LIBERALIDADES INOFICIOSAS
LEGADO A FAVOR DO CÔNJUGE
REDUÇÃO
CÁLCULO DO VALOR DOS BENS
Sumário

I - Os sucessores são herdeiros ou legatários, sendo herdeiro o que sucede na totalidade ou numa quota do património do falecido e legatário o que sucede em bens ou valores determinados (art.º 2030.º, n.ºs 1 e 2 do CC).
II - Da deixa testamentária em que o autor da herança declara legar ao cônjuge a totalidade do imóvel em que (ele testador) residisse por ocasião da sua morte resulta para a contemplada, não um direito virtual à totalidade ou a uma quota-parte abstrata da herança, mas um direito diretamente incidente sobre bem determinado, tratando-se, pois, de legado.
III - Tendo o autor da herança e a legatária sido casados entre si sob o regime da comunhão geral de bens, o imóvel objeto do legado integrava o património comum conjugal (art.º 1732.º do CC), pelo que ao dispor dele na totalidade a título de legado, dispôs aquele de um bem que não lhe pertencia por inteiro.
IV - Tal disposição, contudo, porque feita em benefício do cônjuge, não só é válida, como confere ao cônjuge contemplado o direito de exigir o próprio bem legado em substância (art.º 1685.º, n.ºs 1 e 3, al. c), ex vi art.º 2252.º, n.º 2, ambos do CC).
V - O domínio dos bens da herança ou dos legados (art.º 2249.º do CC) adquire-se pela aceitação, independentemente da sua apreensão material (n.º 1 do art.º 2050.º do CC), aceitação que pode ser expressa ou tácita, sendo expressa quando nalgum documento escrito o chamado declare aceitá-lo ou assuma o título de herdeiro ou legatário com a intenção de o adquirir (art.º 2056.º, n.ºs 1 e 2 do CC).
IV - Incidindo sobre bem determinado, dando-se a aquisição do domínio do bem dele objeto com a aceitação, tendo esta, por conseguinte, natureza constitutiva, a transmissão da propriedade do legado dá-se com a mera aceitação, sem necessidade de qualquer operação de partilha.
VII - O direito de redução de liberalidades inoficiosas pode ser exercido, não por qualquer interessado em geral, nem sequer pelos herdeiros legítimos, mas tão somente pelos herdeiros legitimários ou pelos sucessores destes, já que, com a redução, visa-se, não a igualação da partilha, mas a salvaguarda da legítima, não tendo sentido conferir legitimidade para o efeito a outra pessoa que não àquela que, por causa da liberalidade, viu ofendida a sua legítima (art.º 2169.º do CC).
VIII - A reposição do valor pecuniário destinada a afastar a inoficiosidade visa preservar a legítima (art.º 2168.º do CC) e no cálculo desta atende-se ao valor dos bens existentes no património do autor da sucessão à data da sua morte (art.º 2162.º do CC).
IX - Constando do elenco de factos provados, quanto a um dos bens da herança, tão somente o seu valor atual de mercado e já não o seu valor à data da abertura da sucessão, é inviável o cálculo do valor da herança e, consequentemente, o da legítima, impondo-se a ampliação da matéria de facto para apurar o valor em falta (art.º 662.º, n.º 2, al. c) do CPC).

Texto Integral

Processo n.º 5732/21.7T8PRT.P1 - Recurso de apelação
Tribunal recorrido: Juízo Central Cível do Porto, ...



Sumário
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- Acordam na 3.ª Secção do Tribunal da Relação do Porto,




I.- Relatório


.- AA e marido BB instauraram a presente ação declarativa constitutiva, sob a forma de processo comum, contra CC, DD e EE, pedindo que, pela sua procedência:
i.- seja declarada a nulidade da transmissão para a 1.ª Ré do imóvel descrito sob o n.º ...93/20080925, da freguesia ..., inscrito na matriz sob o art.º ...68.º da mesma freguesia;
subsidiariamente,
ii.- seja declarada a nulidade da disposição testamentária que instituiu legatária a 1.ª Ré e, consequentemente, a nulidade da transmissão efetuada com base nela, tendo por objeto o mesmo imóvel;
subsidiariamente,
iii.- seja declarada nula a aquisição do imóvel a favor da 1.ª Ré porque carecida de forma legal (art.ºs 22.º, al. f) do D.L. 116/2008, de 04/07 e 2102.º, n.º 1 do Código Civil);
subsidiariamente,
iv.- seja declarada a existência de inoficiosidade do legado e determinada a restituição do bem, nessa medida, ao património hereditário;
em qualquer caso,
v.- seja ordenado o cancelamento da inscrição efetuada no registo predial a favor da 1.ª Ré, pela Ap. ...08 de 2019/03/19, do prédio descrito na CRP sob o n.º ...93/....

Para tanto, e em síntese, alegaram o seguinte.
Por escritura pública outorgada em 29-08-2005, a 2.ª Ré DD e o seu marido confessaram-se devedores dos Autores da quantia de € 125.000,00, que por estes lhes tinha sido emprestada, com juros à taxa legal e com fixação em € 5.000,00 do valor das despesas extrajudiciais.
Em garantia, os mutuários constituíram a favor dos Autores uma hipoteca sobre 1/5 indivisos de um prédio misto, que descrevem, denominado Quinta ..., sito no lugar ..., freguesia ..., ....
Tendo sido, em 19-12-2013, instaurada por terceiro contra a 2.ª Ré e marido execução para pagamento de quantia certa e nela penhorado o imóvel objeto da referida hipoteca, por apenso à execução reclamaram o seu crédito, que viram reconhecido e graduado no lugar que lhe competia.
O crédito em causa não se encontra, ainda, satisfeito.
Tendo tido conhecimento, entretanto, que a 2.ª Ré e ali executada era titular de um quinhão hereditário na herança aberta por óbito de seu pai FF, falecido em ../../2019, foi tal direito penhorado na execução.
A 1.ª Ré, contudo, na qualidade de viúva e cabeça de casal da herança de FF, prestou na execução informação da qual resultava que, sendo as três Rés as suas únicas herdeiras, o acervo hereditário do falecido marido era constituído pelo seguinte: (i) metade do prédio urbano inscrito na matriz sob o art.º ...68.º, da freguesia ..., concelho e distrito do Porto; (ii) metade do jazigo capela sito no cemitério ..., na União das freguesias ..., ..., ..., ..., ... e ..., no concelho e distrito do Porto.
Mais resultava da informação que a cada uma das herdeiras competia a quota parte de ¼ do jazigo capela, ao passo que à 1.ª Ré, na qualidade de legatária, coube a metade do prédio urbano, cuja propriedade, adquirida a título de legado, já inscrevera, inclusive, no registo.
Este registo fora instruído com o assento de óbito do autor da herança e com testamento do mesmo, declarando legar à sua esposa CC a totalidade do imóvel em que residia na data da sua morte.
Este imóvel era, contudo, bem comum do casal, pois que casados foram em comunhão geral de bens, sendo o autor da herança titular apenas de metade indivisa do prédio; a deixa testamentária e, consequentemente, a aquisição nela fundada, não tendo por objeto coisa certa e determinada, são, por isso, nos termos das disposições conjugadas dos art.ºs 1685.º, n.ºs 1 e 2 e 280.º, n.º 1 do Código Civil, nulas.
Outrossim, a aquisição do prédio pela 1.ª Ré teria de advir de partilha e não da atribuição que a 1.ª Ré, enquanto cabeça de casal, fez a si própria, sendo que a partilha devia ter sido realizada por escritura pública ou por documento particular autenticado, ou por inventário, pelo que, não o tendo sido, é nulo, nos termos do art.º 280.º, n.º 1 do Código Civil, o negócio jurídico pelo qual a 1.ª Ré adquiriu o imóvel.
Finalmente, o prédio tem o valor patrimonial de € 154.411,95, o seu valor venal não é inferior a € 500.000,00 e a 1.ª Ré atribuiu ao bem o valor de € 500,00, pelo que o legado violou a legítima dos herdeiros legitimários e, portanto, a da 2.ª Ré, devedora dos Autores, sendo, por isso, inoficioso.
Deve, em face do exposto, ser reduzido em tanto quanto for necessário para que a legítima seja preenchida, nos termos do disposto nos art.ºs 2168.º e 2169.º do Código Civil.
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Citada, contestou a Ré CC, impugnando o valor dado à causa pelos Autores; arguindo a nulidade fundada em erro na forma de processo; deduzindo a exceção dilatória de ilegitimidade ativa; invocando a exceção perentória de caducidade do direito dos Autores; e impugnando a factualidade alegada por estes e o efeito jurídico de que, com ela, se pretendem prevalecer.
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Citadas, a 3.ª Ré EE pessoalmente e a 2.ª Ré DD editalmente, e citado, ainda, o Ministério Público em representação desta, nos termos do art.º 21.º, n.º 1 do CPC, não foi apresentada contestação.
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Os Autores, convidados para o efeito, exerceram o contraditório relativamente à impugnação do valor da ação e às exceções deduzidas pela Ré contestante, pugnando pela sua improcedência.
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Fixado em € 154.411,95 o valor da causa, foi, depois, dispensada a audiência prévia; indeferida a reclamação quanto à nulidade por erro na forma de processo; considerada não verificada a exceção dilatória de ilegitimidade ativa; fixado o objeto do litígio; e enunciados os temas da prova, os quais, depois de reclamação dos Autores, foram mantidos por despacho proferido em audiência prévia especificamente convocada para a sua apreciação.
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Teve lugar a audiência de discussão e julgamento.
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Foi proferida sentença, julgando parcialmente procedente a ação e, consequentemente:
.- declarando a existência de inoficiosidade do legado, impondo-se ao legatário (aqui 1.ª Ré) a reposição em dinheiro nos termos do art.º 55.º, n.º 2, al. a) da Lei n.º 23/2013, de 05/03, com referência ao valor de € 37.794,44, junto do património hereditário;
.- absolvendo as Rés do mais peticionado.
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Inconformados com a sentença, dela interpuseram os Autores o presente recurso, pugnando pela revogação da decisão e pela sua substituição por outra que acolha o vertido nas suas conclusões, que assim se transcrevem:

