NULIDADE DE SENTENÇA
CONTRATO NULO POR FALTA DE FORMA
PROVA
IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
ÓNUS DE IMPUGNAÇÃO
Sumário


I O Tribunal pode interpretar e enquadrar ou qualificar juridicamente o pedido formulado, o que decorre do art.º 5º, n.º 3, do C.P.C., desde que alicerçado na respetiva causa de pedir; ao fazê-lo não comete qualquer nulidade por excesso de pronúncia ou por condenação em objeto diverso do pedido.
II Estando em causa a alegação de uma doação verbal de um imóvel, embora não se pretendendo retirar efeitos da nulidade do contrato, mas também não se pretendendo provar e tirar efeitos de um contrato válido, contornando a exigência de forma do art.º 947º, n.º 1, do C.C., não se aplica qualquer restrição probatória.
III O Tribunal de 1ª instância deve apresentar a sua convicção sobre a matéria de facto de forma fundamentada e circunstanciada, assim cumprindo a determinação constitucional de obrigatoriedade de fundamentação de todas as decisões que não sejam de mero expediente, expressa no art.º 205º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa.
IV Daí decorre que também à parte são imputados ónus quando pretende, em sede recursiva, ver alterada a decisão proferida, nomeadamente no que respeita à matéria de facto.
V Cabe ao recorrente a indicação precisa, e respeitante a cada facto, do meio probatório em que baseia a sua discordância, e ainda, quando se trata de depoimentos/declarações gravados, precisar o(s) segmentos(s) em que se sustenta (destacando as partes relevantes). Só desse modo, apreciando criticamente e contrapondo à argumentação do Tribunal a sua própria, de modo a demonstrar a falta de conformidade (de suporte ou de lógica) da convicção a que chegou o Tribunal recorrido, exerce verdadeiramente o seu direito de recurso.
VI A indicação dos concretos meios de prova que justificam a alteração pretendida pelo recorrente pode ser dirigida a vários factos impugnados (em bloco), quando estejam diretamente relacionados entre si, desde que as razões invocadas para a sua alteração sejam precisamente as mesmas, e da impugnação resultem claras essas razões
VII A lei pretendeu que, lendo as alegações de recurso, se perceba com exatidão o que, na visão de quem recorre, esteve mal, com base em que meio de prova assim o entende, e, quando gravada, em que segmento da mesma encontra fundamento. Só depois desse primeiro passo, pode (e deve) concatenar tudo o que destaca, para justificar que o Tribunal recorrido errou no seu julgamento da matéria de facto.
VIII Se um facto pessoal foi negado e provou-se ter-se verificado, a alteração da verdade dos factos é dolosa, pelo que a parte incorre em litigância de má fé material, tal como previsto no art.º 542º, n.º 2, b), do C.P.C..

Texto Integral


Acordam os Juízes da 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães:

I RELATÓRIO.

AA e BB, a primeira na qualidade de cônjuge meeira e herdeira de CC, com quem foi casada sob o regime de comunhão de adquiridos, falecido em ../../2016, a segunda na qualidade de filha herdeira do referido CC, intentaram ação contra DD e marido EE pedindo que se declare que são legítimas donas e proprietárias dos três prédios identificados no artigo 5.º da petição inicial e respetivas partes componentes, e se condenem os Réus a reconhecer esse mesmo direito de propriedade e a absterem-se de atos e comportamentos que contendam com o mesmo; a restituir-lhes o prédio identificado no número 1 do artigo 5.º da petição inicial livre de pessoas e bens e ainda a repô-lo no estado em que se encontrava antes da ocupação, refazendo a parte do muro destruído, numa extensão de 3,70 metros, retirando cancela, tranqueiros, corrente e cadeado, bem como a vedação de cima do muro, colocada pelo Réu marido, em toda a extensão nascente e norte do mesmo, e a recolocar vedação idêntica à anteriormente colocada por elas, retirando do prédio os restos dos escombros do muro destruído, limpando e repondo-o no estado anterior. Pediram ainda a condenação dos Réus a pagarem-lhes uma indemnização pelos danos resultantes da ocupação, no montante de € 1.000,00, acrescida de juros desde a citação até efetivo e integral pagamento e ainda em montante que se vier a apurar em incidente de liquidação pelos danos resultantes da manutenção da ocupação e obras até ao momento em que lhes venha a ser restituído, bem como uma indemnização no montante de € 764,51 pelos danos patrimoniais originados pelos factos expostos nos artigos 93º a 96º, no montante de € 5.000,00 a título de danos não patrimoniais e no pagamento de uma sanção pecuniária por cada dia de atraso na reposição do prédio no estado em que se encontrava. Por fim, pediram o cancelamento da inscrição a favor dos Réus do prédio identificado no número 1 do artigo 5º da petição inicial junto da Conservatória do Registo Predial ....
Para tanto, alegaram, em resumo, que as Autoras (A.A.) são as únicas e universais herdeiras de CC, não havendo outros que as prefiram, sendo ainda a 1ª Autora (A.) a cônjuge meeira daquele; como tal, são as únicas representantes e titulares da respetiva herança ilíquida e indivisa aberta por óbito do falecido CC, herança que aceitaram e, enquanto tal, são as únicas titulares dos bens que compõem o respetivo acervo hereditário. Dele fazem parte três prédios rústicos que descrevem, bem como o modo de aquisição dos mesmos. Um deles foi doado pelos Réus (R.R.) à 1ª A. e falecido marido, em dezembro de 1994, aquando da partilha por óbito dos pais do falecido e da R., como forma de compensar aquele, que ficava prejudicado nos bens adjudicados em relação à sua irmã (a R.). Porém, não foi feita a escritura de doação.
Desde então, por si e seus antecessores, na indicada qualidade, estão as A.A. na posse pública, pacífica, contínua e de boa fé dos prédios identificados, há 1, 10, 20 e mais anos, sem qualquer interrupção; posse essa, primeiro exercida pela A. AA e marido e, após a morte deste, por aquela e pela 2ª A..
Os atos de posse, ao longo de mais de 20 anos, ocorreram à vista de toda a gente, inclusive dos RR., que a eles não se opuseram, com a convicção de exercerem os poderes correspondentes ao direito de propriedade que, assim, jamais lhes foi contestado por quem quer que seja; pelo contrário, ao longo de mais de 20 anos, os R.R. aceitaram e conformaram-se com a situação.
Devido a desavenças ocorridas entre A.A. e R.R., por carta datada de 13/09/2021, os R.R. reivindicaram o dito prédio, cuja aquisição haviam registado a seu favor, como descobriram as A.A. em 28/04/2021.
Nos dias 23 e 24 de outubro de 2021, - aproveitando que as AA. estavam em ..., onde vivem habitualmente –, o R. marido e um trabalhador contratado por este, derrubaram o muro do lado nascente do prédio e arrancaram a vedação de cima do muro, em toda a extensão do lado nascente e norte desse mesmo muro, e colocaram vários tranqueiros e uma rede ao longo do mesmo, em toda a sua extensão do lado nascente e norte desse prédio; além disso, o R. marido entrou no referido prédio e nele circulou, como se fosse seu dono, procurando desta feita, demonstrar a sua posse sobre o prédio, o que sucedeu pela primeira vez em mais de 25 anos.
Os atos descritos implicam um prejuízo, até ao presente momento, nunca inferior a € 1.000,00.
A colocação, pelas A.A, em agosto de 2021, da dita vedação, importou em € 764,51.
As A.A. têm tido um enorme sofrimento e desgosto com toda a situação causada pelo comportamento dos R.R., sentindo-se humilhadas, computando o ressarcimento desses danos, até ao momento, em € 5.000,00.

