I - Embora exista uma cláusula nas Condições Gerais da apólice que estabelece que “o presente contrato não garante a responsabilidade civil emergente de: (…) n) danos decorrentes de Responsabilidade Civil Contratual”, tratando-se in casu da celebração de um contrato de seguro de natureza obrigatória, que tem por objecto a responsabilidade profissional de um médico dentista, o mesmo cobre toda a responsabilidade que é exigida no âmbito do desenvolvimento específico dessa sua actividade profissional e que tem a ver, em particular, com o incumprimento das leges artis, pelo que é extensiva aos danos assim provocados na esfera jurídica de quaisquer terceiros.
II - Nem faria sentido que o médico dentista, relativamente ao mesmo tipo de conduta negligente que lhe é exclusivamente assacada no exercício da sua actividade profissional, deixasse de se encontrar contratualmente protegido pelo seguro de cariz obrigatório, que paga pontualmente, em função da circunstância de ser demandado pelo paciente lesado ou pela Clínica em relação à qual presta, por contrato com a mesma firmado, os seus serviços médicos.
III – No contrato de prestação de serviços médicos a prestação qualificável como defeituosa pressupõe que seja levada a efeito com violação de devedores de diligência, rigor, empenho e cuidado a que o prestador – profissional médico – se encontra especialmente vinculado, o que acontece através da inobservância pela sua parte das leges artis.
IV - No âmbito do contrato de serviço que liga o médico dentista Réu à Clínica com quem o paciente celebrara o contrato primitivo, e tendo em especial atenção a natureza e complexidade da intervenção cirúrgica que ao mesmo competia desenvolver, a sua prestação revestirá a natureza de obrigação de meios e não de resultado (ao contrário do que sucede com a da Clínica perante o paciente, seu cliente).
V - O que significa que competia ao clínico desenvolver todos os esforços e toda a diligência, impostos pela ciência e deontologia médica no âmbito específico da medicina dentária, fazendo-o em termos particularmente rigorosos e escrupulosos, sem qualquer falha técnica ou incorrecção de procedimentos, com vista a prosseguir a restauração dentária que o paciente contratara com a Clínica prestadora do serviço (e para cujo cumprimento da sua obrigação de resultado esta se servira, enquanto executante, dos conhecimentos especializados desse médico, bem como da respectiva implementação prática por ele).
VI – No âmbito da responsabilidade interna e na lógica de funcionamento do artigo 800º, nº 1, do Código Civil, a Clínica Médica, declarada judicialmente responsável perante o cliente pelo resultado prometido e não alcançado, só pode obter do médico dentista o montante que oportunamente pagou ao lesado, com base no incumprimento do contrato de prestação de serviço que com ele firmado, se provar que esse mesmo médico incorreu, em qualquer momento do processo terapêutico, em erro ou incorrecção quanto aos procedimentos adoptados, violando desse modo as leges artis.
VII – O simples insucesso dos tratamentos médicos seguidos, sem existir prova da violação das leges artis, não é suficiente, por si só, para a responsabilização deste perante a Clínica, não se justificando desse modo que esta possa, depois de condenada judicialmente pela não obtenção do resultado prometido e feito o pagamento devido ao lesado, vir afinal a recuperá-lo por inteiro à custa do executante da sua prestação.
I - RELATÓRIO.
Clínica Médica e Dentária de Santa Madalena, Lda., instaurou acção declarativa comum contra AA, Clínica Dentária Dr. Bruno Conceição e AGEAS Portugal - Companhia de Seguros.
Essencialmente alegou:
No ano de 2004 o 1.º Réu AA iniciou uma colaboração com a autora para a prestação de serviços de médico dentista em diferentes clínicas de que a autora é proprietária.
A Autora obrigou-se a disponibilizar-lhe um espaço adequado e todas as condições logísticas (recursos materiais e humanos) necessárias ao exercício por este da actividade de médico dentista e este, por seu turno, obrigou-se perante a Autora a exercer a sua profissão de dentista em clientes desta, com total autonomia técnica mas no escrupuloso cumprimento de todas as boas práticas médicas ou leges artis.
A A. factura e recebe dos clientes finais o preço dos tratamentos e paga ao 1.º Réu uma comissão correspondente a 40% do valor de cada serviço prestado,
Em Junho de 2008, por razões contabilísticas e fiscais, o 1.º R. criou a 2.ª R. para, através desta, continuar a exercer a sua actividade de médico dentista e, por essa altura, o 1.º R., AA solicitou à A. que emitisse em nome da 2.ª R. algumas facturas referentes às suas “comissões” pelos serviços prestados, sendo que através de facturas ou de “recibos verdes” mantiveram-se inalteradas todas as condições acordadas entre A. e 1.º R. AA.
No ano de 2005, o 1.º R. AA celebrou com a Axa Portugal um contrato de seguro de responsabilidade civil profissional para a actividade de médico dentista, titulado pela apólice n.º ............52 que cobre a responsabilidade civil profissional do 1.º R. até ao montante de 600.000,00 Euros e a responsabilidade civil de exploração até ao montante de 300.000,00 Euros.
Em 16 de Janeiro de 2015 BB instaurou contra a autora e o 1º réu AA acção de processo comum que correu termos pela Instância Central Cível do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Norte.
Por sentença proferida em 15 de Julho de 2016, no âmbito desses autos, foi a ora A. condenada a pagar a BB:
a) A quantia de €31.325,00, a título de indemnização por danos patrimoniais;
b) A quantia de €15.000,00, a título de indemnização por danos não patrimoniais;
c) A quantia correspondente aos juros de mora vencidos e vincendos, calculados à taxa legal, contados a partir da data da citação, sendo a partir da data da sentença no que respeita ao montante relativo à indemnização.
Em sede de recurso de apelação, o Tribunal da Relação de Lisboa reduziu a condenação no pagamento da indemnização por danos não patrimoniais para o valor de € 10.000,00, mantendo no restante a sentença proferida em 1.ª instância.
O Supremo Tribunal de Justiça não admitiu a revista excepcional interposta.
A autora pagou ao lesado BB a quantia de € 45.516,70, em que fora condenada.
Da matéria de facto provada no âmbito daquela acção resulta que o 1º réu não cumpriu com as suas obrigações na prestação dos serviços a um paciente da autora, tendo agido em desrespeito das boas práticas médicas, com culpa efectiva.
Tal consubstancia violação das obrigações assumidas perante a autora no âmbito do contrato de prestação de serviços entre ambos celebrado.
Este comportamento do 1º réu AA causou danos à autora cujo ressarcimento esta peticiona nestes autos.
Conclui pedindo que os RR. sejam condenados a pagar à Autora o montante de € 56.516,60, acrescido dos juros de mora vencidos e vincendos, à taxa legal em vigor, contabilizando-se os vencidos na presente data em € 3.375,51.
Os Réus foram citados, não tendo o 1.º Réu AA apresentado contestação.
A Ré Ageas apresentou contestação, alegando matéria de excepção e de impugnação.
Excepcionou a existência de caso julgado, na medida em que, no processo n.º 803/15.1..., que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Norte, Juízo Central Cível de ..., Juiz ..., o Réu AA foi demandado, tendo sido absolvido do pedido contra ele formulado, sendo que as partes nesta acção, o pedido e a causa de pedir são as mesmas que determinaram a absolvição do 1.º Réu do pedido naquela acção; a prescrição do direito que a Autora se pretende fazer valer, tendo em atenção que os tratamentos realizados pelo 1.º Réu ao lesado ocorreram entre 2009 e Janeiro de 2012.
Mais alegou que o contrato de seguro de responsabilidade civil, na modalidade «Ordens profissionais», actividade “dentistas”, celebrado entre si e o 1.º Réu não garante danos decorrentes de responsabilidade contratual, nos termos das disposições conjugadas dos arts. 2.º e 5.º, al. n) das Condições Gerais da Apólice.
Desconhece os pagamentos efectuados pela Autora na sequência da decisão proferida no processo supra identificado e se entre a Autora e o lesado BB foi celebrado um contrato de prestação de serviços médicos, em que aquela assumiu uma obrigação de resultado que consistia na recuperação da função mastigatória, através da colocação de implantes funcionais e prótese, através da técnica all on four, que a Clínica havia instituído como prática na qual se havia especializado, razão pela qual a clínica é a única devedora, na medida em que o 1.º Réu apenas interveio na qualidade de sujeito utilizado pela clínica para o cumprimento de uma obrigação exclusivamente sua.
Mais referiu que a existir alguma responsabilidade a assacar ao 1.º Réu seria no âmbito da responsabilidade aquiliana a qual, não só se encontra prescrita como, de todo o modo, foi expressamente afastada na sentença proferida no processo n.º 803/15.1...
Conclui assim pela procedência da excepção de caso julgado e prescrição e, ainda que assim não se entenda, pela improcedência da acção com a consequente absolvição do pedido.
A Ré Clínica Dentária Dr. Bruno Conceição veio, igualmente, contestar, excepcionando a nulidade do processo por manifesta ausência da causa de pedir, conducente à absolvição da instância, impugnando a existência de qualquer contrato celebrado entre si e a Autora.
A autora pronunciou-se sobre as invocadas excepções, argumentando que as mesmas não se verificam.
No saneador proferido foram julgadas improcedentes as excepções de caso julgado e de prescrição deduzidas pela 3ª Ré.
Realizada audiência de julgamento, veio a ser proferida sentença, datada de 10 de Maio de 2024, que julgou a presente acção improcedente.
A A. apresentou recurso de apelação, o qual veio a ser julgado parcialmente procedente por acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, datado de 24 de Outubro de 2024, nos seguintes termos:
a. “(…) Condenar a 3.º Ré Ageas Portugal S.A. a pagar à Autora Clínica Médica e Dentária Santa Madalena Lda. a título de indemnização por responsabilidade contratual a quantia de €45.516,70 (quarenta e cinco mil quinhentos e dezasseis euros e setenta cêntimos), a que acrescem juros, à taxa legal, desde a citação da 3.ª Ré até efectivo e integral pagamento;
b. Manter no demais em sentença recorrida.”.
Veio a Ré Ageas Portugal S.A. interpor recurso de revista, apresentando as seguintes conclusões:
A. Não existiu incumprimento contratual por parte do Réu dentista, ao contrário, este agiu de acordo com os procedimentos preconizados pela recorrida utilizando a técnica por esta recomendada para o tratamento pretendido por BB, o designado All-on-four;
B. A esse respeito, não podemos deixar de atender ao processo 803/15.1..., cuja certidão das peças e decisões principais estão nos autos, e no qual a Autora Clinica, aqui recorrente, defendeu até ao Supremo Tribunal de Justiça a adequação do tratamento All-on-four ao caso do doente BB, o que revela, sem margens para dúvidas, que o R. AA não escolheu o tratamento a prestar ao BB, antes se limitou a seguir o procedimento All on Four que a clínica contratou com o BB;
C. Note-se que tanto neste processo, tal como naquele que o antecedeu, em que foi Autor BB, são os mesmos os factos em discussão – o seu objeto - e as consequências jurídicas a deles retirar e bem assim, são partes em ambos a aqui Autora e as Rés seguradora e AA;
D. Ao decidir pela revogação da douta sentença e considerar culposa a actuação do réu AA, o douto Tribunal da Relação cometeu um erro de julgamento, consubstanciado na incorreta subsunção dos factos ao direito, nomeadamente, o seu enquadramento no artigo 790º Código Civil, termos em que deve ser revogado por douto aresto deste Supremo Tribunal e confirmada a sentença proferida em 1ª instância, sendo assim os RR. absolvidos do pedido;
E. Como se disse, tal como da sentença recorrida nos presentes autos, também na que proferida no processo em que foi Autor do BB, que correu termos com o numero de processo 803/15.1..., foi afastada a responsabilidade do reu dentista, tendo sido decidido que apenas à clinica aqui Autora cabia indemnizar o BB, nos termos do artigo 800º Código Civil, perante o qual esta se obrigou a realizar tratamento dentário visando a recuperação da função mastigatória, mediante a extração da sua dentição e colocaçãode implantes, obrigaçãoque incumpriupornãoterutilizado ométodo mais adequado à morfologia do cliente BB. Por seu turno, a mesma douta sentença, que nessa parte não mereceu recurso, afastou a culpa do réu;
F. Ora tendo o douto tribunal por decisão transitada em julgado em 5 de Outubro de 2016 (cfr. certidão junta a estes autos), absolvido do pedido o R. AA, por entender não ser de lhe imputar qualquer comportamento ilícito, susceptível de oconstituir em responsabilidade civil, pois apenas executou, a mando da clinica ora A., o trabalho que aquela contratou com o BB, aplicando a técnica All on Four, que a própria clinica preconiza como sendo o próprio, tal questão não pode à posteriori, entre as mesmas partes, ser posta em causa, muito menos decidida de forma diversa como fez o douto tribunal recorrido.
G. De resto, diga-se que os pressupostos que levam a excluir a existência de responsabilidade aquiliana, tendo sido sobre esta expressamente que aquele tribunal decidiu no 803/15.1..., pois desde logo afastou a existência de responsabilidade contratual do R. dentista, não podem deixar de excluir também a responsabilidade contratual, que não existe sem actuação culposa, que foi afastada!
H. Ora, como se disse, naturalmente que, sendo comuns os pressupostos de responsabilidade civil extracontratual e contratual, face à fundamentação vertida na decisão do processo nº 803/15.1..., inexistindo por parte do dentista quaisquer violação das normas que impõem deveres de ordem geral e correlativamente de direitos absolutos (Responsabilidade civil extracontratual), inexiste igualmente qualquer violação contratual por parte do médico, nomeadamente por violação das normas deontológicas inerentes à profissão por ele desenvolvida, como de resto adiante melhor veremos.
I. Nestes termos, nos mais de direito, deve ser concedido provimento ao presente recurso, julgando-se existir erro de julgamento por não ter sido devidamente considerada a aplicabilidade da autoridade de caso julgado, que impunha a isenção de responsabilidade do réu dentista, e assim repristinada a douta sentença da 1º instância que julgou a ação totalmente improcedente;
J. De resto, o douto Acórdão recorrido é na verdade contraditório nos seus termos, pois embora reconhecendo o imperativo da força de caso julgado e que este importa que a mesma questão jurídica decidida entre as mesmas partes, como é o caso, se imponha em subsequentes processos, claramente desrespeita o princípio que enuncia, ao decidir pela imputação de culpa ao réu dentista, já dela ilibado na anterior decisão!
K. Emface doexposto, é patente a nulidade decorrente da contraditoriedade entre a fundamentação do douto acórdão recorrido e a decisão nele proferida quanto à culpa do reu dentista, termos em que se requer que este Venerando Tribunal o declare nulo nos termos do artigo 615º nº 1 c) do CPC;
L. Sem conceder, diga-se que não obstante a autonomia técnica do médico em relação à realização do procedimento, a verdade é que no âmbito de um contrato de prestação de serviços, o credor – a clínica neste caso - tem sempre uma palavra a dizer quanto ao modo como o serviço contratado deve ser executado e não está inibido de dar orientações, como ocorreu no caso concreto, em que, como supra se viu, o R. AA estava vinculado a tratar o BB mediante a aplicação da técnica All on Four ;
M. O douto Acórdão recorrido, como já vimos, não podia ter deixado de considerar que a técnica a empregar para cumprimento da prestação para com o cliente, o All on four, foi escolhida pela clínica e não pelo médico, que apenas a executou em cumprimento do contrato que tinha com a clínica, como demostrado pela decisão transida em julgado do processo 803/15.1...;
N. É certo que os deveres deontológicos do médico se mantêm, não obstante estar no âmbito de uma prestação de serviços à clínica, que tinha como pressuposto a execução do All on four no doente, mas não se traduzem na escolha do método utilizado, mas na sua execução na boca do doente com o cuidado e diligência que o AA fosse capaz, não tendo resultado da matéria de facto provada que o não tenha cumprido;
O. Não se provou pois a violação das legesartis pelo R. AA, importando ponderar que não sendo a medicina uma ciência exacta, não se pode concluir que um mau resultado ou o inêxito de um tratamento, se traduza necessariamente na violação da leges artis;
P. Com efeito, uma coisa é a obrigação da clínica perante o doente, que o douto acórdão recorrido entendeu ser de resultado e que consistia na recuperação da função mastigatória, outra é a do médico, que já não é de resultados, mas de meios, tal como é pacificamente considerado pela jurisprudência.