1.- Para julgar improcedente a acção quanto aos três pedidos em causa, a sentença recorrida afirmou a conclusão de que a expressão “a totalidade do imóvel em que o testador residir na ocasião da sua morte” corresponde a legado de bem determinado o que fez ilegalmente equivaler à previsão legal “coisa certa e determinada”, referida nos artigos 1685º, nº 2 e 2252º, nº 2 do Código Civil, normas que, por isso, foram pela decisão recorrida violadas.
2.- Resulta do testamento junto sob o documento nº 12 da Petição Inicial, referido no facto provado que o mesmo foi lavrado no dia 20 de Abril de 1989, residindo na Praça ..., ..., ..., no Porto.
3.- Resulta da certidão permanente junta sob o doc. nº 10 da Petição Inicial, que a essa data já havia sido adquirido o imóvel descrito sob o n.º ...93/20080925 da freguesia ... e que os adquirentes residiam na Praça ..., ..., ..., no Porto.
4.- É princípio basilar, em matéria de capacidade patrimonial dos cônjuges, que resulta do nº 1 do artigo 1685º do Código Civil, de que a cada um deles apenas é licito dispor, para depois da morte, dos bens próprios e da sua meação nos bens comuns (ressalvadas as limitações impostas por lei em benefício dos herdeiros legitimários).
5.- Tal princípio apenas cede no caso de a disposição para depois da morte relativa a bem do património comum do casal ter por objecto uma coisa certa e determinada (cfr. artº 1685º, nº 1 do Código Civil). O testamento não inclui no seu texto nenhum legado de coisa certa e determinada.
6.- A aquisição pela 1ª Ré do imóvel propriedade comum do casal sob a invocação do legado decorrente de tal deixa testamentária carece de causa legal, sendo ilícita e nula, porque em violação do disposto nos artigos 1685º, nº 1 e 280º, nº 1, do Código Civil, normas essas que pela decisão recorrida foram violadas.
7.- A decisão recorrida deve, pois, ser revogada e substituída por outra que conhecendo de tal nulidade, declare nula a transmissão para a 1ª Ré do imóvel descrito sob o n.º ...93/20080925 da freguesia ... e inscrito na respectiva matriz sob o artigo ...68 da mesma freguesia.
Sem prescindir:
8.- Quando assim se não entenda e se considere que tal deixa relativa a bem não certo e não determinado possa ser entendida como abrangendo um qualquer bem do património comum do casal, então essa disposição testamentária é nula, por violação do disposto no artigo 1685º, nº 2 e 3, al. c) do Código Civil, atento o disposto no artigo 280º do mesmo Código.
9.- Nesse caso, deve a sentença recorrida ser revogada e substituída por decisão que conhecendo de tal nulidade declare nula tal deixa testamentária, quando daquela forma interpretada.
Ainda sem prescindir:
10.- Ainda que se considere válida a deixa testamentária e que a mesma possa abranger na sua previsão um qualquer bem do património comum do casal, designadamente o prédio urbano inscrito na respetiva matriz sob o artigo ...68, da freguesia ..., concelho ..., que nela não é identificado, a aquisição desse bem do património comum do casal teria que ser efectuada necessariamente através da partilha e não pela atribuição que a si própria a cabeça de casal efetuou, retirando-o do património indiviso da herança e apropriando-se dele.
11.- E a partilha, referindo-se a mesma a bens imóveis e havendo mais do que um interessado, carecia de ter sido feita necessariamente por escritura pública ou documento particular autenticado (artº 22º, al. f) do DL n.º 116/2008, de 04 de Julho), ou por inventário (artºs 2102º, nº 1 do Código Civil).
12.- Nessa medida, a decisão recorrida violou o disposto nas referidas normas legais (artº 22º, al. f) do DL n.º 116/2008 e artºs 2102º, nº 1 do Código Civil), bem como no artigo 280º do Código Civil devendo ser revogada e substituída por outra que declare nula a aquisição do imóvel a favor da 1ª Ré aqui Recorrida, porque carecida de forma legal.
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Também a 1.ª Ré CC, inconformada com a sentença, dela interpôs recurso, pugnando pela revogação da decisão e pela sua substituição por outra que acolha o vertido nas suas conclusões, que assim se transcrevem:

