DANO
CAUSALIDADE ADEQUADA
CULPA DO LESADO
Sumário

I - A execução da pintura de um gradeamento (com espaços entre as grades a pintar) confinante/virado para a via pública mediante a utilização de uma pistola de pressão/ar comprimido acarreta um risco significativo de aplicação de tinta (ou partículas ou gotas de tinta) em outras superfícies ou objetos distintos do gradeamento a pintar.
II - Não atua com a diligência exigível, de acordo com o com o critério do bonus pater familias, o réu que executa tal trabalho, num dia com vento, sem tomar as precauções necessárias a evitar tal risco de dispersão de tinta.
III - A aplicação do regime previsto no n.º 1 do art. 570.º do Cód. Civil exige que o ato do lesado tenha sido uma das causas do dano, consoante os mesmos princípios de causalidade aplicáveis ao lesante. O nexo de imputação ou causalidade exigido não se confunde com a mera causalidade naturalística.
IV - Não há qualquer relação causal adequada entre a conduta da autora consistente no estacionamento do seu veículo entre as 00h00m e as 13h00m numa área destinada ao estacionamento para cargas e descargas e os danos sofridos pelo veículo assim aí estacionado por força da projeção de partículas de tinta decorrente da atividade de pintura de um gradeamento de uma casa particular situada no lado contrário da via pública.

Texto Integral

Processo: 2118/23.2T8STS.P1

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Sumário:
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Acordam na 3.ª Secção do Tribunal da Relação do Porto:

I – Relatório:

Identificação das partes e indicação do objeto do litígio

AA intentou a presente ação declarativa, com processo comum, contra BB e CC, pedindo que os réus sejam “condenados a pagar, solidariamente, à A.:
- a quantia global de € 7.406,89 (sete mil quatrocentos e seis euros e oitenta e nove cêntimos), por todos os danos já contabilizados sofridos com o sinistro;
- a quantia diária de € 7,50, a título de privação do uso do veículo da A. até efectiva reparação do mesmo;
- a quantia diária de € 50,00, a título de privação total do uso do veículo da A., em virtude de necessidade de perícia/reparação do mesmo;
devendo todas as quantias ser acrescidas dos juros de mora, à taxa legal, desde a citação até integral pagamento.

Para tanto, alegou que no dia 10/09/2022, o réu CC, a mando da ré BB, quando se encontrava a realizar trabalhos de pintura no portão e muro do imóvel propriedade da ré, projetou gotículas de tinta branca para o veículo automóvel da autora, que se encontrava estacionado na rua onde fica a sua casa, numa zona de aparcamento púbico que se situa em frente ao imóvel da ré, ficando o veículo da autora danificado.
Os réus apresentaram contestação, impugnando parcialmente os factos, alegando factos destinados a afastar a sua responsabilidade pelos danos e alegando ainda que, sendo o valor peticionado pela autora para a reparação da viatura próximo do valor comercial desta, a qual não sofre diminuição ou desvalorização por causa dos salpicos de tinta, a condenação no seu pagamento traduzir-se-ia num enriquecimento sem causa da autora à custa do empobrecimento dos réus.

Após realização da audiência final, o tribunal a quo decidiu:
«Pelo supra exposto, julga-se a ação parcialmente procedente e, consequentemente, decide-se:
A) Condenar o Réu CC a pagar à Autora AA a quantia de €6.766,82, (seis mil setecentos e sessenta e seis euros e oitenta e dois cêntimos), acrescida de juros de mora computados à taxa legal consignada para as obrigações civis desde a citação até integral pagamento;
B) Absolver os Réus BB e CC do demais peticionado;
C) Condenar o Réu CC e a Autora AA no pagamento das custas processuais em função do respetivo decaimento.»

