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ACÇÃO DE DIVÓRCIO SEM CONSENTIMENTO
PODERES INQUISITÓRIOS DO JUIZ
SEPARAÇÃO DE FACTO
RESIDÊNCIA SOB O MESMO TECTO
Sumário
I – No exame da impugnação da decisão de facto, a conduta processual das partes é susceptível de poder constituir um dos elementos a ter em conta para apoiar a formação da convicção do tribunal (artigos 662º, nº 1, 663º, nº 2, final, e 607º, nº 4 e nº 5, final, do Código de Processo Civil).
II – Numa acção de divórcio sem consentimento, cuja causa de pedir surge envolvida de factualidade reservada e íntima dos cônjuges, a dúvida que sobre essa factualidade possa emergir da prova testemunhal por eles proposta, pode (e deve) ser suprida pela intervenção comprometida e empreendedora do tribunal, desencadeando a operatividade dos poderes inquisitórios que o habilitam (artigo 411º do Código de Processo Civil); e nesse particular, a poder desempenhar uma função importante de esclarecimento, a prestação, pelos próprios cônjuges, de declarações de parte acerca daqueles factos (pessoais) probandos (artigo 466º, nº 1, do Código de Processo Civil).
III – Não é impeditivo do fundamento de divórcio consistente na separação de facto (artigos 1781º, alínea a), e 1782º, do Código Civil), no lado objectivo, que os cônjuges residam sob o mesmo tecto, desde que aí não vivam em condições análogas às dos cônjuges; como, no lado subjectivo, a interposição da acção de divórcio é susceptível de poder revelar, por parte do cônjuge que a interpõe, um propósito inequívoco de já não mais querer restabelecer a vida em comum.
Texto Integral
Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa:
I – Relatório
1. L--- propôs acção de divórcio sem consentimento de um dos cônjuges, a requerer a dissolução do casamento que a une a J--- (6.10.2023).
Alegou que o casamento foi celebrado no dia 9.2.1991, tendo nascido fruto dessa união um filho, em 8.2.2008. Que o casal, se bem que a residir na mesma casa, cessou há mais de cinco anos a vida em comum, sem condições para que possa restaurar-se. A ausência de diálogo tem repercussão no filho. O réu deixou de pernoitar na casa de morada com regularidade. Há bens comuns a partilhar. A autora pretende a dissolução do seu casamento.
Houve tentativa de conciliação (19.3.2024 e 15.5.2024).
Não foi possível a conciliação das partes.
O réu contestou (11.6.2024).
Alegou que sempre trabalhou e poupou, até casar. Com o dinheiro aforrado, e um financiamento que liquidou integralmente, em 2006, adquiriu a primeira habitação do casal; e em 2008, por permuta e dinheiro seu, a segunda habitação.
A partir do nascimento do filho, a autora abandonou o quarto do casal; passou a convidar o réu a sair de casa; a provocá-lo insistentemente com vista a que a agredisse; em suma, tentando apoderar-se do seu dinheiro e dos bens adquiridos com ele. A acção é o instrumento da autora para esse fim.
Foi a autora quem abandonou o quarto do casal; foi ela que promoveu a ausência do diálogo e sistematicamente provocou o réu, para o levar à exaustão; o réu não deixou de pernoitar na casa de morada.
São quase inexistentes bens comuns do casal; é económica a motivação da acção.
2. Realizou-se a audiência final, com prova pessoal (27.11.2024).
3. O senhor juiz “a quo” proferiu a sentença final (12.12.2024).
Em brevíssima síntese, julgou não demonstrada «a separação de facto por um ano consecutivo» ou «quaisquer outros factos que demonstrem a ruptura definitiva do casamento» (artigo 1781º, alíneas a) e d), do Código Civil); e nessa conformidade não decretou a divórcio do casal da autora e do réu.
4. A autora inconformou-se; e interpôs recurso.
Apresentou a sua alegação; e concluiu assim:
i. Decorrem dos próprios autos que há pelo menos cinco anos mas, seguramente há mais de um ano, que não há relação conjugal entre Recorrente e Recorrido.
ii. Tal matéria de facto resulta igualmente reconhecida pelo Réu na sua Contestação.
iii. Segundo a perspectiva da reapreciação dos factos com base na prova testemunhal produzida em sede de julgamento, resulta assente que a relação conjugal de Recorrente e Recorrido está manifestamente deteriorada e irremediavelmente comprometida, fruto da falta de intimidade e de vínculo emocional entre Autora e Réu, conforme emerge do depoimento das testemunhas A--- e L--- [cfr. Acta de Julgamento de 27/11/2024 – depoimento da Testemunha A--- [Início: 14:14:08 – Fim: 15:36:24 – Passagens relevantes para a presente matéria de Recurso: gravação de 00:01:15 a 00:06:47 ] / depoimento da Testemunha L--- [Início: 15:37:07 – Fim: 16:01:23 – Passagens relevantes para a presente matéria de Recurso: gravação de 00:03:15 a 00:06:55].