Q. Bemassim, importa atentar que qualquer intervenção médica comporta os seus riscos e nesse sentido, quando o médico se limita a aplicar o conhecimento e as técnicas que adquiriu ao longo da sua carreira num paciente que não obteve um resultado positivo não significa que violou a leges artis.
R. Assim, não se evidencia no caso em apreço a prática de qualquer erro médico na execução do All on four pelo AA, o que se verificou foi a não adequação do método, escolhido pela clínica, conforme ficou demonstrado e supra se disse, ao concreto doente, o que levou à responsabilização contratual desta no processo 803/15.1... e à absolvição do R. dentista, e da aqui recorrente por inerência, por inexistência de responsabilidade contratual perante a recorrida clínica;
S. Como se disse, o médico não praticou qualquer acto ilícito, mas antes actuou no contextoda organização da prestação de serviços preconizados pela recorrente, atuando assim como como cumpridor de uma obrigação da recorrente nos termos do artigo 800º, n.º1, do Código Civil, preceito que o douto Acórdão não atendeu ao considerar haver actuação culposa do R. dentista, termos em que deve serrevogadoe substituídopordecisão que absolva a recorrente do pedido.
T. Sem conceder, em qualquer caso e ainda que houvesse culpa do R. AA, mero executante da obrigação assumida pela clínica perante o paciente, em caso algum haveria direito de regresso da clínica perante o médico, pelo que, independentemente da qualificação jurídica que possa ser dada à conduta deste, não assiste à clínica autora direito de regresso.
U. A interpretação literal do artigo 800º, n.º1, do Código Civil, que dispõe sobre os efeitos jurídicos dos actos praticados por representantes ou auxiliares, permite excluir desde logo a possibilidade de um direito de regresso do devedor perante o auxiliar que utilizou no cumprimento da obrigação, dado o acto gerador da responsabilidade que importou o incumprimento da obrigação só a esta é imputável.
V. Ora, o direito a que a clínica recorrida aqui se arroga é um verdadeiro direito regresso, de receber do R. médico o valor correspondente à indemnização que pagou ao paciente, o que lhe está vedado nos termos do artigo 800º Código Civil;
W. O direito de regresso só tem cabimento legal no âmbito das obrigações solidárias, subseção onde de resto o citado preceito legal vem inserido, que são aquelas, cujo cumprimento integral recai sobre mais do que um devedor, obrigando a cada um pela prestação integral perante o credor, ainda que respondam em proporção diversa uns dos outros, como decorrer nos nºs 1 e 2 do artigo 512º Código Civil.
X. Ora, no caso da obrigação da recorrida perante o lesado, nos termos do artigo 800º do Código Civil, não há solidariedade, pois apenas esta é a devedora exclusiva e apenas esta responde perante o lesado, aliás, como se os actos praticados pelo representante ou auxiliar tenham sido praticados pela própria e independentemente da conduta do representante, não havendo consequentemente direito de regresso.
Y. Ao dar provimento à Apelação e conceder à A. recorrida o direito de regresso sobre o seu representante, condenando a aqui recorrente, para quem aquele havia transferido a responsabilidade, no pagamento da indemnização, o douto Tribunal da Relação aplicou e interpretou erradamente os artigos 524º e 800º do Código Civil, devendo porissoserrevogadoe substituídopor doutoAcórdãoque confirme a douta sentença da 1ª instância, assim absolvendo os RR. do pedido
Z. Sem conceder, ao entender que o contrato de seguro garante a responsabilidade contratual do tomador, que dele se mostra expressamente excluída, e num segundo momento, ao entender-se que não é de deduzir, ao valor a que foi condenada a seguradora, o montante correspondente à franquia contratual a cardo do tomador, a douta decisão recorrida interpretou erradamente o contrato de seguro e condenou a seguradora em indemnização que excede a sua responsabilidade, assim violando o disposto nos artigos 562º e segs do Código Civil;
AA. Assim, em caso de condenação, sempre seria apenas do R. médico, porque o contrato não garante a responsabilidade contratual, ou, assim não se entendendo, no que não se concede, sempre teria de ser deduzido o valor da franquia contratual à condenação da seguradora;
BB.Em face do exposto, deverá ser concedido provimento à presente revista e os Réus absolvidos do pedido, assim se fazendo a costumada Justiça.
Contra-alegou a A. apresentando as seguintes conclusões:
a) Como muito bem refere o sumário do douto Acórdão sob recurso “V. Para a definição do conteúdo da prestação a cargo do médico, na responsabilidade civil contratual decorrente do incumprimento de um contrato de prestação de serviços médico, há que recorrer ao que consta dos regulamentos deontológicos próprios”.
b) Decorre do disposto no artigo 104.º do Estatuto da Ordem dos Médicos Dentistas (Lei 124/2015, de 2 de Setembro) que “2 - No exercício da sua profissão, o médico dentista é técnica e deontologicamente independente, e, como tal, responsável pelos seus actos”, que “4 - A multiplicidade de direitos e deveres do médico dentista e dos prestadores da medicina dentária inscritos na OMD, impõem-lhes uma independência absoluta, isenta de qualquer pressão, quer resultante de interesses próprios, quer resultante de influências exteriores”, que “6 - “O médico dentista tem o direito à liberdade de fazer juízos clínicos e éticos, e à liberdade de diagnóstico e terapêutica, agindo, sempre, de forma independente”.
c) Resultou provado em T), que: “(…) o 1.º R. obrigou-se perante a A. a exercer a sua profissão de dentista em clientes desta, com total autonomia técnica (…)”,
d) Eventual interferência da A. Clínica nas decisões técnicas do Réu Médico não foi alegada pelas partes, não resultou da prova produzida, não foi considerada provada, e sempre constituiria uma violação grosseira das regras deontológicas aplicáveis à actividade.
e) Tendo o Réu Médico agido com total independência e autonomia, importará saber se ele cumpriu com as suas obrigações contratuais com a Clínica, e, muito concretamente, saber se exerceu a sua profissão de dentista em cliente desta no escrupuloso cumprimento de todas as boas práticas médicas ou leges artis.
f) Na acção com o n.º 803/15.1... esteve unicamente em causa a responsabilidade civil perante o paciente e não a responsabilidade civil do Réu Médico perante a aqui A. Clínica.
g) Na acção com o n.º 803/15.1... (e consequentemente no Ponto M dos presentes autos) resultaram provados factos que atestam o incumprimento das boas práticas médicas ou leges artis por parte do Réu Médico.
h) Na presente acção resultou igualmente provado em O), embora em termos conclusivos, que “(…) entendeu o douto tribunal que os meios utilizados não tinham sido os mais adequados às específicas necessidades de BB, de acordo com as boas práticas médicas”.
i) O Réu Médico praticou todos os actos médicos (diagnóstico, plano de tratamento, cirurgia,etc.) com total autonomia técnica, e foi ele quem não utilizou “os meios mais adequados às específicas necessidades de BB, de acordo com as boas práticas médicas”.
j) A responsabilidade civil contratual do Réu Médico emerge assim da falta de cumprimento, com culpa efectiva, de obrigações emergentes do contrato de prestação de serviços em vigor com a A. Clínica e, muito bem andou o douto Acórdão sob recurso quando, fazendo uma correcta aplicação do disposto no artigo 798.º do Código Civil, o responsabilizou pelos prejuízos causados à A. Clínica.
k) No processo 803/15.1... esteve em discussão a responsabilidade contratual da ora A. Clínica perante o lesado, tendo o tribunal se pronunciado pela inexistência de responsabilidade civil extracontratual do Réu Médico perante o lesado, por ter actuado no contexto da organização de prestação de serviços preconizada pela Clínica.
l) A douta sentença proferida no processo 803/15.1... não se pronunciou, nem tal lhe caberia aí, sobre a responsabilidade civil contratual do Réu Médico perante a ora A. Clínica.
m) O alcance da autoridade do caso julgado não abarca todas e quaisquer questões que tenham sido decididas por decisão transitada em julgado, mas está circunscrito, nos termos do artigo 621.º do CPC, aos preciso limites e termos em que julga, ou seja, sempre haverá de ser aferido em função das regras substantivas aplicáveis, das causas de pedir e dos pedidos formulados pelas partes nessa acção.
n) Dizer, como o faz a douta sentença proferida no processo 803/15.1..., que não pode ser imputada ao Réu Médico pelo lesado responsabilidade aquiliana ou por factos ilícitos, não significa que o Réu Médico não tenha praticado actos ilícitos e culposos geradores de responsabilidade contratual perante a A. Clínica.
o) A A. Clínica foi condenada no processo 803/15.1... precisamente porque incumpriu o contrato com o lesado mas, sempre e unicamente, através de actos ilícitos e culposos praticados pelo seu representante e auxiliar, o Réu Médico.
p) Porque a decisão sobre a verificação de responsabilidade contratual do Réu Médico perante a A. Clínica, não contende, mas antes se alicerça, nas doutas decisões de facto e de direito proferidas no processo 803/15.1..., o douto Acórdão sob recurso não incorreu em qualquer erro de julgamento, por preterição da autoridade de caso julgado, quando, no âmbito da relação contratual vigente entre ambos, responsabilizou o R. Médico pelos prejuízos suportados pela A. Clínica.
q) Contrariamente ao defendido pela Recorrente, no processo 803/15.1..., não se decidiu pela ausência de culpa do R. Médico.
r) O douto acórdão sob recurso, respeitando a autoridade de caso julgado material, admitiu os factos e considerandos constantes da sentença proferida no processo 803/15.1...
s) O douto acórdão sob recurso não poderia respeitar a autoridade de caso julgado de uma questão que não foi sequer apreciada no processo 803/15.1... (existência ou ausência de violação culposa pelo Réu Médico das obrigações assumidas perante a A. Clínica).
t) É desprovida de fundamento a invocada nulidade do douto Acórdão sob recurso, nos termos da alínea c) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC, por alegada contraditoriedade entre a fundamentação e decisão quanto à questão da culpa do R. Médico.
u) A responsabilidade do devedor pelos actos praticados pelos seus auxiliares, como se fossem praticados pelo próprio, prevista no artigo 800.º do Código Civil, existe unicamente relativamente ao credor, no caso concreto, o lesado BB, e não exclui ou elimina, por alguma forma, num segundo momento, a responsabilidade do auxiliar perante o devedor auxiliado.
v) Em face da matéria de facto provada na acção com o n.º 803/15.1... (e nos presentes autos) é forçoso concluir que foi o Réu Médico quem praticou todos os actos médicos (diagnóstico, plano de tratamento, cirurgia, etc.), com total autonomia técnica, e que foi ele quem não utilizou os meios mais adequados às específicas necessidades de BB, de acordo com as boas práticas médicas, sendo desprovida de fundamento a alegada inexistência de prova da violação de deveres deontológicos e das Leges Artis por parte do Réu Médico.
w) No douto Acórdão sob recurso, não é mencionada a concessão à A. Clínica de um qualquer direito de regresso.
x) A responsabilidade prevista no artigo 800.º do Código Civil não é solidária, pelo que, nunca se justificaria a aplicação do disposto no artigo 524.º do mesmo código.
y) Nos presente autos esteve unicamente em causa a verificação dos pressupostos de que dependia a responsabilidade contratual do Réu Médico perante a A. Clínica.
z) Bem andou o douto Acórdão sob recurso quando não fez a aplicação dos artigos 524.º e 800.º do Código civil, mas, antes, e unicamente, a aplicação do artigo 798.º do mesmo código.
aa) Por força do disposto no artigo 21.º do Estatuto da Ordem dos Médicos Dentistas (Lei 124/2015 de 02 de Setembro) o exercício da profissão de médico dentista depende da subscrição de um seguro de responsabilidade civil profissional, adequado à natureza e à dimensão do risco.
bb) A adequação à natureza e à dimensão do risco, obriga a que o seguro de responsabilidade civil profissional cubra aquele que é o risco mais comum e relevante na actividade de um médico dentista, a responsabilidade pelos actos médicos praticados sobre os seus pacientes.
cc) Admitir a contratação de um seguro de responsabilidade civil profissional que não contemplasse a responsabilidade contratual do médico dentista perante os seus pacientes, sempre constituiria uma grosseira e inadmissível violação do artigo 21.º do Estatuto da Ordem dos Médicos Dentistas.
dd) O seguro contratado pelo Réu Médico à Recorrente Seguradora, cumpre o escopo da lei e cobre tanto a responsabilidade contratual como a responsabilidade contratual, e desde logo, como perfeitamente expresso nas condições especiais da apólice de seguro “Objecto, âmbito e garantia do contrato” (…) “b) por danos causados a clientes ou terceiros em consequência de actos ou omissões negligentes cometidos pelo Segurado no exercício da sua profissão”.
ee) A referência na apólice a clientes e terceiros constitui uma evidente alusão à dicotomia entre responsabilidade contratual (clientes) e responsabilidade extracontratual (terceiros), sendo de concluir que o seguro cobre ambas.
ff) É assim desprovida de fundamento a alegação da Recorrente de que o seguro de responsabilidade civil profissional do Réu Médico não cobre a responsabilidade contratual do médico dentista.
gg) Nos termos das Condições Especiais da apólice de seguro subscrita pelo Réu Médico, a franquia incide sobre 10% do valor dos danos resultantes de lesões materiais, sendo que, o sinistro em causa nos presentes autos implicou lesões corporais e não lesões materiais.
hh) O douto Acórdão sob recurso não violou assim o disposto nos artigos 562.º e seguintes do Código Civil quanto entendeu, e bem, não imputar ao Réu Médico a suportação de qualquer franquia.
II – FACTOS PROVADOS.
Encontra-se provados nos autos que:
A) A A. é uma sociedade comercial que tem por objecto social o exercício da actividade de exploração de clínicas de medicina dentária.
B) O 1.º R. exerce a actividade de médico dentista.
C) A 3.ª R. é uma sociedade comercial que exerce a actividade seguradora.
D) No ano de 2005, o 1.º R. celebrou com a Axa Portugal um contrato de seguro de responsabilidade civil profissional para a actividade de médico dentista, titulado pela apólice n.º ............52.
E) O referido seguro cobre a responsabilidade civil profissional do 1.º R. até ao montante de € 600.000,00 e a responsabilidade civil de exploração até ao montante de € 300.000,00.
F) O referido seguro cobre a responsabilidade civil extracontratual que seja imputável ao 1.º R. no exercício da sua actividade profissional de médico dentista.
G) Em 16 de Janeiro de 2015, BB intentou contra a A. e 1.º R. a acção de processo comum com o n.º 803/15.1..., que correu termos na Comarca de Lisboa Norte – ... - Instância Central – Secção Cível – J....
H) No âmbito desse processo, foi requerida e admitida a intervenção acessória da 3.ª R.
I) Por douta sentença proferida em 15 de Julho de 2016, foi a ora A. condenada a pagar a BB:
a) A quantia de € 31.325,00, a título de indemnização por danos patrimoniais;
b) A quantia de € 15.000,00, a título de indemnização por danos não patrimoniais;
c) A quantia correspondente aos juros de mora vencidos e vincendos, calculados à taxa legal, contados a partir da data da citação, sendo a partir da data da sentença no que respeita ao montante relativo à indemnização.
J) Em sede de recurso de apelação, o Tribunal da Relação de Lisboa reduziu a condenação no pagamento da indemnização por danos não patrimoniais para o valor de € 10.000,00, mantendo no restante a sentença proferida em 1.ª instância.
L) O Supremo Tribunal de Justiça não admitiu a revista excepcional interposta.