Inconformado, o réu CC apelou desta decisão, concluindo, no essencial:
(…)
V. (…) [N]ão será de imputar ao lesante a culpa do facto, aferida à luz do “bonus pater familias”, pois não seria de prever que ao pintar um gradeamento salpicasse a 10 metros de distância.
VI. O cidadão-médio colocado nas mesmas circunstâncias em que se encontrava o réu/recorrente excluiria que ao pintar um gradeamento que faz frente para uma Rua iria projetar gotículas a 10 metros de distância.
VII. Razões pelas quais não estão preenchidos os pressupostos da responsabilidade civil por factos ilícitos para que o réu/recorrido seja condenado e este deva ser absolvido do pedido.
SEM PRESCINDIR
(…)
X. O estacionamento ou aparcamento pela autora/recorrida naquele local, que é proibido o estacionamento e a paragem, é um ato culposo da mesma, pois viola uma norma legal que impunha uma atitude diversa e que se o tivesse cumprido o dano, simplesmente não ocorria ou não existia.
XI. A produção do dano só ocorre porque efetivamente a autora/recorrida viola expressa e diretamente uma norma legal, tomando uma atitude contrária à lei e ao ordenamento jurídico. (…)
XIII. Pelo que a atitude da autora/recorrida exclui o dever de indemnizar por parte do réu/recorrente.
XIV. Sem prescindir (…) entre a violação por parte do réu de um dever de cuidado e a violação da autora de uma norma legal expressa, a gravidade da culpa da autora é muito superior à do réu, pelo que na concorrência de culpa deveria ter sido fixado, na sentença que aqui se recorre, a culpa do réu/recorrente em 10% e a da autora/recorrida em 90%.
XV. Razões pelas quais não estão preenchidos os pressupostos da responsabilidade civil por factos ilícitos para que o réu/recorrido seja condenado e este deva ser absolvido do pedido.
AINDA SEM PRESCINDIR
XVI. O valor de mercado da viatura dado como provado é inferior ao valor da reparação.
XVII. Como é do conhecimento comum, mesmo no valor de mercado de uma viatura com danos, ainda existe o valor residual ou denominado “salvado” da viatura, ou seja o valor que é possível obter da viatura, mesmo com os danos que a mesma padece.
XVIII. A viatura, aparentemente, tem a sua “carcaça” ou o exterior salpicado de pintas brancas, o que do conhecimento comum se infere que, pelo menos, se não muito mais, metade do valor seria sempre recuperável ou vendável, enquanto “salvado”.
XIX. Assim, atribuir uma indemnização e obrigação de indemnizar de um montante de € 7.518,69 numa viatura que vale no mercado cerca de €7.000,00, configura abuso de direito e enriquecimento sem causa.
XX. O que permitira à autora manter na sua esfera patrimonial uma viatura semelhante e de valor semelhante e ainda locupletava-se em, pelo menos, 4.000,00€.
XXI. Com esta decisão proferida pela primeira instância e que aqui se recorre a autora fica enriquecida e o réu empobrecido e a autora fica muito mais beneficiada do que no momento anterior à ocorrência do facto e do dano.
XXII. Assim, se o facto e o dano não existisse a viatura poderia ser vendida por 7.000,00€ e depois de custear uma reparação de 7.518,69€, pode de igual forma ser vendida por 7.000,00€.
XXIII. Nos termos do artigo 564.º do Código Civil o dever de indemnizar compreende, embora não só, o prejuízo causado, sendo que neste caso em bom rigor económico não existe prejuízo causado de 7.518,69€, atendendo ao valor da viatura que possa alcançar, mesmo no estado em que está, e o valor da viatura sem o facto ocorrido e o valor da reparação, ou seja o prejuízo efetivo da autora, mesmo que o réu fosse responsável, nunca ultrapassaria os 3.000,00€, valor que resultaria entre o valor da viatura no seu estado atual e o valor da viatura sem o dano.
XXIV. Tudo para além disto é, seguramente, enriquecimento da autora e empobrecimento do réu, o que se invoca, e o que o direito e a justiça pretendem evitar.
XXV. Do exposto, evidente se torna, que jamais o tribunal poderia ter condenado o réu, nos termos em que condenou, devendo ser absolvido.
XXVI. Andou mal o Meritíssimo Juiz “a quo” ao julgar da forma como julgou os presentes autos, tendo feito uma errada interpretação e aplicação, nomeadamente, dos artigos 483º, 564.º e 570.º do Código Civil.

