I - O nº. 2 do art. 671º do CPC., abarca os acórdãos da Relação que incidem sobre decisões interlocutórias de 1ª. instância, que apreciam questões de ordem formal, sem que esses acórdãos determinem a extinção total ou parcial da instância, uma vez que, nestes casos, é seguida a regra geral do nº. 1 do preceito.
II - Se a recorrente no seu requerimento de interposição do recurso, não invocou qualquer fundamento excecional para admissibilidade da revista, não poderá no âmbito da reclamação para a conferência vir pedir uma convolação oficiosa, a qual não poderá ser admitida por manifesta extemporaneidade.
1-Relatório:
A requerente, AA apresentou-se à insolvência, que foi declarada por sentença proferida em 22.05.2019.
Foi relacionado um único imóvel, correspondente à fração "..." - Habitação no ... e arrecadação na ..., do prédio sito na Avenida ..., nº ..., Concelho de ....
Em 11.06.2019 a Sr.ª administradora da insolvência juntou auto de apreensão e em 30.08.2023 escritura pública de compra e venda do imóvel da insolvente, celebrada no âmbito da liquidação da massa insolvente em 29.08.2023 com o credor hipotecário, Caixa Geral de Depósitos.
Pelo requerimento de 30.08.2023 a AI mais considerou concluída a liquidação.
Em 08.01.2024 a CGD alegou que a insolvente não procedeu à entrega voluntária do imóvel e ali permanece sem título válido e requereu seja autorizada “a tomada de posse do imóvel adjudicado à ora credora reclamante, deferindo, desde já, o auxílio da força pública, se necessário.”
Em resposta a insolvente requereu a suspensão da entrega do imóvel com fundamento nos arts. 150º, nº 6 do CIRE e 863º, nºs 3 a 5 do Código de Processo Civil (CPC).
Sobre o dito requerimento recaiu o seguinte despacho de 14.02.2024:
«Nesses termos, por não estarem reunidos os pressupostos do art. 863.º, n.º 3 do Cód. Proc. Civil, indefere-se o requerimento de suspensão da entrega do imóvel apresentado pela insolvente.
Fixa-se o prazo de 45 (quarenta e cinco) dias para a insolvente proceder à entrega voluntária da fracção autónoma em questão à administradora da insolvência, se outro prazo não for acordado com a adquirente.
Decorrido o prazo acima mencionado sem que a fracção autónoma tenha sido entregue, desde já se autoriza a administradora da insolvência a requerer o auxílio da força pública para a desocupação e entrega da fracção à adquirente, nos termos das disposições conjugadas dos arts. 754.º, n.º 2, 828.º e 861.º, n.ºs 1 e 6 do Cód. Proc. Civil e arts. 17.º do CIRE.
Caso a administradora de insolvência venha a designar data para entrega coerciva da fracção, deverá dar cumprimento ao disposto no art. 861.º, n.º 6 do Cód. Proc. Civil quanto à comunicação antecipada do facto à câmara municipal e às entidades assistenciais competentes e ter em consideração o disposto nos arts. 863.º, n.ºs 3 a 5 do Cód. Proc. Civil na execução da diligência».
Em 04.04.2024 a insolvente requereu o diferimento da desocupação do imóvel pelo prazo de 05 (cinco) meses a contar da data do trânsito em julgado da decisão que o conceder, invocando em fundamento os arts. 150º, nº 5 do CIRE e 864º, nº 1 e 2, al. a) e 865º, nº 4 do CPC.
Sobre este requerimento recaiu despacho proferido em 15.04.2024, concluindo:
«Em conformidade com tudo o exposto, conclui-se que a dedução do incidente de diferimento de desocupação, já após a venda do imóvel, mostra-se extemporânea, nos termos do disposto no art.º 865º, n.º 1, alínea a), do CPC, ex vi do art.º 150º, n.º 1 e n.º 5, do CIRE, o que assim se declara.
Nestes termos, indefere-se liminarmente o requerimento da insolvente, devendo a mesma proceder à entrega do imóvel livre de pessoas e bens, no prazo de 45 (quarenta e cinco dias), sob pena de recurso ao auxílio da força pública, nos exactos termos determinados no despacho de 14.02.2024».