M) No processo 803/15.1... resultou provado que:
- Em 2009, o A. (BB) tinha os dentes apodrecidos e amarelados, ao nível do maxilar superior e inferior;
- O que lhe causava dores aquando da mastigação;
-Dores ocasionais motivadas por cáries diversas;
- O A. (BB) sentia-se diminuído na sua auto-estima dado o estado visual dos seus dentes;
- No mesmo ano, o A. (BB) dirigiu-se à Clínica R. (ora A.), onde o médico CC, que aí prestava serviços, lhe fez alguns tratamentos;
- Aí foi diagnosticado ao A. (BB) cáries extensas em todas as peças dentárias;
- Bem como perda de suporte ósseo na maioria das peças dentárias;
- E ainda mordida cruzada sem contactos dentários, alguns entre ambas as arcadas;
- E ainda função mastigatória inexistente, com compromisso da função estética e fonética;
- Após os tratamentos referidos em 28.º), foi sugerido ao A. (BB) que a melhor solução seria arrancar toda a dentição do maxilar superior e inferior;
- E colocar implantes e prótese fixa sobre os mesmos;
- O mesmo médico alegou que os seus dentes abanavam e que tal se revelava o melhor tratamento;
- Sugeriu então ao A. (BB) o especialista seu Colega, AA, ora 1.º R.; que prestava serviços de estomatologia na Clínica R. (ora A.);
- O R. AA, a 19 de Maio de 2009, após ter observado a dentição do A. (BB), propôs-lhe um plano de tratamento faseado por dois momentos:
1º - Colocação de implantes nos maxilares inferior e superior;
2º - Colocação de prótese fixa sobre os implantes;
- O plano de tratamento e orçamento estimativo foi apresentado ao A.(BB) em 23 de Maio de 2009, tendo o A. (BB) declarado aceitá-lo;
- Foi-lhe reiterado pelo 1.º R. que seria a única solução para o seu caso, dado o estado de degradação e a qualidade da dentição;
- O 1.º R., como médico responsável da R. Clínica Médica Dentária de Santa Madalena, Lda. (ora A.) e o A. (BB) declararam acordar que pela primeira fase de colocação dos implantes nos maxilares superior e inferior pagaria o A. (BB) a quantia global de € 12.000,00 (€ 6.000,00 por cada maxilar);
- E que pela segunda fase de colocação da prótese fixa definitiva superior e inferior pagaria a quantia global de € 8.000,00 (€ 4.000,00 por cada maxilar);
- Na Clínica R. (ora A.) o A. (BB) já havia feito tratamentos dentários, a 3 de Fevereiro de 2009, mais precisamente uma endodontia unirradicular (23) e uma restauração provisória (23);
- O insucesso dos tratamentos referidos em 42.º) fez com que o A. (BB) declarasse aceitar os tratamentos referidos em 37.º);
- O A. (BB) iniciou os tratamentos no dia 29 de Julho de 2009 e 30 de Julho de 2009 com implante com função imediata (32, 34, 36, 42, 44 e 46);
- Com base na tomografia computorizada foi planeada cirurgia de colocação de seis implantes na arcada inferior para reabilitação com prótese imediata fixa, tendo a respetiva cirurgia sido realizada a 29 de Julho de 2009;
- Em tal cirurgia foi adotado o seguinte protocolo cirúrgico:
1 – Medicação pré-operatória: uma hora antes da cirurgia 1g de amoxicilina; 30mg de deflazacorte; 10mg de midazolan;
2 – Anestesia local com articaína 2% epinefrina 1:100000;
3 –Exodontia de todas as peças dentárias remanescentes;
4 –Regularização do rebordo alveolar com alveolótomo e broca multilaminada;
5 – Colocação de 6 implantes, 4 deles intermentonianos e 2 na região do 36 e 46;
6 –Todos os implantes foram instalados com estabilidade primária com torque superior a 40N/cm2 (40 Newton por centímetro quadrado);
7 – Realização de provisionalização fixa imediata;
8 – Não existiram intercorrências trans-cirúrgicas ou pós-cirúrgicas;
9 –Foram dadas as indicações pós-operatórias e de manutenção da prótese fixa;
10 –Fez-se ortopantomografia final para comprovar todos estes factos bem como o nível ósseo correto.
- Com base na TAC superior foi planeada a instalação de 4 implantes superiores (pela técnica all-on-four), tendo a respetiva cirurgia sido realizada em 11 de Novembro de 2009, com implante com função imediata (12, 15, 23 e 25);
- Quanto a esta última cirurgia, foi adotado o seguinte protocolo cirúrgico:
1. Medicação pré-operatória: 1 hora antes da cirurgia 1g de amoxicilina; 30g de deflazacorte; 10mg de midazolan;
2. Anestesia local com articaína 2% epinefrina 1:100000;
3. Exodontia de todas as peças dentárias remanescentes; Regularização do rebordo alveolar com alveolótomo e broca multilaminada;
4. Colocação de 4 implantes;
5. Os implantes foram instalados com estabilidade primária inferior a 30N/cm2;
6. Realização de provisionalização removível imediata;
7. Não existiram intercorrências trans-cirúrgicas ou pós-cirúrgicas;
8. Foram dadas as indicações pós-operatórias;
9. Realização de ortopantomografia final para comprovar todos estes factos bem como o nível ósseo correto;
- As cirurgias referidas em 45.º) e 47.º) tiveram manutenção após oito dias para a remoção de sutura e vigilância da cicatrização, em consulta realizada para o efeito;
- Em ambas as cirurgias os pós-operatórios ocorreram sem problemas;
- Continuou os tratamentos no dia 8 de Setembro de 2010 com colocação de prótese híbrida APS74 Implantes Barra Titânio (35);
- Na consulta então realizada foi diagnosticada perda de osteointegração dos implantes na posição 36 e 46;
- E realizada ortopantomografia e raio X apical de todos os implantes e confirmada a osteointegração dos implantes superiores;
- Tendo sido colocados pilares multiunits nos implantes superiores;
- Foi planeada a explantação dos implantes 36 e 46, tendo sido instalados novos implantes em posições adjacentes no dia 21 de janeiro de 2011;
- Foi planeada prótese provisória fixa superior;
- O A. (BB) continuou os tratamentos ainda no dia 15 de Setembro de 2010 com colocação de prótese híbrida AP S/4 Implantes Barra Titânio (25);
- No dia 20 de Julho de 2011, foi terminado o tratamento, data em que foi colocada a última barra de implantes;
- No dia 18 de novembro de 2011, o A. (BB) compareceu na clínica da R. (ora A.) com a prótese desapertada;
- Foi feita nova limpeza da prótese;
- O A. (BB) pagou à Clínica R. (ora A.) a quantia total de € 20.000,00;
- No intervalo entre os tratamentos o A. (BB) foi a consultas de acompanhamento, em datas concretamente não apuradas;
- O A. (BB) não compareceu a algumas consultas, em data concretamente não apurada, por motivos profissionais, tendo a irmã daquele, a seu pedido, procedido a novo reagendamento junto da R. (ora A.);
- Cerca de um mês após a colocação da última barra de implantes, o A. (BB) tinha a sensação de que os dentes estavam a cair;
- Queixou-se ao médico, que apertou os mesmos;
- Semanas depois, em data concretamente não apurada, os dentes do A. (BB) foram novamente apertados;
- O A. (BB) não conseguia mastigar e trincar, apenas conseguia comer alimentos triturados;
- E queixou-se desse facto ao médico;
- Este foi-lhe sempre dizendo que isso era normal e que era o resultado de ter umas gengivas muito sensíveis, “uns ossos muito moles”, mas logo que os maxilares se adaptassem a situação melhoraria;
- O A. (BB) continuava sem conseguir comer sólidos pois tinha a sensação de que se o fizesse os dentes lhe caiam;
- O A. (BB) estava permanentemente enervado, triste e desorientado quanto ao seu estado físico e anímico;
- No exercício da sua atividade profissional de transportes internacionais, o A. (BB) conduz veículo pesados;
- Durante cerca de 4 anos, o A. (BB) não conseguiu comer um bife, uma sandes ou trincar uma peça de fruta;
- Facto que associado à sua actividade de condução de veículos pesados foi doloroso para o A. (BB);
- Tinha dias de chorar a conduzir, tendo muita dificuldade em arranjar pratos alternativos durante as viagens;
- E para além das dores chegou a passar fome;
- No final de 2011, numa das suas viagens de trabalho ao estrangeiro, o A. (BB) constatou que a maior parte dos implantes estavam soltos;
- Mal regressou da viagem dirigiu-se à Clínica R. (ora A.), onde foi observado pelo segundo R. (ora 1.º R.), que os voltou a apertar, na data referida em 59.º);
- Dizendo ao A. (BB) que tudo iria ficar bem com o decorrer do tempo,
- No dia 27 de janeiro de 2012, o A. (BB) compareceu na Clínica R. (ora A.), reiterando as queixas anteriormente apresentadas, nomeadamente ter dor e mobilidade da prótese superior;
- Foi então diagnosticada perda da osteointegração de todos os implantes superiores;
- E o A. (BB) foi indicado para a remoção da prótese superior e dos implantes;
- O R. AA disse ao A. (BB) que não havia mais nada a fazer;
- Que não era possível continuar a apertar os implantes e que a única alternativa seria agora retirá-los todos e colocar próteses amovíveis, na medida em que as gengivas e os seus ossos eram muito frágeis;
- Propondo ao A. (BB) datas para a retirada dos implantes com vista à colocação de uma prótese amovível;
- O A. (BB) foi ouvir outras opiniões médicas, designadamente na Alemanha, aquando de uma das suas viagens de trabalho;
- Foi dito ao A. (BB) que a situação em que se encontravam os seus dentes se devia a um trabalho mal executado, tendo-lhe sido explicado que as arcadas dentárias funcionavam como uma casa e se não tinham caboucos para suportar os pilares (implantes) que ali foram implantados estes acabariam por ruir;
- O tempo foi passando e o mau estar do A. (BB) foi-se agravando, continuando a não conseguir mastigar sólidos e tendo frequentes crises de dores;
- Em Março de 2013, o A. (BB) foi a uma consulta médica na qual lhe foi dito, relativamente à arcada superior que ao ter sido implantada uma prótese fixa híbrida sobre quatro implantes orais não se teve em conta que o maxilar do A. (BB) não tinha camada óssea suficiente para o tratamento escolhido, razão pela qual tinha a sensação de que os dentes caiam se trincasse ou mastigasse alimentos sólidos;
- Com a colocação dos implantes e da placa híbrida os ossos foram ficando mais frágeis;
- O que veio a acontecer em relação a ambos os maxilares;
- O facto de o A. (BB) ter prognatismo, ou mordida cruzada, e não ter sido o mesmo corrigido aquando das intervenções efetuadas pelo R., associada ao facto de a camada óssea do maxilar superior não ser suficientemente densa, fez com que os implantes e as próteses, nos termos em que as mesmas foram realizadas pelo R., não se fixassem ao osso;
- E ainda que a deficiente fixação inicial se fosse agravando com o passar do tempo;
- A 18 de Setembro de 2013, o A. (BB) submeteu-se a novo tratamento na C..., Lda;
- Ao ser realizado o tratamento foi dado verificar que a arcada superior apresentava extensa reabsorção óssea horizontal, presença de lesões crónicas compatíveis com quadro de severa perda óssea e extensa pneumatização de ambos os seios maxilares;
- Na mesma data, a arcada inferior apresentava falha de estabilidade dos implantes, sendo os mesmos removidos com toque inferior a 20N;
- O rebordo ósseo encontrava-se com espessura reduzida e osso de baixa densidade para mandíbula, tipo III;
- No tratamento efetuado, na arcada superior, foi removida a prótese fixa híbrida sobre 4 implantes orais que apresentavam falha de osteointegração e após a remoção procedeu-se à elevação de retalho total na extensão completa do rebordo superior;
- Procedeu-se à remoção das lesões resultantes da perda óssea e à regularização do tecido ósseo remanescente, apresentando baixa densidade (tipo IV), e elevação bilateral dos seios maxilares e instalação imediata de implantes orais, sendo em número de dois para cada um dos seios maxilares, bem como à instalação de mais quatro implantes compreendidos entre as áreas dos pilares caninos;
- Os oito implantes instalados foram mantidos com parafusos de cobertura a fim de serem mantidos subgengivais e foi efetuado aloenxerto ósseo em um mix com osso autógeno, totalizando 4g de ambos, aproximadamente;
- Na arcada inferior, procedeu-se à remoção convencional da prótese fixa híbrida instalada sobre 6 implantes e iniciou-se o procedimento sob anestesia local;
- Elevou-se o retalho total na extensão do rebordo inferior e efetuou-se a remoção das lesões associadas e regularização do rebordo ósseo;
- Procedeu-se à instalação de seis implantes orais, sendo quatro entre mentonianos e um posterior de cada lado;
- Foi associado aloenxerto ósseo nas lesões aproximadamente 1,5g, e procedeu-se à sutura com fios reabsorvíveis;
- Pelo tratamento referido em 94.º) pagou o A. (BB) a quantia de € 31.325,00;
- Actualmente o A. (BB) consegue mastigar, trincar e até comer um bife;
- Os procedimentos de enxerto ósseo não são para fortalecimento do osso, mas para aumento do seu volume;
- O procedimento de enxerto ósseo realizado em setembro de 2013 deveu-se, não à falta de osso inicial, mas à reabsorção óssea que foi ocorrendo posteriormente;
- Com base na tomografia computorizada realizada a 1 de Julho de 2009, o R. AA concluiu que o osso dos maxilares do A. (BB) tinha espessura e altura suficiente para avançar com o tratamento sem necessidade de enxerto ósseo;
- Mas aquando da realização da cirurgia o R. constatou e comunicou ao A. (BB) que tinha um “osso mole” no maxilar superior”.
N) Com base nestes factos provados entendeu o douto tribunal que a ora A., através do 1.º R., se obrigou perante BB a realizar o tratamento de que este necessitava, visando a recuperação da sua função mastigatória, através da extracção dos dentes do maxilar superior e da mandíbula, bem como a colocação de implantes e de uma prótese fixa, mediante uma retribuição.
O) Mais entendeu o douto tribunal que os meios utilizados não tinham sido os mais adequados às específicas necessidades de BB, de acordo com as boas práticas médicas,
P) E que o facto de BB ter prognatismo, ou mordida cruzada, e não ter sido o mesmo corrigido aquando das intervenções efectuadas, associada ao facto de a camada óssea do maxilar superior não ser suficientemente densa, fez com que os implantes e as próteses, nos termos em que as mesmas foram realizadas, não se fixassem ao osso, resultando daí o insucesso do tratamento realizado e do resultado que se pretendia alcançar.
Q) Conclui assim o venerando tribunal que a ora A., através do 1.º R., para além de ter incumprido a obrigação a que se encontrava vinculada perante BB, a terá incumprido em desrespeito das boas práticas médicas ou leges artis, face às especificidades do caso concreto a tratar, tendo ficado demonstrada uma culpa efectiva.
R) Demonstrados que ficaram o incumprimento, a culpa, os danos e o nexo de causalidade, foi a ora A. condenada a indemnizar BB pelos seus danos patrimoniais e não patrimoniais.
S) Em Agosto do ano de 2004, o 1.º R. iniciou uma colaboração com a A. para a prestação de serviços de médico dentista em diferentes clínicas de que esta é proprietária, relação essa que se mantém até aos dias de hoje.
T) No âmbito dessa colaboração, o 1.º R. obrigou-se perante a A. a exercer a sua profissão de dentista em clientes desta, com total autonomia técnica mas no escrupuloso cumprimento de todas as boas práticas médicas ou leges artis.
U) A A. obrigou-se a disponibilizar ao 1.º R. um espaço adequado e todas as condições logísticas (recursos materiais e humanos) necessárias ao exercício por este da actividade de médico dentista.
V) A A. factura e recebe dos clientes finais o preço dos tratamentos e paga ao 1.º R. uma comissão correspondente a 40% do valor de cada serviço prestado,
X) Em Junho de 2008, por razões contabilísticas e fiscais, o 1.º R. criou a 2.ª R. para, através desta, continuar a exercer a sua actividade de médico dentista.
Z) Por esta altura, o 1.º R. solicitou à A. que emitisse em nome da 2.ª R. algumas facturas referentes às suas “comissões” pelos serviços prestados;
AA) Através de facturas ou de “recibos verdes” mantiveram-se inalteradas todas as condições acordadas entre A. e 1.º R..
BB) O 1.º R. continuou a trabalhar nas mesmas clínicas da A., com os mesmos pacientes, com as mesmas condições logísticas e com a mesma compensação (percentagem) pelos serviços prestados.
CC) A autora procedeu ao pagamento da indemnização no montante de € 45.516,70 ao lesado.
DD) Após a realização e conclusão dos seus tratamentos, em Julho de 2011, BB compareceu várias vezes na Clínica da A., onde se queixou do insucesso da intervenção e da qualidade dos serviços que lhe tinham sido prestados.
EE) Os funcionários da Clínica, mas também outros clientes que aguardavam a sua consulta, aperceberam-se das queixas apresentadas por BB.
FF) Nessas deslocações à clínica, BB foi atendido sem custos adicionais para si, mas com a afectação de recursos humanos e materiais da A.
GG) Realizaram-se reuniões para reunir papéis e falar com o advogado.
HH) As queixas apresentadas por BB na Clínica, a reclamação e a instauração por este de uma acção judicial com fundamento no insucesso de um tratamento efectuado foram tornadas públicas, chegando ao conhecimento de trabalhadores, clientes e fornecedores da A..