Conclui pela revogação da sentença na parte em que condenou o réu e sua substituição por outra de absolvição do réu ou, sem prescindir, por sentença que fixe a culpa do réu no limite máximo de 10%.

A apelada contra-alegou, pugnando pela manutenção de decisão do tribunal a quo recorrida.

II – Questões a decidir:

Face às conclusões das alegações de recurso do apelante (que – exceto quanto a questões de conhecimento oficioso – delimitam o objeto e âmbito do recurso, nos termos do disposto nos arts. 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1 e n.º 2, ambos do Cód. Proc. Civil), são as seguintes as questões suscitadas no recurso interposto:
– Inexistência de culpa do réu;
– Existência de culpa da autora, excludente ou diminuidora da indemnização;
– Excessiva onerosidade da reconstituição natural.
Acresce a responsabilidade pelas custas.

III – Fundamentação:

É o seguinte o teor da fundamentação de facto da sentença recorrida, na parte que releva para o conhecimento do objeto do recurso:

Factos provados

1. A ré BB reside num prédio sito na Rua ..., ..., ... Trofa, com a convicção de exercer um direito de propriedade.
2. O réu CC dedica-se, designadamente, à atividade profissional de pintura.
3. A autora AA reside numa habitação sita na Rua ..., n.º ..., r/c, freguesia ..., concelho da Trofa.
4. O prédio descrito em 1) confina também com a Rua ....
5. Com referência à área do prédio mencionado em 1) que confina com a Rua ..., do outro lado da antedita, localiza-se o prédio indicado em 3).
6. Afigura-se registada a favor da Autora a propriedade do veículo automóvel de marca Citroen, modelo ..., de cor preta, com a matrícula ..-..-JT.
7. No início de setembro de 2022, a ré BB declarou solicitar ao réu CC que procedesse à pintura dos gradeamentos sitos no prédio enunciado em 1), designadamente, na área em que o mesmo confina com a Rua ..., o que o mesmo declarou aceitar.
8. No dia 10 de setembro de 2022, desde as 0,00 horas e até cerca das 13,00 horas, o veículo enunciado em 6) esteve aparcado numa área de estacionamento contígua à referenciada Rua ..., a cerca de 10 metros dos gradeamentos descritos em 7).
9. Na sequência do referenciado em 7), entre as 09,00 horas e as 13,00 horas do dia 10 de setembro de 2022, o réu CC efetuou trabalhos de pintura nos gradeamentos do prédio indicado em 1), na área em que o mesmo confina com a Rua ..., utilizando uma pistola de pressão/ar comprimido com tinta branca.
10. Em consequência do enunciado em 9), da utilização pelo réu CC da predita pistola de ar comprimido e do vento que se direcionava do referido prédio para o local onde se afigurava estacionado o veículo descrito em 6) e 8), foram projetadas gotículas de tinta branca para o mesmo, designadamente, para o tejadilho, portas, vidros, capot.
11. Em consequência do referenciado em 10), a totalidade da pintura sobre a chapa e sobre os plásticos duros pintados (nomeadamente, para-choques) do predito veículo está marcada com pequenas pintas brancas, bem como os respetivos vidros, borrachas, plásticos não pintados, faróis e as jantes.
12. Em consequência do descrito em 11), é necessário proceder à pintura da chapa e dos faróis duros e substituir os plásticos exteriores, os faróis da frente e as borrachas do antedito veículo.
13. Estima-se o custo da reparação mencionada em 12) em € 7.518,69 (sete mil quinhentos e dezoito euros e sessenta e nove cêntimos).
14. O veículo enunciado em 6) é utilizado diariamente pela autora, designadamente, para se deslocar para o emprego, em passeios aos fins de semana, visitas aos amigos e familiares.
15. Estima-se o custo diário do aluguer de um veículo correspondente ao sobredito em €50,00 (cinquenta euros).
16. Na área de estacionamento mencionada em 8) afigurava-se colocada uma linha contínua junto ao limite da faixa de rodagem, a qual consigna estacionamento para cargas e descargas.
17. À data referida em 8), o antedito veículo tinha um valor de mercado de pelo menos € 7.000,00 (sete mil euros).

