autos e terem manifesto interesse para a decisão, devem ser selecionados e dados como provados os seguintes factos que o tribunal a quo omitiu na douta decisão sobre a matéria de facto:
- a faixa de rodagem tem uma largura de 5,80 m
- o local do acidente é uma reta com, pelo menos 50 metros antes do local do embate
2 - A resposta dada na parte final do ponto 1 dos factos não provados contraria frontalmente a prova documental e testemunhal inequívoca sobre esse facto objetivo e evidente, pelo que tem de ser revogada e substituída por outra que dê como provado que:
- ‘O embate deu-se entre o velocípede e a frente do veículo ..- XB-..’’
3 - A resposta dada no ponto 9 dos factos não provados é também contrariada pela prova documental e testemunhal incontestável produzida, [p]elo que tem igualmente de ser revogada e substituída por outra que dê como provado que:
- ‘Após o embate, a viatura ..- XB-.. imobilizou-se a uma distância superior a 5 metros à frente
4 - Por resultar inequivocamente provado pela prova documental e testemunhal existente nos autos e ter manifesto interesse para a decisão, deve ser selecionado e dado como provado o seguinte facto que o tribunal a quo omitiu na douta decisão sobre a matéria de facto:
- ‘Após o acidente, o pavimento da via não apresentava quaisquer vestígios de travagem do XB’
5 - Da conjugação dos demais factos provados que constituem a dinâmica do acidente e da sua análise crítica, á luz da lógica, da experiência comum e das leis incontornáveis da física, resulta apodítica a conclusão de que o acidente também ocorreu como ocorreu em virtude de a condutora do XB circular completamente distraída e sem prestar atenção à condução, pelo que se impõe a revogação, nessa parte, das respostas dadas no ponto 21 dos factos provados e 8 dos factos não provados, e a sua substituição por outra que dê como provado que
- ‘Perante o surgimento do velocípede, a condutora do XB não travou nem se desviou, porque circulava distraída sem prestar atenção à condução’
6 - Verifica-se, assim, uma clara concorrência de culpas na produção do acidente e no agravamento das suas consequências, cuja repartição deve ser fixada em 60% para o condutor do velocípede e de 40% para a condutora do XB.
Sem prescindir,
7 - Mesmo que assim se não entendesse, sempre se verifica uma concorrência entre a culpa do condutor do velocípede e os riscos inerentes à circulação do veículo automóvel, que justifica a obrigação de indemnização, em igual proporção, com base na responsabilidade objetiva,
8 - A prova produzida nos autos apenas permite concluir que o menor EE é tido por um jovem pacífico, tranquilo, cuidadoso, cumpridor e responsável, pelo que a resposta dada no ponto 28 dos factos provados deve ser eliminada.
9 - Da matéria alegada e provada nos autos não resulta que os 2ºs réus tenham cumprido devidamente o seu dever de vigilância do menor EE nem que o acidente teria ocorrido mesmo que o tivessem cumprido, pelo que não ilidiram a presunção legal que sobre eles incumbe.
10 - A conduta do autor em nada contribui para a produção do acidente ou para o agravamento dos danos do mesmo, pelo que não lhe pode ser atribuída qualquer censura ou assacada responsabilidade que exclua a dos réus.
11 - Ao decidir conforme decidiu, o tribunal a quo incorreu em omissão de pronúncia, erro notório da apreciação da prova, e violou, por erro de interpretação, nomeadamente o disposto nos arts. 483º, 491º, 503º, 505º, 506º do C Civil e 24º-1 e 25º do C Estrada.».
A 1ª R. apresentou contra-alegações, defendendo que deve ser negado provimento ao recurso, mantendo-se a decisão recorrida.
Os 2ºs RR. não apresentaram contra-alegações.
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Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
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II – Considerando que o objecto do recurso interposto, sem prejuízo de eventuais questões de conhecimento oficioso, é delimitado pelas suas respectivas conclusões (cfr. arts. 635º, nº 4, e 639º, nº 1, do C.P.C.), são as seguintes as questões a tratar, por ordem lógica de precedência:
a) impugnação da matéria de facto;
b) responsabilidade pela ocorrência do embate e dos danos dele resultantes para o A., ora recorrente;
c) responsabilidade dos 2ºs RR., ora recorridos, por culpa in vigilando;
d) indemnização a arbitrar.
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Analisemos a primeira questão.
O recurso pode ter como objecto a impugnação da decisão sobre a matéria de facto e a reapreciação da prova gravada (cfr. art. 638º, nº 7, e 640º do C.P.C.).
Neste caso, o recorrente deve obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição (nº 1 do art. 640º):
a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
No que respeita à alínea b) do nº 1, e de acordo com o previsto na alínea a) do nº 2 da mesma norma, quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respectiva parte, indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes.
Uma vez que a impugnação da decisão de facto não se destina a que o tribunal de recurso reaprecie global e genericamente a prova valorada em primeira instância, a lei impõe ao recorrente um especial ónus de alegação, no que respeita à delimitação do objecto do recurso e à respectiva fundamentação.
No caso concreto, verifica-se que o recorrente deu cumprimento às referidas exigências, especificando os concretos factos que põe em causa e indicando as razões da sua discordância, nomeadamente por referência aos meios de prova que, em seu entender, sustentam a solução que propugna.
Apreciemos então, sendo os seguintes os factos dados como provados na sentença recorrida (transcrição):
«1. No dia 9 de novembro 2020, cerca das 17:00 horas, BB, menor (nascido a ../../2006), viajava na garupa do velocípede conduzido pelo Réu EE, menor (nascido a ../../2007), na via particular de acesso do n.º ... à Rua ..., em ..., no sentido norte-sul.
2. Nas mesmas circunstâncias de tempo, seguia na Rua ..., sentido ...-..., poente-nascente, o veículo com a matrícula ..- XB-.., pertencente a GG, conduzido por HH.
3. O referido veículo automóvel ligeiro de passageiros de matrícula ..- XB-.. estava seguro na primeira Ré através de contrato de seguro de responsabilidade civil automóvel titulado pela apólice n º ....
4. Nessa sequência, deu-se, na referida Rua ..., o embate entre os referidos velocípede e veículo de matrícula ..- XB-...
5. Por efeito dessa colisão, o menor BB foi projetado pelo ar, embateu no capot do veículo com a matrícula ..- XB-.. e caiu no solo, a distância não concretamente apurada, inanimado.
6. O Autor menor BB foi conduzido ao Centro Hospitalar ..., no Porto, foi assistido no Serviço de Urgência, onde foi sujeito a TAC crânio-encefálica e à coluna cervical, a sutura no lábio inferior e nas gengivas e a tratamentos medicamentosos,
7. Em resultado do referido acidente, o menor BB sofreu:
a. Hematoma/edema e enfisema Subcutâneo na região nasal e maxilar bilateral.
b. Fratura dos ossos próprios do nariz com afundamento/desalinhamento de topos ósseos.
c. Fratura do septo nasal.
d. Fratura da parede anterior do seio maxilar esquerdo com afundamento de pequeno fragmento ósseo e hemossinus associado.
e. Fratura da parede póstero-superior do seio maxilar esquerdo/pavimento da órbita esquerda, com aparente densificação da gordura intra-orbitária adjacente.
f. Imagens sugestivas de fratura da parede medial do seio maxilar esquerdo (visualização dificultada pela ausência de interface osso-ar).
g. Hiperdensidade espontânea da tenda do cerebelo e no 1/3 posterior da foice interhemisférica, não se excluindo mínimo componente hemático agudo atendendo ao contexto clínico.
h. Hiperdensidades lineares na convexidade frontal/fronto-basal bilateral, possivelmente refletindo apenas aspeto de natureza artefatual.
8. No dia 10 de novembro de 2020 teve alta para o domicílio.
9. O Autor menor BB regressou ao Serviço de urgência no dia 13 de novembro de 2020, onde ficou internado, para controlo álgico, tendo tido alta no mesmo dia.
10. Passou a ser seguido em consulta externa de cirurgia plástica.
11. Em consequência do descrito acidente, o menor BB ficou com as seguintes sequelas:
- Face: no lábio inferior e região infra-labial, presença de área cicatricial de forma irregular, com vestígios de pontos de sutura, nacarada e normotrófica, com 3 por 4 cm de maiores dimensões; palpação da face sem crepitações ósseas ou tumefações evidentes; sem dor à palpação; alinhamento da raiz do nariz, sem aparentes dismorfias desta região; mobilidade da face preservada; sem alterações sensitivas à estimulação tátil, com exceção da região cicatricial do lábio inferior, onde é referida hipoestesia;
- Cavidade oral: ausência das peças dentárias 11-13 e 21-23, com cicatrização da região gengival;
- Membro superior direito: na face posterior do terço distal do braço, cicatriz ovalada, nacarada e normotrófica, pericentimétrica.
12. Por efeito direto e necessário do acidente, o menor sofreu:
- Um Período de Défice Funcional Temporário Total (ITT) de 5 dias;
- Um Período de Défice Funcional Temporário Parcial (ITP) de 368 dias;
- Um grau de Quantum Doloris de 4/7.
- Um Défice Funcional Permanente da Integridade Físico-Psíquica de 6 pontos, sujeito a ajuste após correção da perda dentária.
- Um dano Estético Permanente de grau 4 /7, também sujeito a ajuste após correção da perda dentária.
13. Após o embate, e por causa dele, o Autor menor sofreu dores físicas intensas.
14. E, durante um período de tempo não concretamente apurado, sentiu enorme dificuldade em alimentar-se e em concentrar-se nos estudos.
15. Ficou com o seu aspeto estético afetado, pois perdeu 6 dentes.
16. Tais dores, dificuldades e afetação do aspeto estético causaram-lhe desgosto.
17. O Autor menor tem necessidade de ser submetido a uma intervenção dentária para aplicação dos seis dentes que perdeu.
18. À data do acidente, o menor BB era um jovem ativo que praticava exercício físico e atividades desportivas e de lazer.
19. Era um jovem saudável, bem disposto, com alegria de viver.
20. Após o acidente e por força dele, o menor BB teve de se submeter a tratamentos invasivos e dolorosos.
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21. Nas circunstâncias acima descritas, a condutora do veículo com a matrícula ..- XB-.. seguia fazendo uma condução atenta e cuidada,
22. Pela direita da faixa de rodagem.
23. E imprimido ao veículo ..- XB-.. uma velocidade de até 40 Km por hora.
24. A visibilidade em toda a extensão da faixa de rodagem é boa, mas não em relação ao caminho particular que entronca na mesma à esquerda e de onde provinha o velocípede onde seguia o Autor menor.
