Em processo de insolvência, para efeitos do artigo 14.º do CIRE, se o acórdão fundamento e o acórdão recorrido não decidem a mesma questão fundamental de direito, não existe a oposição jurisprudêncial que justifica a admissibilidade da revista.
I. RELATÓRIO
*1. AA, agora recorrente, foi declarada insolvente, em 22.10.2014, no processo nº 15151/14.6... (do Juízo de Comércio de ...), tendo esse processo sido encerrado por insuficiência de bens e nele sido proferida decisão de indeferimento do pedido de exoneração do passivo restante.
No processo n.º 9175/23.0... (do Juízo de Comércio de ...), a agora recorrente voltou a requerer a declaração da sua insolvência e a exoneração do passivo restante, tendo havido indeferimento liminar com base na existência de caso julgado entre este processo e o referido processo anterior.
2. Nos presentes autos, a devedora vem novamente requerer a declaração da sua insolvência e a exoneração do passivo restante.
A primeira instância decidiu: «(…) verificando-se estar pendente uma outra ação declarativa com processo especial na qual a aqui Requerente requer a sua própria insolvência – 9175/23.0... – anteriormente entrada em juízo, julgo verificada a exceção dilatória de litispendência, a qual é de conhecimento oficioso (art.º 578º do Código de Processo Civil) e ao abrigo do disposto nos art.ºs 576º, n.ºs 1 e 2, 577º, al. i), 580º, 581º e 582º do Código de Processo Civil (ex vi art.º 17º, n.º 1, do CIRE), declaro extinta a presente instância.»
3. Contra essa decisão a autora interpôs recurso de apelação.
Dado que, entretanto, o processo n.º 9175/23.0..., que havia justificado a litispendência, teve decisão final, transitada em julgado em 27.06.2023, a segunda instância considerou prejudicado o conhecimento da exceção da litispendência, e passou a conhecer da exceção dilatória de caso julgado (entre a presente ação e o processo nº 9175/23.0...), por tal ser de conhecimento oficioso (artigos 576º, 577º alínea i), 578º, 580º e 581º do CPC).
Tendo concluído que se verificava identidade de sujeitos, de pedido e de causa de pedir entre a presente ação e o processo nº 9175/23.0..., do Juízo de Comércio de ..., o TRL julgou a apelação improcedente, confirmando a decisão da primeira instância, agora com base na existência de caso julgado.
4. Contra esse acórdão, a autora interpôs recurso de revista, em cujas alegações formulou as seguintes conclusões:
«1. O acórdão recorrido, nos termos do qual o Tribunal da Relação confirma a decisão recorrida do Tribunal “a quo” de extinção da instância, padece de nulidade e consubstancia uma interpretação e aplicação erradas da Lei.
Da Admissibilidade Liminar Do Presente Recurso
2. O Tribunal de Primeira Instância, por via do despacho proferido em 21/06/2023, que foi objeto do recurso de apelação, decidiu declarar a extinção da instância, unicamente com fundamento na pretensa verificação da exceção dilatória de litispendência (cfr. despacho de 21/06/2023, constante dos autos).
3. Por sua vez, o Tribunal da Relação, por via do acórdão proferido em 12/11/2024, objeto do presente recurso, apesar de manter a decisão de extinção da instância, fá-lo com fundamento exclusivo na pretensa verificação da exceção dilatória de caso julgado (cfr. acórdão de 12/11/2024, constante dos autos).
4. Por conseguinte, apesar de o acórdão da Relação confirmar, sem voto de vencido, a decisão proferida pela Primeira Instância, a confirmação foi feita por via de fundamentação essencialmente diferente, de onde resulta a admissibilidade do presente recurso como recurso de revista normal ao abrigo do disposto no artigo 671.º, n.º 1 e 3 “a contrario” do CPC ex vi do artigo 17.º, n.º 1 do CIRE.
5. Ainda que assim não se entendesse – o que apenas se admite por mero dever de patrocínio – o acórdão recorrido está em oposição com outros acórdãos proferidos pelas relações, no domínio da mesma legislação, que decidiram de forma divergente as mesmas questões fundamentais de direito, não tendo sido fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça jurisprudência conforme ao acórdão recorrido (cfr. art.º 14.º, n.º 1 do CIRE).