Análise dos factos e aplicação da lei

São as seguintes as questões de direito a abordar:

1. Inexistência de culpa do réu
2. Culpa da autora - exclusão da responsabilidade (ou imputação de 90%)
3. Excessiva onerosidade da restauração natural
4. Responsabilidade pelas custas

1. Inexistência de culpa do réu

Defende o réu que não se verifica o pressuposto da culpa, por não lhe ser exigível, de acordo com o critério do bonus pater familias, que previsse que ao pintar os gradeamentos da casa da ré, pudesse salpicar um veículo estacionado do outro lado da rua, a 10 metros de distância.
Foi referido na decisão recorrida, que “(…) um cidadão-médio, colocado nas mesmas circunstâncias em que se encontrava o Réu CC, segundo as normais pautas de diligência e prudência, não executaria atos de pintura do gradeamento exterior de um prédio com uma pistola de pressão conectada a um compressor sem colocar uma estrutura de proteção/estanquicidade com referência aos bens circundantes (v.g., um andaime e um pano para tapar a projeção da tinta),i.e., o Réu CC, no decurso dos trabalhos de pintura no exterior afigurava-se adstrito a deveres de tráfego atinentes ao controlo do perigo gerado com a pintura (a possibilidade de arremessos de gotículas para os bens localizados na área envolvente), o que foi manifestamente postergado, perfectibilizando uma omissão dos deveres de tráfego contemplada no art.º 486.º, do Código Civil.»
Não colhe, de todo, a argumentação do apelante quanto à falta de verificação do pressuposto da culpa.
O réu ia executar um trabalho de pintura de um gradeamento confinante/virado para a via pública utilizando para tanto uma pistola de pressão/ar comprimido com tinta branca.
Ao contrário do defendido no recurso, consideramos que, ainda que não se considere ser a atividade de pintura com pistola de pressão/ar comprimido uma atividade perigosa, nos termos e para os efeitos do disposto no n.º 2 do art. 493.º do Cód. Civil – o que não se nos afigura linear, dados os riscos de incêndio, choque elétrico, ferimentos e exposição a gases tóxicos inerentes à utilização de uma pistola de pressão/ar comprimido para a realização da pintura –, resulta evidente que a execução da pintura de um gradeamento (portanto, com espaços entre as grades a pintar por onde naturalmente podem ocorrer fugas de partículas de tinta) que dá para uma via pública acarreta um risco significativo de aplicação de tinta (ou partículas ou gotas de tinta) em outras superfícies ou objetos distintos do gradeamento a pintar, não se revelando de todo em todo inverosímil que, havendo vento, como havia, ocorresse o que se verificou – cfr. 10. dos factos provados. Um homem medianamente diligente não deixaria, na realização de trabalhos de pintura de um gradeamento virado para a via pública com uma pistola de pressão/ar comprimido, de praticar os atos necessários a evitar a projeção de tinta (quanto mais não fosse, para a via pública – passeio) que, como veio a suceder, atingiu o veículo da autora estacionado do outro lado da rua, a cerca de 10 metros de distância.
Veja-se, aliás, que o réu alegou ter praticado os atos adequados a evitar a tal risco de dispersão/projeção de tinta inerente à realização da pintura do referido gradeamento, mas não logrou provar o alegado: como resulta do n.º 19. dos factos não provados, o tribunal a quo considerou não provado que o réu tivesse colocado “um andaime com dois metros de altura e extensão de dois metros e meio e um pano para tapar a projeção da tinta, localizado no passeio da sobredita rua.
Concluímos, deste modo, que o réu, na execução do trabalho de pintura para o qual foi contratado pela ré, não atuou com a diligência de um bom pai de família
que lhe era exigível – neste sentido, cfr. Ac. do TRE de 26-01-2006, Proc. 2292/05-3 –, improcedendo este fundamento do recurso.