A insolvente interpôs recurso para o TRL., onde foi proferido acórdão, com o seguinte teor a final:
«Em conformidade com o exposto, decide-se pela improcedência do recurso, com consequente manutenção da decisão recorrida».
Uma vez mais, inconformada veio a recorrente interpor recurso de revista, nos termos dos artigos 671º, nº 2, alínea a), 675, nº 2, e 677º, todos do Código de Processo Civil.
Concluiu as suas alegações:
1 – Nos termos do Sumário do douto Acórdão do Venerando Tribunal, “O campo de aplicação da remissão operada pelo art. 150º, nº 5 do CIRE para o incidente de diferimento da desocupação de imóvel previsto pelo art. 864º do CPC restringe-se à fase de apreensão dos bens para a massa insolvente, a título de oposição à entrega do imóvel solicitada pelo administrador da insolvência para concretização material/fáctica da apreensão, e apenas como impedimento excecional e precário à obtenção da sua imediata disponibilização pelo administrador da insolvência”;
2 - Estando em causa um pedido de diferimento de desocupação de imóvel apresentado pela Insolvente, aqui Recorrente, a Veneranda Juíza Desembargadora concluiu pelo acerto da decisão recorrida, de extemporaneidade do pedido de diferimento da desocupação do imóvel apreendido para a massa insolvente e vendido no âmbito da liquidação, com consequente improcedência do recurso;
3 - Contrariamente ao defendido pelo Veneranda Juíza Desembargadora, a aqui Recorrente considera que o mecanismo de diferimento de desocupação de imóvel pode ser aplicado na fase de liquidação ou, até, depois de cumprida a venda do imóvel, desde que, estando em causa a casa de morada de família, estejam preenchidas ou verificadas as condições preceituadas nos artigos 864º e 865º, do CPC;
4 - “I - É aplicável aos insolventes singulares o benefício do diferimento da desocupação da casa de habitação previsto nos arts. 864° e 865 do Cód. do Proc. Civil, por força da remissão operada nos arts. 150°, n° 5 do CIRE e 862° do Cód. do Proc. Civil.
II - O prazo de diferimento da desocupação destina-se a permitir ao requerente que se encontra em situação de particular carência ou dificuldade, e que terá necessariamente que desocupar o local, um último prazo minimamente razoável para obter um alojamento alternativo.
III - O pedido de diferimento da desocupação do imóvel apresentado pelos insolventes não pode ser rejeitado, sem apreciação da situação económica e social destes, apenas com fundamento no período de tempo entretanto decorrido após a sua adjudicação ao credor reclamante” (Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 14-06-2016, Proc. n° 277/14.4TBMCN-E.P1, in www.dgsi.pt);
5 - A Insolvente, aqui Recorrente, nos termos legais (artigos 756º, nº 1, alínea a), do Código de Processo Civil, e 150º, nº 1, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas), é a fiel depositária do imóvel, até à data da concretização da compra e venda do mesmo;
6 - “- Em processo de insolvência, apreendido um imóvel para a massa insolvente, deve ser constituído fiel depositário do Insolvente que nele tenha a sua habitação, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 150º, n.º 1, do CIRE e 756º, n. 1, al. a) do Código de Processo Civil.
- E só com fundamento justificado poderá proceder-se à sua substituição (artigo 761º do Código de processo Civil).” (Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 11-09-2018, Processo nº 12580/17.7T8SNT-D.L1-1, in www.dgsi.pt);
7 - Em “IV – DELIBERAÇÃO”, do Acórdão citado no número anterior, reza o seguinte:
“Pelo exposto, acordam em conceder provimento à apelação e, em consequência, revogar a decisão recorrida, decretando em sua substituição que o Insolvente deverá ser mantido como fiel depositário do bem imóvel apreendido a favor da massa insolvente até à data da concretização da compra e venda do mesmo”;
8 - “1 – As funções de depositário judicial de bens penhorados cessam quando se extingue a penhora e isso pode suceder pelo seu levantamento, pela venda ou pela extinção da execução. 2 – O depositário pode ser removido do cargo a requerimento de qualquer interessado, ou por iniciativa do agente de execução, caso deixe de cumprir os deveres do seu cargo, abrindo-se incidente de remoção.