iv. Do depoimento destas testemunhas resulta uma versão da realidade do casal que demonstra um total afastamento entre os cônjuges.
v. Atendendo aos depoimentos das testemunhas A--- e L---, conjugados com o invocado pela Autora [vide artigos 3.º e 4.º da P.I.] e da posição manifestada pelo Réu [vide artigos 11.º, 17.º e 20.º da Contestação], resulta evidente que:
(1) Pelo menos desde 2018 que Apelante e Apelado deixaram de partilhar cama e não mantém relações conjugais.
(2) Desde, pelo menos esse ano, que a Autora deixou de partilhar o quarto com o Réu e passou a dormir no quarto do filho.
vi. Por conseguinte, devem ser retirados dos factos dados como não provados os constantes das alíneas A. e D. e aditados aos factos provados, os seguintes:
(1) Pelo menos desde 2018 que Autora e Réu deixaram de partilhar cama e não mantém relações conjugais.
(2) Desde, pelo menos esse ano, que a Autora deixou de partilhar o quarto com o Réu e passou a dormir no quarto do filho.
vii. O Tribunal de Primeira Instância desconsiderou como elementos probatórios o reconhecimento pelo Recorrido de factos desfavoráveis, que deveria ter apreciado livremente, nos termos do disposto no artigo 361.º do Código Civil, segundo critérios de bom senso e da experiência comum, violando assim tal disposição normativa.
viii. Não poderia o Tribunal Recorrido deixar de considerar provado o facto essencial de que, pelo menos há cinco anos que o matrimónio sucumbira.
ix. No domínio da livre apreciação, mostra-se contrária aos padrões da experiência comum, face à discrepância temporal entre os mais de cinco anos alegados pela Recorrente [e não exactamente cinco anos, como referido na douta sentença] e os 16 anos admitidos pelo Recorrido na sua contestação, a conclusão de que, tal significativo desfasamento de posições [temporais], levantam enormes dúvidas ao Tribunal que o impeçam de considerar provado que a relação matrimonial havia cessado, pelo menos há um ano.
x. Tendo em conta que decorreu mais de um ano entre a data da propositura da acção [6 de Outubro de 2023] e a data do julgamento [27 de Novembro de 2024], o requisito temporal previsto na alínea a) do artigo 1781.º do Código Civil, deveria ter sido considerado provado, atendendo a que “na separação de facto por um ano consecutivo releva o tempo decorrido entre a propositura da acção e a prolação da decisão” – cfr. entre outros o Acórdão da Relação de Coimbra de 18/01/2022, Processo 373/20.9T8ACB.C1.
xi. Ademais, “A proposição de acção de divórcio constitui manifestação inequívoca do propósito do autor de não restabelecer a vida em comum com o seu cônjuge” – cfr. entre outros o Acórdão da Relação de Coimbra de 18/01/2022, Processo 373/20.9T8ACB.C1.
xii. O Tribunal, de cuja decisão se recorre, violou o disposto na alínea a) do art.º 1781.º do Código Civil, porque desconsiderou factos que, não obstante terem sido alegados e provados pela Recorrente, deveriam ter sido considerados provados por serem do seu conhecimento e, consequentemente, não careciam nem de alegação nem de prova.
xiii. Também decorre dos próprios autos que há uma manifestação inequívoca do propósito da Recorrente não restabelecer a vida em comum com o Recorrido.
xiv. E mesmo considerando provado que a Recorrente “demonstra encontrar-se infeliz com a relação conjugal”, o Tribunal “a quo” não relevou, como lhe impunha o direito vigente, tal infelicidade com facto subsumível no referido preceito legal, o que constitui uma clara violação do disposto na alínea d), do art.º 1781.º do Código Civil.
Em síntese; o recurso deve ser provido, e julgado «absolutamente procedente o pedido de divórcio formulado pela apelante».
5. Não houve resposta.
6. A delimitação do objecto do recurso.
6.1. Os segmentos desfavoráveis ao recorrente nas questões julgadas pela sentença circunscrevem o objecto inicial do recurso; sendo esse o universo onde as conclusões da alegação, delimitam aquelas (mais) concretas, os particulares temas ou assuntos, que se visam colocar à apreciação do tribunal superior (artigo 635º, nºs 3 e 4, do Código de Processo Civil).