1.- Por sentença proferida nos presentes autos, decidiu o Tribunal de 1ª instância julgar parcialmente procedente, por provada, a presente ação e, em consequência, declarar a existência de inoficiosidade do legado, impondo-se ao legatário (aqui 1.ª R.) a reposição em dinheiro nos termos do art. 55º nº 2 al. a) da Lei n.º 23/2013, de 05-03, com referência ao valor de € 37.794,44, junto do património hereditário, absolvendo as RR. do mais peticionado.
E mais condenou, quanto a custas da presente ação, AA. e RR., na proporção de 70% para os primeiros e 30% para os segundos.
2.- decisão com a qual a aqui Recorrente não concorda e dela interpõe recurso.
3.- Isto porque, o Tribunal a quo, ao entender existir inoficiosidade do legado, errou ao efetuar o cálculo do valor a ser reposto em dinheiro pela 1ª Ré, e aqui Recorrente,
4.- Pois, considerando os bens da herança do falecido FF, melhor identificados em 17 dos factos dados como provados na sentença recorrida, e o valor que foi atribuído aos mesmos, na avaliação efetuada nos presentes autos, para o apurar à data do óbito,
5.- O Tribunal a quo ao efetuar o calculo do valor da herança do de cujus considerou o valor do jazigo na sua totalidade,
6.- em contradição com o que resultou provado em 17 dos factos dados como provados na sentença recorrida, que considerou pertencer ao mesmo apenas metade do jazigo.
7.- Pelo que, assim sendo, deve entender-se que o valor da herança é de € 350.000,00/2 + 34.600,00/2 = € 192.300,00 e não € 350.000,00/2 + 34.600,00 = € 209.000,00, como o Tribunal de que se recorre entendeu na sentença recorrida.
8.- Assim, o valor da legítima da 2ª Ré é de 42.733,33 € e não 46.444,64 €,
9.- valor ao qual se deve descontar o valor de ¼ do referido jazigo, melhor identificado em 17 dos factos dados como provados, transmitido à 2ª Ré, de 8.650,00 €, e entender-se que nos termos do art.º 55º nº 2 al. a) da Lei n.º 23/2013, de 05-03, o valor que a aqui Recorrente deve repor à herança é € 34.083,33 (€ 42.733,33 - € 8.650,00).
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O Ministério Público, em representação da Ré DD, respondeu aos recursos interpostos pelos Autores e pela 1.ª Ré, concluindo:
.- quanto ao primeiro, que: a sentença recorrida fez uma correta interpretação do art.º 1685.º, n.º 2 e 3, al. c), conjugado com o 2252.º, do CC e não viola qualquer disposição legal;
.- quanto ao segundo que: o tribunal a quo decidiu corretamente pela inoficiosidade da liberalidade; aplicou corretamente as normas relativas à partilha da herança, determinando a redução da liberalidade; qualquer erro de cálculo deverá ser corrigido nos termos do art.º 249.º do CC e 614 do CPC.
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Ambos os recursos foram admitidos como apelação, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo e assim recebidos nesta Relação, que os considerou corretamente admitidos e com o efeito legalmente previsto.
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Recebidos os recursos, foi facultada às partes, ao abrigo do disposto no art.º 3.º, n.º 3 do CPC, a possibilidade de se pronunciarem sobre a eventual verificação da exceção dilatória de ilegitimidade ativa quanto ao pedido dos Autores de declaração de inoficiosidade do legado instituído a favor da 1.ª Ré CC, exceção essa de conhecimento oficioso e com relevo para a questão a decidir no âmbito do recurso interposto por esta última.
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A propósito da questão assim suscitada, pronunciaram-se os Autores AA e BB, batendo-se pela impossibilidade de conhecimento da exceção, em razão do caso julgado, quer formal, quer material, que, na sua perspetiva, se verificaria quanto à mesma.
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Colhidos os vistos legais, cumpre, pois, apreciar e decidir.
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II.- Das questões a decidir
.- O âmbito dos recursos, tal como resulta das disposições conjugadas dos art. ºs 635.º, n.º 4, 639.º, n.ºs 1 e 2 e 641.º, n.º 2, al. b) do Código de Processo Civil (doravante, CPC), é delimitado pelas conclusões das alegações do recorrente.
Isto, com ressalva das questões de conhecimento oficioso que ainda não tenham sido conhecidas com trânsito em julgado ou das que se prendem com a qualificação jurídica dos factos (cfr., a este propósito, o disposto nos art. ºs 608.º, n.º 2, 663.º, n.º 2 e 5.º, n.º 3 do CPC).
Neste pressuposto, as questões que aqui importa apreciar e decidir são as seguintes:

A.- Quanto à apelação dos Autores AA e BB
1.- da inexistência de legado e, consequentemente, de título válido de aquisição, pela 1.ª Ré, do prédio urbano descrito na CRP do Porto sob o n.º ...93/20080925 e inscrito na matriz sob o art.º ...68.º, sito na freguesia ..., concelho e distrito do Porto;
2.- da necessidade de partilha para a aquisição do imóvel pela 1.ª Ré;

