ARRESTO
PESSOA COLECTIVA
DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA
Sumário

I - Numa situação em que os bens objecto do arresto foram comprados para o exercício da respectiva actividade por Requerida que não é a devedora, podem evidenciar-se razões para desconsiderar a personalidade jurídica desta, em termos de ignorar aquela titularidade do direito de propriedade sobre tais bens, impondo-se aceitar o seu arresto como sendo feito ao próprio devedor.
II - A desconsideração da personalidade jurídica das sociedades comerciais (e, dum modo mais geral, da personalidade colectiva) foi concebida para situações de utilização abusiva da personalidade colectiva do ente societário, sujeito de direito autónomo. Está em causa a derrogação do princípio da separação entre a pessoa colectiva e aqueles que por detrás dela actuam, ignorando a presença formal duma pessoa colectiva.
III - A “desconsideração da personalidade colectiva” é o instituto a convocar, justamente, nos casos em que o cerne da questão não reside na confusão patrimonial, mas se coloca verdadeiramente ao nível da confusão de pessoas e aos casos em que a comunhão de interesses não se verifica entre a sociedade e algum dos seus sócios, com o que a ideia de afastamento pontual da responsabilidade limitada não é suficiente nem adequada.
IV - A transposição de imputação dos efeitos de um determinado acto de uma pessoa para outra que não assume a qualidade de sócio não pode deixar de recorrer ao conceito de levantamento. Esta constitui a resposta do ordenamento precisamente a um problema de menor respeito pela autonomia jurídica da pessoa colectiva por alguém que se encontra em condições de forçar a contrição da esfera colectiva ou de se aproveitar ilicitamente dessa situação.
V - O gerente da sociedade 1ª requerida, em data muito próxima à assunção por esta da obrigação de pagar o preço de fornecimentos pela requerente, desvincula-se daquela gerência e cria uma sociedade unipessoal com o mesmo objecto, a qual, laborando com os mesmos equipamentos, assume dívidas da 1ª e entrega para pagamento destas a totalidade dos mesmos equipamentos, que logo recebe em locação, assim logrando manter a actividade e, outrossim, aparentar uma estraneidade daqueles bens, em manifesto prejuízo ou detrimento dos credores e de ambas as requeridas…
VI - Naquele percurso comportamental, evidencia-se a grave violação pelo sócio único da 2ª requerida, efectivo ou real gerente da primeira, da boa fé e da ética dos negócios, em que sobressai a utilização abusiva, em seu proveito (e da 2ª requerida), do fim social ou económico próprio da separação patrimonial da sociedade Recorrente, mediante a confusão de patrimónios (que o vem a ser do lado activo, mas também passivo) e o abuso da personalidade colectiva.
VII - Quanto aos efeitos do instituto, trata-se de, dentro do espírito do sistema, descortinar a consequência que melhor inibir as sequelas do evento gerador de desconsideração.

Texto Integral

Processo 135/25.7T8AMT-A.P1

Tribunal Judicial da Comarca do Porto Este

Juízo Local Cível de Amarante

Relatora: Isabel Peixoto Pereira

1º Adjunto: Isabel Rebelo Ferreira

2º Adjunto: Ana Luísa Loureiro


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Acordam os juízes da 3.ª secção do Tribunal da Relação do Porto:

I.

AA instaurou contra “A..., LDA.” e “B... UNIPESSOAL, LDA.” procedimento cautelar de arresto.

Produzida a prova, foi julgada procedente a providência e decidido o arresto dos móveis das requeridas que existam no estabelecimento, sito na Rua ..., ..., ..., Amarante, estritamente suficientes ao pagamento da dívida.

Executado/cumprido o arresto, a 2.ª requerida “B... Unipessoal, Lda.” instaurou oposição ao arresto, alegando, em síntese, que: os bens arrestados são pertença da 2.ª requerida; a 2.ª requerida não está a laborar com os bens que pertenciam à 1.ª requerida.

Foram juntas facturas e cópias dos contratos de aluguer de máquinas, outorgados pela 2.ª requerente, na qualidade de locatária.

Procedeu-se ao julgamento da oposição, com a observância do formalismo legal, mas sem qualquer produção de prova para além da junção documental.

Julgou-se improcedente a oposição, mantendo-se o decidido e executado arresto.

É desta decisão que vem interposto recurso pela 2ª requerida, mediante as seguintes Conclusões:

1. O Recurso apresentado pela Requerida tem por objecto erro de julgamento da matéria de facto e consequentemente erro de julgamento da matéria de direito.

2. Face à prova produzida nos autos, salvo melhor opinião, não foi produzida qualquer prova que sustente o facto dado como provado no ponto nº 13 (treze).

3. O Requerente não alega nenhuma situação que sustente a fuga e dissipação de bens.

4. O despacho final carece de fundamentação de facto para decretar uma providência desta natureza, sendo certo que, estamos face a um arresto de bens de uma sociedade que não tem nada a ver com as dívidas de outra sociedade.

5. O Tribunal a quo conclui que: “Analisados foram ainda os documentos juntos pela 2º Requerida, sucedendo que os documentos juntos em sede de oposição não dizem respeito aos mobiliários dos quartos arrestados…”

6. E em contradição refere que: “Nesta decorrência, não tendo sido produzidos meios de prova que tenham o condão de invalidar o arresto decretado deve o mesmo ser mantido, apesar de os bens terem sido fabricados e serem pertença da 2º requerida e de a dívida ser da 1ºrequerida”

7. É notório a contradição entre as afirmações transcritas, pois que, na primeira afirma que os móveis arrestados não são da Requerida B..., Unipessoal, Lda, por sua vez, logo a seguir, o tribunal confirma que os bens arrestados são pertença da 2º Requerida.

8. A Requerente/ Recorrente demonstrou claramente em termos documentais que todos os bens arrestados lhe pertencem e que foram adquiridos por esta mesma sociedade a terceiros.

9. A Recorrente demonstrou documentalmente que todos os bens arrestados foram adquiridos, ao longo do tempo a diversos fornecedores.

10. Por outro lado, a Recorrente teve o cuidado e a preocupação, que o tribunal a quo devia de ter valorado e afastado a indicada “fuga e dissipação” de bens de demonstrar que a primeira Requerida não só não tentou fugir com os bens, como os deu em pagamento de dívidas, daí os contratos juntos aos autos de dação em pagamento, acompanhados das respectivas facturas de venda.

11. A Requerente não alegou nem demonstrou a verificação de pressupostos referentes à figura do arresto.

12. Para prova da indicada fuga e dissipação de bens, o Requerente não alegou qualquer facto concreto que demonstrasse a fuga ou dissipação de bens.

13. São pressupostos cumulativos dos seu decretamento, como já se referiu: a existência de um crédito e o justificado receio de perda de garanti patrimonial.

14. Para que se prove o justo receio da perda da garantia patrimonial, não basta a alegação de meras convicções, desconfianças, suspeições de carácter subjectivo por parte do Requerente.

15. O Requerente não logrou provar qualquer ato da Requerida A..., Lda, nomeadamente: dissipação de bens, ausência de património ou oneração do mesmo.

16. Mesmo dando hipoteticamente como indiciariamente assente toda a factualidade alegada pelo Requerente, não estão verificados todos os pressupostos legais para o deferimento da providência de arresto relativamente à 2º Requerida, aqui Recorrente.

17. Aliás, como também já se referiu, o sócio da 1º Requerida deu bens em pagamento de dívidas, não os subtraiu ou alterou a sua titularidade.