6. O acórdão ora recorrido está, entre outros, em oposição com:
⎯ o acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Coimbra, em 12/07/2017, no âmbito do processo n.º 8657/16.4T8CBR.C1 (“acórdão fundamento”) – Doc. n.º 1;
⎯ a decisão singular proferida pelo Tribunal da Relação de Évora em 29/10/2021, no processo n.º 263/21.8T8OLH.E1 – Doc. n.º 2; e
⎯ a decisão singular proferida pelo Tribunal da Relação de Lisboa, em 22/02/2024, no processo n.º 12394/23.5T8SNT.L1 – Doc. n.º 3.
7. Contrariamente ao acórdão recorrido, o Tribunal da Relação de Coimbra, no acórdão fundamento, julgou que quem tenha sido declarado insolvente pode voltar a sê-lo desde que ocorram os factos conducentes a tal situação e independentemente de os créditos e os credores em ambos os processos serem essencialmente os mesmos (cfr. transcrição supra de excerto do acórdão fundamento).
8. No acórdão recorrido, o Tribunal da Relação de Lisboa julgou verificada a exceção de caso julgado tendo em conta a existência de uma decisão anterior de declaração de insolvência da Recorrente e, por conseguinte, manteve a decisão de indeferimento liminar do pedido de insolvência apresentado.
9. Por sua vez, os autos subjacentes ao acórdão fundamento correspondem, pelo menos, a uma segunda ação especial de insolvência no âmbito da qual foi proferida uma segunda sentença de declaração de insolvência do devedor, uma vez que o devedor também já tinha sido declarado insolvente no âmbito de uma ação especial de insolvência anterior.
10. Pois bem, no mencionado acórdão fundamento, o Tribunal da Relação de Coimbra refere expressamente que “os créditos e os credores em ambos são essencialmente os mesmos, sendo que esta identidade dos sujeitos, do pedido e da causa de pedir - consignada no acórdão fundamento - não impediu a nova declaração insolvência do devedor.
11. Da referida contradição entre acórdão recorrido e acórdão fundamento decorre, subsidiariamente, a admissibilidade do presente recurso como revista excecional por via do disposto no art.º 672.º, n.º 1, al. c) do CPC ex vi art.º 17.º, n.º 1 do CIRE.
12. Mais se diga que, estando em causa a insolvência e a exoneração do passivo restante da Recorrente, sempre estaria em causa uma questão cuja apreciação, pela sua relevância jurídica (capaz de influir na decisão da causa), seria claramente necessária para uma melhor aplicação do direito, donde decorreria, subsidiariamente, a admissibilidade da revista excecional por via do disposto no art.º 672.º, n.º 1, al. a) do CPC ex vi art.º 17.º, n.º 1 do CIRE.
Da Nulidade Do Acórdão Recorrido
13. No caso dos autos, o Tribunal da Relação considerou que o processo de insolvência n.º 9175/23.0... usado pelo Tribunal de Primeira Instância como fundamento para a verificação da pretensão exceção de litispendência já tinha a sua decisão final transitada em julgado e, desse modo, entendeu que se mostrava prejudicada a apreciação da exceção de litispendência.
14. Todavia, considerou que a questão poderia, agora, colocar-se em sede de exceção dilatória de caso julgado (entre a presente ação e o referido processo de insolvência n.º 9175/23.0...) e dela tomou conhecimento e sobre a mesma se pronunciou.
15. Sucede que, nos termos da Lei, da Jurisprudência (unânime) dos Tribunais Superiores e da Doutrina, são as conclusões que delimitam o objeto do recurso (cfr. art.º 635.º, n.º 3 a 5 e art.º 639.º, n.º 1 e 2, ambos do CPC), o que significa que, o Tribunal “ad quem” não pode conhecer de questões que não constem das conclusões.
16. Ora, nas suas conclusões do recurso de apelação, a Recorrente reportou-se à verificação ou não da exceção de litispendência por ter sido a única exceção que fundamentou a decisão de Primeira Instância recorrida.
17. Logo, foi em extrapolação das conclusões da apelação da Recorrente que o Tribunal da Relação se foi debruçar sobre outra exceção (caso julgado), que não aquela que serviu de base à decisão recorrida e sobre a qual, também, tinham incidido as conclusões da Recorrente (litispendência), conhecendo de questões de que não podia tomar conhecimento.