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Os R.R. apresentaram contestação, onde impugnaram, na generalidade, os factos alegados na petição inicial, negando a doação daquele prédio ao falecido CC e à Autora, bem como a prática de atos de posse por parte destes; disseram que todos os atos praticados por eles naquele prédio ou foram previamente autorizados por eles (Réus) ou praticados pelas Autoras, após o falecimento do seu marido e pai, de forma abusiva.
Alegaram que adquiriram o prédio; que, por si e seus antepossuidores, vêm, há mais de 20, 30 e 40 anos, possuindo, detendo e fruindo o identificado prédio, dele tudo extraindo e fazendo seus, com exclusão de outrem, todos os seus rendimentos, frutos, proveitos, utilidades e interesses, procedendo à respetiva limpeza, autorizando a colocação de terra de desaterro, de roça de mato, plantando árvores e autorizando o abate de árvores, mantendo-os vedados e cuidados e ainda pagando os respetivos impostos pelos mesmos devidos, o que sempre fizeram à vista e com conhecimento de toda a gente e sem oposição de ninguém, pública e pacificamente; prédio esse que se encontra  descrito a seu favor na Conservatória do Registo Predial.
Os atos praticados pelas A.A., nomeadamente abatendo eucaliptos e questionando a propriedade daqueles, dificultando o exercício dos seus direitos, causou-lhes danos patrimoniais no montante de € 700,00, além de desgostos e arrelias.
Suscitaram ainda o incidente de falsidade do documento denominado “Avaliação de bens de FF e mulher GG” e do documento denominado “1.º Lote” e “2.º Lote”, sustentando que neles constam dizeres como “a ...”, “a ... e ...” e “metade do ... só” que não existem no documento original e que foram feitos posteriormente, conforme se verifica pela utilização de caligrafia diferente.
Referiram, todavia, que os valores peticionados sempre seriam exagerados e que as A.A. atuam com manifesto abuso de direito
Concluíram pela improcedência da ação.
Apresentaram reconvenção, pedindo que se declare que são proprietários daquele prédio, condenando-se as A.A. a reconhecer-lhes esse mesmo direito, bem como a absterem-se da prática de atos que o perturbem ou limitem e ainda a pagar-lhes a quantia de € 700,00, acrescida de juros de mora, a contar da citação, a título de danos patrimoniais, e de € 7 000,00, a título de indemnização por danos não patrimoniais, também acrescida de juros de mora, a contar desde a citação.
*
As A.A. apresentaram réplica, pugnando pela improcedência da reconvenção, e pediram a condenação dos R.R., como litigantes de má-fé, no pagamento de indemnização e multa, a fixar com recurso a critérios de razoabilidade.
Responderam ao incidente de falsidade, pugnando pelo seu indeferimento e alegando que não se trata de uma adulteração ou falsificação, mas apenas de escritos ou anotações particulares.
*
Em 2/10/2022 foi proferido despacho, constando, além do mais:
“Em igual prazo, poderão os réus, querendo, exercer o respectivo contraditório quanto ao pedido de condenação em litigância de má-fé formulado na réplica – arts. 3.º, n.º 3, 6.º, n.º 1 e 547.º, todos do CPC.”
Foi dispensada a realização da audiência prévia.
Foi fixado o valor de € 23.644,51 à ação.
Foi proferido despacho saneador, despacho de fixação do objeto do litígio e de enunciação dos temas da prova.
Realizada a instrução, processando-se a produção de prova e alegações orais em 10 sessões, inclusive com inspeção judicial, o Tribunal a quo julgou improcedente o incidente de falsidade de documento e, de seguida, proferiu sentença que terminou com o seguinte dispositivo:
“Em face do exposto, decide-se julgar a ação parcialmente procedente e a reconvenção totalmente improcedente e, em consequência:
7.1. Declara-se que a 1ª Autora AA e a herança aberta por óbito de CC são proprietários dos seguintes prédios:
7.1.1. Prédio rústico, composto por terreno de mato, denominado ..., no lugar ..., situado na União de freguesias ..., concelho ..., inscrita ma matriz predial rústica sob o artigo 2528º da referida freguesia ..., anteriormente inscrito na matriz rústica sob o artigo ...49º da extinta freguesia ... ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o número ...16 da freguesia ... ....
7.1.2. Prédio rústico, denominado ..., sito no lugar ..., situado na União de freguesias ..., concelho ..., inscrita na matriz predial rústica sob o artigo ...21º da referida União de freguesias ..., anteriormente inscrito na matriz rústica sob o artigo ...48º da extinta freguesia ... ..., omisso na Conservatória do Registo Predial.
7.1.3. Prédio urbano, composto por uma casa de ..., com logradouro, sito no lugar ..., União de freguesias ..., concelho ..., inscrita na matriz predial urbana sob o artigo ...16º da referida União de freguesias ..., anteriormente inscrito na matriz urbana sob o artigo ...07º da extinta freguesia ... ..., omisso na Conservatória do Registo Predial.
7.2. Condenam-se os Réus DD e EE:
7.2.1. A restituir o prédio referido em 7.1.1., livre de pessoas e bens e a repô-lo no estado em que se encontrava, refazendo a parte do muro destruído, numa extensão de 3,70 metros, retirando a cancela, tranqueiros, corrente e cadeado, retirando a vedação que colocaram sobre o muro desse mesmo prédio em toda a extensão nascente e norte, a recolocar vedação idêntica à existente e a retirar os restos dos escombros do muro destruído.
7.2.2. A pagar a cada uma das Autoras a quantia de € 250,00, perfazendo o total de € 500,00 (quinhentos euros), a título de danos não patrimoniais.
7.3. Ordena-se o cancelamento da inscrição de aquisição do prédio referido em 7.1.1. a favor dos Réus.
7.4. Absolvem-se os Réus do demais peticionado.
7.5. Condenam-se os Réus como litigante de má-fé no pagamento de uma multa correspondente a 3 (três) UC’s.;
7.6. Absolvem-se as Autoras de todos os pedidos reconvencionais formulados;
Custas por ambas as partes na proporção do respetivo decaimento, que se fixa em 26,50% para os Autores e 73,50% para os Réus (artigos 527.º, n.º 2 do Código de Processo Civil).”
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Inconformados, os R.R. apresentaram recurso com alegações que terminam com as seguintes
-CONCLUSÕES-(que se reproduzem)