6.2. Na hipótese, constituem primordiais questões decidendas as seguintes.
1.ª; saber se, com base na prova de livre apreciação produzida, sobretudo pessoal, os sinalizados factos A. e D., julgados não provados na sentença, devem ser julgados provados, na sua essência;
2.ª; saber se a hipótese do casal, de autora e réu, enquadra alguma das situações tipificadas de ruptura do casamento, em particular as descritas na alínea a) ou d), do artigo 1781º, do Código Civil.
II – Fundamentos
1. A matéria de facto discriminada pelo tribunal “a quo”.
1.1. A sentença recorrida detalhou, como provados, os seguintes factos.
1. A Autora e o Réu contraíram matrimónio em 09 de Fevereiro de 1991, sob regime de comunhão de adquiridos, sem convenção antenupcial, na Conservatória do Registo Civil de Santa Comba Dão, sob o registo n.º 858 de 2009.
2. Na constância do matrimónio de ambos nasceu S---, em 08 de Fevereiro de 2008.
3. A Autora e o Réu residem na mesma habitação.
4. A Autora demonstra encontrar-se infeliz com a relação conjugal.
1.2. E, como não provados, especificou os seguintes.
A. Há mais de cinco anos que inexiste qualquer manifestação de intimidade entre o casal, havendo deixado a Autora de dormir na mesma cama e de manter relações conjugais com o Réu.
B. A ausência de diálogo entre os cônjuges reflecte-se na relação do filho com ambos os progenitores, sendo tomadas decisões sobre a vida deste sem a devida ponderação e comunicação entre ambos os progenitores, situação que se reflecte no bem-estar emocional do menor.
C. O Réu deixou de pernoitar na casa de morada de família com regularidade.
D. A partir do nascimento do filho, a Autora abandonou o quarto que partilhava com o Réu e passou a dormir no quarto do filho.
E. Desde o nascimento do filho, a Autora passou a adoptar um comportamento estranho e a convidar o Réu a sair de casa.
F. A Autora passou a provocar insistentemente o Réu, com vista a que este perdesse a cabeça e a agredisse.
2. Os fundamentos decisivos para a convicção na decisão apelada.
A sentença explicou assim além do mais os motivos da sua decisão de facto.
«(…) foram ouvidas duas testemunhas – A--- (as partes são seus cunhados, sendo que a requerente é irmã do seu marido) e L--- (vizinha das partes – mora no mesmo prédio), havendo a primeira narrado que conhece as partes há cerca de 27 / 28 anos e que sempre considerou a relação de ambos “estranha”, que a Autora se encontra triste grande parte do tempo, que o Réu nunca acompanhava a Autora aos convívios familiares e que o processo de divórcio não a surpreende. Inquirida pelo mandatário do Réu, esclareceu que este conhecimento se cinge aos períodos de férias passados em S--- (mormente nos meses de Agosto) e que aquele não lhe faltou ao respeito, não agrediu a Autora de nenhuma forma, que nunca foi recusado o auxílio quando solicitado e que nunca esteve em causa questões de fidelidade. Por outro lado, a segunda testemunha afirmou frequentar a casa da requerente e do requerido, quando este último não se encontra no domicilio, referindo que a Autora lhe narrou que o casamento é “horrível”, que esta tem pouca autonomia financeira, que não existe qualquer intimidade entre as partes, que não tomam refeições juntos e que o requerido se encontra ausente de casa durante os fins de semana. Em resposta às questões do mandatário do Réu, esclareceu que não sabe a razão pela qual o Réu não pernoita em casa, que nunca assistiu nem teve conhecimento de questões de infidelidade, de faltas de respeito, insultos, agressões verbais ou físicas produzidas pelo réu, referindo que a Autora lhe narrou que o Réu exerce “jogo psicológico” sobre aquela, sem haver concretizado de forma muito clara em que assenta este “jogo”. Sublinha-se que o conhecimento das testemunhas se baseia, quase em exclusivo, nos elementos relatados pela Autora àquelas, denotando-se uma patente parcialidade nas respostas às questões efectivadas, havendo ambas olhado para a Autora nas respectivas inquirições, como que à procura de ajuda para as respostas.”
E adiante.
«(…) retira[-se] dos depoimentos das testemunhas A--- e L--- que as partes residem no mesmo imóvel e que o casamento destes apresenta um notório desgaste (o que, sublinhe-se, é confirmado em toda a linha pelos trâmites das peças processuais apresentadas por ambos).”
Concretamente, a propósito dos factos julgados indemonstrados.
«Quanto aos factos não provados, considera o Tribunal que não encontram suporte probatório nos elementos carreados para os autos.
Nesta sede, cumpre enfatizar que não foi efectivada prova do alegado por quem tinha o respectivo ónus, salientando-se que a Autora não logrou demonstrar a inexistência de manifestações de intimidade (não dormindo na mesma cama e/ou deixado de manter relações sexuais) ou que o Réu houvesse deixado de pernoitar na casa de morada de família com regularidade, como era seu ónus, regra que decorre do artigo 342.º, n.º 1 do Código Civil (…).