Não foi dado como provado que:
- Nos atendimentos feitos a BB e no acompanhamento da fase extrajudicial e judicial da reclamação, os funcionários da A. terão despendido não menos do que 20 horas do seu tempo de trabalho, implicando um custo para esta não inferior a 1.000 Euros.
- O conhecimento desse insucesso foi apto a criar no espírito de alguns clientes da A. dúvidas sobre a qualidade dos serviços prestados nas clínicas.
- O insucesso do tratamento efectuado pelo 1.º R. ao BB denegriu a imagem, a credibilidade e o prestígio da A..
- A A. interpelou o 1.º R. em Setembro de 2018 para que procedesse ao pagamento de uma indemnização pelos prejuízos que este lhe tinha causado;
- Em resposta, o 1.º R., reconhecendo os prejuízos causados e a sua responsabilidade perante a A., veio informar que, na data do sinistro, a sua responsabilidade civil profissional se encontrava validamente transferida para a AXA Portugal (antecessora da 3.ª R.), através da apólice ............52.
- Informou ainda o 1.º R. que tinha feito a participação do sinistro à 3.ª R. em 21 de Setembro de 2018.
- Apenas em 23 de Maio de 2019 a 3.ª R. respondeu ao 1.º R., declinado o sinistro porquanto:
(i) O tribunal tinha decido pela responsabilidade contratual da Clínica;
(ii) O tribunal tinha aplicado o artigo 800.º do Código Civil na qualidade de trabalhador da Clínica;
(iii) Isentando de qualquer culpa o seu segurado (1.º R.).
- Em 24 de Junho de 2019, a A. fez directamente uma participação do sinistro à 3.ª R., aproveitando a ocasião para esclarecer que:
(i) A sentença proferida no processo 803/15.1... não decidiu sobre a responsabilidade extracontratual do 1.º R. perante o lesado;
(ii) A sentença proferida no processo 803/15.1... não se pronunciou sobre a responsabilidade contratual do 1.º R. perante a A. ou perante o lesado;
(iii) O 1.º R. não é, nem nunca foi (contrariamente ao afirmado) trabalhador da A.;
(iv) A aplicação do artigo 800.º do Código Civil na sentença não pressupõe o reconhecimento de qualquer relação laboral (aliás, os factos provados expressamente reconhecem a prestação de serviços);
(v) A responsabilidade contratual da A. perante o lesado não afasta a responsabilidade contratual por prestação de serviços do médico perante a Clínica.
- A 3.ª R. não respondeu à A.
III – QUESTÕES JURÍDICAS ESSENCIAIS DE QUE CUMPRE CONHECER:
1 – Arguição de nulidade do acórdão recorrido ao abrigo do disposto no artigo 615º, nº 1, alínea b), do Código de Processo Civil. Oposição entre os fundamentos e a decisão com base neles extraída.
2 – Verificação e alcance da autoridade do caso julgado formado pela decisão judicial anterior, transitada em julgado. Trânsito em julgado do saneador que conheceu desta matéria.
3 – Apólice do contrato de seguro. Invocação exclusão de cobertura prevista no artigo 5º, alínea n). Dedução de franquia.
4 – Invocado incumprimento contratual do Réu dentista perante a A. relativamente ao contrato de prestação de serviço firmado entre ambos. Natureza do direito exercido pela A. contra o Réu dentista no quadro do disposto no artigo 800º do Código Civil. Dos seus pressupostos. Necessidade da demonstração, clara e inequívoca, pela A. de violação pelo Réu médico dentista das leges artis a que se encontrava profissionalmente adstrito, enquanto causa de incumprimento dos deveres que sobre o mesmo impediam no âmbito do referido contrato de prestação de serviço.
Passemos à sua análise:
1 – Arguição de nulidade do acórdão recorrido ao abrigo do disposto no artigo 615º, nº 1, alínea b), do Código de Processo Civil. Oposição entre os fundamentos e a decisão com base neles extraída.
Sustentou a recorrente que o acórdão recorrido é contraditório nos seus termos, pois embora reconheça o imperativo da força de caso julgado e que este importa que a mesma questão jurídica decidida entre as mesmas partes, como é o caso, se imponha em subsequentes processos, claramente desrespeita o princípio que enuncia, ao decidir pela imputação de culpa ao réu dentista, já dela ilibado na anterior decisão.
Apreciando:
O vício previsto na alínea c) do nº 1 do artigo 615º do Código de Processo Civil é de natureza estritamente formal e não de julgamento.
O que o preceito prevê é uma verdadeira colisão no plano lógico e formal entre a ratio decidendi e a decisão final que nessa sequência foi proferida (de sentido inexplicavelmente oposto e inconciliável entre si).
Tal não sucede na situação sub judice.
O argumentário perfilhado no acórdão recorrido é coerente e compreensível do ponto de vista formal, sendo naturalmente discutível, por controvertido, não assumindo, todavia, qualquer tipo de ilogismo.
Basicamente, considerou-se que a responsabilização exclusiva (na anterior acção judicial) da ora A. Clínica fundou-se na actuação do profissional médico dentista actuando na exclusiva qualidade de auxiliar na execução da prestação devida, nos termos gerais do artigo 800º do Código Civil.
Por este motivo, entendeu o acórdão recorrido que, na economia da relação de natureza contratual (contrato de prestação de serviço) entre a Clínica e o médico dentista que aí desenvolve a sua actividade profissional, nada obsta ao apuramento da sua (i)licitude da sua conduta, averiguando-se nesta sede do (in)cumprimento pela sua parte das leges artis a que se encontrava profissionalmente adstrito, sendo certo que a demandante alegou que foi esse concreto comportamento de cariz negligente que causalmente a obrigou a ter de suportar a indemnização paga ao seu paciente/cliente/lesado na sequência da decisão judicial, transitada em julgado, que a tal obrigou.
Ou seja, recusou por isso determinantemente a verificação da excepção material da autoridade de caso julgado, não obstante haver simultaneamente entendido que os factos apurados na anterior acção tinham relevo para a discussão da causa (o que a ora recorrente, por seu turno, aceitou não impugnando a decisão de facto proferida nos presentes autos, antes a aceitando por acordo).
Não obstante a legítima discordância de fundo da recorrente quanto às referidas conclusões jurídicas perfilhadas no acórdão recorrido, é inegável que nos encontramos aqui de pleno no âmbito da discussão do mérito da causa e não perante a existência de vícios de natureza meramente formal da peça decisória.
Ou seja, verifica-se tão somente uma discordância do ponto de vista substantivo relativamente a esta temática e não, num plano completamente distinto, qualquer vício formal quanto ao efectivamente decidido, em termos finais, no acórdão em apreço.
Conforme enfatiza Abrantes Geraldes in “Recursos em Processo Civil” Almedina, 2024, 8ª edição, a página 251:
“É frequente a enunciação nas alegações de recurso de nulidades da sentença, numa tendência que se instalou (e que a racionalidade não consegue explicar), desviando-se do verdadeiro objecto do recurso que deve ser centrado nos aspectos de ordem substancial.
Com não menos frequência, a arguição de nulidades da sentença ou do acórdão da Relação acaba por ser indeferida, e com toda a justeza, dado que é corrente confundir-se o inconformismo quanto ao teor da sentença com alguns dos vícios que determinam tais nulidades previstas no artigo 615º, nº 1”.
Pelo que improcede a nulidade invocada.
(Sobre esta matéria em geral vide Abrantes Geraldes in “Recursos em Processo Civil”, Almedina, Ano 2024, 8ª edição, a páginas 251 a 252; José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre in “Código de Processo Civil Anotado, Volume II”, Almedina 2019, 4ª edição, a páginas 734 a 737; o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 3 de Março de 2021 (relatora Leonor Rodrigues), proferido no processo nº 3157/17.8T8VFX.L1.S1, publicado in www.dgsi.pt.; o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 9 de Maio de 2024 (relator Fernando Baptista), proferido no processo nº 20769/18.5T8PRT.P1.S1, publicado in www.dgsi.pt.; o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14 de Maio de 2024 (relator Luís Correia de Mendonça), proferido no processo nº 1083/16.7T8VNG.P2.S1, publicado in www.dgsi.pt.; o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17 de Abril de 2024 (relator Oliveira Abreu), proferido no processo nº 420/21.7YHLSB.L1.S1, publicado in www.dgsi.pt.; o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 25 de Janeiro de 2025 (relatora Catarina Serra), proferido no processo nº 57/16.2T8FAL.E1.S2, publicado in www.dgsi.pt e o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 9 de Março de 2022 (relator Isaías Pádua), proferido no processo nº 4345/12.9TCLRS-A.L1.S1, publicado in www.dgsi.pt).
2 – Verificação e alcance da autoridade do caso julgado formado pela decisão judicial anterior, transitada em julgado. Trânsito em julgado do saneador que conheceu desta matéria.
Foi oportunamente proferido despacho saneador nos seguintes termos:
“Da invocada excepção de caso julgado –
Ageas Portugal – Companhia de Seguros, S.A. ré nestes autos veio em sede de contestação alegar mostrar-se configurada a excepção de caso julgado ou o efeito de caso julgado porquanto na acção que correu termos no Juízo Central Cível de Loures e onde a ora autora foi condenada a pagar as quantias cujo reembolso pretende obter nesta acção, o aí réu e segurado, e réu nesta acção, foi absolvido do pedido por se haver entendido que não lhe era de imputar qualquer comportamento susceptível de o constituir em responsabilidade civil, pois apenas executou, a mando da clinica ora autora o trabalho que aquela contratou com o então autor.
Respondendo à invocada excepção a autora alega que a mesma não se verifica porquanto nestes autos a causa de pedir assenta na responsabilidade contratual do réu, enquanto na outra acção foi apreciada e decidida a questão da responsabilidade extracontratual do réu perante o lesado, sendo diferentes o pedido e a causa de pedir.
De harmonia com o preceituado nos artigos 580º nº 1 e 581º nº 1, do CPC, a excepção de caso julgado tem como pressuposto a repetição de uma causa decidida por sentença que já não admite recurso ordinário, repetindo-se a causa quando se propõe uma acção idêntica a outra quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir.
O nº 2 do citado art. 580º do CPC refere que a excepção de caso julgado tem como objectivo evitar que o tribunal seja colocado na alternativa de contradizer ou de reproduzir uma decisão anterior.
Por seu turno o art. 581º do CPC estatui sobre os requisitos da litispendência, nos seus nºs 2 a 4:
“2. Há identidade de sujeitos quando as partes são as mesmas sob o ponto de vista da sua qualidade jurídica.
3. Há identidade de pedido quando numa e noutra causa se pretende obter o mesmo efeito jurídico.
4. Há identidade de causa de pedir quando a pretensão deduzida nas duas acções procede do mesmo facto jurídico. (…)”.
Estabelece a lei uma tríplice identidade traduzida:
- na identidade dos sujeitos, que tem a ver com a posição das partes quanto à relação jurídica material, ou seja, a circunstância de serem portadores do mesmo interesse substancial independentemente da espécie processual em que seja formulada;
- na identidade do pedido, que implica que seja o mesmo direito subjectivo em causa, bastando a coincidência do objectivo fundamental de que depende o êxito, total ou parcial, de cada uma das pretensões.
- na identidade da causa de pedir, que se objectiva em a pretensão deduzida nas duas acções proceder do mesmo facto jurídico.
Feito este excurso teórico sobre o tema do caso julgado, apreciemos agora a questão posta a este tribunal no âmbito deste processo.
Desde já podemos afirmar que a invocada excepção não se verifica.
Senão vejamos.
A causa de pedir é distinta; nesta acção discute-se a responsabilidade contratual do réu e da 2ª ré perante a clinica autora. Na anterior acção a causa de pedir radicava na responsabilidade extracontratual do aí réu perante o lesado assente na alegação daquele lesado de que o réu não agiu de acordo com as leges artis.
O pedido é igualmente distinto, não estando em causa o mesmo direito subjectivo.
Nem sequer se verifica a identidade de sujeitos, porquanto os sujeitos de uma e outra acção não são portadores do mesmo interesse substancial, numa e noutra acção.
Na verdade, trata-se de acções diferentes, sem conexão e sem qualquer nexo de prejudicialidade.
O que também permite afastar a consideração do efeito de caso julgado.
Costuma definir-se o caso julgado o caso julgado material como “[a] vinculação que produzem determinados resoluções judiciais firmes, normalmente as sentenças sobre o fundo, que se concretiza no dever que incumbe ao órgão jurisdicional que conhece de um novo processo de se abster de ditar uma nova resolução sobre o fundo da questão litigiosa, quando esta seja idêntica á que já foi decidida na resolução em que se produzia o caso julgado (efeito negativo ou excludente); ou, no dever de ater-se ao que resulte desta e tomá-la como pressuposto da sua decisão, quando se apresente como condicionante ou prejudicial da questão que constitui o objecto do novo processo (efeito positivo ou prejudicial) ”- Pablo Seara “La Extensión Subjetiva de la cosa juzgada en Processo Civil”, pg. 47.
Com, ou através da constituição do caso julgado, pretende-se prover à certeza e à paz jurídica.
Os efeitos do caso julgado podem ser vistos numa dupla perspectiva, tratando-se de realidades distintas: a excepção de caso julgado, excepção dilatória a que alude o art. 577º, alínea i) do Cód. de Processo Civil, aferindo-se pela identidade dos sujeitos, pedido e causa de pedir (art. 581º), pressupondo a repetição de uma causa; trata-se de excepção de conhecimento oficioso e dá origem à absolvição da instância; e a autoridade do caso julgado, que importa a aceitação de decisão proferida anteriormente, noutro processo, cujo conteúdo importa ao presente e que se lhe impõe, assim obstando que uma determinada situação jurídica ou relação seja novamente apreciada, considerando parte da jurisprudência e doutrina que, nesta acepção, não se exige a tríplice identidade.
O Professor Castro Mendes escreveu em “Limites Objectivos do Caso Julgado em Processo Civil” pg. 38 a 44, que: “[toda] a eficácia do caso julgado – não apenas a fundamentação da respectiva excepção – pode traduzir-se em duas ordens de efeitos: pode impedir a colocação no futuro da questão decidia ou pode impedir a adopção no futuro da solução que a decidiu. Os fenómenos são diferentes e não apenas nos fundamentos - são formas distintas de eficácia do caso julgado. Com efeito, tal eficácia pode consistir num impedimento, proibição de que volte a suscitar-se no futuro a questão decidida - e estamos perante aquilo a que nós chamamos função negativa do caso julgado; ou pode consistir na vinculação a certa solução - e estamos perante a função positiva.”
Na distinção que faz da eficácia directa e eficácia reflexa do caso julgado, a que, correntemente, costuma designar-se por excepção de caso julgado e autoridade, refere este preclaro professor que, no plano objectivo, “[se] não é preciso entre os dois processos identidade de objecto (pois justamente se pressupõe que a questão foi num thema decidendum seja no outro questão de outra índole, maxime fundamental) é preciso que a questão decidida se renove no segundo processo em termos idênticos”, para adiante manifestar a sua preferência por um outro tipo de distinção: “efeitos de caso julgado quando a questão julgada é objecto de outro processo, seu thema decidendum; efeitos do caso julgado quando a questão julgada desempenha outro papel, designadamente, o de questão fundamental.
Como refere o Prof. Lebre de Freitas (Código de Processo Civil, Anotado, 2º, 325), “a excepção de caso julgado não se confunde com a autoridade do caso julgado; pela excepção visa-se o efeito negativo da inadmissibilidade da segunda acção, constituindo-se o caso julgado em obstáculo a nova decisão de mérito; a autoridade do caso julgado tem antes o efeito positivo de impor a primeira posição, como pressuposto indiscutível da primeira decisão de mérito, Este efeito positivo assenta numa relação de prejudicialidade: o objecto da primeira decisão constitui questão prejudicial na segunda acção, como pressuposto necessário da decisão de mérito que nesta há-de ser proferida”.
Ora, como resulta do que se deixou dito supra, não existe qualquer identidade, conexão ou relação de prejudicialidade entre as duas acções.
São acções distintas em que o único elo de ligação se traduz na análise da imputada actuação do réu considerando, por um lado, um pedido assente em responsabilidade civil extracontratual por negligência médica e por outro lado, determinar se a mesma actuação pode tornar o réu incurso em responsabilidade contratual, em razão do incumprimento de obrigações emergentes do contrato de prestação de serviços celebrado entre a autora e o réu.
Assim, e pelo exposto, julgam-se improcedentes as invocadas excepções”.
