I - Das decisões proferidas no processo de inventário, na fase de saneamento, cabe recurso de apelação autónoma, subindo conjuntamente com este os recursos que pretendam impugnar as decisões interlocutórias proferidas até esse momento.
II - Não sendo interposto recurso dessas decisões no prazo legalmente fixado para o efeito, preclude o direito de impugnação posterior.
- O direito ao recurso não é absoluto, dependendo de um duplo condicionalismo:
a) que a decisão a impugnar tenha sido proferida numa causa de valor superior à alçada do tribunal de que se recorre;
b) que a sucumbência para o recorrente seja de valor superior a metade dessa alçada.
Tribunal Judicial da Comarca do Porto
Juízo de Família e Menores de Matosinhos – Juiz 1
Acordam no Tribunal da Relação do Porto:
I.RELATÓRIO.
Inconformado com o despacho que decidiu o incidente da reclamação da relação de bens, bem como o despacho proferido a 2.05.2024 e com a subsequente sentença homologatória da partilha, o cabeça de casal AA interpôs recurso, o qual, nessa parte, não foi admitido.
Diz-se no referido despacho:
“O Cabeça de Casal veio recorrer do despacho que decidiu o incidente de reclamação à Relação de Bens proferido a 15/11/2022.
Nos termos do disposto no artigo 1123º do Código de Processo Civil (…)
Nº 2 - Cabe ainda apelação autónoma:
(…)
Al. b) Das decisões de saneamento do processo e de determinação dos bens a partilhar e da forma da partilha;
Al. c) Da sentença homologatória da partilha.
Nº 4 - São interpostos conjuntamente com a apelação referida na alínea b) do n.º 2 os recursos em que se pretendam impugnar decisões proferidas até esse momento, subindo todas elas em conjunto ao tribunal superior, em separado dos autos principais.
Decorre do regime legal que o recurso do referido despacho deveria ter sido interposto com o despacho de saneamento do processo proferido nos termos do artigo 1110º nº 1 do Código de Processo Civil,
Tendo o despacho de saneamento do processo nos termos do disposto no artigo 1110º nº 1 do Código de Processo Civil, sido proferido nos autos a 30.01.2023, há muito que precludiu o direito de recurso daquela decisão (a qual de resto foi tempestivamente recorrida pela interessada, cfr apenso C e nessa parte reapreciada por Acórdão do TRP) tendo mais transitado em julgado.
Consequentemente, nos termos do disposto no artigo 641º nº 2 alínea a), do Código de Processo Civil, não admito o recurso.
Veio ainda o Cabeça de Casal recorrer do despacho proferido a 2/05/2024 e da sentença de partilha proferida nos autos, na parte referente às verbas nº 3 e 4 da relação de bens que foram partilhadas pelo valor da avaliação (9.175,50 euros) conforme decisões sob recurso (s) defendendo o recorrente que as mesmas verbas deveriam ser partilhadas pelo valor de 12.000,00 euros.
Ora, da restrição do recurso a este segmento das decisões visadas ter-se-á de concluir que como decorre do disposto no artigo 635.º, n.º 3, do C.P.C, todas as demais questões decididas em tais decisões estão definitivamente resolvidas no processo, (cfr. ainda artigo 639º nº 1 do mesmo diploma). Como Francesco Carnelutti (cfr. “Instituciones del Proceso Civil”, vol II, Buenos Aires, 1959, pág. 193), refere (apud AUJ do STJ de 14/05/ 2015) FERNANDO BENTO, 687/10.6TVLSB.L1.S1-A, publicado no DR, I SÉRIE, 123, 26.06.2015, que aqui seguimos de perto “(...) nem a parte nem o terceiro podem impugnar uma sentença se a ela aquiesceram expressa ou tacitamente. A aquiescência é uma declaração expressa, ou em geral, uma atitude incompatível com o propósito de impugnação (…) Posto que nesta declaração, ou em geral, nesta atitude vê a lei um índice de justiça da sentença, ou, pelo menos, de tolerabilidade da sua injustiça, daí emerge oportunamente uma razão para excluir a utilidade da impugnação (...)” .
Estes princípios estão subjacentes ao preceituado nos n.ºs 2 e 3 do artigo 632.º do Código de Processo Civil, pelo que a parte que aceita tacitamente, não recorrendo, ainda que parcialmente de uma decisão, resigna-se com a mesma e inviabiliza a eventualidade de modificação, nessa parte, da decisão a seu favor.
Mercê do exposto e concretizando estando decididas as questões da partilha que não foram objeto do recurso dos autos formou-se caso julgado nesta parte (artigo 628º do Código de Processo Civil), logo o valor da sucumbência relevante para efeitos de recurso é aquele cuja decisão se procura reverter com o mesmo.