25. Quando o veículo ..- XB-.. transpunha o referido entroncamento, surge o Autor BB, menor, à boleia, em cima de um velocípede, conduzido pelo 3.º Réu EE, menor.
26. Este velocípede invadiu a via por onde circulava o veículo ..- XB-.., cortando-lhe a linha de trânsito.
27. O referido caminho particular tem uma inclinação descendente em direção à Rua ..., possuindo uma rampa de acesso à mesma.
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28. Os pais do Réu menor EE sempre o instruíram a tomar todas as cautelas a atravessar a estrada.
29. Fruto da educação que lhe foi prestada pelos seus pais, o EE é um jovem com um comportamento considerado exemplar, responsável e querido por todos aqueles com quem convive, sendo educado e respeitador.».
Tendo sido dados como não provados os seguintes factos (transcrição):
«1. O embate entre o velocípede e o veículo descrito nos factos provados ocorreu quando o velocípede entrava na Rua ..., sendo aí colhido pela frente do veículo.
2. Na sequência do descrito acidente, o menor BB esteve internando durante 8 dias no SU do Hospital ....
3. O Autor menor tem necessidade de ser submetido a intervenções de cirurgia estética para correção do lábio e outras para a correção dos ossos do nariz e do septo nasal.
4. Por força das lesões e das limitações decorrentes da sua incapacidade, o Autor menor ficou totalmente privado de levar a sua vida normal, nomeadamente do contacto e convívio com colegas e amigos, e da prática das atividades desportivas e de lazer.
5. É hoje um rapaz triste, deprimido e emocionalmente instável.
6. O Réu EE e o Autor BB abeirarem-se do final da via particular de acesso à Rua ..., em ... e certificaram-se que não circulavam viaturas em qualquer um dos sentidos daquela via, tendo olhado para ambos os lados da mesma
7. Quando iniciaram a travessia da estrada, o menor BB circulava a pé e ligeiramente atrás do Réu EE.
8. A condutora do veículo automóvel circulava em velocidade excessiva face às características da via e distraída sem prestar atenção à condução.
9. Após o embate, a viatura ..- XB-.. imobilizou-se a uma distância de pelo menos 6 metros à frente do local em que embateu nos menores.
10. A condutora, no sentido da via em que seguia, tinha vista desimpedida para a estrada numa distância de 65 metros até ao local do embate, não existindo qualquer obstáculo que lhe impedisse a visão relativamente ao velocípede.
11. O 3.º Réu não contribuiu de qualquer forma para o descrito acidente.».
Pretende o recorrente que:
1) Seja alterada a redacção do ponto 21 dos factos provados [Nas circunstâncias acima descritas, a condutora do veículo com a matrícula ..- XB-.. seguia fazendo uma condução atenta e cuidada] e do ponto 8 dos factos não provados [A condutora do veículo automóvel circulava em velocidade excessiva face às características da via e distraída sem prestar atenção à condução.], para que a redacção do ponto 21 dos factos provados passe a ser “Perante o surgimento do velocípede, a condutora do XB não travou nem se desviou, porque circulava distraída sem prestar atenção à condução” e do ponto 8 dos factos não provados deixe de constar “e distraída sem prestar atenção à condução”.
Como se vê, o que o recorrente exactamente pretende é que se acrescente à matéria de facto provada que “a condutora do XB não travou nem se desviou”, facto que não consta nem do elenco dos factos provados nem do elenco dos factos não provados, e que deixe de constar dos factos provados que a mesma condutora “seguia fazendo uma condução atenta e cuidada” para passar a constar que seguia “distraída sem prestar atenção à condução”.
Ora, quanto ao facto de que “a condutora do XB não travou nem se desviou”, o mesmo não foi alegado por qualquer das partes nos seus articulados, nomeadamente pelo A. na petição inicial (posto que se trata de facto favorável à posição por si defendida na acção).
De acordo com o princípio do dispositivo, que vigora em processo civil, e que se encontra plasmado, nomeadamente, no art. 5º do C.P.C., apenas podem ser tidos em conta os factos essenciais alegados pelas partes (os que constituem a causa de pedir e aqueles em que se baseiam as excepções invocadas), com excepção unicamente dos factos instrumentais que resultem da instrução da causa, dos factos notórios e dos conhecidos pelo juiz por virtude do exercício de funções, e dos factos que sejam complemento ou concretização dos factos alegados pelas partes e que resultem da instrução da causa (neste caso, desde que as partes sobre eles tenham tido a possibilidade de se pronunciar).
Conforme se diz no Ac. da R.P. de 13/06/2023, publicado em www.dgsi.pt, com o nº de proc. 7695/21.0T8PRT.P1, «confere-se, pois, ao juiz, a possibilidade de investigar, mesmo oficiosamente, e de considerar na decisão, desde logo os factos instrumentais que resultem da instrução e discussão da causa. E “factos instrumentais são os que interessam indiretamente à solução do pleito, por servirem para demonstrar a verdade ou falsidade dos factos pertinentes; não pertencem à norma fundamentadora do direito e são-lhe, em si, indiferentes, servindo apenas para, da sua existência, se concluir pela existência dos próprios factos fundamentadores do direito ou da exceção”.
Num outro plano se apresentam os chamados “factos complementares” – os que sejam complemento ou concretização dos factos essenciais que integram a causa de pedir ou em que se baseiam as exceções invocadas –, também eles passíveis de ser considerados pelo juiz, quando resultem da instrução da causa, mas desde que sobre eles tenham tido as partes a possibilidade de se pronunciar.
Como se deixou bem notado no acórdão da RC de 7.11.2017, “para que se possam dar como provados os factos complementares ou concretizadores é necessário que os factos essenciais de que eles sejam complemento ou concretização tenham ficado provados, não sendo de admitir que não sendo provados esses factos essenciais da causa de pedir, se julgue a acção procedente com base nos ditos complementares ou concretizadores mas que afinal substituam os da causa de pedir que não se tenham provado”. O que se deixou dito quanto à causa de pedir vale, naturalmente, para as exceções invocadas pelo réu.»
No caso, o facto em questão, para além de não ter sido alegado por qualquer das partes, nomeadamente pelo A., ora recorrente, em qualquer articulado, e não constituir facto notório ou de conhecimento oficioso (como é manifesto), não é facto instrumental, pois não serve para comprovar qualquer dos factos essenciais da acção alegados, e também não complementa ou concretiza qualquer facto alegado, posto que constitui ele próprio um facto essencial para a caracterização da responsabilidade da condutora do veículo segurado na 1ª R., para além de que quanto à dinâmica do acidente o A. apenas alegou que o velocípede foi colhido pela frente do veículo XB (art. 2º da petição inicial).
E sendo assim, porque o referido facto só poderia ser um facto essencial à pretensão do A. e não foi por este alegado, em conformidade com o que se analisou supra, o mesmo não pode ser considerado pelo tribunal, nem ser inserido na matéria de facto provada, sendo desnecessário averiguar se o mesmo resultou ou não da prova produzida - a integração na factualidade provada da decisão recorrida deste facto consistiria numa violação do princípio do dispositivo previsto no art. 5º do Código de Processo Civil.
E quanto à restante matéria impugnada pelo recorrente nesta parte, trata-se de matéria conclusiva, sendo certo que no elenco dos factos provados e não provados apenas devem constar “factos” e não matéria conclusiva e/ou de direito.
Com efeito, dizer que a condutora fazia uma condução atenta e cuidada ou, ao contrário, que seguia distraída e sem prestar atenção à condução é uma conclusão a retirar de factos concretos respeitantes à forma concreta como aquela desenvolvia a sua actividade de conduzir o veículo automóvel: só de factos caracterizadores do que seria uma condução atenta e cuidada [como seguir pela faixa direita, a determinada velocidade (que se mostre adequada às circunstâncias do local) - tal como ficou a constar dos pontos 22 e 23 dos factos provados -, conduzir a olhar para a frente, olhar para as estradas perpendiculares nos locais de cruzamentos ou entroncamentos, atentar nos peões e outros utentes da estrada, olhar regularmente pelos espelhos retrovisores, abrandar a velocidade na aproximação dos entroncamentos, cruzamentos e passadeiras de peões …] é possível retirar essa conclusão, como apenas de factos caracterizadores do que seria seguir distraída e sem prestar atenção à condução [como estar a olhar para o rádio ou para o painel de instrumentos, estar a consultar o telemóvel, estar a conversar com um passageiro do veículo, olhando para este e não para a estrada, não olhar para os espelhos retrovisores, não olhar para as estradas perpendiculares nos locais de cruzamentos ou entroncamentos, não atentar nos peões e outros utentes da estrada, não abrandar a velocidade na aproximação dos entroncamentos, cruzamentos e passadeiras de peões, ficar a olhar para elementos da paisagem, desviando o olhar da estrada …] é possível retirar esta conclusão.
Aliás, será o julgador que, dos factos que constem da matéria de facto provada, irá retirar a conclusão sobre a forma como seguia a condutora, se atenta ou distraída.
Ademais, no caso, factos que permitissem retirar a conclusão de que a condutora seguia distraída não foram alegados pelo A., tendo sido até os 2ºs e 3º RR. que aduziram a conclusão (no art. 28º da sua contestação), apenas alegando o facto do art. 32º da contestação para sustentar essa conclusão, não alegando outros factos que a permitissem retirar, tendo aquele facto resultado não provado (ponto 10 do elenco dos factos não provados), e de forma definitiva, pois não foi impugnado em sede de recurso.
No sentido da exclusão da matéria conclusiva do elenco dos factos provados da sentença, por via do disposto no art. 607º, nº 4, do C.P.C., cfr. o Ac. do STJ de 29/04/2015, publicado em www.dgsi.pt, com o nº de proc. 306/12.6TTCVL.C1.S1, e o Ac. da R.E. de 28/06/2018, publicado no mesmo sítio da Internet, com o nº de proc. 170/16.6T8MMN.E1. Como se refere neste último acórdão, “na decisão sobre a matéria de facto apenas devem constar os factos provados e os factos não provados, com exclusão de afirmações genéricas, conclusivas e que comportem matéria de direito”, pelo que, “mesmo no âmbito da vigência do actual CPC, a decisão sobre a matéria de facto deve estar expurgada” dessas afirmações, devendo ser eliminado qualquer ponto da matéria de facto que “integre uma afirmação ou valoração de factos que se insira na análise das questões jurídicas que definem o objecto da acção, comportando uma resposta, ou componente de resposta àquelas questões”.