18. O Requerente apenas lançou mão do instituto denominado de desconsideração da personalidade colectiva para satisfazer o seu crédito por um terceiro, sendo certo que, com o devido respeito, o Tribunal a quo, não fundamentou devidamente a sua aplicação.

19. O que ficou tão só e apenas demonstrado, foi que o sócio da 1º Requerida cedeu as suas quotas a um terceiro e entretanto abriu outra sociedade com um objecto social idêntico à primeira sociedade de que era sócio.

20. De tudo quanto se deixou alegado a matéria de facto dada como provada, nomeadamente o facto nº 13, deverá ser dado como não provado e perante este factualismo, a providência cautelar deverá ser revogada.

21. Face a tudo quanto se deixou alegado, deverá o presente recurso ser considerado totalmente procedente e ser revogada a providência cautelar de arresto.

II.

São as seguintes as questões a decidir:

- a do erro de julgamento quanto à matéria de facto, na medida em que não pode haver-se como provado o facto adquirido sob 13 da decisão recorrida[1];

- a do erro de direito, por não resultar o justificado receio de perda da garantia patrimonial do crédito da requerente e bem assim não estarem caracterizados os pressupostos da figura da desconsideração da personalidade colectiva que serviu a admissão do arresto de bens demonstradamente adquiridos por quem não é o devedor.

A) Da impugnação da matéria de facto

São os seguintes os factos assentes na decisão recorrida:

1- O requerente dedica-se à actividade de compra e venda de madeiras e derivados.

2- A 1.ª requerida é uma sociedade por quotas que se dedica, com intuito lucrativo, à fabricação de obras de carpintaria para construção, bem como, à fabricação e colocação de mobiliário para cozinhas e para outros fins, nomeadamente salas de estar, quartos de dormir, casas de banho, mobiliário urbano, sofás, cadeiras e assentos com armação de madeira, assim como acabamentos.

3- A 2.ª requerida apresenta um objecto social exatamente igual ao da 1.ª requerida, também se dedicando à fabricação de obras de carpintaria e fabricação e colocação de mobiliário, acrescentando apenas a decoração.

4- No desenvolvimento da sua actividade, o requerente forneceu à 1.ª requerida, a solicitação desta, nas respectivas datas das facturas, vários bens – soalho afizelia 140/20 e soalho afizelia 160/20.

5- Os fornecimentos estão titulados pela factura ..., datada de 19.04.2024, com vencimento em 19.05.2024, no valor de € 14.867,75 euros e pela factura ..., datada de 06.06.2024, com vencimento em 06.07.2024, no valor de € 7.380 euros.

6- A 1.ª requerida procedeu ao pagamento parcial da factura ..., no valor de € 4.740,27 euros, em finais de Abril de 2024.

7- Permanecendo em dívida, conforme se alcança do encontro das facturas e do pagamento realizado, a importância de € 17.507,48 euros.

8- O local de pagamento das facturas era o da sede profissional do requerente.

9- O prazo de pagamento da factura ... era até 19.05.2024, enquanto o prazo de pagamento da fatura ... era até 06.07.2024.

10- Para pagamento dos valores em dívida, a 1.ª requerida entregou ao requerente 4 cheques, um Cheque do Banco 1..., datado de 30.06.2024, com o nº ..., no valor de €3.831,87; um outro Cheque do Banco 1..., datado de 31.07.2024, com o nº ..., no valor de € 3.831,87; um terceiro Cheque do Banco 1..., datado de 10.09.2024, com o nº ..., no valor de € 3.831,87; um último Cheque do Banco 1..., datado de 30.11.2024, com o nº ..., no valor de € 6.011,87 euros.

11- Apresentado a pagamento, o primeiro cheque veio devolvido por falta de provisão em 03.07.2024; o segundo cheque foi, também por falta de provisão, devolvido em 02.08.2024, o terceiro cheque veio devolvido, pelo mesmo motivo, em 12.09.2024. O quarto cheque foi também apresentado a pagamento, tendo igualmente sido devolvido, mas ainda não foi remetido pela entidade bancária ao requerente.

12- A 1.ª requerida deixou de cumprir as suas obrigações, deixando de pagar ao requerente, bem como, a outros credores.

13- E tratou de encetar uma estratégia de fuga ou dissipação de bens com vista a não pagar aos credores, onde se inclui o requerente.

14- Em 07.08.2024 mudou a sua sede para a Rua ..., código postal ... ... que não apresenta tipologia compatível com a de um estabelecimento industrial, apresentando somente características compatíveis com as de uma loja.

15- O sócio maioritário com 98% do capital, de nome BB, então seu gerente, cedeu as suas quotas a CC, em 11.06.2024, e renunciou à gerência em 09.08.2024, tendo aquele CC sido nomeado gerente.

16- Em paralelo, aquele sócio-gerente BB constituiu uma sociedade por quotas unipessoal, com nome idêntico à anterior, a “B..., Unipessoal, Lda.”, de que é o gerente e cuja sede fica na Rua ..., ..., código postal ... ... – Amarante, local onde anteriormente se encontrava sediada a 1.ª requerida, estando a 2.ª requerida a laborar, naquele local, com os mesmos bens que pertenciam à 1.ª requerida e com o mesmo objecto social.

17- A 2.ª requerida outorgou os contratos de aluguer, dação em cumprimento e reconhecimento de dívida, juntos na oposição, os quais, porém, não incidem sobre os móveis que constam no auto de arresto, que consistem unicamente em móveis produzidos pela 2.ª requerida.

No que interessa agora à motivação, consignou a decisão recorrida o seguinte:

A convicção do tribunal para dar como assente tal factualidade alicerçou-se no depoimento das testemunhas ouvidas DD, filho do requerente e seu empregado e EE, motorista da requerente. As referidas testemunhas revelaram ter conhecimento directo dos factos sobre que depuseram, sendo o seu depoimento, com razão de ciência devidamente controlada, isento, consentâneo e lógico e por isso, merecedor da credibilidade do tribunal.

Analisados foram ainda os documentos juntos pela 2.ª requerida, sucedendo que os documentos juntos em sede de oposição não dizem respeito aos mobiliários de quarto arrestados e, quanto às máquinas e equipamentos que também se encontravam na Rua ..., ..., antiga sede da 1.ª requerida e actualmente sede da 2.ª requerida, não foram arrestados por dúvidas suscitadas relativas à sua propriedade, precisamente pelo teor dos contratos de aluguer juntos.

Nesta decorrência, não tendo sido produzidos novos meios de prova que tenham o condão de invalidar o arresto decretado, deve o mesmo ser mantido, apesar de os bens terem sido fabricados e serem pertença da 2.ª requerida e de a dívida ser da 1.ª requerida.


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Quanto ao ponto 13 dos factos assentes, posto em causa pela Recorrente, posto que cumpridos basicamente os requisitos legais de recurso da matéria de facto. Ali se deu como assente que: (encetou) estratégia de fuga ou dissipação de bens com vista a não pagar aos credores, onde se inclui o requerente.

Desde logo, o art. 607/4 do CPC, nos termos do qual o tribunal só deve responder aos factos que julga provados e não provados, exclui a pronúncia, nesta sede, sobre questões de direito, sendo que, tradicionalmente, se englobam neste conceito, por analogia, os juízos de valor ou conclusivos, os quais são, no dizer de Helena Cabrita, A Fundamentação de Facto e de Direito da Decisão Cível, Coimbra: Coimbra Editora, 2015, pp. 106-107, “ aqueles que encerram um juízo ou conclusão, contendo desde logo em si mesmos a decisão da própria causa” ou, dito de outro modo, aqueles que se fossem considerados provados ou não provados levariam a que toda a ação ficasse resolvida, em termos de procedência ou improcedência, com base nessa única resposta.