“1. A sentença de que ora se recorre é nula nos termos do art.º 615º, nº 1 alínea d) do CPC, por excesso de pronúncia e condenar em objeto diferente o pedido.
2. A causa de pedir delimita e individualiza o pedido para o efeito de, com ele e com as partes, identificar a causa de pedir que é insusceptível de ser repetida sem ofensa de caso julgado.
3. Nos termos do art. 5.º do CPC, o juiz só pode fundar a sua decisão nos factos alegados pelas partes, salvo o disposto nos artº 412º e 612º e da consideração oficiosa dos factos instrumentais e o objecto da decisão não pode deixar de coincidir com o objecto do pedido, delimitado que está pela respectiva causa de pedir (art. 552, 607º nº 1, 609º nº 1 e 615º nº 1 d) e e) todos do CPC, sendo nula a sentença quando o juiz conheça de questões de que não podia tomar conhecimento e condene em objecto diverso do pedido.
4. As AA./Recorridas intentaram a presente acção contra os RR. recorrentes, na qualidade de cônjuge meeira e filha herdeira de CC, peticionando que:
“A acção deve ser julgada provada e procedente e em consequência:
a) Declarar-se que as AA, na qualidade em que intervém nos presentes autos, são donas e proprietárias dos três prédios identificados no artigo 5.º desta peça processual e respectivas partes componentes, incluindo muros de vedação.
b) Condenar-se os RR. a reconhecer essa mesma propriedade das AA. e abster-se de comportamentos e atos que atentem contra o direito de propriedade das AA. sobre os mesmos prédios em toda a sua extensão e suas partes componentes, nomeadamente do prédio melhor identificado no nº 1 do artigo 5º deste articulado.”
5. Não competia ao Tribunal a quo, porque tal não se encontrava peticionado pelas partes, decidir no sentido de que “não obstante as Autoras terem vindo pedir que se declare que são legitimas proprietárias dos prédios supra identificados e respectivas partes componentes, há que esclarecer que não tendo sido ainda partilhada a referida herança, esta constitui um todo indivisível, cujos direitos e obrigações não podem ser atribuídos destrincadamente a qualquer dos herdeiros, como é o caso do pretendido direito direito de propriedade sobre o prédio em causa. Assim, enquanto a herança se mantiver indivisa, este direito pertence-lhe e não aos herdeiros, logo sendo procedente o pedido de reconhecimento de propriedade sobre o prédio, este terá de ingressar na esfera da herança, enquanto património autónomo e na titularidade singular, autónoma e distinta, das Autoras. Face ao exposto, impõe- se declarar que a 1.º Autora e a herança aberta por óbito de CC são proprietários dos prédios identificados no artigo 5.º da petição inicial”….
6. A presente acção tem por objecto a questão controvertida da propriedade de um imóvel reclamado, em parte, pela herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de CC e, como tal, a acção intentada tem de o ser, também em nome da respetiva herança e não em nome pessoal das recorridas, sendo que, o pedido formulado nunca poderá ser formulado em nome pessoal de ambas as AA. e aqui Recorridas, mas outrossim, haveria de ter sido efetuado no sentido de se reclamar a propriedade de tal imóvel, como sendo, uma parte, a meação da A. AA e a outra parte, no caso a meação do falecido, como pertencendo à herança ilíquida e indivisa já aludida, representada por ambas as AA..
7. Ora, os pedidos formulados pelas AA. vai no sentido que o Tribunal declare como pertencente a ambas, em compropriedade, o prédio objecto da p.i., sem reclamar a real e competente divisão e imputação a cada uma da parte que efetivamente lhes corresponde, o que é substancialmente distinto do peticionado.
8. O Tribunal recorrido não podia ter conhecido desta questão oficiosamente, corrigindo o pedido formulado pelas AA. e decidindo em objeto distinto do formulado, alterando-o na sua essência e substância e condenando em pedido distinto do formulado na p.i., tanto mais que a decisão proferida nem define a parte que pertence a cada uma das AA., sendo inegável que, o conhecimento desta questão em alteração ao pedido inicialmente formulado, excedeu o objecto do processo e condenou em pedido diferente do formulado pelas AA., o que constitui a nulidade prevista na al. d) e e) do nº 1 do art. 615º do CPC, devendo por isso, declarar-se nula a sentença em crise, o que se requer.
9. A sentença recorrida violou o disposto no artigo 3º, n.º 3, o que constitui uma nulidade que impõe, nessa parte, a sua anulação, pois, não pode haver condenação de uma parte como litigante de má-fé sem se ter concedido a possibilidade de se pronunciar e, como tal, permitir o exercício do contraditório.
10. No caso dos autos, o Tribunal recorrido omitiu a necessária audição prévia dos RR./Recorrentes sobre a eventual litigância de má-fé, pelo que, estes não tiveram qualquer oportunidade de se pronunciar sobre esta questão antes da prolação da sentença e da respetiva condenação.
11. A condenação dos Recorrentes como litigantes de má-fé é uma verdadeira “decisão surpresa” e, por isso, ilícita, nos termos do nº 3 do artº 3 do Código de Processo Civil, o que constitui uma nulidade da decisão recorrida que impõe, nessa parte, a sua anulação.
12. Mostram-se incorrectamente julgados e dados como provados os factos constantes dos artigos 3.1.3 alínea a), 3.1.4, 3.1.5, 3.1.9, 3.1.16, 3.1.19, 3.1.20, 3.1.32 da matéria de facto provada da sentença recorrida.
13. Por sua vez, mostram-se também incorretamente julgados os factos não provados dos pontos 3.1.33, 3.1.34, 3.2.7, 3.2.8, 3.2.11, 3.2.17.3.2.18., 3.2.19., 3.2.20., quando a prova testemunhal e documental produzidas foi efetuada inquestionavelmente em sentido contrário, pelo que os mesmos haveriam de ter sido julgados como provados.