18. Por conseguinte, tendo o Tribunal da Relação conhecido de questões de que não podia tomar conhecimento, é o presente acórdão recorrido nulo, nos termos do artigo 615.º, n.º 1, al. d) ex vi art.º 674.º, n.º 1, al. c), ambos do CPC, o que, desde já, se argui.
19. Ainda que assim não se entendesse, o que apenas se admite por mero dever de patrocínio, sempre se diria que, tratando de uma nova questão, devia o relator, antes de ser proferida decisão, ter ouvido cada uma das partes, pelo prazo de 10 dias (cfr art. 655º do CPC ex vi do art. 17.º do CIRE), o que não ocorreu no caso dos presentes autos.
20. A audição prévia das partes, prescrita por Lei, visa proporcionar a cada uma das partes o exercício do direito ao contraditório, concedendo-lhes a discussão efetiva de todos os fundamentos de facto e de direito subjacentes à pretensa decisão, evitando-se, assim, decisões-surpresa.
21. Por isso, a omissão da audição prévia da Recorrente influiu relevantemente no exame e na decisão da presente causa, uma vez que se retirou à Recorrente a faculdade de ponderar outras perspetivas dos factos demonstrativas da inexistência de caso julgado e, desse modo, conducentes a uma decisão diversa da recorrida
22. Por conseguinte, o acórdão objeto do presente recurso padece, também por esta via, de nulidade decorrente da omissão de um ato prescrito por Lei capaz de influir no exame e na decisão da causa (cfr. art.º 195.º, n.º 1 do CPC ex vi art.º 17.º, n.º 1 do CIRE), que, igualmente, se argui.
Da Errada Interpretação e Aplicação da Lei
Sobre a nulidade do despacho objeto do recurso de apelação por violação do dever de fundamentação da decisão:
23. As decisões judiciais devem ser objeto de fundamentação (cfr. arts.º 205.º, n.º 1 da Constituição, 154.º, n.º 1 e 607.º, n.º 3 e 4, ambos do CPC ex vi artigo 17.º, n.º 1 do CIRE; e, ainda, transcrição supra do excerto do acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 07/01/2016 e, igualmente, da opinião de ANTUNES VARELA).
24. No despacho objeto do recurso de apelação, o Tribunal de Primeira Instância omitiu totalmente a especificação quer dos factos que considerou provados que suportam a decisão, quer dos factos que considerou não provados, assim como omitiu toda e qualquer indicação e análise crítica das provas.
25. A autonomização de uns singelos três pontos, sob a designação vaga e genérica de “factualidade” (cfr. página 1 do despacho recorrido) não cumpre o dever legal de fundamentação das decisões.
26. A afirmação que o Tribunal de Primeira Instância faz no despacho objeto do recurso de apelação – “Verificamos existirem, assim, dois processos, apresentados pela aqui Requerente, cujo pedido e causa de pedir são os mesmos” – constitui um juízo de natureza meramente valorativa e conclusiva, que não corresponde a matéria de facto.
27. O Tribunal de Primeira Instância não indicou, em nenhuma parte do despacho objeto do recurso de apelação, os factos que considerou constitutivos da causa de pedir num e noutro processo de insolvência (processo de insolvência n.º 9175/23.0... e o presente processo de insolvência) e sobre os quais assentou a sua conclusão de que ambas as causas de pedir seriam as mesmas e, por conseguinte, a sua conclusão de litispendência.
28. A falta de fundamentação de facto (nomeadamente, das causas de pedir que o Tribunal de Primeira Instância alega serem as mesmas) e da indicação e análise crítica da correspondente prova, torna impossível à ora Recorrente aferir da justeza e da bondade da decisão de extinção da instância.
29. Ainda que este douto Tribunal Superior vislumbrasse algum fundamento de facto e/ou de direito no âmbito do despacho ora recorrido – o que apenas se admite por mero dever de patrocínio – sempre tal pretensa fundamentação seria terrivelmente medíocre e insuficiente, em termos tais que inviabilizam a possibilidade de compreender as razões que levaram o Tribunal de Primeira Instância a decidir de uma maneira e não de outra, o que é igualmente passível de gerar nulidade da decisão (cfr., no mesmo sentido, o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 17/04/2012).