(sublinhado nosso)
Acontece que a Ré seguradora não recorreu (autonomamente) da decisão de improcedência da excepção material de autoridade de caso julgado, como poderia perfeitamente tê-lo feito, o que significa que essa mesma decisão sobre a (não) verificação da autoridade de caso julgado transitou em julgado, não podendo assim ser agora reapreciada nos presentes autos.
(Neste preciso sentido, vide acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14 de Janeiro de 2021 (relator Abrantes Geraldes), proferido no processo nº 2104/12.8TBALM.L1.S1, publicado in www.dgsi., onde pode ler-se:
“No que concerne à oportunidade de interposição do recurso de apelação, a matéria era regulada pelo art. 691º do CPC de 1961, cujo nº 1 prescrevia a admissibilidade de interposição de recurso de apelação do despacho saneador que pusesse termo ao processo (por razões de mérito ou de forma).
Deste modo, reportados à figura do caso julgado, admitiria recurso de apelação (imediato) o despacho saneador que julgasse extinta a instância por verificação da exceção dilatória de caso julgado (art. 691º, nº 1, do CPC de 1961, paralelo ao atual art. 644º, nº 1, al. a)).
Também admitia recurso de apelação o despacho saneador em que fosse apreciado o mérito da causa, designadamente aquele que porventura incidisse sobre o pedido ou sobre alguma exceção perentória, como seria a relacionada com a apreciação positiva ou negativa da autoridade de caso julgado.
Assim seria por que estaria em causa então a apreciação do mérito da causa, nos termos do art. 691º, nº 2, al. h), do CPC (paralelo ao atual art. 644º, nº 1, al. b)).
Deste modo, apenas nestes dois casos se admitiria a interposição imediata de recurso de apelação, no prazo de 30 dias (art. 685º, nº 1, do CPC de 1961). E, noutra perspetiva, era apenas nestes casos que a falta de interposição imediata de recurso de apelação inviabilizaria que a questão fosse suscitada no recurso de apelação interposto da sentença final”.
Pelo que não há lugar, exclusivamente por este motivo, ao conhecimento dessa matéria no presente acórdão, dado que, como se disse, a mesma ficou definitivamente resolvida no despacho saneador oportunamente proferido e transitado em julgado.
3 – Apólice do contrato de seguro. Invocação exclusão de cobertura prevista no artigo 5º, alínea n). Dedução de franquia.
Sustenta a recorrente que a apólice sub judice exclui do âmbito do contrato de seguro celebrado com o Réu médico dentista a sua hipotética responsabilidade uma vez que nos presentes autos toda a responsabilidade do médico segurado se discute no plano da responsabilidade contratual e não extracontratual.
Para além de que haveria sempre que deduzir a franquia contratualmente estabelecida.
Apreciando:
Referia-se, desde logo, que a proceder esta questão jurídica suscitada pela seguradora ficaria então imediatamente prejudicado o conhecimento de quaisquer outras matérias debatidas no processo, na medida em que esta Ré foi a única condenada nos autos (tendo-se a Clínica A. conformado com a absolvição do médico dentista Réu).
Vejamos:
É certo que a cláusula 5ª, alínea n), das Condições Gerais da presente apólice estabelece que:
“Salvo convenção expressa em contrário nas Condições Especiais e/ou Particulares e sem prejuízo de outras exclusões nelas constantes, o presente contrato não garante a responsabilidade civil emergente de:
(…) n) danos decorrentes de Responsabilidade Civil Contratual”;
Porém, do que se trata na situação sub judice é da celebração de um contrato de seguro que cobre especificamente a responsabilidade profissional de um médico dentista, nos seguintes termos:
“a garantia da responsabilidade civil extracontratual e a res ponsabilidade civil contratual,quando esta esteja expressamente prevista na Condição Especial contratada que, ao abrigo da lei civil, seja imputável ao Segurado enquanto na qualidade ou no exercício da actividade expressamente referida nas respectivas Condições Especiais e Parti culares”.
Aliás, consta a este propósito das “Condições Especiais” do presente contrato de seguro, respeitante à “Modalidade Ordens Profissionais, Actividades Dentistas OMD”:
“Nos termos desta Condição Especial, o Segurador garante a responsabilidade civil do Segurado inerente ao exercício da profissão especificada na proposta de contrato nos seguintes termos:
(…)
b) por danos causados a clientes ou terceiros em consequência de actos ou omissões negligentes cometidos pelo Segurado no exercício da sua profissão”.
Trata-se aliás de um seguro de natureza obrigatória, conforme expressamente resulta do que se dispõe no artigo 21º do Estatuto da Ordem dos Médicos Dentistas, aprovado pela Lei nº 124/2015, de 2 de Setembro.
Logo, afigura-se-nos claro que presente a apólice cobre claramente a responsabilidade que é exigida ao Ré médico dentista, no desenvolvimento específico da sua actividade profissional, que tem no fundo a ver com o incumprimento pela sua parte das leges artis, e relativamente aos danos provocados na esfera jurídica de terceiros, como é hipotética e alegadamente o caso da ora A.
Nem faria nenhum sentido que o médico dentista, relativamente ao mesmo tipo de conduta negligente que lhe é assacada em virtude exclusivamente do exercício da sua actividade profissional, deixasse de se encontrar contratualmente protegido pelo seguro de cariz obrigatório, que paga pontualmente, em função da mera circunstância de ser demandado pelo paciente lesado ou pela Clínica em relação à qual presta, por contrato com a mesma firmado, os seus serviços médicos.
Pelo que se concorda inteiramente neste ponto com o acórdão recorrido quando aí se afirma:
“Não só a situação dos autos não se encontra excluída nas alíneas a) a k) do art. 2.º das condições especiais, como a própria alínea b) faz referencia a clientes e terceiros, numa evidente alusão à dicotomia entre responsabilidade contratual (clientes) e responsabilidade extracontratual (terceiros), sendo de concluir que abrange ambas.
Em face do exposto, no pagamento da indemnização à Autora terá de ser responsabilizada a 3.ª Ré na medida em que aceitou a transferência da responsabilidade por actos e omissões cometidos pelo segurado no exercício da sua profissão de dentista”.
Quanto à questão da franquia:
Corroborando igualmente, e sem necessidade de outras considerações, o referido no acórdão recorrido:
“Não existe qualquer franquia a pagar pelo 1.º Réu na medida em que nos autos estão apenas em causa danos patrimoniais (e não lesões materiais, na definição dada pelo art. 1.º das Condições Gerais)”, referindo-se estas a: “ofensa que afecte coisa móvel, imóvel ou animal, provocando um dano”.
Assim sendo, não só o presente contrato de seguro abrange a responsabilidade contratual exigida pela Clínica A. ao médico dentista que, nos precisos termos do artigo 800º, nº 1, do Código Civil, utilizou para cumprimento da sua prestação, como inexiste fundamento para a dedução de qualquer tipo de franquia, improcedendo o recurso de revista nessa parte interposto pela seguradora.
4 – Invocado incumprimento contratual do Réu dentista perante a A. relativamente ao contrato de prestação de serviço firmado entre ambos. Natureza do direito exercido pela A. contra o Réu dentista no quadro do disposto no artigo 800º do Código Civil. Dos seus pressupostos. Necessidade da demonstração, clara e inequívoca, pela A. de violação pelo Réu médico dentista das leges artis a que se encontrava profissionalmente adstrito, enquanto causa de incumprimento dos deveres que sobre o mesmo impediam no âmbito do referido contrato de prestação de serviço.
A presente acção judicial tem por objecto específico a relação jurídica de natureza contratual estabelecida entre a Clínica Médica e Dentária de Santa Madalena, Lda., ora A., e o Réu médico dentista, fundando-se no alegado incumprimento dos deveres contratuais imputado pela primeira em relação ao segundo, assentes na violação por este dos seus deveres de natureza deontológica, no âmbito da inobservância das leges artis a que se encontrava vinculado.
Tudo está, portanto, em saber se os factos dados como assentes nestes autos demonstram efectivamente tal incumprimento de natureza contratual por parte do Réu médico dentista.
Encontra-se essencialmente provado nos autos que:
Em Agosto de 2004, o Réu médico dentista iniciou uma colaboração com a A. para a prestação de serviços de médico dentista em diferentes clínicas de que esta é proprietária, relação essa que se mantém até aos dias de hoje.
No âmbito dessa colaboração, obrigou-se perante a A. a exercer a sua profissão de dentista em clientes desta, com total autonomia técnica, mas no escrupuloso cumprimento de todas as boas práticas médicas ou leges artis.
A A. obrigou-se a disponibilizar ao 1.º R. um espaço adequado e todas as condições logísticas (recursos materiais e humanos) necessárias ao exercício por este da actividade de médico dentista.
A A. factura e recebe dos clientes finais o preço dos tratamentos e paga ao 1.º R. uma comissão correspondente a 40% (quarenta por cento) do valor de cada serviço prestado.
O R. médico dentista continuou a trabalhar nas mesmas clínicas da A., com os mesmos pacientes, com as mesmas condições logísticas e com a mesma compensação (percentagem) pelos serviços prestados.
Durante o ano de 2009, BB tinha os dentes apodrecidos e amarelados, ao nível do maxilar superior e inferior, o que lhe causava dores aquando da mastigação e dores ocasionais motivadas por cáries diversas.
Por esse motivo dirigiu-se à Clínica A. onde lhe foi diagnosticado cáries extensas em todas as peças dentárias; perda de suporte ósseo na maioria das peças dentárias; mordida cruzada sem contactos dentários, alguns entre ambas as arcadas e ainda função mastigatória inexistente, com compromisso da função estética e fonética.
Após os diversos tratamentos foi sugerido ao paciente que a melhor solução seria arrancar toda a dentição do maxilar superior e inferior e colocar implantes e prótese fixa sobre os mesmos.
Para o efeito, foi indicado ao paciente para a execução desses trabalhos o ora Réu médico dentista AA, que prestava serviços de estomatologia na Clínica A..
O R. AA, a 19 de Maio de 2009, após ter observado a dentição do paciente, propôs-lhe um plano de tratamento faseado por dois momentos:
1º - Colocação de implantes nos maxilares inferior e superior;
2º - Colocação de prótese fixa sobre os implantes;
Tal plano de tratamento e orçamento foi aceite pelo paciente.
Segundo o parecer do R. o mesmo que seria a única solução para o seu caso, dado o estado de degradação e a qualidade da dentição.
Os tratamentos iniciaram-se no dia 29 de Julho de 2009 e 30 de Julho de 2009 com implante com função imediata.
Com base na tomografia computorizada foi planeada cirurgia de colocação de seis implantes na arcada inferior para reabilitação com prótese imediata fixa, tendo a respetiva cirurgia sido realizada a 29 de Julho de 2009.
Com base na TAC superior foi planeada a instalação de 4 implantes superiores (pela técnica all-on-four), tendo a respetiva cirurgia sido realizada em 11 de Novembro de 2009, com implante com função imediata.
As cirurgias realizadas e os pós-operatórios ocorreram sem problemas.
Os tratamentos continuaram no dia 8 de Setembro de 2010 com colocação de prótese híbrida APS74 Implantes Barra Titânio.
Na consulta então realizada foi diagnosticada perda de osteointegração dos implantes na posição 36 e 46.
Realizada ortopantomografia e raio X apical de todos os implantes e confirmada a osteointegração dos implantes superiores.
Tendo sido colocados pilares multiunits nos implantes superiores.
Foi planeada a explantação dos implantes 36 e 46, tendo sido instalados novos implantes em posições adjacentes no dia 21 de janeiro de 2011.
Foi planeada prótese provisória fixa superior.
Os tratamentos prosseguiram ainda no dia 15 de Setembro de 2010 com colocação de prótese híbrida AP S/4 Implantes Barra Titânio.
No dia 20 de Julho de 2011, foi terminado o tratamento, data em que foi colocada a última barra de implantes.
No dia 18 de Novembro de 2011, o paciente compareceu na clínica com a prótese desapertada, tendo sido feita nova limpeza desta.
Cerca de um mês após a colocação da última barra de implantes, o paciente tinha a sensação de que os dentes estavam a cair.
Queixou-se ao médico, que apertou os mesmos.
Semanas depois, em data concretamente não apurada, os dentes do paciente foram novamente apertados.
O paciente não conseguia mastigar e trincar, apenas conseguia comer alimentos triturados, queixando-se desse facto ao médico.
Este foi-lhe sempre dizendo que isso era normal e que era o resultado de ter umas gengivas muito sensíveis, “uns ossos muito moles”, mas logo que os maxilares se adaptassem a situação melhoraria.
O paciente continuava sem conseguir comer sólidos pois tinha a sensação de que se o fizesse os dentes lhe caiam.
Durante cerca de quatro anos, o paciente não conseguiu comer um bife, uma sandes ou trincar uma peça de fruta.
No final de 2011, numa das suas viagens de trabalho ao estrangeiro, o paciente constatou que a maior parte dos implantes estavam soltos.
Mal regressou da viagem dirigiu-se à Clínica, onde foi observado pelo médico dentista que os voltou a apertar, dizendo-lhe que tudo iria ficar bem com o decorrer do tempo.
No dia 27 de Janeiro de 2012, o paciente compareceu na Clínica reiterando as queixas anteriormente apresentadas, nomeadamente ter dor e mobilidade da prótese superior.
Foi então diagnosticada perda da osteointegração de todos os implantes superiores.
E foi-lhe indicado a remoção da prótese superior e dos implantes.
O médico dentista AA disse ao A. que não havia mais nada a fazer e que não era possível continuar a apertar os implantes e que a única alternativa seria agora retirá-los todos e colocar próteses amovíveis, na medida em que as gengivas e os seus ossos eram muito frágeis, propondo datas para a retirada dos implantes com vista à colocação de uma prótese amovível.
O paciente foi ouvir outras opiniões médicas, designadamente na Alemanha, aquando de uma das suas viagens de trabalho.
Foi-lhe dito por terceiros que a situação em que se encontravam os seus dentes se devia a um “trabalho mal executado”, tendo-lhe sido explicado que “as arcadas dentárias funcionavam como uma casa e se não tinham caboucos para suportar os pilares (implantes) que ali foram implantados estes acabariam por ruir”.
Em Março de 2013, o paciente foi a uma consulta médica noutra Clínica na qual lhe foi dito, relativamente à arcada superior que ao ter sido implantada uma prótese fixa híbrida sobre quatro implantes orais não se teve em conta que o maxilar de BB não tinha camada óssea suficiente para o tratamento escolhido, razão pela qual tinha a sensação de que os dentes caiam se trincasse ou mastigasse alimentos sólidos e que com a colocação dos implantes e da placa híbrida os ossos foram ficando mais frágeis, em relação a ambos os maxilares.
O facto de o paciente ter prognatismo, ou mordida cruzada, e não ter sido o mesmo corrigido aquando das intervenções efetuadas pelo R., associada ao facto de a camada óssea do maxilar superior não ser suficientemente densa, fez com que os implantes e as próteses, nos termos em que as mesmas foram realizadas pelo R., não se fixassem ao osso.
Bem como que a deficiente fixação inicial se fosse agravando com o passar do tempo.
A 18 de Setembro de 2013, o paciente submeteu-se a novo tratamento na C..., Lda
Ao ser realizado o tratamento foi dado verificar que a arcada superior apresentava extensa reabsorção óssea horizontal, presença de lesões crónicas compatíveis com quadro de severa perda óssea e extensa pneumatização de ambos os seios maxilares.
Na mesma data, a arcada inferior apresentava falha de estabilidade dos implantes, sendo os mesmos removidos com toque inferior a 20N.
O rebordo ósseo encontrava-se com espessura reduzida e osso de baixa densidade para mandíbula, tipo III;
No tratamento efetuado, na arcada superior, foi removida a prótese fixa híbrida sobre 4 implantes orais que apresentavam falha de osteointegração e após a remoção procedeu-se à elevação de retalho total na extensão completa do rebordo superior.
Procedeu-se à remoção das lesões resultantes da perda óssea e à regularização do tecido ósseo remanescente, apresentando baixa densidade (tipo IV), e elevação bilateral dos seios maxilares e instalação imediata de implantes orais, sendo em número de dois para cada um dos seios maxilares, bem como à instalação de mais quatro implantes compreendidos entre as áreas dos pilares caninos.
Os oito implantes instalados foram mantidos com parafusos de cobertura a fim de serem mantidos subgengivais e foi efetuado aloenxerto ósseo em um mix com osso autógeno, totalizando 4g de ambos, aproximadamente.
Na arcada inferior, procedeu-se à remoção convencional da prótese fixa híbrida instalada sobre 6 implantes e iniciou-se o procedimento sob anestesia local.