É que para aferir a sucumbência, há a desconsiderar (retirando), no caso de aquela ser parcial, o valor já definitivamente julgado e contra o qual o recorrente oportunamente não se insurgiu e por isso tacitamente aceite.
Daí que, para efeitos de admissibilidade de recurso, o valor da sucumbência seja sempre aferido pelo valor dos interesses não atendidos na decisão de que se recorre, na parte desfavorável da decisão que é impugnada.
Foi este o entendimento do STJ nos Acórdãos de 27-02-1996 (Proc. 086893, relatado pelo Cons. Aragão Seia), 28-03-2006 (Revista n.º 4086/05 - 1.ª Secção, relatado pelo Cons. Pinto Monteiro) e de 22-11-2006 (Revista nº 06S2332 - 4.ª Secção, relatado pelo Cons. Sousa Grandão, todos acessíveis através de http://www.dgsi.pt) (apud citado AUJ de 14/05/2015
(…) Terá sido esta a perspetiva que vingou nos acórdãos Do STJ de 26-09-2007 (Proc. 06S4612) e de 27-10-2010 (Proc. 4483/07.0TTLSB.L1.S1), ambos relatados pelo Cons. Vasques Dinis e segundo os quais: “(...) o valor da sucumbência corresponde ao montante do prejuízo que a decisão recorrida importa para o recorrente, aferido pelo teor da alegação do recurso e pela pretensão nele formulada, equivalendo, pois, ao valor do recurso, traduzido na utilidade económica que, através dele, se pretende obter (...)”.
É que o “recurso visa eliminar o dano que esse prejuízo ou gravame, causado pela decisão recorrida, importa para a parte vencida; por outras palavras, o recurso é o meio processualmente adequado para a remoção da sucumbência e, por isso, é que, por via de regra, só podem ser interpostos pela parte vencida (art. 631.º, n.º 1, do CPC)”. ibidem.
Equivale isto por dizer que em face das conclusões da alegação do recurso o valor em que o Recorrente pretende ver alterada a decisão recorrida é o de €(12.000,00-91.750,50)= 2.824,50/2 (uma vez que lhe cabe metade do ativo partilhável) ou seja €1.412,25
Este é o valor da sucumbência do apelante para efeitos dos recursos interpostos.
A lei processual civil consagra, deste modo, um regime que o faz depender, cumulativamente, (i) do valor da causa (alçada) e (ii) do valor da sucumbência (da perda, do decaimento relativamente ao(s) pedido(s) formulado(s)), relevando, no entanto, apenas aquele, em caso de fundada dúvida sobre este.
Sendo cumulativos os requisitos de admissibilidade do recurso e dado que o valor da sucumbência da apelante é no montante de € 1.412,25, inferior à metade da alçada do Tribunal recorrido que é de € 5.000,00 nos termos do n.º1, do art.º 44.º da Lei n.º 62/2013 de 26.08,, não são por consequência admissíveis os recursos interpostos da decisão de 2/05/2024 e da sentença/reclamação ao mapa proferidos (artigos 629, nº 1).
Com tais fundamentos não admito os referidos recursos”.
Novamente inconformado com aquele despacho que não admitiu o recurso, reagiu o identificado cabeça-de-casal, através da presente reclamação, na qual, na parte que aqui releva, alega:
[...]
“37.
Sustenta o despacho reclamado que o valor da sucumbência não permite ao reclamante apresentar recurso, isto porque o “Recorrente pretende ver alterada a decisão recorrida é o de €(12.000,00-9.750,50)= 2.824,50/2 (uma vez que lhe cabe metade do ativo partilhável) ou seja €1.412,25”.
Nada mais errado,
38.
O Recorrente pretende que sejam eliminados os pretensos créditos da Reclamada de 10.794,80 e de 574,86 €, referidos em b): 4 – ponto VI-d) e 5 – ponto VI-e), com as legais consequências, bem assim como,
39.
Pretende que a partilha da verba nº 3 (ações) e da verba nº 4 (alvéolo) se faça pelo valor que a Reclamada declarou ter recebido e de 12.000 € e não pelo valor da avaliação,
40.
E não se diga que nesta parte o valor da sucumbência é metade de “2.824,50/2 (uma vez que lhe cabe metade do ativo partilhável) ou seja €1.412,25”, porque uma coisa é o valor não partilhável outra coisa é o valor que irá resultar dessa partilha se o tribunal superior tiver o mesmo entendimento que o Reclamante.
41.
Ora, o despacho reclamado é mais uma vez parcial, injusto e violador dos mais princípios básicos, tais como: o princípio da recorribilidade das decisões; princípio da igualdade; o princípio do enriquecimento sem causa; das regras estabelecidas quanto à falsidade da alegação e dos documentos juntos (nº 2 do artigo 449º e art.º 446º a 449º, todos do CPC).