30. Por conseguinte, faltando os fundamentos de facto e de direito da decisão, deveria o Tribunal da Relação ter julgado o despacho objeto do recurso de apelação nulo, nos termos do artigo 615.º, n.º 1, al. b) ex vi artigo 613.º, n.º 3, ambos do CPC ex vi artigo 17.º, n.º 1 do CIRE e, não tendo assim decidido, violou as referidas normas.
- Da inexistência de caso julgado por não se verificarem os requisitos da repetição da causa:
31. A verificação da exceção de caso julgado depende da verificação de uma tríplice identidade, a saber quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir (cfr. art.º 581.º, n.º 1 do CPC ex vi art.º 17.º, n.º 1 do CIRE).
32. Entre o processo de insolvência instaurado em 31/05/2023 (processo n.º 9175/23.0...) e o presente processo de insolvência, sempre faltaria desde logo a identidade de causa de pedir.
33. A causa de pedir encontra-se intimamente ligada às causas que determinaram a apresentação da Recorrente à insolvência em cada um dos processos impondo-se ter por referência a concreta situação económica que motivou a Recorrente a apresentar-se à insolvência num e noutro processo.
34. Na petição inicial apresentada nos presentes autos, constata-se que o valor dos créditos em dívida indicado pela Recorrente se mostra diferente do indicado no processo anterior instaurado em 31/05/2023 (processo n.º 9175/23.0..., que serviu de base à pretensa exceção de litispendência), tendo sido, entre outros, retificados os valores dos seguintes créditos:
- o crédito da Autoridade Tributária e Aduaneira foi retificado de € 2.243,02 para € 2.249,07;
- o crédito do Banco Credibom, S.A. foi retificado de € 11.395,40 para € 17.774,73;
- e o crédito do Banco Popular Português, S.A. foi retificado de € 10.000,00 para € 18.870,70;
- tendo-se mantido o valor do crédito da Intrum Portugal, Unipessoal, Lda. em € 14.781,64
(cfr. requerimento inicial da Recorrente de 31/05/2023, constante dos autos n.º 9175/23.0... e requerimento inicial da Recorrente de 10/06/2023, constante dos presentes autos).
35. Por isso, o valor total dos créditos da Recorrente indicado nos presentes autos mostra-se distinto do valor dos créditos indicado no processo de insolvência anterior (processo n.º 9175/23.0..., que foi indeferido liminarmente e que serviu de base à pretensa exceção de litispendência).
36. Por referência à petição inicial apresentada nos presentes autos, constata-se que os factos que integram a causa de pedir são diferentes, pois, se é verdade que, em ambos os processos, a Recorrente pretende a declaração de insolvência e a concessão da exoneração do passivo restante, também é verdade que os factos integradores da sua situação de insolvência, expostos em sede de petição inicial, são diferentes, uma vez que também são diferentes os valores dos créditos indicados em cada um dos processos.
37. Inexistindo a aludida identidade de causas de pedir, sempre faltaria um pressuposto essencial da repetição da causa, necessário à verificação da exceção do caso julgado.
38. Além disso, cabe, igualmente, esclarecer que também inexiste qualquer exceção de caso julgado relativamente ao primeiro processo de insolvência instaurado em 2014, visto que as partes da ação de insolvência de 2014 (processo n.º 15151/14.6...) e as partes da ação no presente processo de insolvência não são as mesmas, havendo credores (e créditos) diferentes assim como também não são as mesmas as causas de pedir.
39. Veja-se, por exemplo, que existia em 2014 o credor Barclays Bank, Plc., que hoje não existe; e, em contrapartida, passou a existir o credor Intrum Portugal Unipessoal, Lda. que não existia no primeiro processo de insolvência de 2014.
40. O crédito deste novo credor assenta na injunção n.º 17471/23.0..., que apenas foi intentada no corrente ano de 2023 contra a Recorrente, sob o valor de € 14.781,64, o que também corresponde inevitavelmente a uma ação nova, que não existia no primeiro processo de insolvência de 2014.
41. Não sendo despiciendo referir que o valor dos juros de mora peticionados na aludida injunção ascendem ao montante de € 4.364,41, o que corresponde, igualmente, a uma divida constituída ex novo, a qual, naturalmente também não existia no primeiro processo de insolvência de 2014.