A título de exemplo, cita-se STJ de 28.09.2017 (809/10.7TBLMG.C1.S1), relatado por Fernanda Isabel Pereira, no qual se entendeu que, “[m]uito embora o art. 646.º, n.º 4, do anterior CPC tenha deixado de figurar expressamente na lei processual vigente, na medida em que, por imperativo do disposto no art. 607.º, n.º 4, do CPC, devem constar da fundamentação da sentença os factos julgados provados e não provados, deve expurgar-se da matéria de facto a matéria suscetível de ser qualificada como questão de direito.”

Este entendimento estrito tem sido objeto da crítica da doutrina, em especial de Miguel Teixeira de Sousa, “Anotação ao Acórdão do STJ de 28.9.2017, processo n.º 809/10.7TBLMG.C1.S1”, Blog IPPC, Jurisprudência 784, https://blogippc.blogspot.com/ [17.10.2023] (O autor retomou o tema em no escrito “Factos conclusivos": já não há motivos para confusões!”, disponível em https://blogippc.blogspot.com/2023/06/factos-conclusivos-ja-nao-ha-motivos.html), que, a propósito, escreve que, “[e]nquanto no CPC/1961 se selecionavam, no modo interrogativo (primeiro no questionário e depois da base instrutória), factos carecidos de prova, hoje enunciam-se, no modo afirmativo, temas da prova (cf. art. 596.º CPC). Tal como estes temas não têm de (e, aliás, nem podem, nem devem) ser enunciados fora de qualquer enquadramento jurídico, também a resposta do tribunal à prova realizada pela parte não tem de ser juridicamente asséptica ou neutra (…).

A chamada "proibição dos factos conclusivos" não tem hoje nenhuma justificação no plano da legislação processual civil (não importando agora discutir se alguma vez teve). Se o tribunal considerar provados os factos que preenchem uma determinada previsão legal, é absolutamente irrelevante que os apresente com a qualificação que lhes é atribuída por essa previsão. (…) Assim, também ao contrário do entendimento comum, há que concluir que o tema da prova não é mais do que o enunciado do objeto da prova. A referida "proibição dos factos conclusivos" também não corresponde às modernas correntes metodológicas na Ciência do Direito, que não se cansam de referir que a distinção entre a matéria de facto e a matéria de direito é totalmente artificial, dado que, para o direito, apenas são relevantes os factos que o direito qualificar como factos jurídicos. Para o direito, não há factos, mas apenas factos jurídicos, tal como, para a física ou a biologia, não há factos, mas somente factos físicos ou biológicos. Os factos são sempre um Konstrukt, pelo que os factos jurídicos são aqueles factos que são construídos pelo direito. Em conclusão: o objeto da prova não pode deixar de ser um facto jurídico, com todas as características descritivas, qualitativas, quantitativas ou valorativas desse facto.”

Da nossa parte, entendemos que é preferível um entendimento eclético.

Com efeito, ainda na vigência do CPC de 1961, o mesmo STJ notou, em Acórdão de 13.11.2007 (07A3060), relatado por Nuno Cameira, que “[t]orna-se patente que o julgamento da matéria de facto implica quase sempre que o julgador formule juízos conclusivos, obrigando-o a sintetizar ou a separar os materiais que lhe são apresentados através das provas. Insiste-se: o que a lei veda ao julgador da matéria de facto é a formulação de juízos sobre questões de direito, sancionando a infração desta proibição com o considerar tal tipo de juízos como não escritos.” E acrescentou que “não pode perder se de vista que é praticamente impossível formular questões rigorosamente simples, que não tragam em si implicados, o mais das vezes, juízos conclusivos sobre outros elementos de facto; e assim, desde que se trate de realidades apreensíveis e compreensíveis pelos sentidos e pelo intelecto dos homens, não deve aceitar se que uma pretensa ortodoxia na organização da base instrutória impeça a sua quesitação, sob pena de a resolução judicial dos litígios ir perdendo progressivamente o contacto com a realidade da vida e assentar cada vez mais em abstrações (e subtilezas jurídicas) distantes dos interesses legítimos que o direito e os tribunais têm o dever de proteger. E quem diz quesitação diz também, logicamente, estabelecimento da resposta, isto é, incorporação do correspondente facto no processo através da exteriorização da convicção do julgador, formada sobre a livre apreciação das provas produzidas.”

Já no âmbito do CPC de 2013, o STJ, em Ac. de 22.03.2018 (1568/09.1TBGDM.P1.S1), relatado por Abrantes Geraldes, considerou que a inexistência no CPC de 2013 de um preceito como o do art. 646/4 do CPC de 1961 “não pode deixar de ter implicações no que concerne à atual metodologia no que concerne à descrição na sentença do que constitui matéria de facto e matéria de direito.” Escreveu-se ali que “[n]o que concerne à decisão sobre a matéria de facto provada e não provada, não será indiferente nem o modo como as partes exerceram o seu ónus de alegação, nem a forma como o juiz, na audiência prévia ou em despacho autónomo, enunciou os temas da prova, tarefas relativamente às quais foram introduzidas no CPC importantes alterações que visaram quebrar rotinas instaladas e afastar os efeitos negativos a que conduziu a metodologia usualmente aplicada no âmbito do CPC de 1961 (…) A matéria de facto provada deve ser descrita pelo juiz de forma mais fluente e harmoniosa do que aquela que resultava anteriormente da mera transcrição do resultado de respostas afirmativas, positivas, restritivas ou explicativas a factos sincopados que usualmente preenchiam os diversos pontos da base instrutória do CPC de 1961 (…)”

O relator deste Acórdão, Conselheiro António Abrantes Geraldes, renovou este entendimento na sua obra Recursos em Processo Civil (7.ª ed., Coimbra: Almedina, 2022, pp. 354-355), ao escrever que, em resultado da modificação formal da produção de prova em audiência, que passou a ter por objeto temas de prova, e da opção da integração da decisão da matéria de facto no âmbito da própria sentença, “deve existir uma maior liberdade no que concerne à descrição da realidade litigada, a qual não deve ser imoderadamente perturbada por juízos lógico-formais em torno do que seja matéria de direito ou matéria conclusiva que apenas sirva para provocar um desajustamento entre a decisão final e a justiça material do caso (...) A patologia da sentença neste segmento apenas se verificará, em linhas gerais, quando seja abertamente assumida como matéria de facto provada pura e inequívoca matéria de direito…”

Sem prejuízo, como salientado no Acórdão da Relação de Guimarães de 11.11.2021 (671/20.1T8BGC.G1), relatado por Raquel Batista Tavares, “não obstante subscrevermos uma maior liberdade introduzida pelo legislador no novo (atual) Código de Processo Civil, entendemos que não constituem factos a considerar provados na sentença nos termos do disposto nos n.ºs 3 e 4 do artigo 607º do Código de Processo Civil os que contenham apenas formulações absolutamente genéricas e conclusivas, não devendo também constituir “factos provados” para esse efeito as afirmações que “numa pura petição de princípio assimile a causa de pedir e o pedido”… De facto, se a opção legislativa tem subjacente a possibilidade de com maior maleabilidade se fazer o cruzamento entre a matéria de facto e a matéria de direito, tanto mais que agora ambos (decisão da matéria de facto e da matéria de direito) se agregam no mesmo momento, a elaboração da sentença, tal não pode significar que seja admissível a “assimilação entre o julgamento da matéria de facto e o da matéria de direito ou que seja possível, através de uma afirmação de pendor estritamente jurídico, superar os aspetos que dependem da decisão da matéria de facto”.