Elevou-se o retalho total na extensão do rebordo inferior e efetuou-se a remoção das lesões associadas e regularização do rebordo ósseo;
Procedeu-se à instalação de seis implantes orais, sendo quatro entre mentonianos e um posterior de cada lado;
Foi associado aloenxerto ósseo nas lesões aproximadamente 1,5g, e procedeu-se à sutura com fios reabsorvíveis.
Actualmente o paciente consegue mastigar, trincar e até comer um bife.
Os procedimentos de enxerto ósseo não são para fortalecimento do osso, mas para aumento do seu volume.
O procedimento de enxerto ósseo realizado em setembro de 2013 deveu-se, não à falta de osso inicial, mas à reabsorção óssea que foi ocorrendo posteriormente.
Com base na tomografia computorizada realizada a 1 de Julho de 2009, o médico dentista AA concluiu que o osso dos maxilares tinha espessura e altura suficiente para avançar com o tratamento sem necessidade de enxerto ósseo.
Mas aquando da realização da cirurgia o R. constatou e comunicou ao paciente que tinha um “osso mole” no maxilar superior.
Após a realização e conclusão dos seus tratamentos, em Julho de 2011, BB compareceu várias vezes na Clínica da A., onde se queixou do insucesso da intervenção e da qualidade dos serviços que lhe tinham sido prestados.
Os funcionários da Clínica, mas também outros clientes que aguardavam a sua consulta, aperceberam-se das queixas apresentadas por BB.
Nessas deslocações à clínica, BB foi atendido sem custos adicionais para si, mas com a afectação de recursos humanos e materiais da A.
Realizaram-se reuniões para reunir papéis e falar com o advogado.
As queixas apresentadas pelo paciente na Clínica, a reclamação e a instauração por este de uma acção judicial com fundamento no insucesso de um tratamento efectuado foram tornadas públicas, chegando ao conhecimento de trabalhadores, clientes e fornecedores da A..
Apreciando:
A A. Clínica Médica e Dentária de Santa Madalena, Lda., foi a (única) condenada em acção judicial anteriormente instaurada pelo paciente e lesado (que o fez também, na altura, contra o R. médico dentista e sua seguradora) e que teve como fundamento o insucesso do tratamento levado a efeito pelo dito médico dentista que para aquela trabalhava em regime de prestação de serviço, tendo em conta que do contrato celebrado com o paciente resultava para a Clínica uma obrigação de resultado (e não apenas de meios).
(Relativamente à justificação que está na base da responsabilidade do devedor pelos auxiliares de cumprimento, vide Maria da Graça Trigo, in “Responsabilidade Civil Delitual por Factos de Terceiro”, Coimbra Editora, 2009, a página 239).
Tanto nessa acção judicial como no presente pleito a conduta assumida pelo médico dentista interveniente é unicamente perspectivada atenta a sua especial qualidade de “pessoa utilizada para o cumprimento da obrigação”, nos termos gerais do artigo 800º, nº 1, do Código Civil.
Transitada em julgado a decisão proferida no anterior processo, a A. Clínica Médica e Dentária de Santa Madalena, Lda., procedeu voluntariamente ao pagamento ao paciente/lesado do montante em que fora condenada e instaurou nova acção judicial, agora contra o médico dentista interveniente e respectiva seguradora.
Fê-lo com especial fundamento no disposto no artigo 1161º, ex vi artigo 1156º, ambos do Código Civil, devidamente adaptados à natureza da actividade de médico dentista, enquanto profissional liberal que goza de plena autonomia técnica no desempenho da sua prestação.
Cumpre esclarecer, desde logo, que, contrariamente ao afirmado na contestação e nas alegações de recurso apresentados pela seguradora, esta nova demanda não se destina ao exercício de qualquer tipo de direito de regresso a exercer pela Clínica contra o médico dentista.
Com efeito, o direito de regresso da Clínica pelos actos dos seus representantes ou auxiliares só poderia ocorrer nas situações de condenação em obrigações solidárias.
De acordo com os princípios gerais que regem o cumprimento dos contratos, nos termos os artigos 798.º e seguintes do Código Civil, o cumprimento defeituoso das obrigações decorrentes do contrato de prestação de serviços responsabilizou a clínica dentária perante o paciente BB, por força do disposto no artigo 800.º, n.º 1, do Código Civil.
Contudo, no plano das relações internas entre a clínica dentária e o médico dentista que actuou como auxiliar na orgânica da clínica dentária, ter-se-á alegadamente verificado o incumprimento contratual deste perante a clínica dentária, ora autora, podendo então a primeira, à partida, exercer sobre o médico dentário o seu direito indemnizatório com fundamento na violação dos deveres de conduta que sobre ele especialmente impendiam.
Não estamos assim perante um verdadeiro direito de regresso, na medida em que não há qualquer relação de solidariedade entre as partes, não tendo aplicação ao caso o disposto no artigo 524.º do Código Civil.
Verifica-se, ao invés, apenas o funcionamento do mecanismo previsto no artigo 800.º, n.º 1, do Código Civil, nos termos do qual o devedor que efectuou em favor do credor lesado o ressarcimento indemnizatório devido pode pedir subsequentemente o que pagou junto dos seus auxiliares, desde que estes, no âmbito desta relação interna (entre o médico dentista e a Clínica A.) tenham incumprido ou cumprido defeituosamente o contrato de prestação de serviço que os unia.
Conforme refere, a este propósito, Ana Prata, in “Código Civil Anotado”, Almedina 2017, Vol. I (Arts. 1.º a 1250.º), Coord. Ana Prata, 2017, página 1001:
“O devedor que cumpre a obrigação de indemnização ao seu credor não dispõe de qualquer direito de regresso contra o terceiro, podendo ter um direito indemnizatório, se com ele tinha uma relação da qual resultava para esse terceiro a obrigação de fazer (ou de se abster) que não cumpriu ou cumpriu mal e foi causa dos danos que o devedor teve de indemnizar”.
Ou seja, o que está verdadeiramente em causa é tão somente o alegado incumprimento dos deveres integrados no contrato de prestação de serviço firmado entre a Clínica Médica e Dentária de Santa Madalena, Lda., e o médico AA.
Neste contexto, entende a ora A. que o desempenho profissional do referido médico dentista, por violador da leges artis, deu por isso mesmo causa ao insucesso do tratamento proporcionado ao seu paciente, tendo havido lugar, em consequência, à responsabilidade da Clínica contratada face a terceiros, na medida em que se tratava, da sua parte, de uma obrigação de resultado.
Assim sendo, a questão jurídica fundamental que cumpre apreciar é precisamente a de saber se existe nos autos prova clara, segura e suficiente de que o Réu médico dentista violou culposamente os seus deveres profissionais, descurando as respectivas leges artis, e falhando por isso mesmo, deontologicamente e em termos causais, o objectivo a que se propusera, agora no especial âmbito confinado da relação que se estabeleceu entre o prestador de serviços (Clínica) e o executor da prestação a cliente (médico dentista).
Cumpre, em primeiro lugar, salientar que no contrato de prestação de serviço médicos a prestação qualificável como defeituosa pressupõe que seja levada a efeito com violação de devedores de diligência e cuidado a que o prestador – profissional médico – se encontra especialmente vinculado, mormente e com especial ênfase, através da prova da violação das leges artis.
A jurisprudência tem, aliás, abordado profusamente esta temática.
Vide a este respeito:
- O acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 23 de Março de 2017 (relator Tomé Gomes), proferido no processo nº 296/07.7TBMCN.P1.S1, publicado in www.dgsi.pt, onde se afirmou:
“I. No âmbito de um contrato de prestação de serviços médicos, de natureza civil, celebrado entre uma instituição prestadora de cuidados de saúde e um paciente, na modalidade de contrato total, é aquela instituição quem responde exclusivamente, perante o paciente credor, pelos danos decorrentes da execução dos atos médicos realizados pelo médico na qualidade de “auxiliar” no cumprimento da obrigação contratual, nos termos do artigo 800.º, n.º 1, do CC.
II. Porém, o médico poderá também responder perante o paciente a título de responsabilidade civil extracontratual concomitante ou, eventualmente, no âmbito de alguma obrigação negocial que tenha assumido com aquele.
III. A responsabilidade contratual da instituição prestadora dos cuidados de saúde perante o paciente, ao abrigo do artigo 800.º do CC, será aferida em função dos ditames que o médico “auxiliar” do cumprimento deva observar na execução da prestação ao serviço daquela instituição.
IV. De um modo geral, tem-se entendido que o resultado correspondente ao fim visado pelo contrato de prestação de serviço de ato médico não se reconduz a uma obrigação de resultado, no sentido de garantir a cura do paciente, mas a uma obrigação de meios dirigida ao tratamento adequado da patologia em causa mediante a observância diligente e cuidadosa das regras da ciência e da arte médicas (leges artis).
V. Porém, casos há em que, tratando-se de ato médico com margem de risco ínfima, a obrigação pode assumir a natureza de obrigação de resultado.
VI. Para efeitos dessa qualificação, não se mostra curial adotar critérios apriorísticos em função da mera categorização do tipo de atividade médica, mas sim de forma casuística centrada no contexto e contornos de cada situação.
VII. Em sede de obrigações de meios, incumbe ao credor lesado (paciente), provar a falta de cumprimento do dever objetivo de diligência ou de cuidado, nomeadamente o requerido pelas leges artis, como pressuposto de ilicitude, recaindo, por seu turno, sobre o devedor o ónus de provar a inexigibilidade desse comportamento, a fim de ilidir a presunção da culpa, nos termos do artigo 799.º do CC.
VIII. No âmbito da execução do ato médico correspondente ao cumprimento do dever de prestar, importa ainda atentar no dever de proteção na salvaguarda da integridade física do paciente, coberta pela tutela da personalidade, nos termos previstos no artigo 70.º, n.º 1, do CC, na medida em que se mostre estreitamente conexionado com esse cumprimento.
IX. Nessa medida, o reforço daquele dever de prestar por virtude do referido dever de proteção permitirá configurar a ilicitude do ato médico violador da integridade física do paciente, ocorrido em sede da própria execução do cumprimento da obrigação contratual”.
- O acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12 de Janeiro de 2022 (relator António Barateiro Martins), proferido no processo nº 1616/11.5TVLSB.L1.S1, publicado in www.dgsi.pt, pode ler-se:
“I - Nas situações em que o médico se apresenta como um auxiliar do devedor da assistência médica – como é o caso de o doente celebrar um contrato com a clínica/hospital onde o médico exerce a sua atividade – a responsabilidade do médico será extracontratual e da clínica/hospital será contratual.
II - Quer se esteja perante responsabilidade contratual, quer se esteja perante responsabilidade extracontratual, o programa prestacional do médico não é diferente, uma vez que em ambas o médico se compromete a empregar os seus esforços, a utilizar o seu saber e as técnicas que a ciência coloca à sua disposição, respeitando as leges artis, em ordem a alcançar a recuperação da saúde do doente; o que torna a ilicitude contratual e a ilicitude extracontratual, nos casos de responsabilidade médica, muito próximas e leva a que um mesmo comportamento lesivo de um médico possa fundar, simultaneamente, uma responsabilidade de natureza contratual e extracontratual.”.
- O acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 26 de Abril de 2016 (relator Silva Salazar), proferido no processo nº 6844/03.4TBCSC.L1.S1, publicado in www.dgsi.pt, pode ler-se:
“Embora no contrato de prestação de serviços definido no art. 1154.º do CC se consagre a obrigação de uma das partes proporcionar à outra certo resultado, no contrato de prestação de serviços médico-cirúrgicos com colocação de prótese, o médico assume uma obrigação de resultado quanto à elaboração da prótese adequada à anatomia do paciente, e uma obrigação de meios quanto à aplicação da mesma no organismo do paciente segundo as leges artis.
O médico não responde pela falta de obtenção do resultado visada com a cirurgia, cura ou melhoramento do estado de saúde, visto que a aceitação ou rejeição pelo organismo daquele corpo estranho escapa ao seu controlo.
Por consequência, o que legitima o recurso à presunção de culpa no incumprimento ou cumprimento defeituoso do contrato, prevista no art. 798.º do CC, é a prática de algum erro no que respeita aos meios e técnicas de tratamento adotados de harmonia com as leges artis.
Considerando a obrigação do médico uma obrigação de meios, sobre ele recai o ónus da prova de que agiu com a diligência e perícia devidas, e portanto sem culpa, se se quiser eximir à sua responsabilidade decorrente de incumprimento.
Tal pressupõe que se demonstre, previamente, o incumprimento ou cumprimento defeituoso.
Provado que a intervenção cirúrgica implicou a colocação de uma haste metálica no interior do fémur e um acetábulo junto à anca e, após, ficou a padecer de estiramento do nervo ciático, mas não provado, como alegado pela autora, que tal se deveu ao comprimento excessivo da referida haste, fica por determinar a sua causa, tanto mais que a operação comporta alguns riscos e a lesão do nervo ciático podia ter resultado de hematoma nas proximidades, de origem também não apurada.
Donde, o réu não pode ser responsabilizado civilmente com base em incumprimento contratual ou cumprimento contratual defeituoso”.
- O acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 15 de Dezembro de 2020 (relator Ricardo Costa), proferido no processo nº 765/16.8T8AVR.P1.S1, publicado in www.dgsi.pt, onde pode ler-se:
“I - No âmbito de um contrato de prestação de serviço médico, assente em procedimento cirúrgico de extracção, o profissional médico assume uma obrigação de resultado quanto à referida extracção com anestesia local, e uma obrigação de meios, quanto à aplicação da técnica adequada e conveniente a esse resultado, assim como no que respeita à actuação envolvente a essa técnica, de acordo com as regras da medicina aceites e seguidas no universo da especialidade (leges artis) à data da intervenção e a conjugação dessas regras com os específicos conhecimentos científicos exigidos ao médico e à sua experiência acumulada.
II - Às obrigações típicas da parte contratual médico aplica-se o princípio geral da responsabilidade contratual, tal como prevista no art. 798.º, n.º 1, do CC, bem como a presunção de culpa, estatuída no art. 799.º, 1, do CC. Registando-se ofensa de direito subjectivo absoluto da contraparte (art. 70.º, n.º 1, CC; arts. 25.º, n.º 1, e 26.º, n.º 1, da CRP) ou norma legal de protecção de interesse alheio na execução desse contrato, estamos perante um concurso de responsabilidade civil negocial/contratual - incumprimento ou cumprimento defeituoso - e de responsabilidade civil extra-negocial/contratual (abrangida na previsão do art. 483.º, n.º 1, do CC). No caso do contrato de prestação de serviço médico, esta última responsabilidade deve ser, em princípio, absorvida ou consumida pela responsabilidade contratual, se a esta houver lugar (e, nesse sentido, houver esse concurso de responsabilidades de diferente natureza, inclusive para o ressarcimento de danos não patrimoniais), sem prejuízo de se poder convocar (em método híbrido de conjugação) as regras jurídicas da responsabilidade delitual sempre que tal se verifique mais adequado à vertente de não cumprimento estrito do contrato e à sua singular ilicitude não negocial (a começar pela consideração do art. 486.º do CC). Indagar a responsabilidade contratual quanto à execução da obrigação (de resultado e de meios) por parte do profissional médico é sindicar a falta de realização integral da prestação devida (arts. 762.º, n.º 1, e 763.º, n.º 1, CC) ou a sua realização defeituosa e/ou a prática de erro de tratamento imputável ao médico nos instrumentos e técnicas utilizados (em razão da conformidade com as regras de leges artis) para a obtenção do resultado acordado para o tratamento/intervenção.
III - A essas obrigações típicas de e na realização do acto médico acresce, em razão de um dever lateral de conduta abrigado nas obrigações secundárias em relação ao cumprimento da prestação principal, ainda que dela se autonomize, imposto pela boa fé objectiva e pela lealdade e confiança que dela derivam para tutela e protecção das posições jurídicas das partes (art. 762.º, n.º 2, do CC), a obrigação de protecção e conservação da integridade física e saúde do paciente (em ultima ratio, a própria vida), que, pela natureza personalista do contrato demandante do serviço médico, não pode deixar de integrar o respectivo âmbito de obrigações exigíveis na esfera de protecção do contrato, no interesse de prevenir consequências indesejáveis decorrentes da prossecução do seu fim e da relação intersubjectiva estabelecida; a lesão da pessoa tutelada - o paciente - deve considerar-se ilícito na forma de violação contratual (positiva, enquanto defeito de cumprimento), resultante do dever de cuidado necessário para evitar esse dano pessoal, susceptível de ser desencadeado pela actividade que a parte devedora está obrigada a executar ou legitimada para realizar contratualmente. O "erro médico" consiste na consecução dessa obrigação de meios com descaracterização e desadequação aos fins do procedimento ou tratamento, numa acção ou omissão reveladas numa tríptica perspectiva comportamental: imprudência, imperícia e negligência.