Perante a natureza dos factos alegados, isto é, insusceptíveis de confissão – ainda que o fossem, o Réu não confessou a generalidade dos factos articulados pela Autora e que o prejudicassem na relação jurídica aqui em causa – concatenada com a flagrante escassez de prova produzida assente nas declarações de duas testemunhas, sendo que uma delas aludiu apenas aos períodos de férias em S--- nos meses de Agosto, tendo o seu depoimento reportado quase em exclusivo à tese narrada pela Autora; e a outra (vizinha das partes e amiga da Autora) se referiu, outrossim, à narrativa partilhada pela Autora, não visitando a habitação das partes sequer quando o Réu se encontra na mesma, não se pode dar como provados os factos descritos (…), sublinhando-se a patente ausência de imparcialidade / isenção nos depoimentos daquelas testemunhas, as quais, como se disse acima, antes de responder, olharam para a Autora, como se procurassem auxílio nas respostas.”
3. O mérito do recurso.
3.1. Impugnação da decisão sobre a matéria de facto.
3.1.1. Circunscrito o objecto do recurso – cada segmento de facto sinalizado pelo apelante –, deve o tribunal ad quem alterar a decisão proferida se o substrato probatório de livre apreciação impuser decisão diversa (artigo 662º, nº 1, do Código de Processo Civil).
As provas devem merecer uma análise crítica, tirando as ilações apropriadas de factos instrumentais; compatibilizada toda a matéria de facto adquirida e extraindo dos factos apurados as presunções impostas pelas regras de experiência.
É isto o essencial de uma prudente convicção, e o cerne do critério da apreciação livre das provas (artigos 663º, nº 2, final, e 607º, nº 4 e nº 5, início, do Código de Processo Civil).
3.1.2. No caso da hipótese, distinguimos três patamares de abordagem e apoio à formulação da convicção, que se pede – sem imediação da prova pessoal – ao tribunal de recurso.
O 1.º patamar.
O da posição assumida e conduta processual de cada uma das partes.
Autora e réu residem desde sempre na mesma habitação, na Rua ---, em ---; partilham (coabitam) a mesma casa. Isto nem se discute (facto provado nº 3); posto que o réu até aí foi citado (em 21.2.2024) e foi essa a morada que deu na procuração forense, que outorgou (com data de 11.6.2024).
No artigo 3º da petição inicial, a autora alegou que os cônjuges «[cessaram] há mais de cinco anos qualquer manifestação de intimidade […], nomeadamente deixaram de dormir na mesma cama, de manter relações conjugais”.
O artigo 4º corrobora a deterioração da relação conjugal.
No artigo 11º da contestação, é o (próprio) réu que afirma que «a partir do nascimento do filho […], a autora abandonou o quarto que partilhava com o réu e passou a dormir no quarto do filho”; versão reafirmada no artigo 17º – «foi aquela quem abandonou o quarto do casal e passou a dormir com o filho […], no quarto deste” – e no artigo 20º – «a ausência de diálogo foi promovida pela própria [autora]”; «foi esta quem abandonou o quarto do casal, quem passou a dormir no quarto do filho”.
O filho do casal nasceu em Fevereiro de 2008 (facto provado nº 2.).
A acção de divórcio foi interposta em Outubro de 2023 (!).
É incontestável que a acção versa sobre direitos indisponíveis.
Por conseguinte, subtrai a admissibilidade acerca da confissão ou do acordo das partes sobre os factos (artigo 354º, alínea b), do Código Civil; artigos 568º, alínea c), e 574º, nº 2, do Código de Processo Civil).
Ainda assim; a postura seguida na relação processual não pode ser perfeitamente alheia à configuração da realidade das coisas e da vida; sob pena de se acentuar uma indesejável (acrescida) maior artificialidade na construção da verdade judiciária.
Essa postura é susceptível de dar um relevante contributo à formação da prudente convicção do juiz (artigo 607º, nº 5, início, já citado).
A conduta processual das partes não é alheia à conformação da convicção judiciária (em vários passos, a lei material manda atender a essa conduta para efeitos probatórios; p. ex., artigos 357º, nº 2, e 361º, do CC, ou artigo 417º, nº 2, do CPC).
A decisão do tribunal não pode branquear que o próprio réu assume que, a partir do nascimento do filho do casal, a autora abandonou o quarto que partilhava com o réu e passou a dormir no quarto do filho.
Facto que ele mesmo evidenciou no artigo 11º da sua contestação (!).
Por outro lado, é uma verdade que tem lugar há mais de 15 anos, considerando a data da propositura da acção e na distância que a separa da data do nascimento (!).