Em face do acabado de referir, há que eliminar os segmentos referidos do elenco dos factos provados e dos factos não provados onde constavam, devendo ainda eliminar-se a restante parte do ponto 8 dos factos não provados, pois que dizer que a condutora “circulava em velocidade excessiva face às características da via” é igualmente uma conclusão a retirar, quer da velocidade concreta apurada (que já consta do ponto 23 dos factos provados, matéria não impugnada), quer das características específicas da via que tenham sido alegadas e que se tenham apurado (no caso, sobre características do local, apuraram-se os factos dos pontos 24 e 27 dos factos provados, matéria também não impugnada).
Assim, elimina-se o ponto 8 dos factos não provados e o ponto 21 dos factos provados e acrescenta-se a parte inicial deste ponto ao ponto 22 dos factos provados, para que a respectiva redacção faça sentido, nos seguintes termos:
- «22. Nas circunstâncias acima descritas, a condutora do veículo com a matrícula ..- XB-.. seguia pela direita da faixa de rodagem.».
2) Seja considerado não provado o facto do ponto 28 dos factos provados [Os pais do Réu menor EE sempre o instruíram a tomar todas as cautelas a atravessar a estrada.] – embora o recorrente diga que a “resposta dada” neste ponto “deve ser eliminada” (conclusão 8ª), percebe-se que o que invoca é que o respectivo facto resultou não provado (cfr. conclusões 8ª e 9ª e o que é alegado na motivação do recurso nesta parte).
Como decorre do que o recorrente aduz nas conclusões 8ª e 9ª e na parte respectiva da motivação do recurso, a impugnação deste facto relaciona-se com a sua pretensão de responsabilização dos 2ºs RR. por violação do dever de vigilância.
Ora, estando em causa a conduta do filho menor destes de circular de bicicleta pela estrada, transportando um passageiro no velocípede, e respeitando o facto do ponto 28 a instruções sobre a forma de atravessar a estrada, que nada tem que ver com a circulação de bicicleta, verifica-se que, como melhor decorrerá do tratamento da questão enunciada sob a alínea c), esta factualidade objecto de impugnação por parte do A. não tem qualquer utilidade para a apreciação do mérito da causa e do presente recurso, posto que, mesmo com a manutenção do referido facto no elenco dos factos provados, será possível apreciar da responsabilidade dos 2ºs RR. por violação do seu dever de vigilância relativamente ao seu filho menor.
Face a tal circunstancialismo é irrelevante a alteração factual pretendida pelo recorrente.
Sendo irrelevante tal alteração factual para a apreciação do mérito da causa, e a fim de não se praticarem actos inúteis no processo (o que até se proíbe no art. 130º do C.P.C.), não há que conhecer da impugnação deduzida quanto à mesma (neste sentido cfr. António Santos Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, Almedina, 2022, 7ª edição actualizada, pág. 334, nota 526, e, entre outros, o Ac. do STJ de 23/1/2020 (proc. 4172/16.4TFNC.L1.S1), C.J.S.T.J., tomo I, pág. 13, e o Ac. da R.P. de 05/11/2018, publicado na Internet, em www.dgsi.pt, com o nº de processo 3737/13.0TBSTS.P1).
Donde, em face do que acaba de se analisar, não se conhece da impugnação da matéria de facto apresentada pelo recorrente no que respeita ao ponto 28 dos factos provados.
3) Seja retirada do ponto 1 dos factos não provados [O embate entre o velocípede e o veículo descrito nos factos provados ocorreu quando o velocípede entrava na Rua ..., sendo aí colhido pela frente do veículo.] a matéria respeitante à ocorrência do embate do velocípede com a frente do veículo (alegada no art. 2º da petição inicial) e inserida a mesma no elenco dos factos provados, com a seguinte redacção: “O embate deu-se entre o velocípede e a frente do veículo ..- XB-..”.
Para o efeito, invoca o teor dos documentos juntos como Docs. 24 e 25 da contestação dos 2ºs RR. (fotografias) e o depoimento da testemunha HH, condutora do veículo automóvel.
Vista a prova produzida, verifica-se que das pessoas inquiridas em julgamento validamente (não se podendo assim considerar a audição do 3º R. em declarações de parte nem do A. em depoimento de parte, posto que ambos eram menores de 18 anos à data, não podendo prestar depoimento ou declarações como parte, nem sequer tendo capacidade para confessar factos – cfr. arts. 453º, nºs 1 e 2, 466º, nº 2, 15º, nº 2, e 16º, nº 1, do C.P.C., e arts. 122º, 123º, 127º e 353º, nº 1, do C.C. –, o que sempre levaria a que se estivesse no caso perante prova proibida), apenas estavam presentes no local as testemunhas HH, que conduzia o veículo automóvel “XB”, e II, que se encontrava no exterior do estabelecimento “B...”, situado na via referida no ponto 1 dos factos provados, sendo que ambas foram unanimes em afirmar que o embate da bicicleta ocorreu com a frente do veículo, tendo confirmado as fotografias juntas com a contestação dos 2ºs e 3º RR. como Docs. 24 e 25, nas quais se pode ver que o local do veículo com sinais de embate é precisamente a sua frente.
Assim, dos elementos de prova referidos pode efectivamente considerar-se demonstrado que o embate ocorreu com a frente do veículo, pelo que tem razão o recorrente na alteração pretendida, havendo que passar este facto do elenco dos factos não provados para o elenco dos factos provados, retirando o mesmo do ponto 1 dos factos não provados e acrescentando-o ao ponto 4 dos factos provados.
Altera-se, pois, a redacção do ponto 4 dos factos provados e do ponto 1 dos factos não provados, nos seguintes termos:
- «4. Nessa sequência, deu-se, na referida Rua ..., o embate entre o referido velocípede e a frente do veículo de matrícula ..- XB-...»;
- «1. O embate entre o velocípede e o veículo descrito nos factos provados ocorreu quando o velocípede entrava na Rua ....».
4) A matéria do ponto 9 dos factos não provados [Após o embate, a viatura ..- XB-.. imobilizou-se a uma distância de pelo menos 6 metros à frente do local em que embateu nos menores.], alegada no art. 30º da contestação dos 2ºs e 3º RR., seja inserida no elenco dos factos provados com a seguinte redacção: “Após o embate, a viatura ..- XB-.. imobilizou-se a uma distância superior a 5 metros à frente”.
Trata-se de um facto que, em si, não é um facto essencial para caracterizar a actuação da condutora do veículo, sendo a serventia dos factos atinentes à distância de imobilização de um veículo relacionada com o apuramento de factos respeitantes à velocidade de circulação do veículo e/ou a partir de que momento podia ser avistada a fonte de perigo e accionado o sistema de travagem, tratando-se aquele de um facto instrumental destes.
Ora, no caso, já consta do ponto 23 dos factos provados a velocidade a que seguia o veículo e dos pontos 24 a 26 constam factos respeitantes à possibilidade (ou não) de avistamento da bicicleta e dos menores pela condutora, factos estes definitivamente assentes, por não terem sido impugnados.
O que significa que é irrelevante a alteração pretendida pelo recorrente, para além de que “uma distância superior a …” não é um facto concreto, nem concretizável, porque superior pode ser qualquer valor desde 5,1 metros até 50 ou 100 metros (todos são valores superiores a 5 metros)! E se o recorrente estaria a pensar no valor de 5,70 metros constante da participação (Doc. 1 da petição inicial), para além de se tratar de um valor resultante apenas da indicação aproximada do ponto do embate pela condutora do veículo (o que foi confirmado pela testemunha JJ, militar da G.N.R. que elaborou a participação de acidente de viação, que explicou que efectuou o croquis com base no que lhe foi dito pela condutora do veículo automóvel), este não contraria os factos que já constam do elenco dos factos provados, até os corrobora, pois que dele resulta que a condutora conseguiu parar o veículo logo após o embate, vindo a baixa velocidade (a uma velocidade de 40 km/hora – e note-se que o facto do ponto 23 refere que a velocidade do veículo era de “até 40 km/hora” – um veículo percorre cerca de 11 metros por segundo, que é o tempo normal de reacção do condutor, ao qual ainda há que acrescer a distância de travagem), sendo desnecessário tal facto para completar a descrição do acidente já constante dos factos provados.
Donde, sendo irrelevante tal alteração factual para a apreciação do mérito do recurso, em face do que acaba de se analisar, nos mesmos termos já referidos na alínea 2) supra, não se conhece da impugnação da matéria de facto apresentada pelo recorrente no que respeita ao ponto 9 dos factos não provados.
5) Seja inserida na matéria de facto, concretamente no elenco dos factos provados, a seguinte matéria (não alegada em qualquer articulado):
a) A faixa de rodagem tem uma largura de 5,80 m;
b) O local do acidente é uma recta com pelo menos 50 metros antes do local do embate;
c) Após o acidente, o pavimento da via não apresentava quaisquer vestígios de travagem do XB.
Desde logo quanto a este último facto, valem as mesmas considerações já expendidas a propósito da impugnação do ponto 9 dos factos não provados, não havendo que conhecer desta alteração factual, por irrelevante para a apreciação do mérito do recurso.
No mais, os factos em causa não foram alegados pelas partes nos seus articulados, pelo que só poderiam ser considerados desde que se tratem de factos instrumentais (remetendo-se para o que se disse na alínea 1) supra, a propósito da distinção entre factos essenciais, instrumentais e complementares, e tendo em conta que para considerar factos complementares é necessário que às partes tenha sido dada a possibilidade de sobre eles se pronunciarem).
Efectivamente os factos em causa não são essenciais, não integrando a causa de pedir, nem complementam ou concretizam qualquer facto alegado que tenha ficado provado, sendo antes factos instrumentais, nos mesmos termos aludidos a propósito do ponto 9 dos factos não provados, posto que serviriam para comprovar factos essenciais relacionados com a velocidade a que seguia o veículo e com a possibilidade (ou não) de avistamento da bicicleta e dos menores pela condutora, factos estes que, como se viu, já constam dos pontos 23 a 26 dos factos provados, definitivamente assentes por não terem sido impugnados, pelo que não há qualquer necessidade de recurso a factos instrumentais para apuramento dos mesmos.
Donde, perante o exposto, também quanto a estes factos a alteração pretendida é irrelevante para o conhecimento do mérito do recurso, não havendo que conhecer da impugnação quanto aos mesmos.
É, assim, de prover apenas parcialmente, nos termos supra referidos, a impugnação da matéria de facto apresentada pelo recorrente.
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Apreciemos a segunda questão.
Tendo em conta o resultado do tratamento da questão anterior, a factualidade a ter em conta para apreciação da pretensão do recorrente é a que consta dos factos dados como provados na sentença recorrida e já transcritos, com as seguintes alterações aos pontos 4, 21 e 22 dos factos provados e 1 e 8 dos factos não provados:
a) Factos Provados:
4) Nessa sequência, deu-se, na referida Rua ..., o embate entre o referido velocípede e a frente do veículo de matrícula ..- XB-...