42.
O valor do recurso é de 14.194,16 € e não apenas de 1.412,25 €, pelo que, deverá ser proferido despacho que revogue o reclamado e que admita o recurso interposto.
Termos em que,
Requer que, requer que seja revogado o despacho que não admitiu o recurso interposto, sendo proferido um despacho que admita o recurso interposto tempestivamente e que lhe fixe o valor para efeitos de recurso de 14.194,16 € e não de 1.412,25 €, com as legais consequências;
Mais requer a condenação da reclamada no pagamento das custas e demais encargos legais.
Decidindo desta forma,
Farão Vossas Exas,
A mais Sã e Objetiva Justiça!”.
A reclamada apresentou resposta à reclamação deduzida, pugnando pela manutenção do despacho reclamado.
Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir a aludida reclamação.
II. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO.
Os factos relevantes para a apreciação da reclamação são os constantes os do antecedente relatório.
III. FUNDAMENTOS DE DIREITO.
A 30.11.2024 o cabeça de casal interpôs recurso visando com o mesmo impugnar o despacho de 15.11.2022, que “determinou a inclusão dos pretensos créditos da Recorrida de 10.794,80 e de 574,86 €, referidos em b): 4 – ponto VI-d) e 5 – ponto VI-e), do mapa de partilhas; do despacho de 02/05/2024 que determinou que as verbas nºs 3 e 4 fossem partilhadas pelo valor da avaliação e não pelo valor da venda, da sentença que indeferiu a reclamação apresentada ao mapa de partilhas, bem assim como da condenação em litigância de má fé” – cfr. artigo 1.º das alegações de recurso.
Não tendo sido admitido o recurso que recaiu sobre as indicadas decisões, e tendo o recorrente deduzido reclamação, cabe a esta instância apreciar se deve ser mantido o despacho que decidiu a sua não admissão, ou se, ao invés, deve tal recurso ser admitido.
Dispõe, com efeito, o n.º 6 do artigo 641.º do Código de Processo Civil: “A decisão que não admita o recurso ou retenha a sua subida apenas pode ser impugnada através da reclamação prevista no artigo 643.º”.
As únicas questões a equacionar na presente reclamação diz, assim, respeito à admissibilidade do aludido recurso, negada em primeira instância.
O regime de recursos em processo de inventário acha-se hoje definido no artigo 1123.º do Código de Processo Civil - aditado pela Lei n.º 117/2019, de 13 de Setembro, aplicável aos presentes autos por força do disposto do seu artigo 11.º, n.º 1, última parte -, o qual estabelece:
“1 - Aplicam-se ao processo de inventário as disposições gerais do processo de declaração sobre a admissibilidade, os efeitos, a tramitação e o julgamento dos recursos.
2 - Cabe ainda apelação autónoma:
a) Da decisão sobre a competência, a nomeação ou a remoção do cabeça de casal;
b) Das decisões de saneamento do processo e de determinação dos bens a partilhar e da forma da partilha;
c) Da sentença homologatória da partilha.
3 - O juiz pode atribuir efeito suspensivo do processo ao recurso interposto nos termos da alínea b) do número anterior, se a questão a ser apreciada puder afetar a utilidade prática das diligências que devam ser realizadas na conferência de interessados.
4 - São interpostos conjuntamente com a apelação referida na alínea b) do n.º 2 os recursos em que se pretendam impugnar decisões proferidas até esse momento, subindo todas elas em conjunto ao tribunal superior, em separado dos autos principais.
5 - São interpostos conjuntamente com a apelação referida na alínea c) do n.º 2 os recursos em que se impugnem despachos posteriores à decisão de saneamento do processo”.
A Lei n.º 117/2019, de 13 de Setembro, aqui aplicável, revogou o antecedente regime jurídico do processo de inventário, aprovado pela Lei n.º 23/2013, de 5 de Março, e aprova o regime do inventário notarial, imprimindo a este processo especial de jurisdição contenciosa regras específicas, com definição mais precisa das suas várias fases processuais, e dos vários actos a serem nelas praticados, sob pena de preclusão, com o propósito de afastar o “carácter arrastado, sinuoso, e labiríntico da anterior tramitação”[1].
De facto, como precisa M. Teixeira de Sousa[2], o novo modelo processual do inventário assenta “em fases processuais relativamente estanques e consagra o princípio de concentração dado que fixa para cada ato das partes um momento próprio para a sua realização. Em consequência (…) não pode deixar de comportar algumas cominações e preclusões”.