42. Acresce que, todos os créditos reclamados em 2014 pelos credores no âmbito do primeiro processo de insolvência, acumularam juros comerciais e juros compulsórios, o que também fez com que, hoje, o montante dos créditos fosse substancialmente superior devido ao acumular de juros, desde 2014 até à presente data (10 anos).
43. A análise da petição inicial apresentada nos presentes autos não pode senão levar à conclusão de que os factos essenciais que constituem a causa de pedir são diferentes, designadamente em relação aos factos que conduziram à anterior declaração de insolvência da Recorrente em 2014.
44. A situação de insolvência e, em concreto, a situação do passivo da Recorrente no âmbito do presente processo, deve ser valorada à luz das circunstâncias que determinaram a sua apresentação à insolvência (o objeto do pedido é diferente) sendo certoque a situação patrimonial de um indivíduo é forçosamente dinâmica (e não estática) e, por isso, as circunstâncias conducentes à respetiva situação de insolvência num e noutro momento são necessariamente diferentes, ainda por cima quando decorreu, entretanto, uma década entre um e outro processo.
45. E, mesmo que assim não fosse – como erradamente julgou o Tribunal da Relação –, sempre se diria que o Tribunal da Relação de Coimbra, no âmbito do acórdão fundamento, teria julgado que mesmo em tal caso, poderia o devedor voltar a ser declarado insolvente.
46. De facto, o Tribunal da Relação de Coimbra, no âmbito do acórdão fundamento, julgou que a lei permite que quem tenha sido declarado insolvente o possa voltar a ser desde que ocorram os factos conducentes a tal situação independentemente de os créditos e os credores em ambos os processos serem essencialmente os mesmos (cfr. excerto do acórdão fundamento acima transcrito).
47. Tendo-se por referência a concreta situação económica que motivou a Recorrente a apresentar-se à insolvência em 2014 e, novamente agora, em 2023, conclui-se que a Recorrente se encontra novamente em situação de insolvência por se mostrar impossibilitada de cumprir as suas obrigações vencidas (cfr. art.º 3.º, n.º 1 do CIRE),
48. Pelo que, nada impedia o Tribunal de declarar novamente a insolvência da Recorrente e, inclusivamente, de deferir liminarmente o seu pedido de concessão da exoneração do passivo restante (cfr. art.º 238.º, al. c) “a contrario”).
49. Tal decisão nunca implicaria qualquer contradição com qualquer decisão anterior, uma vez que não existe qualquer repetição de causa anterior ainda em curso (litispendência), nem já decidida por decisão transitada em julgado (caso julgado).
Em suma,
50. Ao julgar verificada a exceção de caso julgado e, em consequência, ao manter a decisão de extinção da instância, o Tribunal da Relação violou as disposições conjugadas do artigo 3.º, n.º 1 e do artigo 27.º, n.º 1, al. a), ambos do CIRE, bem como do artigo 580.º, n.º 1 e do artigo 581.º, ambos do CPC ex vi artigo 17.º, n.º 1 do CIRE.
51. Porquanto deveriam as normas jurídicas decorrentes de tais disposições ter sido interpretadas e aplicadas no sentido de deferir o pedido de declaração de insolvência da Recorrente, razão pela qual deverá a decisão recorrida ser substituída por outra que assim decida, conforme à correta interpretação das acima referidas normas.
Nestes termos e nos mais de direito, deve conceder-se provimento ao presente recurso e, em consequência, revogar-se o acórdão recorrido, sendo o mesmo substituído por outro que determine a declaração de insolvência da Recorrente, com todas as consequências legais.»
5. Distribuídos os autos no STJ, e prefigurada a inadmissibilidade da revista, foram as partes notificadas para se pronunciarem, nos termos do artigo 655.º do CPC (aplicável por remissão do art.º 17.º do CIRE).
A recorrente pronunciou-se, reiterando o seu entendimento sobre a admissibilidade da revista.
6. Por decisão de 24.02.2025 julgou-se findo o recurso por não haver que conhecer do seu objeto.
7. Contra essa decisão, a recorrente reclamou para a Conferência e pediu a prolação de acórdão. No seu requerimento, reitera, no essencial, os argumentos que já havia apresentado nas alegações de recurso, insiste na admissibilidade do recurso como revista normal (por entender não existir dupla conforme), bem como na existência de oposição de acórdãos.