21) eliminado.
22) Nas circunstâncias acima descritas, a condutora do veículo com a matrícula ..- XB-.. seguia pela direita da faixa de rodagem.
b) Factos Não Provados:
1) O embate entre o velocípede e o veículo descrito nos factos provados ocorreu quando o velocípede entrava na Rua ....
8) eliminado.
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O recorrente defende que o embate se deveu ao comportamento dos condutores da bicicleta e do veículo automóvel, na proporção de 60% de responsabilidade para o condutor daquela e de 40% de responsabilidade para a condutora deste, ou pelo menos com a contribuição em 40% do risco deste veículo.
Vejamos.
A responsabilidade pelos danos provocados por acidentes de viação insere-se no âmbito da responsabilidade civil extracontratual, dependendo da verificação de todos os seus pressupostos (art. 483º do C.C.): existência de um facto voluntário do agente, ilicitude, nexo de imputação do facto ao lesante, o dano e o nexo de causalidade entre o facto e o dano.
Importa, pois, apreender a textura do acidente, reportá-la à acção dos respectivos intervenientes para, valorando juridicamente essa acção, apurar as responsabilidades na produção do mesmo, isto é, averiguar se é possível imputar o facto ao agente, ou melhor, se os condutores dos veículos intervenientes no acidente, nas circunstâncias de tempo, modo e lugar em que o mesmo ocorreu, podiam e deviam ter agido de forma diferente, ou seja, se actuaram com a diligência que um bom pai de família - o homem normal - teria em face do condicionalismo do caso concreto.
Com efeito, a culpa, nos termos do disposto no art. 487º, nº 2, do Código Civil, é apreciada, na falta de outro critério legal, pela diligência de um bom pai de família, em face das circunstâncias de cada caso.
Assim, “agir com culpa significa actuar em termos de a conduta do agente merecer a reprovação ou censura do direito: o lesante, pela sua capacidade e em face das circunstâncias concretas da situação, podia e devia ter agido de outro modo” (P. Lima - A. Varela, Código Civil anotado, vol. I, 4ª ed., pág. 474).
No caso dos acidentes causados por veículos, poderá existir ainda responsabilidade extracontratual, mesmo que não se verifiquem os pressupostos da ilicitude e da culpa, pois que este é um dos casos especificados na lei a que se refere o nº 2 do art. 483º do Código Civil.
Concretamente, respeita o art. 503º do Código Civil à responsabilidade pelos danos provenientes dos riscos próprios do veículo.
O que significa que, mesmo que não se apure a culpa do condutor, se no caso resultar que o acidente é devido a tais riscos, haverá obrigação de indemnizar os danos que sejam causados.
Sendo que, nos termos do art. 505º do Código Civil, sem prejuízo do disposto no artigo 570.º, a responsabilidade fixada pelo n.º 1 do artigo 503.º só é excluída quando o acidente for imputável ao próprio lesado ou a terceiro, ou quando resulte de causa de força maior estranha ao funcionamento do veículo.
Tradicionalmente este normativo foi interpretado no sentido de que daí resultava estar excluída a concorrência entre a responsabilidade pela culpa e a responsabilidade pelo risco (veja-se P. Lima – A. Varela, Código Civil anotado, vol. I, 4ª ed. revista e actualizada, 1987, págs. 517 e 518).
Porém, desde o Ac. do S.T.J. de 04/10/2007, publicado na Internet, em www.dgsi.pt, com o nº de processo 07B1710, elaborado na sequência da publicação de várias Directivas comunitárias respeitantes a responsabilidade civil e ao seguro de responsabilidade civil automóvel e de opiniões doutrinais nesse sentido que foram sendo defendidas por Calvão da Silva e Brandão Proença (na esteira do que já anteriormente era defendido por Vaz Serra, seguido por outros autores, citados no referido acórdão), e tendo em conta a interpretação das disposições nacionais à luz do direito comunitário (na esteira de estudo publicado por Moitinho de Almeida), iniciou-se uma corrente jurisprudencial no sentido de se fazer uma interpretação actualizadora do art. 505º do Código Civil, entendendo-se que pode existir concorrência entre culpa e risco, pois que esta norma apenas excluirá a responsabilidade pelo risco “quando o acidente for devido unicamente ao próprio lesado ou a terceiro, ou quando resulte exclusivamente de causa de força maior estranha ao funcionamento do veículo”.
A partir daí e até ao presente, foram produzidos vários acórdãos sobre o assunto, vários admitindo essa concorrência, embora com algumas divergências quanto ao que deva considerar-se o risco a ter em conta para efeitos de concorrência, tendo até chegado a ser colocada questão prejudicial ao Tribunal de Justiça da União Europeia, que declarou, por acórdão de 09/06/2011 (citado no Ac. do S.T.J. de 05/06/2012, publicado no mesmo sítio da Internet, com o nº de processo 100/10.9YFLSB):
“A Directiva 72/166/CEE do Conselho de 24 de Abril de 1972, relativa à aproximação das legislações dos Estados-Membros respeitantes ao seguro de responsabilidade civil que resulta da circulação de veículos automóveis e à fiscalização do cumprimento da obrigação de segurar esta responsabilidade, a Segunda Directiva 84/5/CEE do Conselho de 30 de Dezembro de 1983, relativa à aproximação das legislações dos Estados-Membros respeitantes ao seguro de responsabilidade civil que resulta da circulação de veículos automóveis, e a Terceira Directiva 90/232/CEE do Conselho de 14 de Maio de 1990, relativa à aproximação das legislações dos Estados-Membros respeitantes ao seguro de responsabilidade civil que resulta da circulação de veículos automóveis, devem ser interpretadas no sentido que não se opõem a disposições nacionais do domínio do direito da responsabilidade civil que permitem excluir ou limitar o direito da vítima de um acidente de exigir uma indemnização a título de seguro de responsabilidade civil do veículo automóvel envolvido no acidente, com base numa apreciação individual da contribuição exclusiva ou parcial dessa vítima para a produção do seu próprio dano.” (sublinhados nossos).
Pelo que, sobre a questão e a sua evolução, nomeadamente no tratamento jurisprudencial até ao presente, podem ver-se, para além dos dois Acs. citados, os Acs. do S.T.J. de 20/01/2009, com o nº de processo 08A3807, de 03/12/2009, com o nº de processo 81/08.9TBFLG.G1.S1 (a versão integral deste acórdão encontra-se publicada com o nº de processo 81/08.9TBFLG.G1,S1), de 15/05/2012, com o nº de processo 4249/05.1TBVCT.G2.S1 (este defendendo que não existe concorrência entre culpa e risco), de 17/05/2012, com o nº de processo 1272/04.7TBGDM.P1.S1, de 14/01/2014, com o nº de processo 284/07.3TCGMR.G3.S1 (este também defendendo que não existe concorrência entre culpa e risco), os Acs. da R.P. de 04/03/2009, com o nº de processo 0817543, e de 25/10/2010, com o nº de processo 808/06.3TBLMG.P1, os Acs. da R.L. de 15/04/2008, com o nº de processo 10793/2007-7, e de 14/06/2011, com o nº de processo 1570/2002.L1-1, os Acs. da R.C. de 03/06/2008, com o nº de processo 801/2002.C1, e de 21/01/2014, com o nº 215/10.3TBCVL.C1, e os Acs. da R.G. de 03/07/2012, com o nº de processo 291/08.9TBVNC.G1, de 04/12/2012, com o nº de processo 1521/10.2TBVCT.G1, e de 08/01/2015, com o nº de processo 140/13.6TBMNC.G1. E mais recentemente o Ac. do S.T.J. de 17/10/2019, com o nº de processo 15385/15.6T8LRS.L1.S1, os Acs. da R.P. de 08/02/2018, com o nº de processo 1091/15.5T8PVZ.P1, de 12/09/2022, com o nº de processo 2223/20.7T8VLG.P1, e de 07/03/2024, com o nº de processo 2291/22.7T8PNF.P1, o Ac. da R.L. de 25/10/2018, com o nº de processo 3955/13.1TBVFX.L1-2, e o Ac. da R.C. de 14/03/2017, com o nº de processo 401/14.7T8LRA.C1, todos publicados em www.dgsi.pt.
Resumindo a questão, pode assentar-se nos seguintes pontos (a jurisprudência não é unânime quanto a todos eles, mas parece-nos a nós, na esteira nomeadamente dos Acs. do S.T.J. de 20/01/2009 e da R.G. de 03/06/2008, citados, que será esta a abordagem da questão que é defensável à luz do direito civil português vigente e do que permite o direito comunitário em termos de interpretação daquele, como decidiu o Tribunal de Justiça da União Europeia, a propósito do reenvio prejudicial já referido):
- o art. 505º do Código Civil deve ser interpretado de modo actualista, em conformidade com o direito comunitário, sendo possível a concorrência entre um facto do lesado e o risco do veículo lesante;
- essa concorrência é de excluir (só) quando o acidente for devido unicamente ao próprio lesado ou a terceiro, ou quando resulte exclusivamente de causa de força maior estranha ao funcionamento do veículo;
- acidente imputável ao lesado ou a terceiro significa precisamente “devido a” ou “atribuível a” facto do lesado ou de terceiro, independentemente de se tratar de facto censurável ou reprovável, de existir ou não culpa do lesado ou de terceiro, por exemplo por este ser inimputável – “não interessa que o lesado ou o terceiro sejam ou não imputáveis, que eles tenham ou não culpa, mas apenas que o seu facto constitua a causa do acidente” (Ac. da R.G. de 04/12/2012, citado);
- como já diziam P. Lima e A. Varela (ob. cit., págs. 518 e 519), “não é um problema de culpa que está posto no artigo 505.°, mas apenas um problema de causalidade: trata-se de saber se os danos verificados no acidente devem ser juridicamente considerados, não como um efeito do risco próprio do veículo, mas sim como uma consequência do facto praticado pela vítima ou por terceiro” (sublinhado nosso);
- a causalidade não é pura ou física, tendo de ser demonstrada a existência de um nexo objectivo de causa-efeito entre a circulação de um veículo e o efeito danoso, ou seja, tem de existir conexão entre o dano e os riscos específicos do veículo, sendo necessário que o perigo latente no exercício da actividade da circulação automóvel se desencadeie;
- nas palavras do citado Ac. da R.G. de 04/12/2012, “é pela análise da sequência naturalística do próprio acidente que se verifica se dela resulta, não obstante a atuação da vítima, a intervenção, no processo causal do acidente, dos riscos próprios” do veículo;
- não se demonstrando tal nexo causal não há responsabilidade pelo risco, pois que esta pressupõe todos os requisitos da responsabilidade civil excepto os da culpa e da ilicitude do facto;
- o direito constituído nacional não presume a causalidade num acidente determinada pelo risco, sendo necessária a prova concreta de uma efectiva causa de risco, a qual não pode ser apenas o mero risco próprio da actividade de circulação, decorrente da sua perigosidade objectiva;
- apenas de “jure condendo” se poderá equacionar uma solução que, atentando na especial vulnerabilidade de crianças, peões, ciclistas e outros utilizadores não motorizados das estradas, preveja sempre a responsabilidade pelo risco, independentemente de a contribuição para o processo causal do acidente ser inteiramente atribuível à conduta daqueles.