3 – Em conformidade com o disposto no artigo 824º do CPC, o adquirente tem o dever de depositar o preço. A entrega do preço é um pressuposto da venda executiva, sem a qual não se opera a transmissão do direito penhorado, isto é, sem pagamento do preço não há venda e sem esta não se opera a transmissão do direito penhorado.
4 – Não se tendo operado a transmissão do imóvel penhorado, por ainda não ter sido depositado o preço na sequência de venda executiva em leilão eletrónico, o depositário não pode ser desapossado do bem que tem à sua guarda, designadamente para ser entregue ao proponente, sem ser através do incidente de remoção previsto no artigo 761º do CPC.” (Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 12-01-2023, Processo nº 558/21.T8CHV-B.G1, in www.dgsi.pt);
9 - Face à qualidade de fiel depositária do imóvel, o procedimento de diferimento de desocupação de imóvel, que é a casa de morada de família, só terá aplicação em caso de remoção da depositária ou, então, após se ter concretizado a compra e venda do imóvel. De outra forma, tratando-se da casa de morada de família, não se vê como é que o procedimento de diferimento de desocupação de imóvel poderá ter alguma aplicação;
10 - Como a Insolvente, aqui recorrente, nos termos legais era a fiel depositária do imóvel, já que se trata da casa de morada de família, e não foi removida, o procedimento de diferimento de desocupação do imóvel só pode ter cabimento após a venda do mesmo;
11 - O procedimento de diferimento de desocupação do imóvel, tratando-se de casa de morada de família, tem, assim, aplicação na fase da liquidação e depois de cumprida a venda do imóvel;
12 - O requerimento de diferimento de desocupação do imóvel apresentado pela Insolvente, aqui Recorrente, não foi extemporâneo;
13 - A decisão recorrida violou os artigos 864° e 865°, do CPC, por força da remissão operada nos arts. 150°, n° 5, do CIRE, e 862° do CPC, com uma errada aplicação da lei de processo, já que não teve em consideração que se tratava da casa de morada de família da Insolvente com o respectivo estatuto de fiel depositária.
14 – O pedido de deferimento de desocupação do imóvel apresentado pela Insolvente, aqui Recorrente, deve ser aceite, por tempestivo, e apreciado nos termos legais.
Não foram apresentadas contra-alegações.
Foi dado cumprimento ao disposto no nº. 1 do art. 655º do CPC., nada tendo sido requerido.
Foi proferida decisão sumária.
A recorrente reclamou para a conferência.
Foram colhidos os vistos.
2- Cumpre apreciar e decidir:
Veio a recorrente reclamar para a conferência, alegando que reconhece que se verifica uma situação de dupla conforme, bem como, não ter invocado a revista excecional.
Porém, pretende a reclamante que se proceda à convolação oficiosa do recurso, enquanto revista excecional e lavrar despacho de aperfeiçoamento para efeitos de formalização do mesmo.
Ora, a nossa decisão sumária tem o seguinte teor que se reproduz:
«A recorrente veio interpor recurso de revista ao abrigo do disposto no art. 671º, nº. 2 al. a) do CPC.
Entende a recorrente que se está perante a violação e errada aplicação da lei de processo, invocando acórdãos que do seu ponto de vista, materializam a sua interpretação da situação concreta.
Dispõe o art. 671º do CPC., na parte que releva:
1. Cabe revista para o Supremo Tribunal de Justiça do acórdão da Relação, proferido sobre decisão da 1.ª instância, que conheça do mérito da causa ou que ponha termo ao processo, absolvendo da instância o réu ou algum dos réus quanto a pedido ou reconvenção deduzidos.
2 - Os acórdãos da Relação que apreciem decisões interlocutórias que recaiam unicamente sobre a relação processual só podem ser objeto de revista:
a) Nos casos em que o recurso é sempre admissível.
No caso vertente, foi proferida uma decisão interlocutória.
Porém, relativamente às decisões interlocutórias incumbe distinguir entre as que incidem sobre o mérito da ação e aquelas que recaiam unicamente sobre aspetos da relação processual.
Como ressalta dos autos, a decisão da 1ª instância e o acórdão da Relação, de que se recorre, conheceu de questão de direito material, ou seja, proferiu uma decisão final de mérito.