*
II. FUNDAMENTOS
1. A questão da admissibilidade do recurso
1.1. A decisão recorrida foi proferida nos autos do processo de insolvência. Assim, tem aplicação ao recurso de revista o regime específico previsto no art.º 14.º do CIRE.
Determina o art.º 14.º, n.º 1 do CIRE:
«No processo de insolvência, e nos embargos opostos à sentença de declaração de insolvência, não é admitido recurso dos acórdãos proferidos por tribunal da relação, salvo se o recorrente demonstrar que o acórdão de que pretende recorrer está em oposição com outro, proferido por alguma das relações, ou pelo Supremo Tribunal de Justiça, no domínio da mesma legislação e que haja decidido de forma divergente a mesma questão fundamental de direito e não houver sido fixada pelo Supremo, nos termos dos artigos 686.º e 687.º do Código de Processo Civil, jurisprudência com ele conforme.»
Nos termos do AUJ n.º 13/2023: «A regra prevista no art. 14.º n.º 1 do CIRE restringe o acesso geral de recurso ao STJ às decisões proferidas no processo principal de insolvência, nos incidentes nele processado e aos embargos à sentença de declaração de insolvência.»
Deste quadro legal e jurisprudencial decorre que, em regra, os tribunais da Relação são a última instância em matéria insolvencial, só sendo admissível recurso para o STJ a titulo excecional, tendo em vista a orientação da jurisprudência face à constatação de aplicações divergentes do mesmo quadro normativo. Assim, para que o STJ admita o recurso e se pronuncie sobre o seu mérito é necessária a verificação cumulativa de todos os requisitos enunciados no artigo 14º, os quais acrescem aos requisitos gerais de recorribilidade, exigidos pelo artigo 629º, n.º 1 do CPC, aplicável ao processo de insolvência ex vi do artigo 17.º do CIRE.
1.2. Deste modo, contrariamente ao invocado pela recorrente, ao presente recurso não se aplicam as regras gerais previstas no artigo 671º do CPC, independentemente de existir, ou não, dupla conformidade decisória. Nestes termos, é irrelevante, para efeitos de admissibilidade da revista, o facto de a primeira instância ter entendido que se verificava a exceção dilatória de litispendência, declarando, consequentemente, extinta a instância, e de a Relação ter confirmado essa decisão com fundamento na existência da exceção dilatória do caso julgado.
Por outro lado, prevendo o artigo 14.º do CIRE um regime específico para as decisões proferidas no processo de insolvência, tal regime, pela sua natureza, também afasta a aplicação da revista excecional, prevista no artigo 672º do CPC (em qualquer uma das suas alíneas), como a jurisprudência do STJ tem reiteradamente afirmado.
Prevenindo a hipótese de o recurso não ser admissível nos termos gerais, pretende a recorrente que seja admitido com base no artigo 14º do CIRE, indicando, para tal, a existência de oposição entre o acórdão recorrido e o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 12.07.2017, proferido no processo n.º 8657/16.4T8CBR.C1, que indica como acórdão fundamento. Indica ainda a existência de oposição com decisões singulares, mas tal é irrelevante para efeitos de admissibilidade da revista, pois o artigo 14.º do CIRE é claro ao exigir a oposição entre acórdãos.
1.3. Entende a recorrente que o acórdão recorrido e o acórdão fundamento decidiram de forma divergente a mesma questão fundamental de direito – a questão de saber se alguém que já foi declarado insolvente pode voltar a apresentar-se em tribunal para ser novamente declarado insolvente, desde que verificados os factos constitutivos da situação de insolvência. E sustenta que o acórdão recorrido rejeita esta possibilidade, contrariamente ao que se entendeu no acórdão fundamento.
Sobre o modo como deve ser apreciada a oposição de acórdãos, relevante para efeitos do artigo 14.º do CIRE, veja-se, a título exemplificativo, os seguintes acórdãos:
- Acórdão do STJ, de 23.03.2021 (relator Henrique Araújo), no processo n. 3701/18.3T8VNG.P1.S1:
«I- A oposição de julgados pressupõe que a mesma questão fundamental de direito, no domínio da mesma legislação, seja tratada de modo antagónico no acórdão recorrido e no acórdão-fundamento. Mas pressupõe, ainda, que à aplicação normativa esteja subjacente uma situação de facto substancialmente idêntica.