Segundo o mesmo autor, numa dessas fases – designada por fase do saneamento – e que abrange o ritual disciplinado nos artigos 1109.º e 1110.º do Código de Processo Civil, aditados pela referida Lei n.º 117/2019, de 13 de Setembro, o juiz decide todas as questões ou matéria litigiosas que condicionam a partilha e define o património a partilhar, elaborando o despacho sobre a partilha e definindo as quotas ideais dos vários interessados.
Das decisões proferidas nesta fase processual cabe recurso de apelação autónoma, nos termos do citado artigo 1123.º, n.º 2, b) do Código de Processo Civil, subindo conjuntamente com este os recursos que pretendam impugnar as decisões interlocutórias proferidas até esse momento, como decorre do n.º 4 do referido normativo.
Com tal solução, claramente assente no princípio da autorresponsabilidade das partes, de quem se exige um controlo faseado do processo de inventário em que tenham intervenção, pretende-se assegurar uma maior estabilidade processual e, por via disso, também imprimir ao processo de inventário maior agilidade, evitando o protelamento para a fase final a impugnação das decisões que no seu decurso hajam sido proferidas, que, frequentemente, em caso de procedência, implicava a repetição de actos há muito praticados.
Decorre do exposto que a parte que se considere afectada por qualquer decisão proferida no âmbito dos citados artigos 1109.º e 1110.º, ou por outra decisão interlocutória proferida até esse momento, deve impugná-la por meio de apelação autónoma, no prazo legalmente fixado para o efeito, sob pena de, não o fazendo atempadamente, precludir esse direito.
Assim, quanto ao recurso da decisão de 15.11.2022, de que o cabeça de casal interpôs recurso a 30.11.2024,, tal como refere a decisão reclamada, “Tendo o despacho de saneamento do processo nos termos do disposto no artigo 1110º nº 1 do Código de Processo Civil, sido proferido nos autos a 30.01.2023, há muito que precludiu o direito de recurso daquela decisão (a qual de resto foi tempestivamente recorrida pela interessada, cfr apenso C e nessa parte reapreciada por Acórdão do TRP) tendo mais transitado em julgado”.
Foi, pois, com acerto que, nessa parte, o recurso não foi admitido.
Interpôs ainda o cabeça de casal recurso do despacho proferido a 2.05.2024, discordando do facto de nele se haver determinado que as verbas nºs 3 e 4 fossem partilhadas pelo valor da avaliação e não pelo valor da venda, bem como da sentença homologatória da partilha quanto às verbas em causa.
Determina o n.º 1 do artigo 629.º do Código de Processo Civil que “o recurso ordinário só é admissível quando a causa tenha valor superior à alçada do tribunal de que se recorre e a decisão impugnada seja desfavorável ao recorrente em valor superior a metade da alçada desse tribunal (…)”.
O direito ao recurso não é, pois, absoluto; depende de um duplo condicionalismo:
- que a decisão a impugnar tenha sido proferida numa causa de valor superior à alçada do tribunal de que se recorre;
- que a sucumbência para o recorrente seja de valor superior a metade dessa alçada.
Na avaliação realizada atribuíram os senhores peritos às verbas em causa o valor global de € 9.175,50 (alvéolo = € 7.000,00; acções = € 2.175,50).
No entender do cabeça de casal, àquelas verbas devia corresponder o valor da venda de € 12.000,00, devendo ser partilhadas com tal valor.
A divergência do recorrente cabeça de casal radica, pois, na diferença entre os valores em confronto, ou seja, € 2.824,50.
Tomando como assente que a meação de cada um dos interessados corresponde a metade dos valores a partilhar, essa diferença, no caso em apreço, traduz-se no valor € 1.412,25 para cada um dos interessados no inventário.
Ou seja, o prejuízo que resultaria para o recorrente ao não ser atendida a reclamação apresentada quanto às verbas n.ºs 3 e 4 cifra-se em € 1.412,25, montante correspondente ao valor da sua sucumbência para efeitos daquele recurso, tal como conclui o despacho reclamado.
Ora, sendo esse valor muito inferior a metade da alçada do tribunal de que se recorre[3], não se mostrando, assim, reunidos os requisitos exigidos pelo artigo 629.º, n.º 1 do Código de Processo Civil não podia aquele recurso ser admitido.
Também nesta parte não merece reparo o despacho reclamado ao não admitir o dito recurso.
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IV. DISPOSITIVO.
Nestes termos, acordam os juízes desta Relação em não atender a reclamação apresentada pelo reclamante AA, mantendo a decisão reclamada.
Custas pelo reclamante, fixando-se em 2 UC´s a taxa de justiça
Notifique, remetendo oportunamente estes autos de reclamação à primeira instância.
Porto, 8.05.2025