Donde, é perfeitamente artificioso, sem adesão à realidade da vida, que se diga indemonstrado também que a autora deixou de dormir na mesma cama do réu há mais de cinco anos; se o próprio réu o assume desde o ano daquele nascimento (!).
O 2.º patamar.
O da prova pessoal que se produziu em audiência final.
Na audiência foram ouvidas as duas testemunhas, A--- e L---, que ora a motivação do tribunal a quo, ora a alegação da autora, evidenciam.
E a nota inicial, e não neutra, é a de que ambas essas testemunhas foram potestativamente propostas, ora pela autora, na petição inicial, ora pelo réu, na contestação; evidenciando também, dessa forma, que as duas partes entendiam que uma e outra dessas (mesmas) pessoas se mostravam apropriadamente habilitadas, com conhecimento dos factos relevantes acerca da vida do casal, por modo de os poderem narrar e transmitir em juízo, como plataforma para a mais justa composição do litígio na acção de divórcio.
A razão de ciência das testemunhas está essencialmente contemplada na motivação do tribunal a quo.
A A--- é casada com um irmão da autora, e tem tido a oportunidade de privar com o casal ao menos em período de férias, de Agosto (mas nem só), ao longo dos anos (há mais de 20), numa localidade perto de S---, ocasiões em que, para lá das suas percepções, também vem sendo confidente da autora.
A L--- é vizinha do casal, habita no 5º andar do mesmo edifício, e frequenta a casa (desde mais ou menos quatro ou cinco anos), sobretudo na ausência do réu, onde conversa com a autora e ouve os seus desabafos, para lá das naturais percepções que tem tido oportunidade de ir adquirindo.
Ora, os factos (ainda) controversos – se «inexiste qualquer manifestação de intimidade entre o casal”; se a autora deixou «de manter relações conjugais com o réu”; tudo há pelo menos cinco anos – são factos do foro reservado, íntimo e privado de qualquer casal.
Na óptica probatória a exigir, portanto, maior tolerância e flexibilidade na análise do substrato disponível; e com recurso reforçado a juízos de probabilidade, regras de associação e experiência comum, ou presunções judiciais (artigos 349º e 351º do CC).
E que disseram então aquelas testemunhas, neste particular?
Verbalizaram, ambas inequivocamente, uma vivência invulgar para duas pessoas que se encontram unidas pelos laços do casamento (!).
Desde logo, ambas evidenciaram a infelicidade da autora. E por isso a prova do facto (nº 4) de que «a autora demostra encontrar-se infeliz com a relação conjugal”.
De outro lado, numa perspectiva mais pessoal e afectiva, as duas aludiram a uma comum postura de cisão entre o casal, de afastamento, ausência de um diálogo são e de comunhão de vida, como é razoável supor entre duas pessoas casadas entre si [disse, p. ex., a A--- que «a L--- é uma pessoa muito traumatizada com este casamento” ].
Por fim, ambas tocaram a perspectiva da gestão económica da vida do casal; e as duas – sem esquecer que foram também arroladas pelo réu (!) – deixaram a ideia de um certo fechamento, ou compressão, do lado do cônjuge marido; que, por um lado, se mostrava avesso a um ou outro (normal) gasto e, por outro, deixava para a cônjuge esposa os encargos normais da vida de casa, e do filho [disse, p. ex., a L--- que o réu se dirigia à autora dizendo-lhe «não és nada”, que «tudo é dele” e «não é nada dela” ].
Em qualquer dos casos, o tribunal a quo atribuiu «patente parcialidade” aos depoimentos, e «patente ausência de […] isenção”, por as testemunhas «antes de responder, olhar[e]m para a autora, como se procurassem auxílio nas respostas”.
Com razão o fez?
Temos dúvidas consistentes (…).
Vejamos.
O tribunal ad quem carece da imediação probatória – é certo.
Não é por isso, como é jurisprudência constante, que deve deixar de formular a sua própria convicção com base na plataforma probatória que a gravação da audiência lhe proporciona; devendo além de tudo fazer operar os seus poderes de investigação oficiosa (artigo 640º, nº 2, alínea b), do Código de Processo Civil).
Mesmo sem a amplitude completa (a imediação) do substrato probatório, de que o tribunal a quo está habilitado, não nos parece, uma vez auscultada a íntegra gravação da audiência final, que as testemunhas mereçam a quebra de fiabilidade que a decisão recorrida lhes concede.
Sem representarem depoimentos absolutamente convictos ou impassíveis de toda a imprecisão, não deixaram de se sustentar em razões de ciência (fontes de conhecimento dos factos narrados) minimamente aceitáveis (artigo 516º, nº 1, do CPC), e não deixaram margem para fazer suspeitar de alguma inferior confiança ou creditação (artigos 513º, nº 1, final, ou 521º, do CPC).