No mesmo sentido, o Acórdão da mesma Relação de 31.03.2022 (294/19.8T8MAC.G1), relatado por Pedro Maurício, sintetiza a questão nos seguintes termos: “[a]figura-se-nos que os factos conclusivos não devem relevar (não podem integrar a matéria de facto) quando, porque estão diretamente relacionados com o thema decidendum, impedem ou dificultam de modo relevante a perceção da realidade concreta, seja ela externa ou interna, ditando simultaneamente a solução jurídica, normalmente através da formulação de um juízo de valor.” E, sufragando RP 07.12.2018 (338/17.8YRPRT), acrescenta que:“Acaso o objeto da ação esteja, total ou parcialmente, dependente do significado real das expressões técnico-jurídicas utilizadas, há que concluir que estamos perante matéria de direito e que tais expressões não devem ser submetidas a prova e não podem integrar a decisão sobre matéria de facto. Se, pelo contrário, o objeto da ação não girar em redor da resposta exata que se dê às afirmações feitas pela parte, as expressões utilizadas, sejam elas de significado jurídico, valorativas ou conclusivas, poderão ser integradas na matéria de facto, passível de apuramento através da produção dos meios de prova e de pronúncia final do tribunal que efetua o julgamento, embora com o significado vulgar e corrente e não com o sentido técnico-jurídico que possa colher-se nos textos legais.”

Deste modo, tendo presente que a linha divisória entre o facto e o direito não é linear, tudo dependendo, no dizer de Anselmo de Castro, Direito Processual Civil Declaratório, III, Coimbra: Almedina, 1982, p. 270, “em considerável medida não só da estrutura da norma, como dos termos da causa: o que é facto ou juízo de facto num caso, poderá ser direito ou juízo de direito noutro. Os limites entre um e outro são, assim, flutuantes”, há sempre que verificar se o facto, mesmo com uma componente conclusiva, não tem ainda um substrato relevante para o acervo que importa para uma decisão justa.

Ainda quando os factos conclusivos estejam diretamente relacionados com o thema decidendum, apenas são a desconsiderar quando impeçam ou dificultem de modo relevante a percepção da realidade concreta, seja ela externa ou interna, ditando simultaneamente a solução jurídica, normalmente através da formulação de um juízo de valor. Certo estar o objeto da pretensão dependente do significado real da expressão técnico-jurídica proposta (fuga ou dissipação de bens), há que concluir que estamos perante matéria de conclusiva de direito e que tal expressão não pode ser submetida a prova e integrar a decisão sobre matéria de facto.

Como se adiantou, afirmações conclusivas, sobretudo quando correspondam ao objeto do litígio ou à questão a decidir, confundindo-se com o ‘conceito chave’ da solução jurídica da causa, devem ser excluídas ou consideradas não escritas. Como, mais uma vez, se concluiu no aludido aresto, deve-se ter por “não escrita” “a enunciação [que se] revele conclusiva”, mormente nos casos em que, citando o Acórdão do STJ de 14-07-2021, essa enunciação encerre um juízo “contendo (…) em si mesmo a decisão da própria causa” ou em que “se tais factos fossem considerados provados ou não provados toda a acção seria resolvida (em termos de procedência ou improcedência) com base nessa única resposta”.

Mais são de evitar conclusões, ainda quando não jurídicas, despojadas de factos ou conteúdo, vagas ou genéricas, da qual não possa retirar-se efeito útil algum.

Temos para nós que o facto sob 13 se reconduz justamente a um juízo conclusivo que vai directamente referido a uma das questões cerne do procedimento: o perigo de perda da garantia patrimonial do crédito por dissipação ou ocultação de bens ou património, com o que, na posição sustentada, não deve constar do elenco factual…

Decide-se, pois, da sua eliminação, sem prejuízo de os factos provados sob 16 e 17 (estes não postos em causa no recurso) caracterizarem, como se verá em sede própria, a do enquadramento jurídico, o justificado receio de evicção do património responsável.

Sem prejuízo da falta de menção especificada ao facto de a 2ª requerida estar a trabalhar com os bens (máquinas e equipamentos) da 1ª Requerida, como assente em 16, o teor das conclusões, complementado pelo das alegações, permite concluir que a impugnação da matéria de facto no recurso mais tem por objecto essa aquisição probatória.

Nessa parte, não assiste qualquer razão à Recorrente, já que os termos dos contratos juntos aos autos por requerimentos de 21.11.2024, pelos “locadores” do equipamento e maquinaria com o qual labora a Recorrente vêm a revelar o que os termos mesmos da oposição já sugeriam, que os direitos dos locadores sobre os bens foram adquiridos por dação em cumprimento/pagamento pela 2ª requerida, com o que em causa bens e equipamentos que sempre estiveram afectos ao seu processo produtivo… E, pasme-se, despudoradamente, a dívida satisfeita por aquela entrega ou dação vem a ser nem mais nem menos que uma dívida da 1ª requerida (afiançada solidariamente (?!) pela 2ª)…

Sempre os contratos de locação seriam insuficientes a demonstrar a titularidade/propriedade dos bens locados pelos locatários, na ausência de prova complementar do modo de aquisição por eles… Ora, a transferência anterior (rectius concomitante, tendo de haver-se como consequencial ou articulado todo o processo de alterações quanto à 1ª requerida) para os locatários pela 2ª requerida, para pagar uma dívida da 1ª requerida, vem a ser o facto indiciário mais relevante, a um tempo, da confusão de patrimónios, como se verá, como da disposição dos equipamentos da 1ª pela 2ª Ré, como atestado testemunhalmente (serem as máquinas as mesmas, sem infirmação probatória alguma em sede de oposição) … Assim é que prova absolutamente ausente do modo de aquisição pela 2ª Requerida e Recorrente das máquinas e equipamentos (de valor não despiciendo) dados em pagamento ou cumprimento, com o que nada afasta a aquisição probatória da transferência dos equipamentos da 1ª Requerida para a Recorrente. Antes o corrobora o facto provado também, sem discussão, quanto à natureza da “nova sede” da 1ª requerida, sem qualquer aptidão para acolher a “fábrica” e, indiciariamente ainda, novamente, os termos do afiançamento pela Recorrente das dívidas da 1ª Recorrida e a entrega dos bens em pagamento, a denunciar/acusar, de acordo com juízos de normalidade e regras da experiência comum, a atestada continuidade da actividade pelo gerente cessante da 1ª requerida, justamente com o activo imobilizado da 1ª, em nome da recorrente, como comprovado testemunhalmente… É que sempre, quando os factos têm intervenção humana ou são resultado dessa actuação, perscrutar a realidade desse facto é, antes de mais, averiguar a razão que subjaz a essa actuação, que lhe dá origem e a orienta e, sobretudo, apurar se a mesma é compatível com o quadro de actuação que qualquer outra pessoa nas mesmas circunstâncias teria. Por isso que um dos elementos decisivos para a formação da convicção do julgador é a verosimilhança dos factos sobre os quais recai a controvérsia, i.é., a pertinência lógica dos mesmos ao domínio dos acontecimentos humanos que, por definição, possuem motivações apreensíveis, são orientados para um fim compreensível e delineados por processos intelectualmente aptos e estão de acordo com o que as regras da experiência nos ensinam ser expectável, corresponder ao devir normal. Comportamentos privados de racionalidade, opostos ou diferentes da actuação que o comum dos cidadãos teria, cuja lógica ou motivação não é sequer perceptível ou se mostra destituída de coerência, são estranhos e como tal, ainda que possíveis, são pouco prováveis, indiciando que ou o comportamento não foi realmente aquele que é afirmado ou que o seu objectivo é diferente daquele que se pretende. E vem a talho de foice, em sede de afirmação/confirmação de regras/juízos de normalidade, convocar aqui a teoria da prospecção que valeu a Daniel Kahneman o Prémio Nobel da Economia e nela ao estruturante conceito de aversão à perda. Ora, no pressuposto de que a 2ª requerida/recorrente nada tinha a ver com o “património” da 1ª, dela se tendo autonomizado total e absolutamente, como explicar ou justificar o afiançamento pela 2ª de dívidas da primeira e sempre a entrega em pagamento da totalidade do activo imobilizado corpóreo?