2. Culpa da autora - exclusão da responsabilidade (ou imputação de 90%)

Defende ainda o apelante que, nos termos do disposto no art. 570.º, n.º 1, do Cód. Civil, a conduta da autora consistente no estacionamento da sua viatura em local destinado ao estacionamento para cargas e descargas – violando a proibição de estacionamento sem ser apenas para efetuar cargas e descargas, “infringindo o art.º 62.º do Regulamento de Sinalização do Trânsito” – exclui o dever de indemnizar por parte do réu/recorrente ou, pelo menos, a sua culpa é muito superior à do réu – porque esta violou uma norma expressa e o réu um dever de cuidado –, pelo que deveria ter sido fixada na sentença “a culpa do réu/recorrente em 10% e a da autora/recorrida em 90%.
Para tal afirma que a produção do dano só ocorre porque a autora violou norma legal que proibia o estacionamento naquele local a não ser para cargas e descargas.

Para a aplicação do regime previsto no n.º 1 do art. 570.º do Cód. Civil é necessário que o ato do lesado «(…) tenha sido uma das causas do dano, consoante os mesmos princípios de causalidade aplicáveis ao agente (cfr. art. 563.º). Deve, além disso, o lesado ter contribuído com a sua culpa para o dano (cfr. n.º 2 do art. 487.º (…)). A culpa do lesado tanto pode reportar-se ao facto ilícito causador dos danos, como directamente aos danos provenientes desse facto. (…)». – cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Volume I, 4.ª Edição, Coimbra Editora, 1987, págs. 587 e 588

Ora, a conduta da autora e a invocada violação da norma atinente ao estacionamento desde as 00h00m e até cerca das 13h00m numa área destinada ao estacionamento para cargas e descargas não é causa adequada do dano, nos termos e em conformidade com o princípio da causalidade estabelecido no art. 563.º do Cód. Civil.
Como é referido por Pires de Lima e Antunes Varela, citando Galvão Telles, Manuel de Direito das Obrigações, n.º 229, «Determinada ação ou omissão será causa de certo prejuízo se, tomadas em conta todas as circunstâncias conhecidas do agente e as mais que um homem normal poderia conhecer, essa acção ou omissão se mostrava, à face da experiência comum, como adequada à produção do referido prejuízo, havendo fortes probabilidades de o originar». – Op. cit., pág. 578.
O nexo de imputação ou causalidade exigido não se confunde com a mera causalidade naturalística. O âmbito de proteção da norma violada pela autora – permissão de estacionamento para cargas e descargas – é absolutamente alheio ao prejuízo verificado: a regulação do estacionamento naquele local nada tem que ver com a execução pelo réu do trabalho de pintura do gradeamento, não tendo qualquer objetivo de prevenção de eventuais danos nas viaturas que aí estacionem. Ou seja, não se pode afirmar que a atuação da autora, consistente no estacionamento do veículo entre as 00h00m e as 13h00m numa área destinada ao estacionamento para cargas e descargas – ou seja, em que é proibido parar e estacionar exceto para efetuar cargas e descargas – é, em geral e abstrato, adequada à produção ou ao agravamento do dano verificado, que consistiu em a totalidade da pintura sobre a chapa e sobre os plásticos duros pintados (nomeadamente, para-choques) do veículo ficar marcada com pequenas pintas brancas, bem como os respetivos vidros, borrachas, plásticos não pintados, faróis e as jantes – em consequência da atuação do réu descrita no n.º 9. dos factos provados.
Não há qualquer relação causal adequada entre a violação da regra de regulação do estacionamento (art. 62.º do Regulamento de Sinalização de Trânsito - M14a - paragem e estacionamento para cargas e descargas: indica a proibição de parar e estacionar na área demarcada pelas linhas contínuas, exceto para efetuar cargas e descargas) e a ocorrência ou agravamento de danos decorrentes de uma atividade de pintura de um gradeamento de uma casa particular situada no lado contrário da via pública.
Discordamos, pois, em absoluto, do juízo efetuado na decisão recorrida quanto à configuração da conduta da autora como “(…) concausa/conculpa do evento lesivo, nos ternos e para os efeitos do art. 570.º/1, do Código Civil (…)” – sendo manifesto que os Acórdãos do STJ de 3.12.2015, proc. n.º 3969/07.0TBBCL.G1.S1 e de 9.9.2014, proc. n.º 121/10.1TBPTL.G1.S1, citados na decisão recorrida, reportando-se a concorrência de culpas entre o lesado, peão atropelado, e o condutor do veículo atropelante, em acidente de viação consistente num atropelamento, nada têm que ver com o caso aqui em apreciação.
Em conformidade, concluímos pela improcedência deste fundamento do recurso (subsistindo a decisão proferida pelo tribunal a quo quanto à imputação à aqui autora de uma responsabilidade causal de 10% – culpa do lesado – na ocorrência dos danos, uma vez que tal decisão não é objeto do recurso interposto pelo réu, beneficiado com a mesma).