B.- Apelação da 1.ª Ré CC
1.- Do valor pecuniário a repor pela 1.ª Ré, em consequência da inoficiosidade do legado.
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III.- Da Fundamentação
III.I.- Na sentença proferida em 1.ª Instância e alvo deste recurso foram considerados provados os seguintes factos:
1.- Por escritura pública de 29 de Agosto de 2005, exarada a fls. 133, do Livro ...4-A, do Cartório da Notária GG, a segunda Ré DD e o seu marido confessaram-se devedores dos Autores da quantia de € 125.00,00, que por estes lhes tinha sido emprestada.
2.- O empréstimo foi efetuado com juros à taxa legal, tendo ainda sido fixado em € 5.000,00 o valor das despesas extrajudiciais.
3.- Em caução e garantia do referido empréstimo e dos juros devidos, a referida Ré e marido constituíram a favor dos Autores hipoteca sobre 1/5 indivisos do seguinte prédio:
.- prédio misto, composto de casa de habitação de sobrado, palacete, jardim com estufas, casa pegada para arrumação e quintal com árvores de fruto, casa de habitação de sobrado, pátio com currais e ramada eira e canastro, estábulos e área descoberta cultura de regadio, vinha, terreno com cedros de ramada, pomar, mato eucaliptal, santuários e grutas, denominado “Quinta ...” sito no lugar ..., freguesia ..., concelho ..., descrito na conservatória do registo predial sob o nº ...29/20021223 e inscrito na matriz predial rústica sob os artigos 105, 112, 115 e ...36 e na matriz predial urbana sob os artigos ...67, ...81, ...82, ...83, ...85, ...94 e ...98.
4.- Os Autores procederam ao registo definitivo a seu favor de tal hipoteca, através da apresentação nº 22 de 07/09/2005.
5.- A segunda Ré e marido nada pagaram aos Autores, com referência ao valor referido em 1.
6.- Em 19/02/2013 foi instaurada por HH execução de sentença para pagamento de quantia certa contra a segunda Ré DD e contra o seu marido II, para cobrança da quantia de 12.500,00€, relativa às rendas vencidas desde fevereiro a dezembro de 2009, acrescida das rendas vencidas desde essa data até abril de 2012 e dos juros de mora vencidos, à taxa legal de 4%, desde a data de vencimento de cada uma das rendas e sobre o respectivo montante.
7.- Tal execução, à data da sua instauração a correr termos pelo 2.º Juízo Cível do Tribunal Judicial da Comarca de Vila do Conde, encontra-se agora pendente, sob o nº ..., no Tribunal Judicial da Comarca do Porto, Juízo de Execução - ....
8.- Face à penhora, nessa execução, dos imóveis dados de hipoteca, os aqui Autores, tendo para tal sido notificados, reclamaram o seu crédito, que, à data, liquidaram no montante de € 172.917,81.
9.- Nesses mesmos autos esse seu crédito foi, inicialmente, reconhecido apenas até ao montante máximo garantido pela hipoteca, ou seja € 145.000,00 e graduado logo após o crédito da Fazenda Nacional, proveniente de IMI e antes do crédito da exequente.
10.- Face ao reconhecimento apenas parcial do seu crédito, os Autores instauraram também execução contra a segunda Ré e marido para pagamento de quantia certa, na qual foi realizada penhora sobre os bens já penhorados na execução onde havia sido reconhecido o seu crédito, na parte correspondente ao valor máximo garantido pela hipoteca.
11.- Por tal facto, em 20 de abril de 2017, os Autores reclamaram de novo na acima identificada execução o remanescente do seu crédito que, à data, ascendia ao valor de € 49.613,00.
12. Em 18/01/2021, foi proferida sentença que reconheceu aos aqui Autores o crédito reclamado e que declarou que o mesmo também beneficia da garantia da penhora, graduando-o em 4.º lugar, após o crédito da Fazenda Nacional proveniente de IMI, o crédito dos próprios Autores já anteriormente reconhecido e garantido até ao limite máximo assegurado pela hipoteca e o crédito da exequente.
13.- Não se tendo procedido ainda à venda dos bens penhorados.
14.- Os bens penhorados na execução eram os únicos bens conhecidos aos executados.
15.- Entretanto, veio ao conhecimento dos Autores que a executada DD, aqui segunda Ré, é titular de um quinhão hereditário na herança aberta por óbito de seu pai, FF, falecido em ../../2019.
16.- Na sequência da penhora do quinhão hereditário, a aqui primeira Ré CC, viúva do de cujus e cabeça de casal na respetiva herança, foi aos autos de execução na qual os aqui Autores figuram como exequentes informar que:
.- “…a executada DD é herdeira por óbito do seu pai FF, conforme imposto de selo que ora se junta por óbito do mesmo apresentado junto da Autoridade Tributária e Aduaneira, que ora se envia, e onde se encontram relacionados os bens deixados por óbito do mesmo, às suas herdeiras, esposa e filhas.
Assim, como se pode constatar, a executada DD herdou por morte de seu pai ¼ do bem descrito como jazigo capela nº ...82 Secção NE-Sul no cemitério ..., melhor identificado na verba nº 2 da participação de imposto de selo que ora se junta.”.
17.- Da participação de Imposto de Selo mencionada e pela primeira Ré junta a esses autos resulta que por óbito do referido FF foram relacionados duas verbas, como constituindo o respectivo acervo hereditário:
.- Verba n.º 1: metade do prédio urbano inscrito na respetiva matriz sob o artigo ...68, da freguesia ..., no concelho e distrito do Porto;
.- Verba nº 2: metade do jazigo capela nº ...82 Secção NE-Sul NP no cemitério ..., na União das freguesias ..., ..., ..., ..., ... e ..., no concelho e distrito do Porto.
18. Também dessa participação resulta que os herdeiros do de cujus são as três Rés, cônjuge sobrevivo e filhas, respetivamente.
19.- Resulta, ainda, dessa participação que a ali declarante refere ser também legatária.
20.- Na página 3 de 4 da participação de Imposto de Selo destinada à liquidação do imposto eventualmente devido pela transmissão decorrente de sucessão hereditária, encontra-se unicamente mencionada a verba nº 2 (o jazigo, portanto), com a indicação de que a cada uma das herdeiras (cônjuge sobrevivo e cada uma das duas filhas) compete a quota parte de 1/4.
21.- Na página 4 de 4 da mesma participação de Imposto de Selo destinada à liquidação do imposto eventualmente devida pela transmissão da título de legado, encontra-se mencionada a verba 1 (metade do prédio urbano inscrito na respetiva matriz sob o artigo ...68.º da freguesia ...), atribuída na sua totalidade à cabeça-de-casal (NIF ...13).
22.- E, como resulta da certidão da CRP, a primeira Ré registou já a seu favor, a título definitivo, o direito de propriedade relativamente ao próprio imóvel, descrito sob o n.º ...93/20080925 da freguesia ..., mediante pedido sob a apresentação 3008 de 19/03/2019, ali se encontrando mencionada com causa da aquisição - legado.
23.- O pedido de registo foi instruído com o assento de óbito nº ...27/2019 e com um testamento.
24.- Tal testamento refere, além do mais, o seguinte:
“(…)
Que lega a sua esposa CC a totalidade do imóvel em que o testador residir na ocasião da sua morte e o respectivo recheio mobiliário.
Institui a mesma sua esposa herdeira do remanescente da sua quota disponível. …”
25.- O aludido imóvel foi adquirido por FF casado com CC no regime de comunhão geral, aquisição registada através da Ap. ...5 de 1988/08/23
26.- O prédio urbano inscrito na respetiva matriz sob o artigo ...68, da freguesia ..., tem o valor patrimonial de 154.411,95€ (doc. nº 13 que se junto com a petição inicial).
27.- O valor de mercado do imóvel sito na Rua ..., na presenta data, é de € 517.800,00, sendo que, à data de Janeiro de 2019, era de € 350.000,00.
28.- A primeira Ré atribuiu ao bem constante da Verba nº 2 o valor de 500,00€ (quinhentos euros), sendo que o valor de mercado do Jazigo sito no cemitério ... é de € 34.600,00.
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III.II.- Do objeto do recurso

A.- Apelação dos Autores AA e BB

1.- Da inexistência de legado e, consequentemente, de justa causa de aquisição, pela 1.ª Ré, do prédio urbano descrito na CRP do Porto sob o n.º ...93/20080925 e inscrito na matriz sob o art.º ...68.º, sito na freguesia ..., concelho e distrito do Porto

O quadro – assente – com que nos deparamos neste recurso é o seguinte.
A Ré CC, enquanto cônjuge, e as Rés DD e EE, enquanto filhas, são as únicas herdeiras de FF, falecido em ../../2019.
O falecido FF e a 1.ª Ré CC foram casados entre si sob o regime da comunhão geral de bens e do respetivo património comum fazia parte, além do mais, o prédio urbano descrito na CRP do Porto sob o n.º ...93/20080925 e inscrito na matriz sob o art.º ...68.º, da freguesia ..., do concelho e distrito do Porto.
Por testamento lavrado em ../../1989, o falecido declarou, além do mais, legar à sua esposa, a 1.ª Ré, a totalidade do imóvel em que ele testador residisse na ocasião da sua morte, imóvel esse que, já naquela data, correspondia ao supra mencionado prédio urbano.
Na participação efetuada ao competente serviço de finanças para efeitos de liquidação do Imposto de Selo devido pela transmissão, foi, além do mais, relacionada, sob a verba n.º 1, a metade do sobredito prédio urbano como integrando o acervo hereditário do de cujus e feita menção ao facto de tal verba ter sido atribuída na sua totalidade à cabeça de casal, a 1.ª Ré.
Esta, com base em certidão do assento de óbito do falecido marido e do referido testamento, fez inscrever no registo a seu favor, em termos definitivos, a aquisição da propriedade do imóvel, invocando como causa da aquisição o legado.
Os Autores, quer na ação, quer na sua apelação, invocam que o referido “testamento não incluiu nenhum legado de coisa certa e determinada”, pelo que só podendo os cônjuges, como regra geral, dispor, para depois da morte, dos bens próprios e da sua meação nos bens comuns (art.º 1685.º, n.º 1 do CC) e não se verificando, no caso, qualquer das exceções legalmente previstas a tal regra geral (mormente, a da alínea c), do n.º 2, daquele art.º 1685.º, que contemplaria o legado, caso este existisse), a deixa testamentária em causa não pode ser tida como título válido de aquisição do prédio pela 1.ª Ré.
Na sentença recorrida, concluiu-se precisamente o contrário, isto é, que a deixa testamentária encerrava, na realidade, um legado do prédio em questão, pelo que, tendo tal legado, apesar de incidir sobre bem do património comum do casal, beneficiado o cônjuge (a 1.ª Ré), constituiu o mesmo, nos termos das supra referidas disposições conjugadas, título válido de aquisição do prédio pela 1.ª Ré.
A questão que aqui importa apreciar e decidir é, pois, a singela de saber se a deixa testamentária do falecido marido da 1.ª Ré constituiu ou não um legado e se, por conseguinte, é válida a disposição que nele se encerra do bem que dele é objeto a favor da 1.ª Ré.
Ora, adiantando desde já a resposta a dar à questão colocada, tal resposta só pode ser afirmativa, concordando-se integralmente com a apreciação que, a esse propósito, foi feita na sentença recorrida.
Vejamos.