II - Sendo díspares as situações de facto subjacentes às decisões em confronto, é natural que as soluções encontradas para uma e outra sejam diversas, embora com recurso ao mesmo contexto normativo.»
- Ac. do STJ, de 09.03.2021 (relator José Rainho), no processo n. 4359/19.8T8VNF.G1.S1:
«(…) Duas decisões só são divergentes quanto à mesma questão fundamental de direito se têm na sua base situações materiais litigiosas que, de um ponto de vista jurídico-normativo – tendo em consideração a natureza e teleologia dos específicos interesses das partes em conflito – são análogas ou equiparáveis, pressupondo o conflito jurisprudencial uma verdadeira identidade substancial do núcleo essencial da matéria litigiosa subjacente a cada uma das decisões em confronto, e que a questão fundamental de direito em que assenta a alegada divergência assuma um carácter essencial ou fundamental para a solução do caso (isto é, que integre a ratio decidendi dos acórdãos em confronto.»
- Ac. do STJ, de 26.05.2021 (relator Pinto de Almeida), no processo n. 5483/12.3TBFUN-I.L1.S1:
«(…) A oposição de acórdãos quanto à mesma questão fundamental de direito verifica-se quando a mesma disposição legal se mostre, num e noutro, interpretada e/ou aplicada em termos opostos, havendo identidade de situação de facto subjacente a essa aplicação.»
1.4. Neste quadro, procedendo ao confronto entre o acórdão recorrido e o acórdão fundamento, facilmente se constata que o objeto decisório de cada um destes arestos não é idêntico.
Tais decisões não se pronunciaram sobre a mesma questão jurídica fundamental.
No acórdão fundamento não se discutia a existência da exceção dilatória de caso julgado conducente à absolvição da instância. No acórdão recorrido esta é a única questão que é objeto de decisão.
O que se apreciou no acórdão fundamento foi a questão de saber se podia haver um segundo pedido de exoneração do passivo restante, não se discutindo em que termos o novo processo de insolvência foi admitido. No acórdão recorrido tal questão não chegou, obviamente, a ser discutida porque se decidiu extinguir a instância.
O facto de no caso a que respeita o acórdão fundamento ter existido um segundo processo de insolvência do mesmo devedor é uma questão subjacente (ou lateral) à única questão que integra o objeto decisório, ou seja, a da apreciação do segundo pedido de exoneração do passivo restante. Diferentemente, no acórdão recorrido a única questão em apreço é a da admissibilidade do novo pedido de declaração de insolvência.
Efetivamente, consta do acórdão fundamento que o seu objeto (para além de questões respeitantes à apreciação da matéria de facto e à invocação de nulidades, que agora não interessam) respeita à questão de:
«Saber se o despacho recorrido deve ser revogado e substituído por outro que admita o requerimento de exoneração do passivo restante.»
1.5. Não assiste razão à recorrente quando sustenta que o acórdão recorrido, diferentemente do acórdão fundamento, não admite uma segunda declaração de insolvência.
Efetivamente, uma leitura atenta da fundamentação integral do acórdão recorrido permite constatar que essa hipótese é aí expressamente admitida em termos gerais, só não o sendo no caso concreto, por a tal obstar a existência da exceção dilatória do caso julgado, tendo por base as circunstâncias específicas deste caso.
1.6. Facilmente se conclui, como se concluiu na decisão reclamada, que não se verifica a oposição de jurisprudência alegada pela recorrente.
Não existe, assim, entre os dois acórdãos, qualquer divergência quanto ao modo de interpretação e aplicação das mesmas disposições legais, que possa justificar a intervenção orientador da jurisprudência que é pressuposta pelo artigo 14º do CIRE e que é condição para a admissibilidade do recurso de revista.
Não existe, portanto, qualquer fundamento para revogar a decisão reclamada.
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DECISÃO: Pelo exposto, indefere-se a reclamação e confirma-se a decisão reclamada.
Custas pela recorrente (sem prejuízo do apoio judiciário de que possa beneficiar).
Lisboa, 29.04.2025
Maria Olinda Garcia (relatora)
Luís Espírito Santo
Teresa Albuquerque