Portanto, mesmo admitindo a concorrência entre a culpa e o risco “no processo causal do acidente, isso não significa considerar-se o risco causalmente verificado apenas porque o acidente se verificou entre um veículo motorizado e o peão sinistrado a partir do momento em que se provou que o acidente foi exclusivamente imputável a este último”, tornando-se necessário que seja produzida prova da intervenção naquele processo causal de “um risco próprio concretizado a concorrer com o facto causal do lesado” (cfr. Ac. do S.T.J. de 20/01/2009, já citado).
Admite ainda o Ac. da R.C. de 03/06/2008, citado, uma outra situação de concorrência do risco do veículo, agora não no processo causal que conduz ao acidente, mas na magnitude do dano que por este é produzido, afirmando a existência de “concurso da culpa da vítima com o risco próprio do veículo, sempre que ambos colaborem na produção do dano, sem quebra ou interrupção do nexo de causalidade entre este e o risco pela conduta da vítima como causa exclusiva do evento lesivo” (sublinhado nosso). Aí se tratava de uma situação de atropelamento de um peão por um veículo pesado de mercadorias, com culpa exclusiva do peão na ocorrência do acidente e sem qualquer contribuição do risco do veículo nesta mesma ocorrência, mas em que se considerou que, quanto ao dano produzido (a morte do peão), estava presente “um elemento, inquestionavelmente respeitante ao risco próprio da viatura, cuja contribuição decisiva – avassaladora, mesmo – para a magnitude do dano é evidente”, pois que, estando em causa, “enquanto agente material do atropelamento”, um veículo pesado e “seguindo este a uma velocidade particularmente moderada (30 km/h), a gravidade das lesões directamente causais da morte imediata da vítima (…) só são explicáveis por uma associação causal da fragilidade física desta (…) às grandes dimensões da viatura (…), determinantes de uma muito significativa massa dinâmica”.
Feitas estas considerações teóricas sobre o estado actual da jurisprudência (e da doutrina) na matéria, cabe analisar o caso concreto à luz dos princípios que se consideraram aplicáveis.
Da factualidade dada como provada, no que concerne à dinâmica do acidente, resulta que:
- No dia 9 de Novembro de 2020, cerca das 17:00 horas, o A. viajava na garupa do velocípede conduzido pelo menor EE, na via particular de acesso do n.º ... à Rua ..., em ..., no sentido norte-sul;
- Este caminho particular tem uma inclinação descendente em direcção à Rua ..., possuindo uma rampa de acesso à mesma;
- Na Rua ..., sentido ...-..., poente-nascente, seguia o veículo XB, ligeiro de passageiros;
- A condutora do veículo XB seguia pela direita da faixa de rodagem e imprimido ao veículo uma velocidade de até 40 km/h;
- A visibilidade em toda a extensão da faixa de rodagem é boa, mas não em relação ao caminho particular que entronca na mesma à esquerda e de onde provinha o velocípede;
- Quando o veículo XB transpunha o entroncamento, surgiu o velocípede, que invadiu a via por onde circulava o veículo, cortando-lhe a linha de trânsito;
- Nessa sequência, deu-se, na referida Rua ..., o embate entre o velocípede e a frente do veículo XB;
- Por efeito da colisão, o A. foi projectado pelo ar, embateu no capot do veículo e caiu no solo, a distância não concretamente apurada, inanimado.
Verifica-se, assim, que a condutora do veículo “XB”, que era um veículo ligeiro de passageiros, seguia normalmente na meia faixa de rodagem destinada à circulação dos veículos que tomavam o sentido que prosseguia, ...-..., numa estrada principal, a uma velocidade não superior a 40 km/hora, numa altura em que já estaria a escurecer (visto que se estava no mês de Novembro e eram cerca de 17 horas).
Quando o veículo passava pelo local onde a estrada entronca, do lado esquerdo, considerando o seu sentido de marcha, com a via particular referida no ponto 1, que tem inclinação descendente e uma rampa de acesso à estrada, e para a qual não há boa visibilidade quanto aos condutores que seguem naquele sentido, surgiu o velocípede conduzido pelo 3º R. e no qual o A. seguia como passageiro na garupa, que cortou a linha de trânsito do veículo “XB”, dando-se o embate entre aquele e a frente deste e sendo o A. projectado pelo ar.
Nenhuma actuação culposa (negligente) da condutora do “XB” se consegue surpreender nesta descrição do acidente que resultou apurada, mantendo-se aquela a seguir pela sua hemifaixa de rodagem, tendo sido embatida, enquanto prosseguia a sua marcha normalmente, pela bicicleta onde seguia o A. menor, cujo condutor, o 3º R. menor, não parou na abordagem da entrada na estrada, sendo certo que vinha numa descida, com uma pessoa a mais no velocípede e tendo uma rampa no final da descida, no acesso à estrada, e que não seria facilmente visível para os condutores que seguissem na estrada, considerando a hora do dia e que a visibilidade dos veículos que provinham do local de onde provinha o “XB” era reduzida, pelo que maior prudência nessa entrada se exigia.
Quer dizer, em face da dinâmica de circulação dos veículos acabada de descrever, ocorre que nenhuma apurada actividade da condutora do “XB” contribuiu para a ocorrência do embate com a bicicleta.
Anote-se que “o exercício da condução repousa no chamado "princípio de confiança" no sentido de que não é normal, típico, que as pessoas infrinjam o Código da Estrada ou, de uma maneira geral, faltem aos seus deveres” (Ac. da R.P. de 27/04/1993, sumariado na Internet, em www.dgsi.pt/jtrp, com o nº de processo 9240925; no mesmo sentido Ac. da R.C. de 25/05/2004, com o nº de processo 17/04, publicado no mesmo local: “um condutor não é obrigado a contar com a imprudência alheia, dado o princípio da confiança”).
“À luz do princípio da confiança, não pode um condutor ser responsabilizado por não se ter apercebido da infracção cometida por outro condutor: aos condutores de veículos não é exigível que contem com os comportamentos contravencionais ou imprudentes dos outros utentes da estrada” (cfr. Ac. da R.G. de 10/11/2011, publicado no mesmo sítio da Internet, com o nº de processo 8597/07.8TBBRG.G1).
Não era, pois, exigível à condutora do veículo segurado na 1ª R. que conduzisse a contar que o menor EE entrasse na Rua ... sem parar no entroncamento, desrespeitando as regras de prioridade, que estivesse a contar com a possibilidade de o ciclista vir a infringir uma regra respeitante à circulação de veículos, apenas era obrigada a conduzir ela própria em conformidade com as regras estradais, não lhe sendo exigível que conduzisse a prever que os outros utentes da estrada as podem violar.
E, pode ainda concluir-se, da dinâmica do acidente descrita e analisada, que o processo causal que leva à ocorrência do mesmo se situa todo do lado da actuação do condutor menor, não existindo qualquer contribuição para aquele de qualquer concreto risco de circulação do veículo na concreta situação ocorrida.
Com efeito, o veículo seguia normalmente, a uma velocidade perfeitamente normal, sendo certo que, pela forma como ocorreu, a velocidade nem sequer tem qualquer interferência na eclosão do embate, o qual ocorreria da mesma forma ainda que outra fosse essa velocidade.
Ademais, porque é o velocípede que embate no veículo “XB” ao sair da via particular, de reduzida visibilidade para quem venha do lado de onde provinha o veículo, seguindo com velocidade impelida pela circunstância de vir a descer, de trazer um passageiro e de entrar sem parar na rampa de acesso à estrada, a qual, seguramente, funcionou como meio de impulsão da bicicleta, “atirando-a” para a frente do veículo, é a conduta do menor condutor que unicamente provoca o embate, pois que, uma vez que aquele não parou, a colisão ocorreria com qualquer obstáculo que ali surgisse à sua frente, fosse um qualquer outro veículo ligeiro, mesmo de menores dimensões, como os denominados veículos “citadinos”, ou fosse uma pessoa que ali estivesse a atravessar a pé a entrada da via particular.
Esta conduta do menor é, aliás, objectivamente violadora das regras de circulação estradal, concretamente as decorrentes dos arts. 3º, nº 2 [As pessoas devem abster-se de actos que impeçam ou embaracem o trânsito ou comprometam a segurança, a visibilidade ou a comodidade dos utilizadores das vias, tendo em especial atenção os utilizadores vulneráveis], 11º, nº 2 [Os condutores devem, durante a condução, abster-se da prática de quaisquer actos que sejam suscetíveis de prejudicar o exercício da condução com segurança], 29º, nº 1 [O condutor sobre o qual recaia o dever de ceder a passagem deve abrandar a marcha, se necessário parar, ou, em caso de cruzamento de veículos, recuar, por forma a permitir a passagem de outro veículo, sem alteração da velocidade ou direção deste], 31º, nº 1, al. a) [Deve sempre ceder a passagem o condutor que saia (…) de qualquer prédio ou caminho particular], 35º, nº 1 [O condutor só pode efectuar as manobras de ultrapassagem, mudança de direcção ou de via de trânsito, inversão do sentido de marcha e marcha atrás em local e por forma que da sua realização não resulte perigo ou embaraço para o trânsito], e 91º, nº 2 [ressalvadas unicamente as excepções das alíneas deste artigo, os velocípedes só podem transportar o respectivo condutor], do Código da Estrada.
Não está, pois, provado que um qualquer concretizado risco próprio do veículo “XB” tenha intervindo no processo causal do acidente em concorrência com a descrita actuação do menor (não se identificando na matéria de facto dos presentes autos situação semelhante às relatadas, por exemplo, no Ac. do S.T.J. de 04/10/2007 ou no Ac. da R.P. de 25/10/2010, já aludidos).
E isto, note-se, independentemente da consideração sobre se há um comportamento que possa qualificar-se ou não como culposo por parte do menor, de saber se o mesmo pode ser alvo de um juízo de censura, se era ou não imputável à data dos factos, o que não resulta dos factos provados.