14. Os Recorrentes não podem concordar com esta decisão sobre a matéria de facto provada e não provada supra referida, na medida em que a mesma não espelha e traduz com rigor a prova produzida em audiência de julgamento, por um lado, e a prova documental constante dos autos.
15. Alegaram os Recorrentes e, em nosso modesto entendimento, provaram, que o prédio rústico denominado “...” identificado em 3.1.7. da matéria de facto, é sua propriedade, por o terem adquirido a HH, por escritura de compra e venda celebrada em 30-04-1973, mostrando-se a aquisição registada a seu favor (cfr doc. . 1, 2, 3 e 4 juntos com a contestação).
16. Mais alegaram os Recorrentes, e provaram, que, por si e por antepossuidores, vêm há mais de 20, 30, e 40 anos, possuindo, fruindo e utilizando o prédio acima descrito, dele tudo extraindo e fazendo seus, todos os seus rendimentos, frutos, proveitos, utilidades e interesses, procedendo à respectiva limpeza, autorizando a colocação de terra, roçando o mato, plantando árvores, pagando os respectivos impostos devidos, o que sempre fizeram à vista e conhecimento de toda a gente e sem oposição de ninguém, pública e pacificadamente.
17. Resultou da prova produzida em audiência de discussão e julgamento que, esta posse e fruição detida pelos recorrentes, foi adquirida de forma derivada, titulada por escritura pública e mantida sem violência e exercida sem qualquer interrupção, oposição ou ocultação de quem quer que fosse e que nunca as Recorridas, nem por si nem por antepossuidores, se opuseram a esta posse.
18. Mais se provou que as Recorridas e o falecido CC nunca praticaram actos de posse sobre o prédio em causa, denominado “...”, com exceção dos atos de mera tolerância que sempre lhe foram permitidos pelos Recorrentes.
19. Acresce que, é pacifico dos depoimentos de todas as testemunhas e das declarações de parte das AA. e dos RR. que até 2009, pelo menos, quem sempre zelou por todos os prédios, quer os prédios objecto da escritura de partilha junta com a p.i., dos quais, aliás, a transmitente reservou o usufruto e o prédio dos Recorrentes denominado “...”, foi a D. II, mãe do falecido CC e da Recorrente DD.
20. À semelhança do que fazia para os prédios de que era usufrutuária, a referida II também mandava limpar o prédio designado de ..., que é propriedade dos Recorrentes, autorizando que as ovelhas da arrendatária JJ para lá fossem comer para manter o prédio limpo.
21. Daí que, atentas estas circunstâncias de facto e de direito relatada nos autos, em concreto, a constituição e manutenção do direito de usufruto a favor da II, nunca os atos de posse alegadamente praticados pelas Recorridas e o falecido marido e pai CC, podem remontar a uma data anterior ao ano de 2009, pois estes nem sequer eram detentores da propriedade plena dos prédios que lhes couberam em partilha e, por maioria de razão, nunca a sua posse se poderia estender ao prédio dos RR. denominado ....
22. A sogra da A. AA e mãe da Ré DD a II folha só faleceu em 2017, data a partir da qual, só nesta altura a propriedade plena se consolidou na pessoa dos seus herdeiros e partes no processo.
23. Não podiam as AA./Recorridas e antes, o falecido CC, ter exercido atos de posse sobre os referidos prédios, conforme vem descrito nos pontos 3.1.3, 3.1.4, 3.1.5, 3.1.19, 3.1.20 da sentença recorrida, pois os mesmos indubitavelmente até 2009 sempre foram ostensivamente praticados pela II, mãe do falecido CC, sogra da A. AA e avó da A. KK, usufrutuária de todos os prédios objecto da escritura de partilha e que alargava os seus poderes de administração ao ..., propriedade dos RR. de forma por estes consentida.
24. Quer as AA., quer os RR. e todas as testemunhas inquiridas são unânimes em afirmar que, até ter ficado doente e ter ido para ..., o que ocorreu no 2009, foi esta II quem, no exercício de um direito próprio, o usufruto que reservou na escritura de habilitação e partilha, sempre cuidou e usufruiu de todos os prédios de cultivo, explorando-os, dando-os de arrendamento, mandando-os limpar e cuidar, factos que, com o consentimentos dos RR./Recorrentes, se alargaram ao prédio identificado no ponto 3.1.7 da sentença recorrida, o denominado ....
25. Resultou igualmente dos depoimentos das testemunhas e das declarações dos Recorrentes que qualquer ato que as Recorridas e/ou o falecido CC pudessem ter praticado sobre o prédio do ponto 3.1.7. denominado “...” era previamente autorizado e/ou consentido pelos Recorrentes, tal como aconteceu com o depósito do aterro e materiais para a construção da habitação, a abertura de janelas na habitação voltadas para o prédio, o corte de um eucalipto e a reparação do muro.
26. Todos os demais atos materiais a que as testemunhas aludem nos seus depoimentos, ou não merecem qualquer credibilidade na forma como foram relatados, ou são demasiado recentes para poderem constituir direitos a favor das AA., em concreto, o direito de usucapião.
27. Não resultou, assim, da prova produzida em audiência de discussão e julgamento que, as AA./Recorridas tivessem praticado por si e antepossuidores, desde o ano de 1997, qualquer acto de posse sobre o prédio rústico identificado em 3.1.7., propriedade dos Recorrentes suscetível de lhes conferir qualquer direito e muito menos, que esses atos sejam suscetíveis e capazes de abalar ou ilidir a presunção legal do registo (artº 7ª do C.R.Predial) do prédio que os Recorrentes têm a seu favor e de que beneficiam por força da lei.