A prova é concludente nesse sentido, chegando a ser confrangedora a tentativa de justificar a estraneidade dos bens, como se em causa estivesse uma mera locação de equipamentos, que não uma concomitante dação em pagamento[2] pela locatária… Tudo para dizer da completa correcção do juízo probatório da 1ª instância, que apenas comete um lapso quando se reporta ao fabrico dos bens arrestados pela 2ª requerida, quando em causa bens comprados ou adquiridos por esta, nos termos da documentação junta. Sem relevo o lapso.

Improcedente, pois, a impugnação desse segmento da matéria provada.


B) Da correcção jurídica da decisão

Pode a urgência na tutela de um determinado direito não se compadecer com o tempo que decorre entre a propositura da ação e o decretamento de uma sentença definitiva. Face a uma tal situação, o autor pode recorrer a um meio processual com carácter de urgência que permita salvaguardar o seu interesse e a utilidade da decisão que venha a ser proferida, harmonizando de forma razoável os interesses da celeridade e da segurança jurídica.

Concretamente, o regime jurídico da providência cautelar de arresto encontra-se previsto nos artigos 619.º a 622.º do CC e 391.º a 369.º do CPC.

Nos termos dos artigos 619.º, n.º 1, do CC e 391.º, n.º 1, do CPC, o credor que tenha justificado receio de perder a garantia patrimonial do seu crédito pode requerer o arresto de bens do devedor.

O requerente do arresto deve deduzir os factos que tornam provável a existência do crédito e justificam o receio invocado (cf. artigo 392.º, n.º 1, do CPC).

Estamos perante uma providência cautelar de natureza conservatória que visa proteger a expectativa do credor relativamente à garantia geral da satisfação do seu crédito, constituída pelo património do devedor, normalmente mediante a apreensão judicial de bens do devedor, tidos como suficientes para assegurar a satisfação patrimonial do crédito invocado (cf. artigos 391.º, n.º 2, 393.º, n.º 2 e 795.º, n.º 1, todos do CPC).

Sendo o arresto requerido também contra sociedade terceira, o requerente deduz ainda os factos que tornem provável a confusão de patrimónios entre requeridas (a devedora mesma e a sociedade terceira) que se constitui como hipótese típica da situação de desconsideração da personalidade jurídica, a permitir agora a penhora de bens próprios da sociedade cuja personalidade é a desconsiderar.

Ora, um dos requisitos do procedimento cautelar em apreço reside no justificado receio de perda da garantia patrimonial, o periculum in mora, que abrange qualquer causa idónea a provocar num homem normal o receio de perda da garantia patrimonial do seu crédito (cf. José Lebre de Freitas, Código de Processo Civil anotado, volume 2.º, pág. 125).

Como é sabido – e ressaltado pela doutrina e jurisprudência -, o preenchimento do aludido requisito não se basta com um receio subjetivo, carecendo antes de estribar-se em factos concretos e objetivos.

Como ensina Abrantes Geraldes, “o critério de avaliação deste requisito não deve assentar em juízos puramente subjetivos do juiz ou do credor (isto é, em simples conjeturas, como refere Alberto dos Reis), antes deve basear-se em factos ou em circunstâncias que, de acordo com as regras de experiência, aconselhem uma decisão cautelar imediata como fator potenciador da eficácia da ação declarativa ou executiva”, sendo, para tanto, insuficiente a “simples recusa de cumprimento da obrigação, desligada de outros fatores relacionados com a perda da garantia patrimonial” (em “Temas da Reforma do Processo Civil”, IV vol., págs. 193 e 194).

No mesmo sentido, vejam-se ainda, entre outros, Lebre de Freitas (em “Código de Processo Civil Anotado”, vol. II, págs. 119 e 120) e Antunes Varela (em “Das Obrigações em Geral”, vol. II, págs. 463 a 465).

Desde logo, o justificado receio de perda da garantia patrimonial vai referido à pessoa mesma da devedora, que não da sociedade requerida mediante recurso ao instituto da desconsideração…

Ora, emergem factos suficientes, diríamos, proficientes, para substanciarem a afirmação do justo receio de perda da garantia patrimonial do crédito da Recorrente.

Assim: as circunstâncias do incumprimento (ocasião da constituição da dívida e quase contemporaneidade com as alterações societárias que implicaram o “esvaziamento” da sociedade devedora), mas, decisivamente, a criação pelo sócio gerente da devedora de uma sociedade unipessoal com a mesma sede (não releva a alteração anterior da sede da devedora, justamente por se inferir ser uma alteração incluída no esquema de descapitalização. Bem assim a alteração da gerência), a laborar com os mesmos equipamentos, entretanto dados em pagamento de dívidas da 1ª requerida e logo tomados em locação pela 2ª, num estratagema de se eximir justamente à cobrança pelos credores da 1ª requerida, de resto favorecendo uns em detrimento de outros, comportamento cuja sede de correcção serão os autos de insolvência da 1ª. Tudo é de molde a tornar impossível que o requerente obtenha a satisfação do seu crédito pelo produto da venda de património do devedor, transferido, o que já de si é suficiente para afirmar o periculum in mora.

[A isto acresce que a declaração subsequente de insolvência do devedor evidencia que este não tem património que lhe permita cumprir para com o conjunto dos seus credores, o que adensa o juízo acabado de fazer.]

Nesta particular situação, ao invés do que sucede, v.g., com os subadquirentes de bens do devedor objecto de impugnação pauliana, o periculum in mora não tem de ser demonstrado quanto ao terceiro “transmissário”.

Ainda que se considerasse ter de sê-lo, é manifesto que os termos dos contratos pelos quais a 2ª requerida deu em pagamento a totalidade das máquinas e equipamentos que compunham o seu estabelecimento demonstram mais que o perigo, o dano da evicção do seu maior activo. De resto, naqueles contratos é a própria 2ª Requerida quem assume a impossibilidade de solver as suas dívidas.

Por estas razões, concluímos que, neste particular, não assiste razão à Recorrente, não havendo, assim, na decisão recorrida, um erro na subsunção da situação de facto ao conceito indeterminado de justo receio do art. 391/1 do CPC.

Quanto agora ao facto de terem sido arrestados bens demonstradamente adquiridos pela 2ª requerida, que não os equipamentos que se demonstrou terem-no sido da 1ª requerida…

Adiante-se que não assiste também qualquer razão à Recorrente.