Na verdade, se é certo que se tratava de um menor, não é menos certo que à data do acidente o R. EE tinha 12 anos e 10 meses de idade (cfr. ponto 1) e que, de acordo com o art. 488º, nº 2, do Código Civil, a inimputabilidade apenas se presume nos menores de sete anos, o que significa que no caso teria de haver prova efectiva e concreta da falta de imputabilidade do 3º R..
De todo o modo, atendendo a que, como se disse, se trata aqui de uma questão de nexo de causalidade e de saber se o acidente é ou não devido a facto do menor, independentemente de se tratar de facto culposo ou não, tal questão mostra-se no caso, irrelevante.
Chegados à conclusão de que nenhum risco do veículo “XB” contribuiu causalmente para a ocorrência do acidente dos autos, resta apreciar se, ainda assim, algum risco do mesmo contribuiu para a produção ou o agravamento dos danos, de forma semelhante à tratada no anteriormente referido Ac. da R.C. de 03/06/2008.
Como decorre do que já se disse, esta situação pressupõe uma situação de grande desproporção entre a conduta causadora do acidente praticada pela vítima e o dano que esta vem a sofrer, que em circunstâncias normais não teria tal magnitude, mas que a vem a assumir em face de um risco próprio do veículo que intervém no acidente.
Ora, no caso concreto, a factualidade apurada não permite concluir pela existência de uma tal situação, isto é não é possível dos factos provados assumir que a gravidade das lesões sofridas pelo menor A. não ocorreria da mesma forma acaso o obstáculo em que embateu fosse outro que não aquele concreto veículo “XB”, ligeiro de passageiros.
Efectivamente, tendo o embate ocorrido com a bicicleta e não com o próprio corpo do menor A., sucedendo que este foi projectado pelo ar na sequência da colisão, embateu no capot do veículo e caiu no solo, o que não sucedeu com o menor condutor da bicicleta (cujas lesões, aliás, foram apenas nas pernas – joelhos e tornozelos – e de pequena monta, como se vê nas fotografias que constituem os Docs. 1 a 5 da contestação dos 2ºs e 3º RR.), é de concluir que o facto de o A. ter sido projectado e ter caído, primeiro no capot do veículo e depois no solo, resultou da circunstância de o mesmo ir na garupa da bicicleta (seguramente em equilíbrio precário) e não do embate ter sucedido com o veículo automóvel (pelo que aconteceria igualmente caso o embate fosse com qualquer outro obstáculo que surgisse) e as lesões mais graves que sofreu foram decorrentes da queda e não do embate da bicicleta com o veículo.
Ou seja, as lesões mais graves que o menor A. sofreu foram decorrentes da forma como seguia na bicicleta e não devidas a qualquer risco decorrente da circulação do veículo “XB”. Podendo a queda do menor ao solo, batendo com a cabeça no chão, ocorrer, com as mesmas consequências, ainda que o veículo em que a bicicleta embatesse fosse outro de menor envergadura que o “XB”, ou mesmo que o embate ocorresse por exemplo com um peão ou com um outro obstáculo fixo, como uma depressão no piso ou o lancil de um passeio, ou mesmo se o A. caísse simplesmente por se ter desequilibrado.
O que significa, no caso, que desde que a bicicleta embatesse em qualquer obstáculo, fosse ele qual fosse, e o A. menor caísse batendo com a cabeça no chão, ou mesmo que assim caísse sem ser por embater em algum obstáculo mas apenas por se desequilibrar, as consequências sofridas em termos de danos podiam ser exactamente as mesmas, não o sendo apenas e somente por o veículo envolvido ser concretamente o “XB”.
E tal poderia suceder também se o menor, depois de ser projectado, caísse sem embater com a cabeça no veículo, mas embatendo com a mesma apenas no chão.
Portanto, se agravamento existe dos danos sofridos pelo A. menor, estes decorrem, de acordo com o que está provado, da própria actuação deste, que circulava como passageiro na garupa de uma bicicleta concebida apenas para um ocupante, e do menor condutor da bicicleta, que permitiu que o A. fosse passageiro da bicicleta e era quem assim o transportava, condutas estas objectivamente violadoras da já referida norma do art. 91º, nº 2, do Código da Estrada, e não (porque nada se demonstrou nesse sentido) de um qualquer concreto e específico risco próprio do veículo “XB”.
O que significa que a responsabilidade pela ocorrência do embate é de assacar exclusivamente à conduta do menor condutor do velocípede, não havendo que atribuir qualquer percentagem, por tal ocorrência, ao risco inerente à circulação do “XB”.
E que a factualidade apurada também não permite concluir que o risco inerente à circulação do “XB” tenha por alguma forma contribuído para a ocorrência do resultado, ou seja, dos danos, ou seu agravamento, que surgiram do acidente.
Daí a conclusão de ser a conduta do menor que conduzia o velocípede a única causadora do acidente e de serem as condutas de ambos os menores, o condutor e o passageiro lesado, as únicas causadoras dos danos daquele derivados, não se verificando a existência de qualquer contributo do condutor do veículo “XB” ou do risco do próprio veículo.
Em face do resultado a que se chegou no tratamento desta questão, é de concluir que nenhuma obrigação de indemnização recai sobre a 1ª R., seguradora do veículo “XB”, não merecendo provimento o recurso nesta parte, mantendo-se a sentença recorrida no que à absolvição da 1ª R. do pedido diz respeito.
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Assente a responsabilidade do menor condutor do velocípede na ocorrência do embate, passemos a apreciar a terceira questão.
Defende o recorrente que os 2ºs RR. não ilidiram a presunção do art. 491º do Código Civil, incorrendo em culpa in vigilando.
Até aos 18 anos de idade (maioridade) os filhos estão sujeitos às responsabilidades parentais, competindo aos pais velar pela sua segurança e saúde, prover ao seu sustento, dirigir a sua educação, representá-los e administrar os seus bens. No poder de representação compreende-se o exercício dos direitos e o cumprimento das obrigações do filho, exceptuados os actos puramente pessoais, aqueles que o menor tem o direito de praticar pessoal e livremente (em conformidade com o disposto no art. 127º do C.C.) e os actos respeitantes a bens cuja administração não pertença aos pais (cfr. arts. 1877º, 1878º, nº 1, e 1881º, nº 1, do C.C.).
Com efeito, desde que nascem, as pessoas vão adquirindo maturidade e discernimento até à idade adulta, pelo que, durante o percurso da infância e adolescência, podem actuar de forma irreflectida e sem ponderar as consequências dos seus actos, inclusivamente pondo-se em perigo a si próprios ou pondo em perigo os outros.
E daí que aos representantes legais dos menores, por regra os seus pais, incumba um dever de vigilância daqueles, de modo a evitar que os mesmos pratiquem condutas que possam causar danos a terceiros, incluindo-se este dever nas responsabilidades parentais.
Sucedendo que o menor, com a sua actuação, cause danos a um terceiro, as pessoas obrigadas à sua vigilância são civilmente responsáveis, nos termos do art. 483º do Código Civil, prevendo-se no art. 491º do mesmo código uma presunção de culpa, que determina a inversão do ónus da prova do pressuposto da culpa. Nestes casos não incumbe ao lesado provar a culpa do autor da lesão (regra geral do art. 487º, nº 1, do C.C.), mas é o lesante que tem que provar que não teve culpa.
Concretizando, dispõe o art. 491º do Código Civil que as pessoas que, por lei ou negócio jurídico, forem obrigadas a vigiar outras, por virtude da incapacidade natural destas, são responsáveis pelos danos que elas causem a terceiro, salvo se mostrarem que cumpriram o seu dever de vigilância ou que os danos se teriam produzido ainda que o tivessem cumprido.
Aqui se incluem os pais dos menores de idade, que, por lei, estão obrigados a vigiar os seus filhos menores, os quais, quando este causem algum dano a terceiro, têm de provar que cumpriram o dever de vigilância (isto é, que agiram sem culpa) ou que o dano teria ocorrido do mesmo modo ainda que tivessem cumprido esse dever.
A lei presume que, quando há qualquer dano decorrente de um acto cometido pelo incapaz, ela é proveniente de “culpa in vigilando”, responsabilizando as pessoas obrigadas a vigiar por facto próprio, consistente na “falta (omissão) da vigilância adequada”, sendo que só “em face de cada caso se pode definir a posição do obrigado à vigilância” (cfr. P. Lima - A. Varela, Código Civil anotado, vol. I, 4ª ed., págs. 492 e 493).
“A diligência e o cuidado exigíveis às pessoas obrigadas a vigilância - por exemplo, aos pais - começam antes da verificação do resultado. Haverá que apreciar as circunstâncias de cada caso, tendo-se em vista as concepções dominantes e os costumes” (Mário Júlio de Almeida Costa, Direito das Obrigações, 6ª ed., Almedina, pág. 491).
Como se diz no Ac. do S.T.J. de 03/02/2009, com o nº de proc. 08A3806, publicado em www.dgsi.pt, “a presunção de incumprimento do dever de vigilância justifica-se, por uma série de razões, designadamente, pela verificação de uma estreita relação entre a comissão de um dano pelo incapaz e a falta de adequada vigilância do mesmo, para que aconteça uma mais eficaz protecção do lesado contra o risco da irresponsabilidade ou da insolvabilidade do incapaz, autor material da lesão, para poder contribuir para um reforço da vigilância, quer em benefício de terceiros, como do próprio vigilando e, por fim, pela circunstância de as pessoas obrigadas à vigilância estarem em melhores condições do que o lesado com vista a demonstrar o cumprimento desse dever.
(…) A obrigação de vigilância tem, portanto, um conteúdo concreto, dependente da personalidade e da idade do menor, das circunstâncias do caso, da ocasião e do lugar, e do tipo de acto em causa.
(…) Se não se deve dificultar, excessivamente, a ilisão da presunção de culpa, (…), não é, igualmente, de subestimar a posição do lesado, para tutela de cujo interesse existe a disciplina da responsabilidade civil.
Por seu turno, a obrigação de vigilância, com a inerente presunção de culpa «in vigilando», embora referido a um momento anterior à lesão, pois que se inicia antes do aparecimento do resultado, não deve ser entendida, em sentido absoluto, mas proporcionada às circunstâncias de cada caso, não se devendo ser, demasiadamente, severo, a tal respeito, porquanto não é possível exigir ao vigilante mais do que o necessário, sendo de excluir a culpa de quem deixa certa margem de liberdade à pessoa cuja vigilância lhe compete, de acordo com o costume ou as concepções dominantes, não sendo, outrossim, compatível com o direito do vigilando ao livre desenvolvimento da sua personalidade a imposição de limitações, além da medida do razoável, para o afastar do perigo para com terceiros.