28. Quando se sentiram perturbados na sua posse e violentados no seu direito de propriedade, no decorrer do ano de 2020 e 2021, pelos atos praticados pelas AA., os RR. interpelaram estas a cessar o seu comportamento e a repor a situação anterior.
29. No ponto 3.1.9 da matéria de facto provada, foi decidido que “Em data não concretamente apurada do ano de 1997, o prédio rústico denominado “...”, referido em 3.1.7 foi doado verbalmente pelos Réus ao falecido CC”.
30. A sentença em crise não podia ter acolhido esta decisão da matéria de facto, pois não se fez qualquer prova credível, isenta, segura e séria de que os RRéus/Recorrentes tenham feito a doação do seu prédio denominado ... ao falecido CC.
31. As próprias AA. Recorridas não sabem explicar e contextualizar as circunstâncias, de forma credível, e o momento em que a alegada doação terá ocorrido, fazendo sempre um relato de situações sem base em factos concretos e situações e circunstâncias da vida familiar, já que tiveram durante muitos anos uma vivência pessoal e familiar muito próxima, o que sempre permitiria fazer apelo a memórias e circunstâncias concretas da vida familiar tendentes a sustentar o facto de ter existido a doação alegada.
32. As testemunhas das AA. também não revelaram um qualquer conhecimento direto especifico e circunstanciado deste facto, fazendo apelo ao já habitual e infundado chavão do “ouvi dizer; dizia-se, eu sempre e pensei que” sem circunstanciar estas suposições ou justificar o porquê das afirmações.
33. Independentemente da prova testemunhal produzida, ou melhor, da falta dela, não podia o Tribunal recorrido ter considerada provada a doação do prédio referido em 3.1.7. por parte dos Réus/Recorrentes a favor do falecido CC, uma vez que, tratando-se de um negócio formal, válido desde que celebrada por escritura pública ou por documento particular autenticado (cfr artº 947 do Cód. Civil), a respetiva prova por depoimento das testemunhas é legalmente inadmissível atento o disposto nos artºs 392 e 393 do Código Civil.
34. Ficou também por demonstrar o próprio fundamento invocado pelas AA./Recorridas que justificaria a própria doação, isto é, o facto de o falecido CC ter ficado prejudicado nas partilhas que fez com a sua irmã prejuízo que nunca a A. AA e o falecido marido CC reconheceram, mas que seria comentado pelas pessoas da freguesia.
35. O acordo de partilha foi celebrado entre as partes em 1985 e a respetiva formalização ocorreu por escritura de partilha em 1994, quase dez anos depois, sendo evidente que se alguma retificação houvesse a realizar entre as partes a mesma seria levada em conta previamente à formalização da partilha, com a celebração da escritura pública e à custa dos prédios da herança.
36. O ponto 3.1.9 da matéria de facto dada como provada na sentença recorrida foi mal decidido e não podia ter sido dado como provado, devendo ser decidido como não provado.
37. Quer as AA. nas suas declarações de parte, quer dos depoimentos das testemunhas por si apresentadas, não resulta qualquer conhecimento consistente, profundo, sério e justificado, acerca da existência da alegada doação efetuada pelos RR., facto que estes negaram de forma categórica.
38. E o mesmo se diga no que respeita aos restantes atos de posse que constam da matéria de facto impugnada e que constam dos pontos 3.1.3 al. a), 3.1.4, 3.1.5, 3.1.16, 3.1.19, 3.1.20, 3.1.32, que no entender dos Recorrentes não foram corretamente julgados.
39. Os depoimentos em que o Tribunal a quo fundamentou a sua decisão sobre a matéria de facto não deviam ter merecido a credibilidade que lhes foi reconhecida por se revelarem insipientes, inconsistentes e sem demonstrar a sua verdadeira razão de ciência, não servindo para fundamentar as respostas dadas à matéria de facto em referência.
40. Da prova testemunhal produzida e das declarações das partes prestadas em audiência, dúvidas inexistem de que, não houve qualquer doação por parte dos Recorrentes ao falecido CC e que este e a sua esposa AA nunca praticaram atos de posse sobre o mencionado prédio, tendentes à constituição da usucapião, pois sempre souberam o prédio ... pertencia aos Recorrentes.
41. Nenhuma das testemunhas ouvidas em audiência de discussão e julgamento revelou um conhecimento directo acerca da doação, limitando-se a referir que tinham “ouvido dizer” que o CC tinha ficado prejudicado nas partilhas e, por tal razão, os recorrentes lhes terão doado o prédio ....
42. Concretamente, neste ponto a própria A. AA foi peremptória em afirmar que nem ela ou o falecido marido CC se sentiam prejudicados com a partilha projetada, mas eram as pessoas de fora que diziam isso, sendo este o motivo ou fundamento para a doação do ..., o que não merece a mínima credibilidade.
43. Os recorrentes, nas suas declarações de parte, referiram expressamente nunca ter efectuado tal doação, uma vez que, são e sempre foram eles, os proprietários do prédio rústico denominado de ..., composto de terra de mato, situado no lugar ..., freguesia ..., inscrito na matriz predial rústica sob o artigo ...28, anteriormente inscrito na matriz rústica sob o artigo ...49.
44. Não poderia o tribunal recorrido ter considerado que os recorrentes doaram o prédio rústico ... ao falecido CC, por manifesta insuficiência de prova nesse sentido.
45. Todas as testemunhas e as próprias partes referiram em audiência de discussão e julgamento que, até ao ano de 2009, era a Sra II quem cuidava e administrava o prédio ..., pelo que, nunca o tribunal recorrido poderia ter considerado que entre 1997 e 2007, foram praticados actos de posse por parte das AA. no identificado prédio e ter considerado provado que as recorridas, há mais de 20 anos, fruem e ocupam tal prédio.