É sabido que os sucessores são ou herdeiros, ou legatários (n.º 1 do art.º 2030.º do CC), sendo herdeiro o que sucede na totalidade ou numa quota do património do falecido e legatário o que sucede em bens ou valores determinados (n.º 2 do mesmo preceito).
Ou seja, saber se alguém foi instituído como herdeiro ou legatário é algo a aferir em função da indeterminação ou determinação dos bens deixados, sendo herdeiro no primeiro caso e legatário no segundo.
Note-se que ao dizer-se que o legatário sucede em bens determinados, quer dizer-se “que apenas sucede em certos bens com exclusão dos restantes bens do de cujus”; já quanto ao herdeiro, “o seu direito estende-se, real ou virtualmente, à totalidade da herança ou a uma quota-parte dela”, sendo este, por conseguinte, “um sucessor a título universal, ao passo que o legatário é um sucessor a título singular” (v., neste sentido, Cristina Araújo Dias, in Código Civil Anotado, Livro V, Direito das Sucessões, 2022, p. 24 e 25).
Note-se, também, que o legatário é aquele que sucede em bens certos e determinados, mas “não necessariamente bens especificados ou designados concretamente”, razão pela qual não deixará de ser legado “se o sucessor for chamado a suceder em universalidades de facto”, em “património autónomos” ou “unidades jurídicas” (ibidem, p. 27 e 28).
Pode, inclusive, como se salientou na sentença recorrida e, respetivamente, nas condições referidas nos art.ºs 2253.º e 2254.º do CC, recair sobre coisa genérica, sobre coisa não existente no espólio do testador, podendo mesmo, nos termos do art.º 2267.º, assumir a veste de legado alternativo.
O que conta em todos estes casos é que, independentemente da especificação do bem ou bens que estejam abrangidos no legado, o chamamento do sucessor se dê tão somente quanto a uma componente determinada da herança e não à totalidade ou a uma quota abstrata da mesma.

In casu, por via da deixa testamentária em questão, o falecido FF declarou legar à sua esposa, a 1.ª Ré CC, a totalidade do imóvel em que ele testador residisse na ocasião da sua morte.
Ora, tal declaração, devidamente interpretada, não tem outro sentido que não o de que, com ela, o testador, não só se referiu a um bem determinado – um imóvel –, como a um bem identificável e, mesmo, identificado – o imóvel em que residisse por ocasião da sua morte.
Por outro lado, ao referir que o legava à 1.ª Ré, sua esposa, também é clara no sentido de que, com ela, a vontade do testador (cfr. art.º 2187.º do CC) foi a de dispor do bem após a sua morte, por forma a que a titularidade deste ingressasse diretamente - independentemente, portanto, de quaisquer operações de partilha -, na esfera jurídica da sua esposa.
Da deixa testamentária resultou para a 1.ª Ré, por conseguinte, não um direito virtual à totalidade ou a uma quota-parte abstrata da herança do seu marido, mas um direito diretamente incidente sobre um bem determinado, que era o imóvel em que aquele residisse por ocasião da sua morte.
Ora, nunca foi posto em causa nos autos, nem vem posto em causa na apelação, que o imóvel em que o falecido marido da 1.ª Ré residisse aquando da sua morte fosse o imóvel a que aqui nos referimos - o prédio urbano descrito na CRP do Porto sob o n.º ...93/20080925 e inscrito na matriz sob o art.º ...68.º.
A deixa testamentária em apreço constitui, por conseguinte, um legado, pelo qual o de cujus dispôs do referido bem imóvel após a sua morte em beneficio da 1.ª Ré.

Chegados aqui, cumpre considerar o seguinte.
O legado incidiu sobre bem imóvel que integrava o património comum do testador e da 1.ª Ré, já que, não só foi adquirido na constância do matrimónio de ambos entre si, como tal matrimónio foi celebrado sob o regime da comunhão geral de bens (v. facto provado n.º 25 e o disposto no art.º 1732.º do CC).
O património comum dos cônjuges, como se referiu na sentença recorrida, citando-se Pires de Lima e Antunes Varela (in Código Civil Anotado, Volume IV, Coimbra, 1992, p. 312 e 313), constitui um “património colectivo (…), que não confere a nenhum dos seus titulares, nem direitos sobre coisas certas e determinadas, nem direito a uma quota sobre qualquer dessas coisas”.
Por conseguinte, “[o] facto de um prédio pertencer em comum a ambos os cônjuges não significa […] que qualquer deles se possa intitular dono do prédio ou sequer titular do direito a metade desse prédio”, facto que só se verificará após a dissolução do casamento e da concretização das operações de partilha.
Ora, ao dispor na totalidade de um imóvel que integrava o património comum do casal, o falecido marido da 1.ª Ré dispôs de um bem que não lhe pertencia por inteiro, pelo que a questão que aqui se coloca é a de saber se é válido ou não o legado por ele instituído.
Rege a este propósito, por remissão do n.º 2 do art.º 2252.º do CC, o art.º 1685.º do mesmo código.
Dispõe o seu n.º 1, que cada um dos cônjuges tem a faculdade de dispor, para depois da morte, dos bens próprios e da sua meação nos bens comuns, sem prejuízo das restrições impostas por lei em favor dos herdeiros legitimários.
Por seu turno, preceitua o n.º 2 que a disposição que tenha por objeto coisa certa e determinada do património comum apenas dá ao contemplado o direito de exigir o respetivo valor em dinheiro.
Tais disposições legais estão em linha com a natureza e as características dos direitos dos cônjuges sobre os bens que integram o património comum de ambos.
Dado que, como se viu, nenhum deles tem um direito diretamente incidente sobre os bens comuns, mas um direito sobre a universalidade abstrata do património coletivo, é natural que, como decorre daquele primeiro preceito, a cada um dos cônjuges só seja facultada a possibilidade de disposição, porque excluídos da comunhão, dos seus bens próprios ou da sua quota (da sua meação) no património comum.
Sem prejuízo, se algum dos cônjuges dispuser de coisa certa e determinada do património comum, o legislador optou por uma solução legislativa que, como decorre do n.º 2, ainda que não confira ao contemplado o direito de exigir a coisa em substância, permite-lhe exigir o respetivo valor em dinheiro.
Ou seja, optou por uma solução em que “a disposição que incide sobre bens certos e determinados pertencentes à comunhão é sempre válida quanto ao valor e sempre nula, em princípio, quanto à substância, de tal modo que o contemplado pode sempre exigir o respectivo valor em dinheiro, mas nunca pode, em princípio, exigir a própria coisa”, no que resulta uma “solução de conversão sistemática, ope legis, da disposição em substância no legado do valor da coisa” (v. os mesmos Autores, ibidem, p. 312).
Ainda assim, trata-se aqui de uma regra geral que comporta exceções, designadamente as previstas no seu n.º 3, das quais há que destacar a da alínea c), que permite a disposição por morte de coisa certa e determinada do património comum se essa disposição tiver sido feita por um dos cônjuges em benefício do outro.
Ou seja, à luz de tal dispositivo legal, se um dos cônjuges dispuser por sua morte a favor do outro de coisa comum, o beneficiado não está limitado à conversão do legado em dinheiro, podendo, pelo contrário, exigir a coisa em substância.
Trata-se aqui de uma solução perfeitamente compreensível; recorrendo novamente às palavras de Pires de Lima e Antunes Varela, “[s]e a conversão obrigatória decretada no n.º 2 visa, acima de tudo, não prejudicar os direitos do outro titular do património comum, nenhuma razão subsiste para manter tal conversão no caso de a conversão ter precisamente como beneficiário esse outro titular” (ibidem, p. 315).