Desde logo, quanto à recondução da situação a uma hipótese de desconsideração da personalidade da 2ª requerida, em medida da caracterizada “confusão de patrimónios”:

A propósito do significado da “desconsideração” esclarece Pedro Cordeiro, A Desconsideração da personalidade jurídica das sociedades comerciais, Novas perspectivas do direito comercial, p. 291, que «Entendemos por desconsideração o desrespeito pelo princípio da separação entre a pessoa colectiva e os seus sócios ou, dito de outro modo, desconsiderar significa derrogar o princípio da separação entre a pessoa colectiva e aqueles que por detrás dela actuam».

É relativamente às sociedades comerciais que o problema da desconsideração se coloca com maior acuidade, porquanto, «Enquanto a personalidade jurídica das pessoas naturais resulta do carácter ontológico da própria pessoa humana, a personalidade jurídica das pessoas colectivas, embora não sendo arbitrária, é uma criação do ordenamento jurídico, de modo a proporcionar a prossecução de determinados bens» - autor e ob. cits., p. 297[3].

Menciona também Pedro Cordeiro (ob. cit., p. 298) que «Ponto de partida da desconsideração é, portanto, a constatação de que a pessoa colectiva foi abusivamente utilizada pelos seus membros (…) Frise-se, no entanto, desde já, que, significando a desconsideração um derrogação do princípio da separação (legalmente consagrado), ela só será admissível a título excepcional e para o caso concreto – salvaguardando-se, assim, a sobrevivência do ente colectivo.

Conclui também dizendo que a desconsideração não foi expressamente prevista pelo legislador português enquanto instituto jurídico autónomo mas que a sua admissibilidade resulta do ordenamento jurídico, designadamente de tudo o que o princípio da proibição de abuso de direito (art. 334º, do Código Civil) encerra (a boa fé, os bons costumes, o fim social e económico de cada direito…), estando por isso reunidas as condições para que o intérprete integre a lacuna através de meio intra-sistemático ao seu alcance – a criação de uma regra nos termos do art. 10º, nº3, do Código Civil (aut. e ob. cits., p. 310).

No caso em análise, os bens objecto do arresto foram comprados para o exercício da respectiva actividade pela 2ª Requerida, que não é a devedora.

Resta saber se haverá razões para desconsiderar a personalidade jurídica desta em termos de ignorar aquela titularidade do direito de propriedade sobre tais bens, em termos de aceitar o seu arresto como sendo feito ao próprio devedor.

Imposta pelos ditames da boa fé (mas não apenas), a desconsideração da personalidade jurídica das sociedades comerciais (e, dum modo mais geral, da personalidade colectiva) foi concebida para situações de utilização abusiva da personalidade colectiva do ente societário, sujeito de direito autónomo, por forma a, fazendo dela, por assim dizer, biombo, ocultar o sócio por trás da sociedade, afastando a responsabilidade daquele, e tal assim mesmo em hipóteses não reconduzíveis à comum fraude à lei[4]. Com a constituição de uma sociedade comercial (de capitais), o sócio ou sócios ascendem a um mecanismo de actuação que lhes proporcionam os benefícios decorrentes da personalização colectiva: por um lado, a imputação à própria sociedade de todos os actos ilícitos cometidos pelos seus órgãos; por outro lado, a limitação ao património social da responsabilidade pelas obrigações assumidas pelo ente societário (v. os arts. 197º, 3, para as sociedades por quotas, e o art. 271º, para as sociedades anónimas, ambos do CSC). A imputação à sociedade da actividade desenvolvida em seu nome (bem como das suas consequências passivas) e a irresponsabilidade dos sócios pelas vinculações da sociedade constituem-se, assim, como privilégios resultantes da personificação societária e da submissão às regras que ela estabelece.

Essa autonomia patrimonial é, todavia, uma mera ficção legal destinada a assegurar que o investimento pelos sócios se faça sem constrangimentos para o património pessoal destes, protegendo-o contra eventuais e imprevisíveis insucessos da actividade social. Se assim é, se a personalidade jurídica das sociedades comerciais é um mero instrumento para a prossecução dos fins destas, então a validade do instituto deve ficar condicionada ao pressuposto do cumprimento do fim jurídico a que se destina.

Há, todavia, situações em que a utilização da pessoa jurídica é feita ao arrepio dos fins para os quais o Direito albergou o instituto. Em muitos casos, os sócios ocultam-se por detrás da autonomia formal do ente colectivo para lesar direitos ou infringir normas legais ou estatutárias.

Pode, assim, suceder que as pessoas colectivas sejam usadas fora de tudo quanto foi visado pelo Direito, aquando do seu estabelecimento e, ainda, com objectivos que atinjam o núcleo intangível de valores do sistema considerado. Nessa ocasião, o Direito permite o “levantamento” ou a “desconsideração” da personalidade, de modo a apurar a realidade efectiva — normalmente: as pessoas singulares ou outras pessoas colectivas — que se acolha ao ente em causa.

Trata-se de uma figura desenvolvida autonomamente nos Estados Unidos e na Alemanha, primeiro em termos práticos e puramente jurisprudenciais e, depois, em estudos doutrinários[5]. Como forma de evitar essas actividades de subversão dos fins para os quais se instituiu a pessoa jurídica, e no propósito de fortalecer o próprio instituto, foi concebida, nos domínios da Common Law, a chamada teoria da desconsideração da personalidade jurídica. Originariamente tratada como disregard doctrine ou disregard of legal entity, passou essa doutrina a representar um eficaz mecanismo de manutenção da sanidade da pessoa colectiva ou de restauração de sua integridade. A disregard doctrine é um expediente nascido (também) da jurisprudência anglo-saxónica que pode ser definida como «a doutrina que assegura que a estrutura da sociedade (...) pode ser desconsiderada, impondo-se a responsabilidade pessoal, no caso de fraude ou outra injustiça, aos accionistas, administradores e directores que agem em nome da sociedade» (Alexandre Couto Silva, Aplicação da Desconsideração da Personalidade Jurídica no Direito Brasileiro, São Paulo, 1999. p. 27), sempre em casos esporádicos e nunca afectando a validade do acto constitutivo.

Como quer que seja, estará em causa a derrogação do princípio da separação entre a pessoa colectiva aqueles que por detrás dela actuam (Pedro Cordeiro, op. Cit. pág. 13), ou dito de outro modo, a eventualidade de – sem normas específicas e por exigência do sistema – o Direito, em certas situações, passar do modo colectivo ao modo singular, ignorando a presença formal duma pessoa colectiva (Menezes Cordeiro, op. Cit. pág. 102).

O levantamento da personalidade corresponde a um instituto surgido para sistematizar e explicar diversas soluções concretas, estabelecidas para resolver problemas reais postos pela personalidade colectiva. Na sua origem, encontramos uma multiplicidade de casos concretos.

A doutrina que se tem preocupado com o levantamento procede a classificações, agrupamentos ou “constelações” de casos concretos em que ele se manifesta[6].

Menezes Cordeiro, a quem se deve o mais profundo estudo sistemático da questão, na sua obra já referenciada, O Levantamento da Personalidade Colectiva no Direito Civil e Comercial, que aqui seguiremos de muito perto, considera na tipificação dos grupos de casos: a confusão de esferas jurídicas[7]; a subcapitalização; o atentado a terceiros e o abuso da personalidade. O grupo constituído por relações de domínio qualificadas inclui-se no sector do Direito dos grupos de sociedades.

O abuso do instituto da personalidade colectiva é uma situação de abuso do direito ou de exercício inadmissível de posições jurídicas, verificada a propósito da actuação do visado, através de uma pessoa colectiva. No fundo, o comportamento que suscita a penetração vai caracterizar-se por atentar contra a confiança legítima (venire contra factum proprium, suppressio ou surrectio) ou por defrontar a regra da primazia da materialidade subjacente (tu quoque ou exercício em desequilíbrio)[8]. É certo que todos os outros casos de levantamento traduzem, em última instância, situações de abuso; neste, porém, há uma relativa inorganicidade do grupo, que deixa, mais directamente, a manifestação de levantamento, perante a actuação inadmissível.