IV - A referida obrigação de meios, integrada num quadro abstracto, típico e comum de actuação onde se subsume a situação concreta, exige que o profissional médico realize e concretize os procedimentos que, com a certeza possível e adquirida de acordo com as práticas médicas estabelecidas e disponíveis (não sendo a medicina uma ciência dotada de exactidão plena) e as evidências conhecidas e cognoscíveis à data da intervenção e/ou da tomada de decisão, sejam aptos a evitar e a impedir as lesões ou as perturbações da incolumidade física e psicológica do paciente, para além daquela ou daquelas que são inerentes à própria intervenção em que consiste o acto médico "invasivo" (se assim for). Não é de exigir que se adoptem procedimentos que se destinam a evitar cenários que se colocam no domínio da anormalidade (absoluta ou relativa) e/ou da imprevisibilidade manifesta - enquanto inibições para actuar em ordem à evitabilidade objectiva do resultado -, à luz de um padrão de tratamento aceite pela comunidade científica no momento da intervenção médica, a seguir pelo agente médico medianamente competente, prudente, informado e sensato, acrescido da exigência adicional que é de solicitar a um profissional com a qualidade de especialista, com maior grau esperado de conhecimento, perícia e competência, agindo nas mesmas e análogas circunstâncias. É com este conteúdo e densidade que se constrói um verdadeiro dever objectivo de cuidado ou de diligência, mais ou menos qualificado, no cumprimento das regras aceites e conhecidas da ciência da medicina e da arte traduzida na prática médica como critério de ilicitude. Assim densificado, só com a violação do dever de cuidado - avaliado em função de um padrão médio de comportamento, mediatizado pelas referidas legis artis - é que, independentemente das consequências, mais ou menos graves, para o doente, e numa análise neutra a posteriori, teremos um erro juridicamente relevante, base para um ilícito de natureza pessoal e uma responsabilidade subjectiva e com conteúdo ético, averiguando-se no plano de uma ilicitude de conduta de acordo com o cânone exigível a esse profissional medianamente considerado.
V - A averiguação de "erro médico" coliga a averiguação deste dever objectivo de conduta (contrapartida da obrigação de meios quanto aos deveres de conduta profissionais) com o cumprimento do dever lateral de protecção da integridade e da saúde (que também se assimila a um dever de cuidado). Nessa averiguação, não subsiste erro de tratamento se o método cirúrgico e a sua envolvência e preparação são aceites como válidos e adequados numa operação sem complexidade especial, à luz do padrão aceite â data da escolha e da execução do tratamento, para aquela situação em concreto, comunicados (esclarecimento terapêutico) e consentidos pelo paciente de forma livre e esclarecida, sem conhecimento pelo médico de especialidades que ditassem adaptações (leges artis ad hoc) e sem indicação de alternativa cientificamente comprovada de técnica e procedimento que fossem cautelarmente preventivos do evento ocorrido no organismo da paciente, antes surgindo a convicção probatória que o insucesso do acto médico e os danos resultantes se deveram a circunstâncias incontroláveis e indiferentes à aplicação da técnica adequada e da sua preparação anterior (álea relativa às condições pessoais do doente e das suas particularidades biológicas endógenas, no domínio da anormalidade e da imprevisibilidade).
VI- A ilicitude no incumprimento do contrato de prestação de serviço médico é justificada quando se interrompe supervenientemente a execução para cumprimento do dever lateral de preservação da integridade física e corporal, seja por cumprimento de dever imposto por lei relativo a direito absoluto com eficácia erga omnes (v. arts. 25.º, n.º 1, da CRP, e 70.º, n.º 1, do CC) - que afasta a ilicitude do incumprimento contratual (violação do direito de crédito correspectivo) em face do cumprimento de dever de eficácia superior ao dever obrigacional de realização da prestação contratual devida -, seja porque o cumprimento do dever lateral acessório inserido no contrato, relativo à tutela dessa mesma integridade e saúde, assume dignidade axiológico-normativa superior em relação a esse dever de cumprimento da prestação devida (art. 335.º, n.º 2, do CC). Mais do que isso: se ocorre uma circunstância superveniente, não imputável ao devedor médico, assente em facto involuntário e não culposo do credor paciente, que levou a que se frustrassem as condições para o devedor, naquele momento e naquele contexto contratuais, realizar o comportamento devido, tal implica a impossibilidade objectiva (não temporária) da prestação e à consequente extinção da obrigação (arts. 790.º e 792.º, n.º 1, do CC).
VII - O nexo de causalidade adequada, que o art. 563.º do CC impõe como pressuposto da responsabilidade, exige causa jurídica e não causa médica, que integra e se conexiona com a própria determinação do carácter ilícito do comportamento devido. Para esse efeito, é causa adequada o facto (activo e/ou omissivo) se e quando os danos são uma sua consequência normal, típica e ordinária segundo a regra comum, e, por regra, previsível na esfera concreta do sujeito lesante, desde que, para além das situações de certeza inequívoca, o critério da probabilidade medeie a causalidade médica em termos positivos. Não é causalmente adequado o facto se não era de todo provável a sua ocorrência, de acordo com a posição do "observador experimentado" médio e, no caso, dotado dos conhecimentos médicos exigíveis ("médico normal"), colocado na posição concreta (pessoal, espacial e instrumental) do agente lesante médico, e em referência ao momento de verificação do dano (aqui, originariamente, o incumprimento do contrato), não sendo de imputar ao comportamento médico o evento e o resultado lesivo subsequente, que se tornou indiferente ao processo causal enquanto conjunto de circunstâncias que pudessem aumentar ou condicionar essencialmente o risco de verificação do dano - logo, fora da "esfera de risco" que se assume aprioristicamente com o procedimento, pois esta é a esfera que dialoga com a previsibilidade e, por maioria de razão, com a probabilidade causal conducentes à responsabilidade”.
- O acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 28 de Maio de 2015 (relator Abrantes Geraldes), proferido no processo nº 3129/09.6TBVCT.G1.S1, publicado in www.dgsi.pt, onde se deixou consignado:
“1. A actuação do médico, no âmbito ou fora de um contexto contratual, implica, por regra, a satisfação de uma obrigação de meios que se traduza em práticas médicas que, de forma diligente, respeitem as leges artis ajustadas a cada situação.
2. Inscreve-se no âmbito da responsabilidade extracontratual a situação em que a lesada invoca a existência de violação do seu direito à saúde numa circunstância em que a intervenção do médico ocorreu no âmbito de uma empresa para a qual a A. fora destacada como trabalhadora temporária e o médico como profissional da área da medicina do trabalho por conta de uma clínica de serviços médicos que fora contratada pela empresa onde a lesada desempenhava as suas funções.
3. A aferição pelo Supremo Tribunal de Justiça da ilicitude e da culpa do médico devem ser aferidas tendo em conta a matéria de de facto considerada provada e não provada pelas instâncias e relacionada com as circunstâncias conhecidas e cognoscíveis que se verificavam aquando da prática do acto médico”.
- O acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 29 de Março de 2022 (relatora Clara Sottomayor), proferido no processo nº 640/13.8TVPRT.P2.S1, publicado in www.dgsi.pt, onde se referiu:
“A qualificação de uma intervenção cirúrgica como obrigação de resultado ou obrigação de meios não cabe aos médicos ou aos relatórios periciais, pois trata-se de conceitos jurídicos, que dependem não só dos conhecimentos médicos adquiridos nos autos, mas também de juízos e ponderações de natureza social e moral, que só um tribunal está em condições de fazer.
Para efeitos dessa qualificação, não devem ser adotados critérios apriorísticos em função da mera categorização do tipo de atividade médica, mas uma análise casuística centrada no contexto e contornos de cada situação”.
- O acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14 de Março de 2024 (relator Fernando Baptista), proferido no processo nº 2076/9.18.5TBPRT.P1.S1, onde pode ler-se:
“A obrigação a que o médico se vincula perante o paciente – ressalvados, naturalmente, os casos em que garante a obtenção de determinado resultado – , é uma obrigação de meios, pois consiste em lhe proporcionar os melhores e mais adequados cuidados ao seu alcance, de acordo com a sua aptidão profissional e em conformidade com as leges artis e os conhecimentos científicos actualizados e comprovados ao tempo da prestação.
III. À relação médico/doente está hoje subjacente, no comum dos casos, um vínculo de natureza contratual (contrato de prestação de serviços). E mesmo que concorram na negligência médica a civil responsabilidade contratual e extracontratual, este concurso deve ser resolvido no sentido da prevalência da responsabilidade contratual em virtude do princípio da autonomia privada, e também porque deste modo é assegurada uma maior proteção aos lesados (por exemplo, no que toca ao prazo mais longo de prescrição - art. 309.º do CC - e ao ónus da prova da culpa - art. 799.º, n.º 1, do CC). O mesmo é dizer que pode o lesado optar pelo regime que lhe for mais favorável.
O erro médico não pode ser confundido com a imprevisibilidade – que pode resultar da acção médica, da deficiência ou incorrecta extensão da doença, da impossibilidade de terem sido detectadas elementos desconhecidos e não abrangidos, por exemplo pelos exames de diagnóstico, etc. – ou com factores estranhos e/ou desconhecidos da ciência da medicina”.
- O acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 13 de Janeiro de 2023 (relatora Dora Lucas Neto), proferido no processo nº 1248/12.0OBELSB, onde se sumariou que:
i) As leges artis, enquanto “normas técnicas” da prática médica, não podem ser analisadas, interpretadas e mobilizadas pelo julgador, como se de normas jurídicas se tratasse, para “determinar” a existência ou não de um ilícito.
ii) As leges artis são, como o nome indica, as “regras da arte” de um determinado domínio extrajurídico e a sua violação é uma questão de facto, apreciada e valorada no âmbito da produção de prova, através dos meios probatórios adequados para o efeito, em regra, a prova testemunhal e pericial.
Casos há em que, tratando-se de ato médico com margem de risco ínfima, a obrigação pode assumir, mesmo tratando-se de cirurgia curativa ou necessária, a natureza de obrigação de resultado”
Na doutrina, e sobre a responsabilidade do médico assente na prova da violação por esta das leges artis, vide, entre outros:
- António Henriques Gaspar in Colectânea de Jurisprudência, Ano III, Tomo I, 1978, a páginas 335 a 355, onde o autor chama a especial atenção para a especial prudência nos critérios de apreciação dessa mesma violação das leges artis, apelando para “um grande esforço, uma larga capacidade de compreensão, uma perfeita, dominada e criteriosa maleabilidade do Juiz”;
- André Gonçalo Dias Pereira in “Direito dos Pacientes e Responsabilidade Médica”, Coimbra Editora, 1ª edição, Fevereiro 2015, a página 708, onde salienta que “(..) a prova do incumprimento passa pela demonstração de que o médico não agiu de acordo com as leges artis” ;
- Carlos Ferreira de Almeida in “Os Contratos Civis de Prestação de Serviços Médicos, Direito da Saúde e Bioética”, Associação Académica da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, 1996, página 116 a 117, onde se salienta que “Em relação à obrigação principal considera-se que o cumprimento é defeituoso quando seja desconforme com as leis da arte médica, de harmonia com o estádio de conhecimentos da ciência ao tempo da prestação dos cuidados de saúde”;
- Rute Teixeira Pedro in “A Responsabilidade Civil do Médico, Centro de Direito Biomédico”, Coimbra Editora, 2008, página 110, onde pode ler-se:
“(…) em regra, o incumprimento imputável ao médico apresenta uma configuração que não se reconduz nem a um atraso na implementação dos actos devidos, nem à sua omissão do irremediável. Trata-se com frequência de situações em que o médico realiza a prestação assumida, mas fá-lo de forma deficiente, já que, em virtude de empregar um menor grau de cuidado ou de não implementar todo o quadro de conhecimentos disponíveis, provoca danos à pessoa, e indirectamente ao património do doente”.
Em termos do enquadramento jurídico respeitante ao caso que nos ocupa, vide o disposto no artigo 20º, nº 1, alínea c), do Estatuto da Ordem dos Médicos Dentistas, aprovado pela Lei nº 124/2015, de 2 de Setembro, onde se estabelece:
“Deveres do médico dentista, das sociedades profissionais de médicos dentistas e das organizações associativas de profissionais.
1 - São deveres do médico dentista e dos sujeitos coletivos inscritos na OMD nos termos do presente Estatuto, com as adaptações necessárias ao exercício individual dos respetivos representantes, no caso destes últimos:
c. Cumprir as normas deontológicas que regem o exercício da medicina dentária, integradas no presente Estatuto e na demais legislação aplicável”.
Por outro lado, nos termos do Código Deontológico da Ordem dos Médicos Dentistas - Regulamento Interno nº 2/99, publicado no Diário da República, 2.ª série, n.º 143, de 22/06/1999, alterado pelo Regulamento Interno n.º 4/2006, publicado no Diário da República, 2.ª série, n.º 103, de 29/05/2006, dispõem os artigos 8.º e 15.º:
“Dever Fundamental”
“1. Todo o médico dentista tem o dever de assegurar ao seu paciente a prestação dos melhores cuidados de saúde oral ao seu alcance, agindo com correcção e delicadeza.
2. O médico dentista poderá ser responsabilizado pela prestação de actos médico-dentários manifestamente desadequados, bem como pela prestação manifestamente desadequada de actos médico-dentários, quando, dadas as circunstâncias concretas do caso, lhe era objectivamente exigível a actuação de forma distinta”.
“Assistência”
1. O médico dentista ao tratar o doente tem obrigação de administrar os cuidados para os quais tenha formação e experiência, assumindo a responsabilidade pelos mesmos.
2. O reconhecimento da competência do médico dentista assenta essencialmente no saber, competência e experiência, devendo acompanhar os mais recentes progressos no plano da medicina dentária.
3. O médico dentista, quando lhe pareça indicado, deve pedir a colaboração de outro profissional ou indicar ao doente outro profissional que julgue mais qualificado.
E, por força ainda do disposto no art. 124.º, n.ºs 2 a 6, do Estatuto da Ordem dos Médicos Dentistas, aprovado pela Lei n.º 124/2015, de 02-09, refere o legislador que:
2 - No exercício da sua profissão, o médico dentista é técnica e deontologicamente independente, e, como tal, responsável pelos seus atos.
3 - Na atuação da profissão devem ser atendidos prioritariamente os interesses e direitos do doente no respetivo tratamento, assegurando-lhe sempre a prestação dos melhores cuidados de saúde oral ao alcance do prestador, agindo com correção e delicadeza, sem prejuízo da consideração que for devida a outros interesses legítimos resultantes das relações profissionais com colegas, organizações ou empresas.
4 - A multiplicidade de direitos e deveres do médico dentista e dos prestadores da medicina dentária inscritos na OMD, impõem-lhes uma independência absoluta, isenta de qualquer pressão, quer resultante de interesses próprios, quer resultante de influências exteriores.
5 - O médico dentista deve assegurar as melhores condições possíveis para a prestação dos atos médico-dentários, de molde a melhor satisfazer todas as necessidades clínicas do doente.
6. - O médico dentista tem o direito à liberdade de fazer juízos clínicos e éticos, e à liberdade de diagnóstico e terapêutica, agindo, sempre, de forma independente”.
No fundo e em termos essenciais, os citados diplomas definem e enquadram a prática da medicina dentária como uma actividade vocacionada para o atendimento dos primordiais interesses do paciente, no plano do exercício técnico inerente ao tratamento médico dentário.
Neste domínio, deve naturalmente o médico dentista agir e determinar-se sempre de modo inteiramente independente, autónomo e livre, não se sujeitando a instruções, indicações ou ordens de terceiro (mormente da clínica dentária para a qual presta contratualmente os seus serviços).
Não subsistem ainda dúvidas de que no contrato de prestação de serviço, previsto no artigo 1154.º do Código Civil, constituem obrigações do mandatário as que se mostram previstas no artigo 1161.º do mesmo diploma, com as adaptações impostas pelas especificidades técnicas e deontológicas da profissão de médico dentista.