46. Ficou demonstrado à saciedade que os actos praticados no ... após o ano de 2009 pelas Recorridas, altura em que a Sra II foi para ..., foram sempre autorizados e consentidos pelos Recorrentes.
47. Não lograram as Recorridas provar os actos de posse por si alegadamente efectuados no prédio ... exercidos com a consciência de que seriam efectivamente as proprietárias de tal prédio.
48. Ainda que considerasse o tribunal recorrido a prática de alegados actos de posse por parte das recorridas a partir do ano de 2009- o que não se concede e apenas por mera hipótese se coloca - nunca teria decorrido o prazo de vinte anos exigido pela disposição legal contida no artigo 1296.º do Código Civil e, como tal, não podia o tribunal recorrido ter considerado que ocorreu a aquisição originária por usucapião.
49. Nunca a prova produzida em audiência de julgamento será apta a ilidir a presunção da existência do direito de propriedade a favor dos Recorrentes, decorrente do registo do prédio a seu favor, nos termos do disposto no artº 7º do Cód. Registo Predial.
50. Da prova produzida em audiência, constata-se que os Recorrentes, para além da aquisição derivada por força da escritura de aquisição, fizeram prova da aquisição originária do prédio a seu favor, pois lograram demonstrar que, por si e antepossuidores, vêm há mais de 20, 30, e 40 anos, possuindo, fruindo o prédio acima descrito, dele tudo extraindo e fazendo seus todos os rendimentos, frutos e proventos, utilidades e interesses, à vista de toda a gente e sem oposição de ninguém, pagando os respectivos impostos devidos, o que, sempre fizeram pública e pacificadamente.
51. A sentença em crise não efectuou uma análise crítica, cuidada e ponderada dos vários depoimentos das testemunhas produzidos em sede de audiência de julgamento, designadamente, os supra transcritos, o que inelutavelmente conduziria a uma resposta diferente e oposta à matéria de facto dada como não provada e não provada ora colocada em causa os presentes autos.
52. Entendem os Recorrentes que não podia o Tribunal a quo na sentença recorrida ter dado como provados os factos constantes das alíneas 3.1.3 alínea a), 3.1.4, 3.1.5, 3.1.9, 3.1.19, 3.1.20, 3.1.32 da matéria de facto provada da sentença recorrida, factos estes que devem ser julgados como não provados, atenta toda a prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento e a presunção da titularidade do registo que impende a favor dos Recorrentes.
53. Do mesmo modo e por manifesto erro na apreciação da prova produzida deve a matéria de facto dada como não provada nos pontos 3.2.7, 3.2.8, 3.2.11, 3.2.17.3.2.18., 3.2.19., 3.2.20., ser considerada como provada, designadamente que:
“- Os Réus, por si e seus antepossuidores, vêm, há mais de 20, 30 e 40 anos, possuindo, detendo e fruindo o prédio identificado em 3.1.7, dele tudo extraindo e fazendo seus, com exclusão de outrem, todos os seus rendimentos, frutos, proveitos, utilidades e interesses, procedendo à sua respetiva limpeza, autorizando a colocação de terra de desaterro, de roça de mato, plantando árvores e autorizando o abate de árvores, mantendo-os vedados e cuidados e, ainda, pagando os respetivos impostos pelos mesmos devidos.
- Os atos referidos supra foram praticados sem violência e sem qualquer interrupção, oposição ou ocultação de quem quer que fosse, de modo a poder ser conhecida por todos aqueles que pudessem ter interesse em contrariá-la e com o ânimo de quem é dono e exerce os direitos correspondentes ao do legítimo proprietário e de que não lesam o direito de outrem.
- Os atos descritos em 3.1.14 a 3.1.16., bem como a colocação do aterro e dos materiais de construção durante a obra no prédio identificado em 3.1.7. foram previamente autorizados pelos Réus.
54. A sentença recorrida deve ser revogada pois violou, entre outros, o disposto nos artºs 662º do CPC, 341º , 350.º e 393.º todos do Cód. Civil e o artº 7º do Código de Registo Predial.
55. Não podem os Recorrentes concordar com a decisão proferida pelo Tribunal recorrido no que concerne à sua condenação “como litigantes de má fé, nos termos do artigo 542.º n.º 1 e 2 alíneas a) e b) do Código de Processo Civil e do artigo 27.º n.º 3 do Regulamento das Custas Processuais, na multa processual de 3 (três) U.C….”, decisão que deve ser revogada.
56. Os Recorrentes limitaram se a expor nos autos a sua convicção, o que aliás, seria a postura de qualquer outro individuo que se encontrasse no seu lugar e só a violação deste dever de verdade e probidade constitui litigância de má-fé.
57. Os Recorrentes estavam e estão convictos da sua razão e limitaram-se a contar a sua versão dos factos, ainda que a final, não tivessem logrado provar a mesma.
58. Os Recorrentes não omitiram factos, nem tão pouco alegaram factos que não correspondessem à verdade e não preenchem o pressuposto da negligência grave, uma vez que, não caíram nas situações resultantes da falta das precauções exigidas pela mais elementar prudência ou das aconselhadas pela previsão mais elementar e que devem ser observadas nos usos correntes da vida.
59. Deve a decisão em crise proferida pelo Tribunal a quo ser revogada no que respeita à condenação dos recorrentes como litigantes de má fé.”
Pedem por isso que se dê provimento ao recurso, nos termos das conclusões referidas supra, e que seja revogada a sentença proferida nos autos.
*
As A.A. apresentaram contra-alegações que terminam com as seguintes
-CONCLUSÕES-(que se reproduzem)