3. Excessiva onerosidade da restauração natural

Defende, por fim, o apelante, que configura abuso de direito e enriquecimento sem causa a “obrigação de indemnizar de um montante de € 7.518,69 numa viatura que vale no mercado cerca de €7.000,00”.
Alega que “não existe prejuízo causado de 7.518,69€, atendendo ao valor da viatura que possa alcançar, mesmo no estado em que está, e o valor da viatura sem o facto ocorrido e o valor da reparação, ou seja o prejuízo efetivo da autora, mesmo que o réu fosse responsável, nunca ultrapassaria os 3.000,00€, valor que resultaria entre o valor da viatura no seu estado atual e o valor da viatura sem o dano.”
A questão suscitada pelo apelante prende-se com a excessiva onerosidade da reconstituição natural.

Da afirmação da responsabilidade civil extracontratual do réu pelos danos causados ao veículo da autora resulta, em conformidade com o disposto no art. 562.º do Cód. Civil, a constituição, a cargo do mesmo, da obrigação de “reconstituir a situação que existiria, se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação.
O pedido de condenação no pagamento do valor necessário à reparação e a condenação no pagamento do custo da reparação correspondem ainda a uma indemnização por reconstituição natural, nos termos previstos no art. 562.º do Cód. Civil, e não a uma indemnização por equivalente – cfr. Ac. do STJ de 11-01-2007, Proc. n.º 06B4430; Ac. do TRG de 17-09-2020, proc. n.º 1883/19.6T8GMR.G1.
Como resulta da leitura conjugada do disposto neste art. 562.º com o disposto no art. 566.º, n.º 1, do Cód. Civil, o princípio geral vigente quanto à obrigação de indemnização é o da reconstituição natural, ou seja, a reposição da situação anterior à lesão; a indemnização por equivalente é subsidiária da indemnização específica ou reconstitutiva: a indemnização é fixada em dinheiro apenas quando a reconstituição natural não seja possível, não repare integralmente os danos ou seja excessivamente onerosa para o devedor.
Há excessiva onerosidade na reconstituição natural quando esta acarreta para o lesante uma manifesta desproporção face ao benefício para o lesado, ou seja, quando a indemnização por reconstituição natural se mostrar «(…) iníqua e abusiva, por contrária aos princípios da boa-fé (…) [sendo de] excluir, por inadequada, apenas quando se apresente, manifestamente, desproporcionada, em face do sacrifício que importa exigir do lesante, quando confrontado com o interesse do lesado na integridade do seu património.» - cfr. Ac. do STJ de 31-05-2016, proc. 741/03.0TBMMN.E1.S1.
Nos casos de «(…) excessiva onerosidade, será naturalmente a requerimento do devedor que a obrigação de restauração natural se converterá em obrigação pecuniária.» – cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Volume I, 4.º Edição, Coimbra Editora, pág. 582.
É, assim, ao devedor/lesante, aqui réu e apelante, que incumbe a alegação e prova dos factos que integram a excessiva onerosidade da restauração natural, enquanto matéria de exceção justificativa da fixação da indemnização por equivalente, nos termos previstos no n.º 2 do art. 566.º do Cód. Civil.