Foram depoimentos, ao que se intui, honestos; e descomprometidos. Como se disse, o próprio réu, ele mesmo, também propusera potestativamente ao tribunal aquelas mesmas testemunhas, para inquirição em audiência final (!).
Por outro lado; a natureza mais ou menos íntima ou reservada dos factos centrais sob escrutínio – a «manifestação de intimidade” ou as «relações conjugais” entre o casal – não deve também fazer suspeitar (estranhar) da creditação de um outro trecho que tenha por fonte a confidência, o desabafo, a revelação, da própria autora, junto de qualquer uma das testemunhas (com quem é incontroverso que falava).
É o tipo de facto que deve, na medida proporcionada e razoável, creditar o depoimento indirecto (aceitável nestes termos no processo civil); naturalmente que desejavelmente conexo e associado (corroborado) por outros índices ou sinais probatórios, que o possam confirmar (ou se for caso infirmar).
A sentença recorrida não deixou, pese tudo, de reconhecer que o casamento da autora e do réu «apresenta um notório desgaste”; e que, como não podia deixar de ser, este «desgaste” «é confirmado em toda a linha pelos trâmites das peças processuais apresentadas por [autora e réu]”.
Acrescentamos a isto um detalhe.
A contestação do réu, em particular nos seus artigos 1.º a 9º, 14º, 15.º ou 24º, é especialmente expressiva, numa vertente estritamente financeira, enquanto enunciado de um património, de que na sua óptica a autora se visa apoderar, usando como meio para isso a acção de divórcio (artigo 19º), e que por isso (aparentemente, só por isso) lhe permite rejeitar a dissolução do vínculo conjugal (artigos 25º e 26º).
O enfatizar desta vertente pelo cônjuge réu, que é alheia às razões que podem sustentar os efectivos motivos (normativos) para a dissolução do vínculo (a cessação das relações patrimoniais entre os cônjuges é [tão-só] um efeito da extinção do casamento; e dá origem à partilha do casal; artigos 1688º e 1689º do Código Civil), vai ao encontro de um ou outro sinal que também (já) deram os depoimentos testemunhais.
E é mais um sintoma da deterioração (desconfiança) na união; cuja persistência apenas tem a virtude de fazer prolongar um casamento (já; e indiscutivelmente) há muito em erosão; e, tudo o indica, esgotado (sem reverso).
Por fim; o 3.º patamar.
O da postura assumida pelo tribunal a quo.
A sentença recorrida sublinha que a autora não cumpriu o ónus da prova, que lhe carregava; e associou a esse ónus insatisfeito «a flagrante escassez de prova produzida assente nas declarações de duas testemunhas”.
Já referimos a natureza especialmente reservada, íntima, da centralidade dos factos que, na hipótese, quadram a causa de pedir do divórcio; com as exigências da mesma maneira particulares, por modo a conferir viabilidade e eficiência ao seu apuramento e prova.
Foi para estes (e em função destes) que também o código de processo de 2013 trouxe o novo instrumento probatório das declarações de parte (artigo 466º, nº 1, do Código de Processo Civil). Consciente da existência de factos jurídicos cujo carisma é susceptível de tornar difícil, oneroso, controverso, um procedimento comum de prova (p. ex.; factos de percepção [participação] directa apenas dos intervenientes; como caso dos aqui em causa, envoltos de reserva e intimidade), o legislador abriu (ampliou) o mecanismo de as próprias partes poderem, elas mesmas e por sua própria iniciativa, prestarem sobre os mesmos factos declarações, viabilizando a sua verbalização pessoal e directa; e facultando ao juiz a sua apreciação livre (artigo 466º, nº 3).
Era um mecanismo à disposição, na hipótese desta acção de divórcio.
Que, preterido pelas partes, podia (quiçá devia) o tribunal ter oficiosamente desencadeado; como inequivocamente lhe facultavam as normas (artigos 7º, nº 2, 411º, 417º, nº 1, ou 452º, nº 1, do CPC); e em particular se a situação era aquela, que ficou reflectida na sentença, de que a autora o não convenceu (deixou, portanto, a dúvida ao senhor juiz), por ter preterido o ónus da prova que a onerava (!).
No moderno processo civil o ónus da prova, mais do que um vínculo que incide sobre uma das partes, melhor se configura como um critério de decisão para o tribunal (artigo 414º do CPC; artigo 346º, final, do CC).
Mas um critério de decisão (algo) indesejado.
Impondo-se (mais) ao juiz a busca, e reconstrução, da verdade substantiva (artigo 6º, nº 1, do CPC); para tanto recorrendo a todas as provas, independentemente da sua origem (artigo 413º do CC); e com uma atitude comprometida e empreendedora.