“1 - O vício concretamente apontado pelos Apelantes à sentença sub iudice começa por ser, que o tribunal a quo condenou num pedido não exatamente peticionado pelas Apelantes.
2 - Com o devido respeito, a ocorre tal vício (que discordamos), tal não é subsumível ao vício de omissão/excesso de pronúncia, tal qual os Apelantes sustentam, devendo improceder a nulidade assacada.
3 - À cautela, parecem suscitar os Apelantes a questão de a sentença poder, em tese, ter condenado em “objeto diverso do pedido.”
4 – No caso dos autos, evidencia-se que a partilha ainda não foi feita, pelo que, em rigor estamos em presença de uma situação de herança não partilhada, indivisa, e no rigor dos princípios o imóvel pertence à dita herança.”
5 - As suas afirmações de que são proprietários não mais do que mera interpretação jurídica dos efeitos decorrentes dessa sucessão, ou seja, não constitui matéria de facto, pelo que, o tribunal não está vinculado à interpretação jurídica que os autores fazem da natureza do direito em que se fundam.
6 - Estando assim na lide quem pode exercer o direito, e comprovando-se a existência desse direito, o facto dos autores se intitularem proprietários quando na realidade o direito de propriedade está na titularidade da herança de que são os únicos herdeiros, não pode deixar de determinar a procedência do pedido de restituição se o réu não lograr provar factos que o impeçam, continuando o tribunal a actuar no âmbito e limites da causa de pedir mas conformando-a juridicamente, interpretando e aplicando as regras de direito à mesma realidade fáctica que os autores interpretaram diversamente.
7 - Não pode ser de outra forma na situação em que, embora por errada interpretação jurídica, os autores pedem que se declare que são donos fundam-se, de igual forma, na circunstancia do bem pertencer à herança, invocando expressamente que a herança não foi partilhada e são os herdeiros. O pedido dos autores de declaração de que são proprietários tem assim que ser interpretado em conjunção com causa de pedir que invocam e, nessa medida, por referência à titularidade do direito na herança de que são herdeiros, declarando-se em conformidade por estarem os mesmos legalmente legitimados a exercer os direitos da herança proprietária, não sendo posto em causa nos autos essa sua qualidade de herdeiros.
8 - No que toca à herança indivisa, sendo vários os herdeiros, qualquer deles tem legitimidade para pedir, separadamente, a totalidade dos bens em poder do demandado, sem que tais bens lhe não pertençam por inteiro, podendo o cabeça-de-casal pedir a entrega dos bens que deva administrar conforme os art.ºs 2078 e ss; fora desse circunstancialismo os direitos relativos ã herança só podem ser exercidos conjuntamente por todos os herdeiros ou contra todos os herdeiros (art.º 2090 do CCiv).
9 – “III.4.8. Seja qual for a qualificação doutrinária (…); estando provado que o imóvel faz parte da herança e que os Autores, enquanto seus herdeiros o podem reivindicar, como bem se diz na sentença, em litisconsórcio activo, não para si próprios, mas para a herança, de que são os únicos herdeiros a interpretação que a sentença fez do pedido dos Autores constitui qualificação jurídica no que o Tribunal é soberano.
10 - Da Nulidade por violação do princípio do contraditório
11 - Sustentam ainda os Apelantes que a sentença recorrida violou o disposto no artigo 3º, n.º 3, o que constitui uma nulidade que impõe, nessa parte, a sua anulação.
12 - Tal não ocorre, pois, as AA. peticionaram a condenação dos então RR., ora Apelantes como litigantes de má-fé, na Réplica submetida a juízo, datada de 15-06-2022 (Ref. citius 42569587).
13 - Tal peça processual foi notificada à mandatária da parte contrária, via citius.
14 - Entende a nossa jurisprudência que: “I – Requerendo uma parte a condenação da outra como litigante de má fé, em requerimento de resposta à arguição por esta de uma nulidade processual, é suficiente para a garantia do contraditório a notificação feita entre mandatários, não constituindo decisão surpresa a posterior condenação, visto que a parte condenada teve conhecimento desse pedido e a possibilidade de se defender.”
15 - Não ocorreu qualquer decisão surpresa nem foi violado o princípio do contraditório como facilmente se comprova, sendo que a consequência a retirar de tal é, s.m.j., apenas uma, a de que ao tribunal a quo não pode ser imputada qualquer nulidade cometida na condenação como litigantes de má-fé dos Apelantes, por violação do princípio do contraditório.
16 – Os recorridos dizem que os pontos 3.1.3 alínea a), 3.1.4, 3.1.5 da matéria de facto estão incorretamente julgados, quando na realidade se mostram assentes por acordo, como bem refere a douta sentença.
17 – Os recorrentes não impugnaram a propriedade em sede de contestação, além de resultar dos documentos juntos aos autos, como referido na douta sentença.
18 – Igualmente não colocaram em causa sede de 1ª instância os fatos dados por provados nos pontos 3.1.4 e 3.1.5, por referência ao prédio identificado no ponto 3.1.3 alínea a).
19 - A prova produzida em sede de audiência de julgamento, a prova documental, incluindo fotos e também a inspeção feita ao local vai toda do sentido da matéria dada por provada quanto aos pontos da matéria de facto provada 3.1.9, 3.1.16, 3.1.19, 3.1.20 e 3.1.32:
20 - Os Recorrentes foram habilidosos nas transcrições dos depoimentos omitindo pontos relevantes.
21 – Os pontos omitidos pelos recorrentes foram fundamentais para o tribunal recorrido chegar à douta fundamentação da sentença.
22 - O exemplo decorre desde logo do depoimento da testemunha LL.
23 - Esta testemunha relatou a sua experiência e conhecimento muito mais além do que é referido em alegações de recurso e do que consta transcrito pelos recorrentes.
24 – Foi ouvida em 05/03/2024, e o seu depoimento ficou registado através de sistema de gravação digital existente no programa, das 10:04:12 horas até 10:11:16 horas e das 10:11:54 horas até 10:50:59 horas.
25 – A parte mais importante do seu depoimento decorre entre os minutos 15:30 e 18H20, no qual refere que ela sempre – praticamente desde a construção da casa em 1997 - teve a posse da chave do portão e único acesso ao prédio em causa - ... - e também à casa das recorridas, que foi a AA que lhe deu a chave e que sempre que o Sr. EE, ora recorrente, queria usar esse portão lhe pedia a chave porque ele não a tinha e depois a devolvia à testemunha.
26 – Não assiste razão aos Recorrentes quanto aos pontos da matéria de facto que colocam em causa.
27 – Pois, só precisa de pedir chave a terceiros quem não é nem se considera proprietário, como claramente era o caso dos Recorridos.
28 – O que igualmente ilide a presunção registral.
29 – A prova irrefutável da aquisição por usucapião pelas recorridas do prédio em causa resulta do processo camarários de obras nº 3430/94 para a construção da sua casa de habitação.
30 – Foi junto a este processo no ano de 1994 planta topográfica com os prédios das recorridas e do local da construção da casa, em que incluem os prédios descritos em 3.1.3 dos factos provados, mas também o prédio descrito em 3.1.7 dos factos provados, ou seja, do prédio objeto destes autos.
31 – Conforme resulta das fotocópias devidamente autenticadas pela Câmara Municipal ... que foram juntas aos autos com a referência n.º ...08, de 02/02/2023.
32 – Se se confrontar essa planta com a planta topográfica mais recente, junta à p.i. como doc. 5, percebesse que o prédio em causa é incluído como fazendo parte do conjunto dos três prédios que as Recorridas ora se arrogam proprietárias.
33 – Logo, as recorridas, por si e anterior proprietário, estão na posse do prédio há mais de 20 anos, de forma pública e ininterrupta, pelo que adquiriram o prédio por usucapião.”
Pelo que,
34 - Bem andou a Meritíssima Juiz a quo ao decidir como decidiu na douta sentença, que não merece censura.”
Pedem que seja negado provimento ao recurso, mantendo-se a decisão recorrida.
*
O recurso foi admitido como de apelação, com subida imediata, nos autos e efeito devolutivo, o que foi confirmado por este Tribunal.