A excessiva onerosidade da reconstituição natural apenas pode ser definida face ao caso concreto, não bastando ter em conta a proximidade do valor da reparação do dano causado e o valor comercial do veículo para se poder afirmar ser excessivamente onerosa a obrigação, a cargo do réu, que com a apurada conduta lesou o direito de propriedade da autora sobre o veículo, de colocar a mesma na situação em que estaria se não fosse o evento lesivo. Sobre o assunto, cfr. Ac. deste TRP de 20-02-2020, proc. 358/17.2T8OVR.P2, e os Acórdãos do STJ aí referidos (Acórdão de 12/01/2006, Proc. n.º 05B4176; Acórdão de 21/04/2010, Proc. n.º 17/07.4TBCBR.C1.S1).
No caso, resulta dos factos provados que para a reconstituição da situação que existiria se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação é necessário proceder à pintura da chapa e dos faróis duros e substituir os plásticos exteriores, os faróis da frente e as borrachas do veículo da autora, estimando-se o custo de tal reparação em € 7.518,69 – n.os 12. e 13. –, veículo esse que, antes de ter ficado com a totalidade da pintura sobre a chapa e sobre os plásticos duros e vidros, borrachas, plásticos não pintados, faróis e as jantes marcados com pequenas pintas brancas – n.º 11. dos factos provados –, tinha um valor de mercado de pelo menos € 7.000,00 – n.º 17. dos factos provados.
Tal factualidade é claramente insuficiente para se poder afirmar a excessiva onerosidade da obrigação de restauração natural. O veículo da autora, de cor preta, que é o veículo que a mesma utiliza diariamente para se deslocar para o emprego, em passeios aos fins de semana, visitas aos amigos e familiares – n.os 6. e 14 – ficou marcado, na sua quase totalidade, com pequenas pintas brancas.
Não subsistem grandes dúvidas de que, face à factualidade apurada, a melhor forma de satisfazer o interesse da autora é a reposição da viatura no estado em que se encontrava antes. A equivalência do valor da reparação ao valor comercial da viatura não permite afirmar a existência de uma manifesta desproporção entre a satisfação do interesse da autora e o custo a suportar pelo réu – sendo que não foram alegados quaisquer factos atinentes às condições pessoais (por exemplo, económicas) das partes passíveis de serem valoradas e consideradas na aferição da pretendida manifesta desproporcionalidade – sobre o assunto, cfr. Ac. do TRC de 10-07-2013, Proc. n.º 154/11.0TBOHP.C1; Ac. do STJ de 10-02-2004, Proc. 03A4468.
Não existem, pois, factos que permitam concluir que no caso em apreciação a restauração natural implica para o réu um «(…) encargo desmedido, desajustado, que ultrapasse manifestamente os limites impostos a uma legítima indemnização.» – assim, cfr. além do supra referido Ac. do TRP de 20-02-2020, ainda o Ac. do TRL de 04-07-2013, Proc. 3643/11.3TBSLX.L1-6.

Improcede, igualmente, este fundamento do recurso.

4. Responsabilidade pelas custas

A decisão sobre custas da apelação, quando se mostrem previamente liquidadas as taxas de justiça que sejam devidas, tende a repercutir-se apenas na reclamação de custas de parte (art. 25.º do Reg. Custas Processuais).
A responsabilidade pelas custas do recurso cabe ao apelante, por ter ficado vencido (art. 527.º do Cód. Proc. Civil).

IV – Dispositivo

Pelo exposto, acorda-se em negar provimento ao recurso, confirmando-se a sentença apelada.
Custas a cargo do apelante, por ter ficado vencido (art. 527.º do Cód. Proc. Civil).
Notifique.

Porto, 8/5/2025
(data constante da assinatura eletrónica)
Ana Luísa Loureiro
José Manuel Correia
António Carneiro da Silva