Coutinho de Abreu[9] define a desconsideração da personalidade colectiva como “a derrogação ou não observância da autonomia jurídico-subjectiva e/ou patrimonial da pessoa colectiva em face dos seus membros”, considerando que a interpretação teleológica de disposições legais e contratuais e o abuso de direito, com o apoio de uma concepção substancialista da personalidade colectiva, podem legitimar tal desconsideração[10].

Pedro Cordeiro, depois de distinguir a desconsideração enquanto instituto autónomo, daqueles casos em que a mera aplicação de normas conduziria ao mesmo resultado, conclui, tendo apelado a propósito à ideia do abuso do instituto (sociedade comercial), que a “desconsideração não é consequência da desfuncionalização das sociedades comerciais, mas sim a consequência de uma certa desfuncionalização do instituto – aquela que se refere à limitação da responsabilidade – sendo por isso, desde logo, delimitada negativamente pela aplicação de outros institutos ou figuras jurídicas” (op. Cit., pág. 120)[11].

No fundamental (são ainda as palavras de Menezes Cordeiro) ele traduz uma delimitação negativa da personalidade colectiva por exigência do sistema ou, se se quiser: ele exprime situações nas quais, mercê de vectores sistemáticos concretamente mais ponderosos, as normas que firmam a personalidade colectiva são substituídas por outras normas.

A autonomia dogmática do instituto, tal como apresentada por Menezes Cordeiro, que acompanhamos ou sufragamos, por lhe reconhecer, antes que virtualidade explicativa, potencialidade sistemática, isto é, virtualidade de extrair da interpretação dos negócios e das normas, por via das exigências do sistema e da boa fé, melhores resultados em sede de “relativização” da personalidade colectiva, a qual se constitui como um dado da moderna teoria jurídica, não faz esquecer que o levantamento da personalidade colectiva é excepcional[12]: “entendido como ultima ratio, o levantamento só pode operar quando absolutas exigências do sistema, através da boa fé, o requeiram”.

Ora, a situação decidenda não se enquadra no paradigma da relação entre a Sociedade a desconsiderar e os sócios…, sede em que se desenvolveu a, permita-se, primeira linha do instituto ou figura.

Contudo, temos para nós como inteiramente procedentes as razões convocadas em “DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA —SINOPSE DOUTRINÁRIA E JURISPRUDENCIAL”, por ARMANDO MANUEL TRIUNFANTE e LUÍS DE LEMOS TRIUNFANTE, na JULGAR- N.º 9- 2009, reportando-se já à necessidade de invocar a verdadeira “desconsideração da personalidade colectiva” em hipóteses residuais, assim os casos em que o cerne da questão não reside na confusão patrimonial, mas se coloca verdadeiramente ao nível da confusão de pessoas e os casos em que a comunhão de interesses não se verifica entre a sociedade e algum dos seus sócios, com o que a ideia de afastamento pontual da responsabilidade limitada não é suficiente nem adequada. A transposição de imputação dos efeitos de um determinado acto de uma pessoa para outra que não assume a qualidade de sócio não pode deixar de recorrer ao conceito de levantamento. Esta constitui a resposta do ordenamento precisamente a um problema de menor respeito pela autonomia jurídica da pessoa colectiva por alguém que se encontra em condições de forçar a contrição da esfera colectiva ou de se aproveitar ilicitamente dessa situação. Esta “fusão voluntária e irregular”, se assim se pode chamar deve, portanto, ter ocorrido nalgum dos aspectos que costumam ser associados à autonomia da personalidade e a intensidade desta confusão vai medir também a intensidade da resposta. Se a confusão ocorre ao nível da própria personalidade, então a resposta, aqui sim, do ponto de vista dogmático só pode ser uma: o levantamento, superamento ou desconsideração da personalidade colectiva.

Quanto aos requisitos gerais da figura:

A reprovação sobre a conduta do agente, quer na criação da situação quer no aproveitamento dela, tem igualmente de existir. A desconsideração co-envolve assim um juízo de censura[13]. Só a censurabilidade da conduta permite justificar e, consequentemente impor, a superação da formalidade das regras que vigoram no direito das sociedades, nomeadamente a autonomia jurídica da sociedade.

Relacionado com o requisito anterior apresenta-se o da ilicitude ou o do abuso da conduta.

A desconsideração da personalidade jurídica, figura de criação doutrinal, relativiza o carácter absoluto da personalidade jurídica do ente societário intervindo quando existe abuso da autonomia patrimonial do ente societário, mormente, no caso de confusão de patrimónios exercida de modo desviante, ilegal, que pode ir da simulação de negócios e da fraude à lei até ao abuso do direito, em vista a proceder a uma correcta imputação da autoria e responsabilização de quem é na realidade o titular das posições jurídicas, levantando o véu para almejar a situação que deve prevalecer. Tal desconsideração legitimar-se-á através do recurso a operadores jurídicos como, nomeadamente (e consoante os casos), a interpretação teleológica de disposições legais e negociais e o abuso de direito – apoiados por uma concepção substancialista da personalidade colectiva (não absolutizadora do “princípio da separação”).”

À luz destes ensinamentos e no quadro factual indiciário, o abuso da autonomia patrimonial da sociedade apelante, em prejuízo dos credores da 1ª requerida, mediante a actuação individual e personalizada do legal representante da 2ª requerida, de resto constituída como Unipessoal, mais do que plausível, é uma realidade imposta pelos factos provados.

É que se é de exigir para a afirmação do instituto, a necessidade de confusão ou ausência de autonomia, esta é, no caso, manifesta, em razão de o gerente das sociedades ser o mesmo, sendo que a “condução” das alterações societárias da 1ª requerida se inferem da sua lavra… Não se esqueça outrossim a feição altamente pessoalizada das sociedades Unipessoais[14]

Como se decidiu no Ac. do STJ de 07.11.2017, P. 919/15.4T8PNF.P1.S1, acessível na base de dados da dgsi: “I - O princípio da atribuição da personalidade jurídica às sociedades e da separação de patrimónios, ficção jurídica que é, não pode ser encarado, em si, como um valor absoluto e não pode ter a natureza de um manto ou véu de protecção de práticas ilícitas ou abusivas – contrárias à ordem jurídica –, censuráveis e com prejuízo de terceiros. II - Assim, quando exista uma utilização da personalidade colectiva que seja, ou passe a ser, instrumento de abusiva obtenção de interesses estranhos ao fim social desta, contrária a normas ou princípios gerais, como os da boa fé e do abuso de direito, relacionados com a instrumentalização da referida personalidade jurídica, deve actuar a desconsideração desta, depois de se ponderarem os verdadeiros interesses em causa, para poder responsabilizar os que estão por detrás da autonomia (ficcionada) da sociedade e a controlam”.

Ali, a mais da citação de profusa jurisprudência nacional e não só, quanto à questão, para a qual nos remetemos, se escreve que: “Pedro Cordeiro lembra que deve ser tido em consideração que detrás da pessoa colectiva estão homens que determinam os seus comportamentos, ao apreciar-se as consequências desses comportamentos ([15]). O mesmo Autor define “homem oculto” como «aquele (ou aqueles) – pessoa(s) singular(es) ou coletiva (s) – que pode (m) formar “de per si” a vontade social, desfuncionalizando a sociedade” e salienta que o «homem oculto só se apura […] em face de cada situação concreta»[16]).