Ora, reportando-nos ao caso dos autos, o legado instituído pelo falecido marido da 1.ª Ré a favor desta incidiu sobre coisa certa e determinada do património comum conjugal; todavia, sendo ele um dos contitulares deste património, beneficiou exclusivamente o outro contitular, o cônjuge.
À 1.ª Ré cabia, pois, em face de tudo quanto acaba de ser dito, o direito de, em cumprimento do legado, exigir que o imóvel que dele era objeto lhe fosse entregue em substância.
A transmissão da propriedade do imóvel para a sua esfera jurídica assentou, por conseguinte, em título válido de aquisição, em razão do que, contrariamente ao propugnado pelos Apelantes, de nenhum vício padece.
Improcede, consequentemente, a pretensão dos Apelantes constante das conclusões 1 a 8 da sua peça recursória e, bem assim, das conclusões 9 e 10, que tinham como pressuposto a qualificação da deixa testamentária em apreço como recaindo sobre “bem não certo e não determinado” quando a deixa recai sobre bem que, pelo contrário, é, como se viu, certo, determinado e perfeitamente identificado.
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2.- Da necessidade de partilha para que se concretizasse a aquisição do imóvel pela 1.ª Ré

Sustentam os Apelantes que a aquisição do imóvel pela 1.ª Ré teria de ser efetuada por partilha, não bastando para o efeito, portanto, a atribuição que esta fez do bem a si própria, retirando-o do património indiviso da herança e apropriando-se dele.
Outrossim, referem que, estando em causa um bem imóvel e havendo mais do que um interessado, a partilha devia ter sido feita por escritura pública ou por documento particular autenticado, conforme decorre dos art.ºs 22.º, al. f) do D.L. 116/2008, de 04/07, ou então por inventário, nos termos do disposto no art.º 2102.º, n.º 1 do CC.
Tal não tendo ocorrido, concluem, assim, que a aquisição do bem pela 1.ª Ré é nula por inobservância da forma legal.
Esta posição dos Apelantes carece, contudo, de fundamento, de nenhum vício formal padecendo a aquisição do imóvel pela 1.ª Ré.

Com efeito, o domínio e a posse dos bens da herança adquirem-se pela aceitação, independentemente da sua apreensão material (n.º 1 do art.º 2050.º do CC), retrotraindo-se ao momento da abertura da sucessão os efeitos dessa aceitação (n.º 2 do mesmo preceito).
A aceitação da herança pode ser expressa ou tácita (n.º 1 do art.º 2056.º do CC), sendo expressa quando nalgum documento escrito o chamado declare aceitá-lo ou assuma o título de herdeiro com a intenção de a adquirir (n.º 2 do preceito).
Consagra-se em tais disposições legais, quanto à posição jurídica do chamado perante a vocação sucessória, a denominada “doutrina da aquisição mediante aceitação”, segundo a qual, como escreve Cristina Araújo Dias, “a aquisição sucessória só se dá após a aceitação e por força dela”, não tendo tal aceitação “um papel meramente de confirmação da aquisição sucessória, mas um papel verdadeiramente constitutivo” (in ob. cit., p. 68).
Todo este regime é, por força da remissão operada pelo art.º 2249.º do CC, extensível aos legados, pelo que também quanto a estes a aquisição do domínio do bem legado se dá com a aceitação.
Ora, quanto ao legado propriamente dito, este incide, como acima se deu conta, sobre bens determinados; por conseguinte, se a aquisição do domínio do bem dele objeto se dá com a aceitação e se tal aceitação tem natureza constitutiva, forçoso é concluir que o legado se transmite com a simples aceitação deste, sem necessidade de qualquer operação de partilha.
Como escreve Lopes Cardoso (in Partilhas Judiciais, Vol. I, Coimbra, 2000, p. 72), “[o] legatário, posto que a herança não haja sido ainda partilhada, sabe aquilo a que tem direito, conhece o objeto ou o valor com que foi contemplado pelo testador”, assim divergindo do “herdeiro, que este só pela partilha vê concretizado o seu direito e até lá tem mera porção ideal no montante hereditário, que poderá ser preenchida de uma ou outra forma, tudo consequência do mecanismo da partilha a efetuar”.
Aliás, o cumprimento do legado pode ser exigido pelo beneficiário dos próprios herdeiros (art.º 2265.º, n.º 1 do CC) e, estando na posse de terceiro, aquele pode, inclusive, reivindicá-lo deste, o que não permite outra leitura que não a de que a transmissão do domínio decorrente do legado opera sem necessidade de qualquer operação de partilha.
Como se escreveu no Acórdão da Relação de Lisboa de 02-11-2006 (proferido no processo n.º 8566/2006-6, disponível na internet, no sítio com o endereço www.dgsi.pt) a “possibilidade legal de reivindicação da coisa legada junto de terceiro confirma, claramente, a ideia avançada de que a transmissão do legado não carece da partilha da herança”.
De resto, ao legatário não assiste o direito de requerer inventário (cfr. art.º 2101.º, n.º 1 do CC), pelo que exigir-se a partilha para que a transmissão do domínio sobre o bem legado operasse, seria colocar o legatário, como referido no Acórdão da Relação de Coimbra de 08-09-2020 (proferido no processo n.º 2972/19.2TBLRA.C1, consultável no mesmo local), “na total dependência dos herdeiros, que poderiam instaurar ou não e quando lhes aprouvesse o processo de inventário, convertendo-se o direito do legatário, na prática, a um direito desprovido de garantia judiciária”, em colisão com o princípio da garantia de acesso ao direito e aos tribunais, previsto no art.ºs 20.º da CRP e 2.º, n.º 2 do CPC.
Para que a transmissão do domínio do legado se opere não se exige, assim, como referido pelos Apelantes, a partilha, bastando, pelo contrário, a simples aceitação do legado.
Trata-se aqui, de resto, de posição que, se não unânime, é largamente maioritária na jurisprudência, como se pode ver dos seguintes Acórdãos, todos eles referenciados no sobredito aresto da Relação de Coimbra: do STJ de 03-03-1998, proferido no processo n.º 160/98; da Relação de Lisboa de 11-12-2019, proferido no processo n.º 6441/16.4T8LSB-2, da Relação de Guimarães de 22-11-2018, proferido no processo n.º 73/16.4BEMDL.G1 e desta Relação do Porto de 01-03-2007, proferido no processo 0636972.