Alude Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, 7ª. ed., Almedina, pág. 413 «Os acórdãos da Relação sobre decisões interlocutórias que apreciaram questões de direito material estão sujeitas ao regime mais alargado do nº. 1: o recurso de revista é de admitir, nos termos gerais, se tal acórdão apreciou alguma questão atinente ao mérito da causa ou se, por algum motivo substantivo, determinou a extinção total ou parcial da instância.
Com efeito, no que respeita aos acórdãos da Relação com este conteúdo material, que apreciaram de algum modo o mérito da causa ou alguma questão de direito material pertinente, o nº. 1 do art. 671º, não distingue entre decisões finais ou decisões interlocutórias de 1ª. instância, prevendo um regime unitário.
Deste modo, como o salienta o elemento literal expresso, o preceituado no nº. 2 do art. 671º que condiciona a admissibilidade do recurso de revista a pressupostos específicos abarca unicamente os acórdãos da Relação que incidiram sobre decisões interlocutórias de 1ª. instância que apreciaram questões de ordem formal, sem que esses acórdãos determinem a extinção total ou parcial da instância, uma vez que, nestes casos, é seguida a regra geral do nº. 1».
A aplicabilidade da al. a) do nº. 2 do art. 671º., levar-nos-ia para as situações plasmadas no nº. 2 do art. 629º do CPC.
Com efeito, não seria aplicável qualquer das suas alíneas, inclusive a al. d), a qual se reporta a casos de contradições com acórdão dessa ou outra relação, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito, e do qual não caiba recurso ordinário por motivo estranho à alçada do tribunal, salvo se tiver sido proferido acórdão de uniformização de jurisprudência com ele conforme.
Ora, a al. d) do nº. 2 do art. 629º do CPC pressupõe que a revista não seja admissível em virtude de disposição legal onde estivesse prevista a irrecorribilidade para o Supremo Tribunal de Justiça.
Não existindo no caso sub judice, qualquer disposição legal especial, que inviabilizasse a recorribilidade para o STJ., aplicar-se-á a regra do nº. 1 do art. 671º do CPC., na medida em que o valor da causa tal permite.
Porém, dispõe o nº. 3 do CPC., que, sem prejuízo dos casos em que o recurso é sempre admissível, não é admitida revista do acórdão da Relação que confirme, sem voto de vencido e sem fundamentação essencialmente diferente, a decisão proferida na 1º. Instância, salvo nos casos previstos no artigo seguinte.
Assim, verifica-se uma situação de dupla conforme e de não invocação de revista excecional».
Porém, entende a recorrente que será caso de revista excecional, devendo ser determinada tal convolação.
Ora, a recorrente jamais invocou qualquer pedido de revista excecional e após a notificação para efeitos do disposto no nº. 1 do art. 655º do CPC., nada requereu, só agora em sede de reclamação para a conferência, vindo formular tal pretensão.
Nos termos constantes do nº. 2 do art. 637º do CPC., será no requerimento de interposição de recurso que será indicado o fundamento específico da recorribilidade.
Se a recorrente no seu requerimento de interposição do recurso, não invocou qualquer fundamento excecional para admissibilidade desta revista, não poderá no âmbito da reclamação vir agora pedir uma convolação oficiosa, a qual não poderá ser admitida por manifesta extemporaneidade.
Sumário:
- O nº. 2 do art. 671º do CPC., abarca os acórdãos da Relação que incidem sobre decisões interlocutórias de 1ª. instância, que apreciam questões de ordem formal, sem que esses acórdãos determinem a extinção total ou parcial da instância, uma vez que, nestes casos, é seguida a regra geral do nº. 1 do preceito.
- Se a recorrente no seu requerimento de interposição do recurso, não invocou qualquer fundamento excecional para admissibilidade da revista, não poderá no âmbito da reclamação para a conferência vir pedir uma convolação oficiosa, a qual não poderá ser admitida por manifesta extemporaneidade.
Decisão:
Pelo exposto, acorda-se em conferência, julgar improcedente a reclamação.
Custas a cargo da recorrente, sem prejuízo de apoio judiciário de que beneficie.
Notifique.
Lisboa, 29-4-2025
Maria do Rosário Gonçalves (relatora)
Cristina Coelho
Maria Olinda Garcia