Seja como for, e em qualquer caso, divergimos da convicção ali formada.
Na situação da hipótese, face ao carisma dos factos probandos, mesmo sem operatividade de outro inquisitório (p. ex.; artigo 662º, nº 2, alínea b), do CPC), associada a conduta processual das partes (muito em particular; artigo 361º do CC) aos sintomas emergentes da prova pessoal disponível (artigo 396º do CC) e extraindo os juízos de probabilidade razoável que emergem das regras da experiência comum (p. ex.; artigo 607º, nº 4, final, e nº 5, início, do CPC), aparentam-se-nos suficientemente sustentados os factos julgados não provados e impugnados no recurso de apelação.
O casal de autora e réu não tem intimidade; e as suas relações conjugais estão há muito (há seguramente mais de cinco anos) comprometidas.
Mesmo superando uma análise capaz de reconhecer na formulação de «relações conjugais” uma estrita invocação jurídico-conclusiva, numa óptica mais generosa que interprete essa redacção como uma comum vivência de cumplicidade abrangente das várias variáveis associadas ao quotidiano de duas pessoas unidas pela casamento (como também fez, p. ex., o Acórdão da Relação de Coimbra de 18 de Janeiro de 2022, proc.º nº 373/20.9T8ACB.C1), é patente a decisiva quebra, uma crise irreversível no casal das partes da acção.
Do lado da autora, a propositura da acção de divórcio é impressiva.
Do lado do réu, a estrita (e única) motivação económica para rejeitar a dissolução revela igual cisão de afectos pessoais, de plena comunhão conjugal da vida.
A quebra definitiva dos laços matrimoniais é mais do que evidente.
E nessa medida, acolhendo neste particular as conclusões da apelação, reverte-se a não prova dos factos impugnados, e julgam-se agora como também provados os dois factos, que se aditam ao respectivo elenco, com a seguinte redacção:
5. Desde antes do ano de 2018 que a autora passou a dormir no quarto do filho do casal e deixou de partilhar o quarto com o réu.
6. Desde o mesmo período que a autora e o réu deixaram de partilhar cama e não mantêm relações conjugais.
3.2. Enquadramento jurídico.
3.2.1. É próprio do instituto do casamento a opção em constituir, e manter, uma família, sustentada na plena comunhão de vida entre os cônjuges (artigo 1577º do Código Civil). Por isso que, associado ao estatuto de casado, se suponha um agregado de situações pessoais – os chamados deveres dos cônjuges –, que se impõem existir, e permitem reflectir, mostrar, essa integração, e uma cumplicidade conexa; sobressaindo os mútuos respeito, fidelidade, coabitação, cooperação e assistência (artigos 1672º e seguintes do Código Civil).
A orientação da vida familiar é nesse quadro também comum, sob um critério do bem recíproco e de prosseguimento dos interesses de um e outro dos cônjuges (artigo 1671º, nº 2, do Código Civil).
O desvio a este substrato faz pressentir crise conjugal; sorte de alguma patologia.
O divórcio constitui o mecanismo estabelecido para a dissolução deste vínculo (artigo 1788º do Código Civil). Não se consagra a possibilidade dessa dissolução poder ter lugar (apenas) a pedido, em que um dos cônjuges seja habilitado a requerer por si só e no simples exercício da sua vontade livre, sem outro fundamento, a extinção do estado matrimonial (Rute Teixeira Pedro no “Código Civil anotado”, volume II, coord. Ana Prata, 2017, página 683).
A par do mútuo consentimento, a dissolução só pode ter lugar em tribunal, por pedido de um dos cônjuges contra o outro, e com algum dos fundamentos objectivos contemplados no artigo 1781º do Código Civil (artigos 1773º, nº 3, e 1785º, nº 1, no seu início, deste código).
Esta disposição – o artigo 1781º – contém as causas objectivas do divórcio; com tipificação de factispecies nas três alíneas iniciais, e por recurso à técnica da cláusula geral na quarta; podendo-se retirar, porém, de todas as quatro, que as razões hábeis ao decretamento do divórcio, ademais de alheias a culpa de qualquer dos cônjuges, se amparam sempre em quadro fáctico que evidencie uma ruptura definitiva do casamento, revelada essa por circunstâncias que habilitem a dizer que já nada sustenta uma comunhão (e condução) de vida, em estreita união, integração e cumplicidade dos cônjuges, como justifica o estatuto (pessoal) matrimonial.
Ao que mais importa à apelação aqui em exame, e por paralelo à cláusula de escape, da alínea d), que visa quadrar todas as várias situaçõesatípicas com a virtude de mostrar o comprometimento, definitivo e essencial, do casamento, estabelece a alínea a), do artigo 1781º, que pode fundar o divórcio sem consentimento de um dos cônjuges, a separação de facto do casal por um ano consecutivo.