Ora, reportando-nos ao caso dos autos, resulta da factualidade apurada que na participação efetuada ao serviço de finanças destinada à liquidação do imposto de selo devido pela transmissão, a 1.ª Ré, na qualidade de cabeça de casal, fez mencionar que o imóvel em causa lhe era atribuído na totalidade (v. facto provado n.º 21).
Outrossim, fez inscrever no registo a aquisição do imóvel a seu favor, invocando como causa de aquisição o legado e instruindo o pedido com certidão do assento de óbito do seu falecido marido e com o testamento que previa a deixa testamentária que a instituiu legatária (v. factos provados n.ºs 22 e 23).
Tal conduta da 1.ª Ré exprime a assunção, pela mesma, da sua qualidade de legatária e a sua intenção de adquirir o imóvel, o mesmo é dizer que exprime a sua aceitação expressa do legado.
O domínio do bem dele objeto transmitiu-se, por conseguinte, por via de tal aceitação e com retroação dos seus efeitos ao momento da abertura da sucessão, nenhuma razão havendo para que se considere que a transmissão em causa está ferida de vício formal por inobservância da forma legalmente exigida, tal como propugnado pelos Apelantes,
Improcede, por conseguinte, a pretensão destes veiculada nas conclusões da sua peça recursória com os n.ºs 10 a 12 e, consequentemente, na totalidade, a respetiva apelação, com a consequente confirmação da sentença recorrida na parte nesta visada.
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B.- Apelação da 1.ª Ré CC

.- Do valor pecuniário a repor pela 1.ª Ré, em consequência da inoficiosidade do legado

A questão a decidir no âmbito do recurso interposto pela 1.ª Ré CC prende-se com a redução por inoficiosidade do legado já acima referido.
Na sentença recorrida, considerou-se que houve, de facto, inoficiosidade atendível, em razão do que se impôs à 1.ª Ré, na qualidade de legatária, a reposição em dinheiro, nos termos do art.º 55.º, n.º 2, al. a) da Lei n.º 23/2013, de 05/03, com referência ao valor de € 37.794,44, junto do património hereditário.
Ora, a este respeito, importa começar por dizer o seguinte.

O conhecimento de tal questão de fundo estaria, à partida, prejudicado pelo conhecimento prévio da questão que, porque, inclusive, de conhecimento oficioso, se imporia, que era a da ilegitimidade dos Autores para formular um tal pedido.
Na verdade, as liberalidades inoficiosas são redutíveis, é certo, mas a requerimento dos herdeiros legitimários ou dos seus sucessores, em tanto quanto for necessário para que a legítima seja preenchida, tal como decorre do art.º 2169.º do Código Civil.
Ou seja, à luz deste preceito, o direito nele previsto pode ser exercido, não por qualquer interessado em geral, nem sequer pelos próprios herdeiros legítimos, mas tão somente pelos herdeiros legitimários.
Como salienta Cristina Araújo Dias (in ob. cit., p. 236) “[a] redução por inoficiosidade não opera […] automaticamente, mas apenas a requerimento dos herdeiros legitimários ou dos seus sucessores. Na verdade, a lei atribui legitimidade a quem tem direito à legítima, que pode ser afetada se o autor da sucessão dispuser de bens que excedem a sua quota disponível, e que, por isso, tem interesse na redução. Por isso, a redução só ocorre se for requerida por quem a lei atribui legitimidade, dentro do prazo estabelecido pelo art.º 2178.º” (sublinhado nosso).
Esta consideração surge, aliás, reforçada no próprio Código de Processo Civil, em cujo art.º 1118.º, n.º 1 se prevê expressamente a possibilidade de dedução de um incidente próprio de redução de legados inoficiosos a requerimento, precisamente, do herdeiro legitimário.
O que, de resto, se compreende, já que, com a redução das liberalidades inoficiosas, pretende-se assegurar, não a igualação da partilha, mas a salvaguarda da legítima, pelo que nenhum sentido faria conferir legitimidade para o efeito a outra pessoa que não àquela que, por causa da liberalidade, viu ofendida a sua legítima, isto é, o herdeiro legitimário.
Ora, os Autores, na presente ação, são, de acordo com a forma como estruturaram a causa e como, de resto, resultou provado, meros credores de uma das herdeiras do de cujus, designadamente, da 2.ª Ré DD.
Ou seja, não são, nem herdeiros legitimários da pessoa que instituiu o legado, nem sucessores desses herdeiros legitimários.
Não tinham, por conseguinte, à luz do referido preceito legal, legitimidade para deduzir em juízo a pretensão de tutela jurisdicional aqui em apreço.

Não se põe em causa que, em determinados casos, aos credores possa assistir o direito de impugnar a forma como foi levada a cabo a redução de uma liberalidade oficiosa em termos prejudiciais à satisfação do seu crédito.
O fundamento da impugnação da liberalidade nesses casos radicará, contudo, não na inoficiosidade da liberalidade propriamente dita, mas na forma como o direito de redução correspondente foi ou não exercido, em termos eventualmente atentatórios da garantia do crédito (v.g. por simulação, fraude, má fé, abuso de direito…).
Não é isso, contudo, o que aqui está em causa, já que os Autores, na petição inicial, não alegaram qualquer facto que permitisse concluir nesse sentido, surgindo nos autos, pelo contrário, a – pura e simplesmente – exercer um direito de redução de liberalidade supostamente inoficiosa, direito esse que, como se viu, é privativo do herdeiro legitimário.
Em suma, verificar-se-ia, no caso, a exceção dilatória de ilegitimidade ativa dos Autores relativamente ao pedido em apreço, a qual, sendo de conhecimento oficioso (art.º 578.º do CPC), implicaria a absolvição das Rés da instância (art.º 278.º, al. d), do CPC).
Tal ilegitimidade foi, de resto, arguida pela 1.ª Ré na contestação e não chegou a ser especificamente apreciada no despacho saneador proferido, no qual, a respeito da questão, a 1.ª instância se limitou a tecer uma consideração genérica – tabelar – no sentido da sua verificação.

Como quer que seja, já não pode ser conhecida neste momento, pelas razões que, de resto, foram adiantadas pelos Autores no articulado que apresentaram depois de notificados, no âmbito deste recurso, para se pronunciarem sobre a questão em apreço, nos termos do art.º 3.º, n.º 3 do CPC.
Na verdade, independentemente da referida ilegitimidade, o certo é que o tribunal a quo, não só conheceu do mérito do pedido de redução do legado por inoficiosidade, como reconheceu a existência dessa inoficiosidade e acabou por condenar a 1.ª Ré a repor ao património hereditário do seu falecido pai o valor que entendeu corresponder à inoficiosidade.
Ora, a 1.ª Ré, confrontada com tal decisão, limitou-se, no recurso aqui em apreço, a impugnar o valor pecuniário que, na sua perspetiva, deveria repor à herança, pugnando por que tal valor fosse fixado em € 34.083,33 e não nos € 37.794,44 fixados na sentença recorrida.
Ou seja, aceitou a mesma, não só a existência de inoficiosidade, como a obrigação de reposição do valor pecuniário correspondente, só não aceitando o quantum do valor a repor.
Assim, limitado que está o âmbito dos recursos, como supra referido, às conclusões do recorrente e não vindo questionada a análise que a 1.ª instância fez do fundo da causa, no que à inoficiosidade do legado e à obrigação de reposição do valor pecuniário diz respeito, forçoso é concluir que, consolidada que está a decisão no plano do mérito, não há que discutir, mercê do respetivo caso julgado (v. art.ºs 619.º e 621.º do CPC), qualquer questão, porque prévia àquela, atinente à ilegitimidade dos Autores.
Impõe-se, pois, conhecer do objeto do recurso da 1.ª Ré, com o âmbito que por esta lhe foi conferido nas suas conclusões.