Ora, na situação decidenda, o gerente da sociedade 1ª requerida, em data muito próxima à assunção por esta da obrigação de pagar o preço de fornecimentos pela requerente, desvincula-se daquela gerência e cria uma sociedade unipessoal com o mesmo objecto, a qual, laborando com os mesmos equipamentos, assume dívidas da 1ª e entrega para pagamento destas a totalidade dos mesmos equipamentos, que logo recebe em locação, assim logrando manter a actividade e, outrossim, aparentar uma estraneidade daqueles bens, em manifesto prejuízo ou detrimento dos credores e de ambas as requeridas…

Por imposição do princípio da boa-fé, dele se esperaria um comportamento leal, correcto e diligente.

Na verdade, naquele percurso comportamental, evidencia-se a grave violação pelo sócio único da 2ª requerida, efectivo ou real gerente da primeira, da boa fé e da ética dos negócios, em que sobressai a utilização abusiva, em seu proveito (e da 2ª requerida), do fim social ou económico próprio da separação patrimonial da sociedade Recorrente, mediante a confusão de patrimónios (que o vem a ser do lado activo, mas também passivo) e o abuso da personalidade colectiva.

Donde se tem por caracterizado o comportamento desleal, uma conduta que, manifesta e intoleravelmente, abusa daquela confiança que constitui a base imprescindível das relações humanas, bem como tripudia a função instrumental que justifica a atribuição pela lei da separação patrimonial inerente à personificação da sociedade recorrente.

Têm-se, em conclusão, por caracterizados todos os pressupostos da convocada figura da desconsideração da personalidade da Recorrente.

Como anotam os já referidos Armando Manuel Triunfante / Luís de Lemos Triunfante, loc. cit., serão normalmente patrimoniais e ao nível da responsabilidade os efeitos mais comuns da desconsideração. Todavia nem sempre será assim, deve ser promovida, dentro do espírito do sistema, a consequência que melhor inibir as sequelas do evento gerador de desconsideração.

Trata-se, realmente, de ignorar a autonomia jurídica de duas ou mais entidades distintas para um determinado efeito. O Ac. TRL de 3-3-2005, in www.dgsi.pt, sustenta que o julgador deve integrar a lacuna existente, nos termos do art. 10.º, n.º 3, CC, como se fosse ele próprio o legislador e promover a responsabilidade pessoal do agente em consequência da desconsideração da personalidade colectiva.

Ora, temos para nós que, na medida da confusão patrimonial provocada entre as esferas da 1ª e 2º requerida, a consequência jurídica da operacionalidade da desconsideração da personalidade jurídica da 2ª requerida não pode deixar de ser a da susceptibilidade de responder pelas dívidas da 1ª não apenas o património transferido (assim os equipamentos), mas bem assim o demais e, assim, os bens adquiridos para o exercício da sua actividade.

Nessa medida, mantém-se a decisão recorrida.

III.

Desatende-se o recurso interposto, pelo que, não provido, se mantém a decisão recorrida, sem prejuízo da eliminação do facto sob 13 dos assentes.

Custas pela Recorrente.

Notifique.


Porto, 08 de Maio de 2025
Isabel Peixoto Pereira
Isabel Ferreira
Ana Luísa Loureiro
________________
[1] A referência a uma contradição na decisão recorrida, como resulta da interpretação das alegações e do teor integral destas, é-o em sede de argumentação quanto à insubsistência da convicção do tribunal, que não já direccionada a um vício da sentença mesma.
[2] De resto dificilmente manutenível em face da declaração de insolvência da 1ª Requerida, entretanto informada nos autos.
[3] Existem aliás alguns preceitos que facultam já ou se reconduzem o/ao levantamento da personalidade da pessoa colectiva – cfr. arts. 501º; 491º; 83º, nºs 1 e 3 e 84º, do Código das Sociedades Comerciais. Assim ainda o 26º do NRAU. Como soluções “desconsiderantes” são também vistas, além de outras, as indicadas nos artigos 84º, 180º, 4, 254º, 3, 398º e 477º, todos do Código das Sociedades Comerciais.
[4] V., por todos, Pedro Cordeiro, "Desconsideração da Personalidade Jurídica das Sociedades Comerciais " (1989), como já na obra colectiva " Novas Perspectivas do Direito Comercial " (1988), 289 ss.
[5] Com indicações, cf. Meneses Cordeiro, Manual de Direito das sociedades (2004), 357 ss..
[6] Um dos exemplos de desconsideração é aquele em que, por várias razões, se permite superar a personalidade jurídica da sociedade devedora para exigir responsabilidades directamente aos sócios, ou o caso em que a desconsideração leve a não ter em conta a interposição de uma personalidade - cfr. Direito Comercial, vol. IV, de Oliveira Ascensão, no título dedicado à desconsideração da personalidade colectiva a pág. 57 e segs.
Para maior desenvolvimento deste tema cfr. ainda, Luís Brito Correia, Direito Comercial, Sociedades Comerciais, vol. II, pág. 237 e segs..
[7] A confusão de esferas jurídicas verifica-se quando, por inobservância de certas regras societárias ou, mesmo, por decorrências puramente objectivas, não fique clara, na prática, a separação entre o património da sociedade e a do sócio ou sócios. «No que diz respeito ao activo, o património da sociedade e do sócio confundem-se; quanto ao passivo, o mesmo sócio faz questão de salientar a existência de uma personalidade jurídica autónoma por parte da sociedade» (Amílcar Pinho Fernandes, Responsabilidade do Sócio por Actos da Sociedade, na Colectânea Textos – Sociedades Comerciais, CEJ, 1994/95, p. 63). Deste modo, a invocação perante os credores da autonomia patrimonial da sociedade configura uma «clamorosa ofensa do sentimento jurídico socialmente dominante» (Vaz Serra, BMJ 85, p. 253), integrando a figura do abuso do direito prevista no art. 334.º do Código Civil.
[8] Quanto a estas categorias, cf. o Tratado de Direito Civil, 1º Volume, 2.a ed. (2000), 250 ss..
[9] Da empresarialidade, cit., p. 205.
[10] Loc. cit., p. 209 e 210.
[11] Assim, o acórdão da Relação de Lisboa, www.dgsi.pt, número do processo 9061/2003-2. Considerando como um exemplo típico de desconsideração por via da predominância da substancialidade subjacente a hipótese acolhida no Acórdão da Relação do Porto de 13 de Maio de 1993 (CJ, XVIII, 1995, 3, p. 199 e ss.), Menezes Cordeiro, O levantamento…, p. 154.
[12] De novo, Menezes Cordeiro, loc. cit. O levantamento…, p. 168.
[13] Continuamos a seguir de muito perto os autores citados em último lugar.
[14] A "feição pessoal" de uma sociedade unipessoal reside na sua característica fundamental: ser detida e controlada por uma única pessoa, seja física ou jurídica. Esta característica confere uma simplicidade e total controlo ao sócio único, diferenciando-a de outros tipos de sociedades com múltiplos sócios.
[15] A Desconsideração da personalidade Jurídica das Sociedades Comerciais, Novas Perspectivas do Direito Comercial”, Livraria Almedina, Coimbra, 1988, p. 297.
[16] A Desconsideração da personalidade Jurídica das Sociedades Comerciais, Novas Perspectivas do Direito Comercial”, Livraria Almedina, Coimbra, 1988, p. 297.