Debruçando-nos sobre o caso concreto, adiantamos que os factos dados como provados – aliás rigorosamente coincidentes com os que haviam sido dados como assentes no anterior processo nº 803, dos quais foram verdadeiramente importados, uma vez que foram fixados por acordo nos termos do artigo 574º, nº 2, do Código de Processo Civil e provados por documentos, tal como consta da audiência prévia oportunamente realizada nos presentes autos - não resulta, com a necessária clareza, segurança e suficiência, que o médico dentista em causa tenha manifestamente descurado as regras técnicas que regem o exercício da medicina dentária.
(De resto, à mesma exacta e precisa conclusão se chegou no processo judicial anteriormente instaurado pelo paciente - em que este fundou a responsabilidade do médico dentista também com base na violação pela sua parte das leges artis -, quando aí foi afirmado no acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, proferido em 6 de Dezembro de 2017 e transitado em julgado:
“O resultado a atingir e que se propugnava através de determinada técnica de implante, all on four, assumida em termos organizacionais e de especialização pela Clínica Ré e, consequentemente, pelos médicos e técnicos, em especial pelo R., que ao serviço dela a aplicavam aos pacientes que aí acorriam, como aconteceu com o A., permite estabelecer não só o conteúdo da obrigação assumida, e em função dela o cumprimento ou incumprimento do contrato, mas também concluir que foi a Ré quem assumiu a responsabilidade pelo incumprimento contratual, do mesmo modo que a intervenção do R. se verificou na qualidade de pessoa que aquela utilizou para o cumprimento da obrigação, tornando-se à partida apenas a Ré responsável pelos actos por aquele praticados, como se tais actos fossem praticados pela própria R., de harmonia com o disposto no artigo 800º do Código Civil.
E não se vislumbrando, da factualidade dada como provada, da parte do R. AA, qualquer comportamento que se possa considerar ilícito do ponto de vista da responsabilidade aquiliana ou por factos ilícitos, a que alude o artigo 483º do CC, deverá a acção contra si ser julgada improcedente, absolvendo-se o mesmo do pedido, e já que o R. actuou no contexto da organização de prestação de serviços preconizana pela Ré, com as prestações técnicas e procedimentos por ela delineadas, como aliás ficou bem patente na audiência de julgamento (…)”.)
Conforme curialmente se concluiu no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 2 de Maio de 2024 (relator Oliveira Abreu), proferido no processo nº 2313/14.5T8LSB.L1.S1, publicado in www.dgsi.pt:
“A responsabilidade médica por violação das leges artis tem lugar quando, por indesculpável falta de cuidado, o médico deixe de aplicar os conhecimentos científicos e os procedimentos técnicos que, razoavelmente, face à sua formação e qualificação profissional, lhe eram de exigir, ou seja, a violação do dever de cuidado pelo médico traduz-se precisamente na preterição das leges artis em matéria de execução da sua intervenção
Só com a violação do dever de cuidado, avaliado em função de um padrão médio de comportamento, mediatizado pelas legis artis, é que, independentemente das consequências, mais ou menos graves, para o doente, e numa análise neutra a posteriori, teremos um erro juridicamente relevante, base para um ilícito de natureza pessoal e uma responsabilidade subjetiva, enquanto pressuposto primeiro da responsabilidade civil por atos médicos”.
A propósito do conceito de “erro médico”, escreveu-se igualmente no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 7 de Março de 2017 (relator Gabriel Catarino), proferido no processo nº 6669/11.3TBVNG.S1, publicado in www.dgsi.pt:
“O erro médico consubstancia-se na realização de um acto adstrito e da competência funcional de um profissional de medicina que se revelou descaracterizado e desadequado aos fins que a ciência e a arte da medicina injungiam para a debelação ou minoração de um padecimento previamente diagnosticado e reconhecido pela cognoscibilidade da ciência médica”.
Ora, o que sucedeu na situação sub judice – com tradução na materialidade dada como provada (vinda, como se disse, do anterior processo nº 803 e reproduzida integralmente nos presentes autos) – é que o Réu médico dentista prosseguiu determinada abordagem ou estratégica, bem como o inerente procedimento técnico (no fundo, um plano de tratamento elaborado de acordo com as leges artis), desenvolvendo-a no seu paciente, sem que exista prova clara e inequívoca de que, no desempenho técnico dessa sua actividade profissional, haja incorrido em qualquer tipo de erro de procedimento na sua execução ou manifesto desajustamento e/ou inadequação da concreta solução proposta.
O que quer dizer que não existe (por não realizada) prova suficiente da violação pelo Réu médico dentista das leges artis.
E no âmbito do presente contrato de serviço que liga o médico dentista Réu à Clínica com quem o paciente celebrara o contrato primitivo, e tendo em especial atenção a natureza e complexidade da intervenção cirúrgica que ao mesmo competia profissionalmente desenvolver, há que considerar que a sua prestação revestia a natureza de uma obrigação de meios e não de resultado (ao contrário do que sucedia com a Clínica ora A. perante o paciente, seu cliente).
(Sobre esta matéria, vide ainda o relevante acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 16 de Janeiro de 2025 (relator Emídio Santos), proferido no processo nº 1476/17.2T8LSB.L1.S1, publicado in www.dgsi.pt).
O que significa igualmente que competia apenas ao clínico desenvolver todos os seus esforços, servidos por toda a sua diligência, impostos pela ciência e deontologia médica no âmbito específico da medicina dentária, fazendo-o em termos particularmente rigorosos e escrupulosos, sem qualquer falha técnica ou incorrecção de procedimentos, com vista a prosseguir a restauração dentária que o paciente contratara com a Clínica prestadora do serviço (e para cujo cumprimento da sua obrigação de resultado se serviria, enquanto executante, dos conhecimentos especializados desse médico, bem como da sua implementação prática por ele).
Concretizando:
Tendo em atenção a factualidade demonstrada, cumpre reconhecer que o implante dentário pode de facto provocar perda óssea, risco esse com o qual o médico dentista teria necessariamente de contar.
É também certo que o paciente apresentava já perda de suporte ósseo na maioria das peças dentárias, em conformidade com o facto dado como provado no Processo nº 803 e que, por importação, se inere na alínea M) dos factos provados nos presentes autos.
Ou seja, a perda óssea que poderia ser agravada com a cirurgia era inegável.
Infelizmente tal agravamento aconteceu mesmo na medida em que se provou que:
No fim de todos os procedimentos, no dia 27 de janeiro de 2012, o A. (BB) compareceu na Clínica R. (ora A.), reiterando as queixas anteriormente apresentadas, nomeadamente ter dor e mobilidade da prótese superior;
Foi então diagnosticada perda da osteointegração de todos os implantes superiores;
Com a colocação dos implantes e da placa híbrida os ossos foram ficando mais frágeis;
O procedimento de enxerto ósseo realizado em Setembro de 2013 deveu-se, não à falta de osso inicial, mas à reabsorção óssea que foi ocorrendo posteriormente; ou seja, ao tal risco que está subjacente a estas cirurgias.
Contudo, foi igualmente dado como provado que:
Com base na tomografia computorizada realizada a 1 de Julho de 2009, o médico dentista concluiu que o osso dos maxilares do A. (BB) tinha espessura e altura suficiente para avançar com o tratamento sem necessidade de enxerto ósseo.
O que quer dizer que, neste caso concreto, o Réu médico dentista ponderou no início do tratamento essa mesma questão, realizando a sua avaliação técnica.
Ora, para se poder judicialmente concluir que essa dita avaliação de cariz técnico (a de que o osso dos maxilares do A. (BB) tinha espessura e altura suficiente para avançar”) assumiu a natureza de acto negligente, por manifestamente errada e desadequada às regras da ciência médica dentária em casos deste tipo, exigir-se-ia um grau de segurança na prova que aquela que consta dos presentes autos não comporta.
Ou seja, para a conclusão pela responsabilidade profissional do réu médico dentista era fundamental a realização de prova segura e absolutamente fiável de que essa mesma espessura e altura avaliadas pelo clínico eram objectivamente desadequadas, cometendo este na ocasião um verdadeiro erro médico.
Tinha, então, de demonstrar-se que o tratamento proposto foi manifestamente inapto e desajustado face as circunstâncias concretas do caso, sendo-lhe seguramente exigível uma actuação distinta ou de sentido contrário ao adoptado, nomeadamente a omissão desse tipo de abordagem ou estratégica.
Demonstração que, no plano factual, não foi feita (não chegando para o efeito as simples opiniões, referências ou indicações de terceiros posteriormente consultados pelo paciente sobre o caso, sem que tivesse tido lugar nos presentes autos a correspondente discussão técnica, com a profundidade necessária e o elevado rigor que se impunha, mormente com recurso à competente prova pericial ou por testemunhas devidamente qualificadas na área).
É certo que aquando da realização da cirurgia o R. constatou e comunicou ao paciente (BB) que tinha um “osso mole” no maxilar superior.
Mas esta simples constatação, desacompanhada de outros elementos de facto, não é naturalmente suficiente.
Faltou produzir nos autos prova, clara, rigorosa, detalhada e tecnicamente viável, da inconsistência e desadequação, por erro, do processo avaliativo prévio a que o médico dentista procedeu.
(Relembrando as sensatas palavras de António Henriques Gaspar, no artigo referenciado supra, a página 346:
“É que a própria natureza da actividade médica, exercendo-se sobre o homem físico concreto, sobre o seu corpo, implica uma séria de riscos. O médico luta contra a natureza utilizando os meios que a ciência vai sucessivamente pondo ao seu dispor.
Mas, apesar de tudo, sempre o doente pode sofrer danos que não sejam imputáveis àquele, mas aos próprios riscos, à sua álea; imputáveis tão só à natureza física humana.
É, pois, mister que cada Juiz, ponderadamente, em cada caso, determine quais os riscos e em que medida eles afastam a responsabilidade médica”).
Note-se outrossim que não é equiparável à situação de violação da leges artis o caso em que o médico dentista, actuando exclusivamente na prossecução do objectivo da salvaguarda do bem estar e saúde do seu paciente, opta por uma determinada estratégia terapêutica que está plenamente convencido ser a adequada para a solução do problema de saúde que o afecta, executando-a sem erros, vícios ou imperfeições, mas em que vem a verificar-se posteriormente que, contra todas as expectativas geradas, a mesma não logrou obter afinal o êxito esperado (e ainda que um outro médico, usando ulteriormente estratégica diversa, consiga ele alcançar o desiderato antes frustrado).
Uma coisa é errar na execução das manobras próprias do acto médico, por inequívoca inépcia ou clamorosa falta da diligência exigível, ou escolher uma estratégia manifestamente inadequada, do ponto de vista técnico, ao caso; outra, completamente diferente, é diagnosticar um problema; projectar para ele um plano de tratamento, em abstracto tecnicamente adequado, aceite previamente pelo paciente (que confiou na capacidade técnica do médico), e no final vir a revelar-se que, por razões especiais e particulares da situação clínica em causa, o mesmo não surtiu os efeitos terapêuticos desejados.
Discorda-se, portanto, do entendimento perfilhado no acórdão recorrido quando aí se afirmou que:
“ (…) em face dos factos supra expostos, não podemos deixar de considerar que estamos perante uma violação das leges artis (entendida esta como uma desconformidade objectiva entre os actos realizados e os que seriam devidos de acordo com o conhecimentos da ciência médica à data), na medida em que o 1.º Réu, dentista de profissão, prestou os seus serviços com uma conduta profissional inadequada, em face dos prognatismo ou mordedura cruzada e menor densidade óssea do maxilar superior de que BB padecia, utilizando uma técnica incorrecta, lesiva para a vida, saúde e auto-estima deste, seja por imperícia, imprudência, desatenção, negligência ou inobservância dos regulamentos (ou até, muitas vezes, com estes factores misturados e diluídos)”.
A situação clínica do paciente era aliás particularmente delicada e altamente melindrosa, sendo que o tratamento a que foi sujeito acabou por não se revelar eficaz.
Porém, não existe prova, inteiramente clara, rigorosa e segura, de que para esse resultado frustrante concorreu a negligência, ou a omissão do empenho profissional devido, por parte de quem foi interveniente na prestação médica executada.
Como se enfatizou no acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 13 de Janeiro de 2023 (relatora Dora Lucas Neto), proferido no processo nº 1248/12.0OBELSB;
“As leges artis, enquanto “normas técnicas” da prática médica, não podem ser analisadas, interpretadas e mobilizadas pelo julgador, como se de normas jurídicas se tratasse, para “determinar” a existência ou não de um ilícito. São, como o nome indica, as “regras da arte” de um determinado domínio extrajurídico e a sua violação é uma questão de facto, apreciada e valorada no âmbito da produção de prova, através dos meios probatórios adequados para o efeito, em regra, a prova testemunhal e pericial”.
E o que é certo é que, analisando com rigor todo o acervo dos factos provados, não se vislumbra nessa concreta materialidade, de forma bastante, um acto qualificável como erro médico ou de má execução do acto médico, susceptível por isso mesmo de demonstrar o incumprimento da obrigação de meios a que o Ré médico dentista se encontrava vinculado.
E foi essencialmente por essa razão que no processo judicial anterior, transitado em julgado, se decidiu que “o Réu médico não cometeu qualquer ilícito”(sic), não lhe sendo concretamente apontada nem assacada qualquer tipo de violação da leges artis.
Não pode ainda deixar de dizer-se que o sentido da presente decisão – em frontal oposição com o adoptado no acórdão recorrido – é, por outro lado, o único que verdadeiramente assegura a sempre desejável coerência e harmonia entre julgados, compatibilizando-os, não dando azo a incompreensíveis, perturbadoras e desprestigiantes contradições e diferenças injustificadas de tratamento no ordenamento jurídico, quando está em causa a discussão (pela segunda vez) da mesmíssima materialidade no plano factual - todos os factos relativos ao tratamento médico dentário foram fiel e directamente importados do processo nº 803 -, relativa aos mesmos sujeitos intervenientes (clínica, médico dentista, paciente e seguradora).
Assim sendo, o falhanço objectivo e inegável na obtenção de sucesso no tratamento do paciente acaba por ser da exclusiva responsabilidade da Clínica em causa que assumiu a este propósito junto do seu cliente uma obrigação de resultado e não de meios.
Não faz inclusivamente qualquer sentido que a mesma Clínica – que foi a única parte na relação jurídica constituída com o paciente – procure agora, no âmbito especificamente confinado do artigo 800º, nº 1, do Código Civil, transferir para o agente que utilizou no cumprimento da sua obrigação (o seu mero executante) a total responsabilidade na obtenção de um resultado a que se propôs contratualmente – isentando-se assim, na prática, por via dessa hipotética recuperação, de suportar ela qualquer pagamento -, não se provando, com a necessária segurança, que aquele tenha, em qualquer altura de todo o processo terapêutico, actuado de forma deontologicamente censurável, displicente, descuidada ou merecedora de reparo.
Pelo que inexiste fundamento legal para a responsabilização do Réu médico dentista nem da sua seguradora, para a qual aquele havia, enquanto profissional deste ramo médico, transferido a sua responsabilidade.
Em suma, no âmbito da responsabilidade interna e na lógica de funcionamento do artigo 800º, nº 1, do Código Civil, a Clínica Médica declarada judicialmente responsável perante o cliente pelo resultado prometido e não alcançado só pode obter do médico dentista (executante que utilizou no cumprimento da sua prestação) o montante que oportunamente pagou ao lesado, com base no incumprimento do contrato de prestação de serviço que com ele firmou, se provar que esse médico incorreu, em qualquer momento do processo terapêutico, em erro ou incorrecção nos procedimentos adoptados, violando desse modo as leges artis.
Em contrapartida, o simples insucesso dos tratamentos médicos seguidos, sem existir prova da violação pelo médico dentista das leges artis, não é suficiente, por si só, para a responsabilização deste perante a Clínica com quem o cliente firmou o contrato de prestação de serviço, não se justificando desse modo que esta possa, depois de condenada judicialmente pela não obtenção do resultado prometido e feito o pagamento devido, vir afinal a recuperá-lo por inteiro à custa do executante da sua prestação.
Pelo que a revista é concedida.
IV – DECISÃO
Pelo exposto, acordam os juízes do Supremo Tribunal de Justiça (6ª Secção - Cível) conceder provimento à revista, revogando o acórdão recorrido e repristinando a decisão de 1ª instância que julgara a acção improcedente.
Custas da revista pela A. recorrida.
Lisboa, 13 de Maio de 2025.
Luís Espírito Santo (relator)
Ricardo Costa
Anabela Luna de Carvalho
V – Sumário elaborado pelo relator nos termos do artigo 663º, nº 7, do Código de Processo Civil.