Ora, a este propósito, já se viu que a Apelante não põe em causa no recurso a existência de inoficiosidade do legado, nem a sua obrigação de repor ao acervo hereditário do seu falecido pai o valor correspondente a essa inoficiosidade.
A única questão que suscita é apenas a de saber se o valor a repor é, não o de € 37.794,44 fixado na sentença recorrida, mas o de € 34.083,33.
Na perspetiva da Apelante, o valor correto seria o por si indicado, pela simples razão de que o tribunal a quo, no apuramento do valor global da herança, teria contabilizado o valor total da verba correspondente ao jazigo, quando deveria ter contabilizado apenas metade, correspondente à meação do de cujus no património comum conjugal.
Ora, a razão da Apelante a este respeito é manifesta, havendo, de facto, contabilização incorreta na sentença recorrida do valor do bem em causa; o falecido pai da Apelante foi casado no regime da comunhão geral de bens, pelo que o valor do jazigo, integrando o património comum conjugal, só poderia ser contabilizado – como, de resto, o foi o prédio urbano legado – na proporção de metade.
Como quer que seja, há uma omissão nos autos quanto a um aspeto determinante para a fixação do valor a repor, que obsta a que se possa conhecer desde já e em definitivo a questão decidenda.

Na verdade, a inoficiosidade que deve ser resposta destina-se, como se viu, a preservar a legítima (art.º 2168.º do CC).
Para o cálculo desta, por seu turno, deve atender-se, além do mais, ao valor dos bens existentes no património do auto da sucessão à data da sua morte (art.º 2162.º do CC).
Os bens que integravam o acervo hereditário do autor da herança dos autos eram, em função dos elementos constantes dos autos, o prédio urbano legado à 1.ª Ré e o jazigo sito no cemitério ....
Sucede que se, quanto ao imóvel, foi apurado que o valor deste era, à data do óbito do autor de herança, o de € 350.000,00 (v. facto provado n.º 26), já quanto ao valor do jazigo o valor apurado foi tão somente o atual de mercado, isto é, o de € 34.600,00.
Note-se que não oferece dúvidas que se trata aqui, de facto, do valor atual de mercado do jazigo e não do seu valor à data da abertura da sucessão; é isso o que se infere do cotejo dos valores atribuídos ao imóvel constantes do facto provado n.º 27 (em que se distingue expressamente o valor de mercado do imóvel e o seu valor à data do óbito do autor da sucessão) e do valor atribuído ao jazigo no facto provado n.º 28.
De resto, a consideração de tais valores adveio, como resulta da sentença recorrida, do resultado da perícia realizada e tal perícia, se, quanto ao imóvel, teve por objeto a aferição, quer do seu valor de mercado, quer do seu valor à data da abertura da sucessão, quanto ao jazigo teve por objeto apenas o de mercado.
Ou seja, não consta da factualidade apurada, nem nunca, de resto, foi indagado nos autos, o valor do jazigo à data da abertura da sucessão.
E não constando esse valor, falta um elemento de facto determinante para o apuramento do valor da herança do falecido pai da 1.ª Ré e, consequentemente, não só para o apuramento da legítima, como do quantum necessário à reposição da inoficiosidade.

Dispõe a alínea c) do n.º 2 do art.º 662.º do CPC que a Relação deve, mesmo oficiosamente, anular a decisão da 1.ª Instância quando, não constando do processo todos os elementos que permitam a alteração proferida sobre a decisão da matéria de facto, considere indispensável a ampliação desta.
Trata-se aqui de uma “patologia” de que a decisão da matéria de facto padece, patologia essa que, como refere António Santos Abrantes Geraldes, não corresponde “verdadeiramente a [erro] de apreciação ou de julgamento”, mas à não consideração de uma realidade de facto “essencial para a resolução do litígio, na medida em que assegur[a] um enquadramento jurídico diverso do suposto pelo tribunal a quo” (in Recursos em Processo Civil, 2022, 7.ª edição, p. 354 e 357).
Neste tipo de situações, nem é necessário que o recorrente invoque a “patologia” no seu recurso, pois que, como decorre do preceito em causa, a Relação pode conhecê-la oficiosamente.
E pode conhecê-la atuando nesse caso, independentemente dos elementos que constem dos autos, como “tribunal de cassação” (ibidem, p. 362), isto é, suscitando a necessidade de introdução dos novos factos para o conhecimento do objeto do litígio, mas reenviando o processo ao tribunal da 1.ª instância para o efeito.
Como também se referiu no Acórdão da Relação de Coimbra de 3 de março de 2020, estando em causa um vício que implica a “ampliação dos temas da prova, o reexame na Relação importaria a privação do contraditório, do direito à prova quanto aos factos omitidos e a proibição do duplo grau de jurisdição” (Acórdão disponível na internet, no sítio com o endereço www.dgsi.pt).
Reenviado o processo para julgamento relativamente aos novos factos, a repetição do julgamento por parte do tribunal de 1.ª instância, de acordo com a alínea c) do n.º 3 do preceito em análise, não abrange a parte da decisão que não esteja viciada, sem prejuízo da apreciação de outros pontos da matéria de facto, com o fim de evitar contradições.

Ora, faltando, como se viu, um elemento de facto determinante para a decisão da questão a decidir, é absolutamente indispensável a ampliação da matéria de facto a fixar em 1.ª instância, no que diz respeito ao valor do jazigo à data do óbito do autor da herança.
A sentença recorrida padece, assim, da “patologia” acima referida, impondo-se a sua anulação e o reenvio do processo ao tribunal a quo para que este amplie a matéria de facto omitida e, depois de ordenar a realização das diligências de prova que, para o efeito, tenha por adequadas, reabra o julgamento e profira depois nova decisão quanto à questão decidenda, relativa ao valor da reposição a efetuar pela 1.ª Ré ao acervo hereditário do seu falecido pai, quer no plano do facto, quer no do direito aplicável.
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Porque vencidos na sua apelação, suportarão os Autores/Apelantes as custas correspondentes (art.ºs 527.º e 529.º do CPC).
Quanto à Apelação da 1.ª Ré, a responsabilidade pelas custas, porque ainda indefinido o sentido da decisão final a proferir quanto à questão dela objeto, recairá sobre a parte vencida a final.

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IV.- Decisão
Pelo exposto, acordam os Juízes Desembargadores da 3.ª Secção do Tribunal da Relação do Porto:
I.- julgar improcedente a apelação dos Autores/Apelantes, mantendo, consequentemente, a sentença recorrida na parte abrangida nessa apelação;
II.- anular, quanto à apelação da 1.ª Ré, a sentença proferida em 1.ª instância e determinar o reenvio do processo ao tribunal a quo, para que este amplie a matéria de facto no sentido do apuramento do valor do jazigo à data da abertura da sucessão e, depois de ordenar as diligências de prova que, para o efeito, tenha por adequadas, reabra o julgamento e profira depois nova decisão quanto àquele facto e quanto ao direito aplicável.

Custas da apelação dos Autores por estes.
Custas das apelação da 1.ª Ré pela parte vencida a final.

Notifique.



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Porto, 08-05-2025

Relator: José Manuel Monteiro Correia
1.ª Adjunta: Judite Pires
2.ª Adjunta: Isoleta Almeida Costa


(assinado eletronicamente)