A prova liberatória da culpa dos pais, quando o facto é cometido por um adolescente, sustenta-se na asserção de que é impossível aqueles um controlo contínuo sobre todos os passos e actividades dos filhos, devido ao espaço de liberdade de que estes gozam, de acordo com os actuais hábitos de vida e as novas concepções do poder paternal, que reservam ao menor um espaço crescente de autodeterminação.
Efectivamente, o excesso de rigor na demonstração da prova liberatória da culpa não respeita o princípio da responsabilidade subjectiva, no âmbito da qual, do ponto de vista sistemático, se enquadra a norma da responsabilidade civil dos pais.
Relativamente aos menores, existem circunstâncias objectivas que indiciam a probabilidade do dano e que motivam um especial dever de vigilância dos pais, designadamente, o lugar onde se encontram, os hábitos de jogo na área onde habitam e se movem, o perigo de um determinado objecto e o interesse que a sua utilização desperta, não podendo, por exemplo, ficar inactivos quando, no círculo de tráfico dos filhos, é realizado um jogo perigoso, como sejam as corridas ao desafio na estrada, devendo contar sempre com a participação destes.” (sublinhado nosso).
O dever de vigilância integra a “adequada formação da personalidade do menor, através da sua educação”, e os “cuidados e cautelas que, em concreto, devem ser adoptados em cada momento e em cada situação”.
“Naturalmente que a educação recebida e interiorizada pelo menor condiciona o conteúdo e a medida concreta do dever de vigilância naquele sentido mais restrito, de tal forma que um menor que recebeu a educação devida e que, por via disso, interiorizou os princípios, valores e regras que regem a sociedade, tornando-se uma pessoa responsável e cumpridora das obrigações legais e sociais não exigirá, no dia a dia, a mesma vigilância e as mesmas cautelas que são necessárias para um outro menor que, apesar de ser da mesma idade, não manifesta a mesma personalidade respeitadora dos valores e regras sociais.
(…) Todavia, mesmo nas situações mais graves em que o comportamento do menor revela um total desprezo pelos interesses e direitos dos outros (situação indiciadora de uma personalidade mal formada por força da deficiente educação que recebeu), a culpa in vigilando não radica directamente na omissão do dever de educar, mas sim, e apenas, na violação concreta do dever de vigiar, no seu sentido mais restrito, ou seja, na omissão dos cuidados e cautelas que, naquele caso e nas circunstâncias concretas, deveriam ter sido tomados de forma a evitar o acto danoso, cuidados esses que variam em função da idade da pessoa a vigiar e em função da sua personalidade e do seu carácter.
A culpa in vigilando exprime, pois, um juízo de censura pela omissão do dever de vigilância reportado a um acto concreto e que se traduz na inobservância dos cuidados e cautelas que eram idóneos para evitar a prática daquele concreto acto danoso e que um bom pai de família adoptaria naquelas circunstâncias concretas, em função da idade da pessoa a vigiar e em função da sua personalidade, sentido de responsabilidade e educação recebida.” (cfr. Ac. da R.P. de 04/12/2008, com o nº de proc. 0835295, publicada em www.dgsi.pt – sublinhado nosso).
Assim, no caso concreto, o que resulta dos factos provados é que o menor EE tinha 12 anos e 10 meses de idade, que os pais sempre o instruíram a tomar todas as cautelas a atravessar a estrada e que, fruto da educação que lhe foi prestada pelos seus pais, o EE é um jovem educado e respeitador (o facto de ser considerado exemplar, responsável e querido por todos aqueles com quem convive não é relevante para o caso, posto que não está em causa a forma como os outros o vêem, mas as reais características de personalidade do menor).
Sucede, porém, que está em causa uma conduta de conduzir uma bicicleta, trazendo outro menor na garupa, a descer uma via particular de acesso a uma estrada principal, para passar a circular por esta, abordando o entroncamento sem parar, num local de pouca visibilidade para quem vinha naquela estrada.
Portanto, o que relevava no caso era saber em que contexto o menor teve acesso à bicicleta (era sua ou de familiares?; era de outro colega e ele quis conduzi-la?; tinha autorização para a utilizar na estrada ou apenas em vias não destinadas ao trânsito automóvel?), se lhe foram dadas instruções sobre a forma de utilizar com cuidado um tal veículo (os pais deram-lhe a bicicleta?, fizeram-no para ser utilizada em locais sem trânsito? deram-lhe instruções sobre regras de circulação na bicicleta?, estava autorizado andar sem a companhia de um adulto?), se o ensinaram que não poderia transportar passageiros na bicicleta e o alertaram para os perigos que dessa conduta poderiam advir, se o sensibilizaram para as consequências da utilização indevida e descuidada da bicicleta, se lhe inculcaram noções sobre a circulação estradal, com trânsito de outros veículos …
Estando o menor numa idade de transição entre a infância e a adolescência, reconhecidamente marcado por mudanças físicas e psicológicas relevantes, por irreverência de comportamentos, busca de identidade e de autonomia relativamente aos adultos, necessidade de aceitação pelos pares e pouca consciência do perigo, com apetência por comportamentos de risco, afigura-se não ser suficiente que os pais lhe transmitissem instruções sobre como atravessar a estrada (trata-se aqui de circular a pé), tendo o mesmo acesso a uma bicicleta (sem que os pais alegassem e demonstrassem que a bicicleta não era do menor e que este a ela acedeu sem o seu conhecimento e autorização), posto que andar a pé e atravessar a estrada é uma conduta que nada tem que ver com circular em bicicleta pela estrada (desde logo aquela conduta por regra trará maior perigo para o próprio menor do que para terceiros, enquanto esta conduta, podendo trazer perigo para o próprio, será potenciadora também de perigo para terceiros, por exemplo, peões que podem ser atropelados pela bicicleta).
Concluindo, perante o acto concreto causador de danos, os 2ºs RR., pais do menor, poderiam ter tomado outras precauções que não as referidas no ponto 28 da matéria de facto, destinadas a impedir a condução da bicicleta pelo filho da forma descuidada e desconforme às regras como o fez, bem como o transporte de outras pessoas na mesma, e não alegaram nem provaram tê-lo feito, como deveriam para habilitar o tribunal a apreciar se tais precauções eram ou não adequadas e suficientes ao cumprimento do dever de vigilância.
Mais, não provaram também que os danos ocorreriam da mesma forma independentemente do cumprimento do dever de vigilância ou não – anote-se que o facto do ponto 29 da matéria de facto até aponta em sentido contrário, pois se o menor é educado e respeitador, pode-se admitir que o mesmo respeitaria as instruções sobre a utilização de bicicleta se as mesmas lhe tivessem sido dadas, nada havendo na matéria de facto que permita inferir que o mesmo poderia desobedecer a essas instruções.
Socorrendo-nos das palavras do Ac. da R.L. de 18/06/2013, com o nº de proc. 1579/05.6TBALQ.L1-7, publicado em www.dgsi.pt, “a ressalva que a lei estabelece, na 2ª parte do artigo 491º, prende-se com as situações em que os obrigados ao dever de vigilância venham a produzir efectiva prova de que cumpriram esse dever na plenitude, actuando e precavendo absolutamente tudo o que era possível controlar, ou demonstrando que os danos em apreço se teriam verificado ainda que o tivessem cumprido. (…)
Acontece que nestes autos, nada se encontra provado que afaste a presunção de culpa - e, por inerência, a responsabilidade - expressa no dispositivo legal supra transcrito.
De resto, nem sequer na contestação por si apresentada os RR. alegaram factos demonstrativos do cumprimento desse dever de vigilância, susceptíveis de afastar a presunção legal mencionada.
Com efeito, limitaram-se, essencialmente, a negar que o seu filho tenha embatido na A. (…). Rigorosamente nada disseram a respeito do cumprimento do dever de vigilância do filho menor de onze anos, condição imprescindível para que pudesse vir a ser afastada a presunção de culpa imposta pelo artº 491º, do Código Civil.
Tal afastamento da dita presunção legal constituía um ónus a seu cargo – que manifestamente não satisfizeram.
Serão, nessa medida, responsáveis pelo ressarcimento dos danos provocados pelo seu filho.”.
Verifica-se, pois, que não está afastada no caso a culpa in vigilando dos 2ºs RR., ao contrário do decidido na sentença recorrida.
Aqui chegados, e tendo em conta que, como se analisou no tratamento da segunda questão, a conduta do A. menor, não tendo contribuído para o embate, terá contribuído para a maior gravidade dos danos por si sofridos, resta apreciar das consequências que esta circunstância possa ter na responsabilidade dos 2ºs RR..
Com efeito, dispõe o art. 570º do Código Civil:
1. Quando um facto culposo do lesado tiver concorrido para a produção ou agravamento dos danos, cabe ao tribunal determinar, com base na gravidade das culpas de ambas as partes e nas consequências que delas resultaram, se a indemnização deve ser totalmente concedida, reduzida ou mesmo excluída.
2. Se a responsabilidade se basear numa simples presunção de culpa, a culpa do lesado, na falta de disposição em contrário, exclui o dever de indemnizar.
À primeira vista poder-se-ia concluir que a exclusão do dever de indemnizar prevista no nº 2 (para as situações em que não há disposição a prever expressamente a concorrência da culpa presumida com a culpa do lesado, como é o caso do art. 491º do C.C.) se aplicaria não só aos casos em que a culpa do lesado concorre para a produção dos danos, mas também aos casos em que essa culpa concorre para o agravamento dos danos, perante o teor da norma do nº 1.
Citando o Ac. da R.C. de 15/02/2022, com o nº de proc. 1059/18.0T8VIS.C1 (in www.dgsi.pt): “Resulta evidente do texto do nº 1 do art 570º que nele se englobam duas realidades diversas: por um lado, a concorrência do facto culposo do lesado para a produção dos danos; por outro, essa concorrência para o agravamento dos danos.
A essas duas diferentes realidades faz referência Dario Martins Almeida no seu «Manual de Acidentes de Viação», falando de «concorrência de causas», quanto à concorrência de facto culposo do lesado para a produção dos danos, e de «causalidade sucessiva», quanto à concorrência de facto culposo do lesado para o agravamento dos danos «ou (para) a não remoção deles, quando possível».
Explicando: «Na primeira hipótese estamos perante um acidente desencadeado, no seu processo causal, pela convergência de duas condutas culposas – a do lesante e a do lesado» – exemplificando, com o caso do automobilista que transita com velocidade excessiva numa curva encoberta e atropela um peão que na altura segue em plena faixa de rodagem. «Na segunda hipótese, o dano produzido resulta em parte do facto praticado pelo lesante e em parte (o seu agravamento) do facto posto pelo próprio lesado».