Explicando depois o artigo 1782º o que se entende por separação de facto para este efeito – «quando não existe comunhão de vida entre os cônjuges e há da parte de ambos, ou de um deles, o propósito de não a restabelecer”.
A doutrina e a jurisprudência vêm explorando este normativo.
Sendo entendimento corrente o de que é suposto (1) um elemento objectivo, que se traduz na ruptura da cumplicidade de vida, própria do vínculo matrimonial – a comunhão de leito, mesa e habitação (Rute Teixeira Pedro, loc. cit., página 685) –, como ocorre, p. ex., se não existir entre os cônjuges o relacionamento sexual objecto do débito conjugal, nem uma vivência em economia comum, mas também (2) um elemento subjectivo, traduzindo um fenómeno psicológico, uma realidade interior, manifestada pela decisiva e sólida intenção de não reverter a ruptura objectiva.
A jurisprudência constante é, com esse quadro, (1) no lado objectivo, a de que não se exige que os cônjuges residam em casas diferentes, podendo viver sob o mesmo tecto desde que não vivam, nesse espaço, em condições análogas às dos cônjuges (hipótese evocada no Acórdão da Relação de Lisboa de 21 de Fevereiro de 2019, proc.º nº 3/18.9T8SXL.L1-2), e, (2) no lado subjectivo, a de que a proposição da acção divórcio por um dos cônjuges constitui manifestação inequívoca do seu propósito de não restabelecer a vida em comum (Acórdãos da Relação do Porto de 24 de Janeiro de 2022, proc.º nº 7033/20.0T8VNG.P1, ou da Relação de Évora de 6 de Junho de 2024, proc.º nº 7536/22.0T8SNT.E1).
3.2.2. A solução do caso concreto já se crê intuitiva.
Reconfigurada a matéria de facto, no tribunal ad quem, podemos agora concluir.
O casal de autora e réu residem na mesma habitação (facto provado 3.).
Desde antes do ano de 2018 que a autora passou a dormir no quarto do filho do casal e deixou de partilhar o quarto com o réu (facto provado 5.).
Desde o mesmo período que a autora e o réu deixaram de partilhar cama e não mantêm relações conjugais (facto provado 6.).
A autora demonstra encontrar-se infeliz com a relação conjugal (facto provado 4.).
A autora propôs a acção de divórcio, para dissolver o casamento, no dia 6.10.2023.
São factos suficientes para a procedência da acção de divórcio.
O quotidiano conjugal, que tipifica o instituto do casamento, não existe.
Dura há, pelo menos, cinco anos.
E a autora evidencia o desejo claro de não reverter a ruptura.
Está preenchida a factispecies dos artigos 1781º, alínea a), e 1782º, do CC.
Não carecendo de se fazer valer o escape atípico da alínea d), daquele artigo.
Mas que, de todo o modo, também se reflectiria sempre presente; por dos autos emergir clara a definitiva (sem reverso) ruptura do casamento dos cônjuges, mais não fosse pela larga consolidação temporal em que (já) ocorre a cisão da partilha de quarto e de cama entre autora e réu (p. ex.; Acórdãos da Relação de Lisboa de 21 de Fevereiro de 2019, antes citado, e de 5 de Dezembro de 2024, proc.º nº 5522/23.2T8FNC.L1-2).
Não mais significando, uma (putativa) persistência do seu casamento, do que a manutenção de um estatuto artificial, sem adesão (já) à realidade da vida.
Em suma; procede in totum o recurso de apelação que foi interposto.
III – Decisão
Em face do exposto, acordam os juízes deste tribunal da Relação em julgar o recurso de apelação procedente e, em consequência:
1.º; Em matéria de facto, reverter a não prova dos factos impugnados, contidos nas alíneas A. e D. do respectivo elenco, na sentença, e julgar esses factos, agora provados, a aditar ao respectivo elenco, com a seguinte redacção:
5. Desde antes do ano de 2018 que a autora passou a dormir no quarto do filho do casal e deixou de partilhar o quarto com o réu.
6. Desde o mesmo período que a autora e o réu deixaram de partilhar cama e não mantêm relações conjugais.
2.º; Em matéria de direito, revogar a sentença proferida pelo tribunal a quo, em sua substituição, julgar procedente o pedido de divórcio e, com esse fundamento, ter por dissolvido o casamento entre a autora L--- e o réu J---, por eles celebrado no dia 9 de Fevereiro de 1991.
As custas, da acção e do recurso são, na íntegra, encargo do réu, e apelado, que numa e noutro decaiu (artigo 607º, nº 6, do CPC).
Lisboa, 13 de Maio de 2025 Luís Filipe Brites Lameiras Edgar Taborda Lopes Ana Rodrigues da Silva