Importa evidenciar, que, o que é comum às duas situações é o fenómeno da causalidade – a conduta do lesado, seja para a produção dos danos na primeira situação, seja para o seu agravamento na segunda, há-se sempre apresentar-se como causal, e a causalidade relevante é a adequada.
A circunstância de se estar num plano de causalidade sucessiva na referida segunda situação, não afasta a necessidade da conduta do lesado se ter de se apresentar como causa adequada do agravamento dos danos.
Assim, para que a conduta do lesado seja tida como causa jurídica do agravamento dos danos, tem a mesma de ser tal que nas condições normais da vida, se tenha como idónea (apta, adequada) à produção daquele tipo de consequência danosa.”.
Sendo que “a culpa do lesado só é culpa em sentido impróprio – no sentido de que este não usou das cautelas exigíveis ou transgrediu preceitos regulamentares que lhe impunham essas cautelas. È que a actuação culposa do lesado não corresponde a um acto ilícito mas apenas ao desrespeito de um ónus jurídico, uma vez que não existe um dever jurídico de evitar a concorrência de danos para si próprio.”
Donde, aplicando ao caso o mesmo critério actualista de interpretação que justificou a evolução jurisprudencial quanto à concorrência entre culpa e risco, nos termos referidos no tratamento da segunda questão enunciada, se nos afigura, por um lado, que o nº 2 do art. 570º do Código Civil “não estabelece uma preclusão absoluta do direito à indemnização baseado em presunção de culpa quando se demonstre culpa efectiva do lesado”, impondo-se “um exercício de ponderação sobre a relevância de cada uma das “culpas” em concurso” (Ac. do S.T.J. de 12/09/2013, com o nº de proc. 308/09.0TBCTB.C1.S1, publicado em www.dgsi.pt).
E, por outro lado, que a exclusão da responsabilidade do lesante (com base em culpa presumida) só ocorre quando se verifique que o evento danoso foi unicamente devido, de forma adequada e determinante, à culpa do lesado, que esta foi a única causa do mesmo (já não quando não for a única causa, nem quando estiver apenas em questão o agravamento dos danos) – como o admitem, embora pronunciando-se sobre situações concretas diferentes, os Acs. da R.P. de 25/11/2024, com o nº de proc. 2316/19.3T8AVR.P1, da R.C. de 13/06/2023, com o nº de proc. 1625/19.6T8CBR.C1, e do S.T.J. de 01/06/2006, com o nº de proc. 06B1012, todos publicados em www.dgsi.pt.
No caso, como decorre do que se analisou na segunda questão, o comportamento do A. menor em nada contribuiu para o evento danoso (colisão da bicicleta com o automóvel), apenas contribuiu, juntamente com o comportamento do menor condutor da bicicleta, para o agravamento das lesões por si sofridas.
Donde, há apenas que aplicar o disposto no nº 1 do art. 570º do Código Civil.
Considerando as circunstâncias do caso, já amplamente analisadas nas questões anteriores, ponderando por um lado que está em causa um lesado menor de idade, à data com 14 anos e 3 meses de idade, com menor percepção do risco, devido às características da adolescência já referidas, em confronto com dois adultos, responsáveis pela ocorrência do evento causador dos danos e do agravamento destes, por violação do dever de vigilância relativamente a um outro menor, de 12 anos e 10 meses de idade, que foi o efectivo causador do embate e que levou o A. na garupa da bicicleta que conduzia, contribuindo activamente para que este assim seguisse, e por outro lado que as lesões sofridas pelo menor descritas no ponto 7 da matéria de facto são em grande parte na cabeça, afigura-se adequado reduzir a indemnização a que haja lugar em 40%, responsabilizando os 2ºs RR. por 60% do valor que se apure ser o dessa indemnização.
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Resta apreciar a quarta questão.
A título de indemnização o A., ora recorrente, peticionou na petição inicial:
- € 15.000,00, a título dos danos não patrimoniais por si sofridos em virtude do acidente dos autos;
- a quantia que se vier a liquidar, a título de indemnização por danos de ordem patrimonial e não patrimonial, porque “o menor tem necessidade de ser submetido a intervenções de cirurgia estética para correção do lábio e outras para correção dos ossos do nariz e do septo nasal e para aplicação dos seis dentes que perdeu”, “intervenções essas que constituem um dano patrimonial e lhe causarão danos de ordem não patrimonial, futuros, cujos montantes, qualidade e intensidades apenas poderão ser apurados na prova pericial requerida”.
Por requerimento de 23/01/2024, na sequência do exame pericial realizado, o A. veio “liquidar e ampliar o pedido”, mantendo para os danos não patrimoniais o mesmo montante de € 15.000,00 já liquidado na petição inicial, e peticionando o pagamento da quantia de € 23.855,97 a título de dano patrimonial futuro, por diminuição da sua capacidade aquisitiva, e da quantia a liquidar respeitante ao tratamento para colocação de implantes dentários.
Da matéria de facto provada resulta, além do mais, que:
- Em consequência do acidente, o A. ficou com ausência das peças dentárias 11-13 e 21-23, com cicatrização da região gengival na cavidade oral;
- E sofreu um défice funcional permanente da integridade físico-psíquica de 6 pontos, sujeito a ajuste após correcção da perda dentária, e um dano estético permanente de grau 4 /7, também sujeito a ajuste após correcção da perda dentária;
- Ficou com o seu aspecto estético afectado, pois perdeu 6 dentes;
- A afectação do aspecto estético causou-lhe desgosto;
- Tem necessidade de ser submetido a uma intervenção dentária para aplicação dos seis dentes que perdeu.
Tais danos, bem como os restantes descritos na matéria de facto são decorrentes do acidente dos autos, havendo lugar à sua indemnização nos termos dos arts. 562º, 563º e 564º, nº 1, do Código Civil, incluindo a compensação pelos danos não patrimoniais sofridos, que deve ser fixada em dinheiro em termos equitativos (arts. 496º e 566º, nº 3, do C.C.), atendendo ainda às circunstâncias referidas no art. 494º do C.C. e à gravidade do dano.
A compensação pelos danos não patrimoniais deve ainda ser fixada tendo em conta a totalidade dos danos dessa natureza sofridos, sem necessidade de fazer subdivisões, discriminando as quantias respeitantes aos danos passados das respeitantes aos danos presentes e futuros, devendo apreciar-se a situação do A. na globalidade e fixar uma quantia única para ressarcimento de todos os danos compensáveis, funcionando aqueles factores como elementos a ter em conta na fixação da compensação, o que se torna até necessário pelo recurso à equidade para o efeito.
Ora, no caso, para além do custo da intervenção cirúrgica futura, relativamente ao qual foi desde logo formulado um pedido ilíquido, visto que só se poderá conhecer o mesmo depois de aquela ser realizada, verifica-se que quer o défice funcional, quer o dano estético respeitam à situação de perda dentária do A. e serão sujeitos a ajustes após a correcção dessa perda, que implicará a submissão daquele à intervenção dentária para aplicação dos seis dentes que perdeu. O que significa que o défice funcional ainda não é definitivo, prevendo-se que possa diminuir sendo a intervenção cirúrgica bem sucedida, o mesmo sucedendo com o dano estético, que poderá ser de valor inferior, mas havendo ainda que contabilizar nos danos dão patrimoniais os sofrimentos eventualmente decorrentes daquela intervenção.
Uma vez que se trata aqui de danos futuros, há que atentar no que dispõe o art. 564º, nº 2, do Código Civil, onde se refere que na fixação da indemnização pode o tribunal atender aos danos futuros, desde que sejam previsíveis; se não forem determináveis, a fixação da indemnização correspondente será remetida para decisão ulterior.
Ocorre que não é ainda possível, nem mesmo recorrendo à equidade, quantificar neste momento o montante dos referidos danos peticionados pelo A., posto que tal quantificação depende do resultado da intervenção cirúrgica a que terá de se submeter.
Assim, ao abrigo dos arts. 564º, nº 2, e 569º do Código Civil e ainda do art. 609º, nº 2, do C.P.C., tal quantificação terá de ser relegada para ulterior liquidação, não podendo os valores a fixar exceder os montantes que o A. pede na presente acção, de € 15.000,00, relativamente aos danos não patrimoniais, e de € 23.855,97, relativamente ao dano patrimonial da perda da capacidade de ganho, atento o disposto no art. 609º, nº 1, do C.P.C..
Já no caso dos danos respeitantes ao tratamento para colocação de implantes dentários não há que estabelecer desde já qualquer limitação máxima do montante a atribuir, uma vez que o A. desde o início formulou um pedido ilíquido nesta parte, não contabilizando tais danos no valor global do pedido líquido que formulou.
Do montante que vier a ser apurado, o A. terá direito a receber 60%, atento o decidido na terceira questão, quantia a que acrescerão juros à taxa legal que esteja em vigor, desde a data em que o crédito do A. se tornar líquido, uma vez que não resulta que a falta de liquidez seja imputável aos 2ºs RR. (arts. 805º, nº 3, e 559º, nº 1 do C.C.).
Assim, concluindo, merece parcial provimento o recurso do A..
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Em face do resultado do tratamento das questões analisadas, é de concluir pela obtenção parcial de provimento do recurso interposto pelo A., com a consequente alteração da sentença recorrida nessa parte, nos termos analisados.
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III - Por tudo o exposto, acorda-se em conceder provimento parcial ao recurso interposto pelo A. e, em consequência:
a) condenar os 2ºs RR., CC e DD, a pagar, solidariamente, ao A. a percentagem de 60% das quantias que vierem a ser liquidadas relativamente aos danos patrimoniais (perda de capacidade de ganho e custo dos tratamentos para colocação dos implantes dentários) e não patrimoniais por si peticionados, acrescidas de juros de mora, à taxa legal que esteja em vigor, desde a data em que o crédito do A. se tornar líquido até integral pagamento, sendo até ao limite de € 15.000,00 relativamente aos danos não patrimoniais e até ao limite de € 23.855,97 relativamente ao dano patrimonial da perda da capacidade de ganho;
b) no mais, negar provimento ao recurso, confirmando-se a restante parte da sentença recorrida.
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Custas da apelação e da acção por recorrente e 2ºs RR. recorridos, na proporção do respectivo decaimento (art. 527º, nºs 1 e 2, do C.P.C.).
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Notifique.
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Sumário (da exclusiva responsabilidade da relatora - art. 663º, nº 7, do C.P.C.):
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datado e assinado electronicamente
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Porto, 8/5/2025
Isabel Ferreira
José Manuel Correia
António Carneiro da Silva