O Tribunal recorrido proferiu o seguinte despacho (parcialmente reproduzido):

“Os Réus, no âmbito do recurso interposto, invocaram a nulidade da sentença por excesso de pronuncia, por condenar em objeto diverso do pedido, nos termos do artigo 615.º, n.º 1 alíneas d) e e) do Código Processo Civil.
Cumpre apreciar as nulidades invocadas nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 617.º, n.º 1 do Código Processo Civil:
Determina o artigo 615.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, para o que aqui nos interessa, que a sentença é nula quando “o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento” (alínea d)) e “o juiz condene em quantidade superior ou em objeto diverso do pedido.”

Vejamos então:
As Recorridas AA e BB intentam a presente ação, a primeira na qualidade de cônjuge meeira e herdeira de CC e a 2.ª na qualidade de filha e herdeira do referido CC, tendo formulado os seguintes pedidos:
“a) Declarar-se que as AA., na qualidade em que intervêm nos presentes autos, são legítimas donas e proprietárias dos três prédios identificado no artigo 5º desta peça processual e respetivas partes componentes, incluindo muros de vedação [sublinhado nosso];
(…)

Por sua vez, no dispositivo consta o seguinte:
“Em face do exposto, decide-se julgar a ação parcialmente procedente e a reconvenção totalmente improcedente e, em consequência:
7.1. Declara-se que a 1ª Autora AA e a herança aberta por óbito de CC são proprietários dos seguintes prédios:
(…).”
Salvo melhor opinião, contrariamente ao que defendem os Recorrentes, entendemos que foram observados os limites impostos pelo artigo 609.º, n.º 1 do Código Processo Civil, ou seja, que o Tribunal não se pronunciou sobre mais do que foi pedido nem sobre coisa diversa daquela que foi pedida.
Com efeito, conforme decorre do pedido formulado pelas Autoras elas pedem que se declare que são proprietários daqueles prédios, na qualidade em que intervêm nos presentes autos, ou seja, conforme consta na sua identificação, a primeira na qualidade de cônjuge meeira e herdeira de CC e a 2.ª na qualidade de filha e herdeira do referido CC. Quer isto dizer que as Autoras nunca peticionaram, a título individual, o reconhecimento da propriedade daqueles prédios.
Assim, a decisão a reconhecer a 1ª Autora AA, na qualidade de cônjuge meeira e a herança aberta por óbito de CC como proprietárias dos prédios não consubstancia nenhuma alteração ao pedido formulado (neste sentido, veja-se o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 21 de novembro de 2019, processo n.º 1418/14.7TBEVR.E1-A.S1, do Tribunal da Relação do Porto de 04 de novembro de 2019, processo n.º 1136/18.7T8VFR.P1 e do Tribunal da Relação de Guimarães de 05.05.2022, processo n.º 7522/20.5T8PRT.G1, disponíveis em www.dgsi.pt cujo raciocínio e lógico entendemos ser perfeitamente aplicável ao caso dos autos).
De todo o modo, resulta da factualidade provada e da fundamentação de direito que a 1.º Autora apenas foi declarada proprietária por ser cônjuge meeira, quando em rigor dos princípios os prédios integram a herança, pelo que nestes termos deve ser interpretada a parte decisória da sentença recorrida.
Concluindo-se, assim, pela inexistência das arguidas nulidades das alíneas e) e d), do nº 1, do artigo 615.º do Código Processo Civil.
*
Os Recorrentes invocam ainda a nulidade por violação do disposto no artigo 3.º, n.º 3 do Código Processo Civil, alegando que não lhe foi dada a possibilidade de se pronunciar quanto à sua condenação como litigante de má-fé.
Contrariamente ao referido pelos Recorrentes, estes foram expressamente notificados por despacho datado de 2 de outubro de 2022 para exercer o respetivo contraditório quanto ao pedido de condenação em litigância de má-fé formulado na réplica, que estes responderam por requerimento de 17.10.2022.
A decisão a condená-los como litigantes de má-fé não constitui assim decisão surpresa, porquanto aquela já tinha sido requerida e discutida pelas partes.”
*
Após os vistos legais, cumpre decidir.
***
II QUESTÕES A DECIDIR.

Decorre da conjugação do disposto nos art.ºs 608º, n.º 2, 609º, n.º 1, 635º, n.º 4, e 639º do Código de Processo Civil (C.P.C.) que são as conclusões das alegações de recurso que estabelecem o thema decidendum do mesmo. Impõe-se ainda ao Tribunal ad quem apreciar as questões de conhecimento oficioso que resultem dos autos.

Impõe-se, por isso, no caso concreto e face às elencadas conclusões decidir:

-se a sentença é nula, por condenação em objeto diverso do pedido, por excesso de pronúncia, ou por violação do princípio do contraditório no que respeita ao incidente de litigância de má fé;
-se deve ser admitida a impugnação da decisão da matéria de facto e, na afirmativa, se deve ser alterada;
-se, em consequência da procedência dessa alteração, deve ser revogada a decisão e considerados improcedentes os pedidos das A.A. e procedentes os dos R.R..
-se, em consequência da procedência dessa alteração ou independentemente da mesma, deve ser revogada a condenação dos R.R. como litigantes de má fé.
***
III FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO.

O Tribunal recorrido assentou na seguinte matéria:
“3.1. Factos Provados:
[Da Petição Inicial]
3.1.1. No dia 31/12/2016 faleceu CC, no estado de casado em primeiras e únicas núpcias de ambos, sob o regime da comunhão de adquiridos, com a Autora AA, e que dele se conserva no estado de viúva.
3.1.2. O falecido não deixou testamento público, tendo deixado como seus únicos herdeiros, a Autora AA, sua esposa e a 2.ª Autora KK, única filha do casal, que aceitaram e aceitam a respetiva herança.
3.1.3. Há mais de 20 anos que a 1:ª Autora e marido CC e, após a morte deste, as Autoras, de forma contínua, fruem e ocupam os seguintes prédios:
a). Prédio rústico, denominado ..., sito no lugar ..., situado na União de freguesias ..., concelho ..., inscrito na matriz predial rústica sob o artigo ...21º da referida União de freguesias ..., anteriormente inscrito na matriz rústica sob o artigo ...48º da extinta freguesia ... ... e omisso na Conservatória do Registo Predial.
b). Prédio urbano, composto por uma casa de ..., com logradouro, sito no lugar ..., União de freguesias ..., concelho ..., inscrita na matriz predial urbana sob o artigo ...16º da referida União de freguesias ..., anteriormente inscrito na matriz urbana sob o artigo ...07º da extinta freguesia ... ..., omisso na Conservatória do Registo Predial.
3.1.4. Durante o período referido em 3.1.3., aqueles têm vindo a ocupá-los, roçando mato e giestas, limpando-os anualmente, adubando as terras, cultivando-os, podando, apanhando lenha e colhendo os respetivos frutos, tratando das vedações, construindo a casa de habitação e aí habitando, fazendo depósito de materiais e bens, terraplanagens e fruindo todas as suas demais utilidades que os prédios permitem e pagando os respetivos impostos.
3.1.5. Os atos descritos em 3.1.4. foram praticados à vista de toda a gente, sem oposição de ninguém, com a convicção de estarem a exercer os poderes correspondentes ao direito de propriedade e ignorando que lesavam direitos alheios.
3.1.6. Os prédios referidos em 3.1.3. vieram à posse do falecido CC através de partilha aberta por óbito do seu pai, FF, mediante escritura pública de Habilitação e Partilha, lavrada a ../../1994 no Cartório Notarial ....
3.1.7. O prédio referido em 3.1.3. b) confronta, de norte, com o prédio rústico denominado ..., composto de terra de mato, situado no lugar ..., freguesia ..., inscrito na matriz predial rústica sob o artigo ...28, anteriormente inscrito na matriz rústica sob o artigo ...49º.
3.1.8. O prédio referido em 3.1.7. encontra-se descrito na Conservatória do Registo Predial ..., sob o número ...16, na freguesia ... ..., a favor dos Réus pela AP ...17 de 28.04.2021.
3.1.8. O prédio referido em 3.1.7. adveio à posse dos Réus por escritura pública de compra e venda celebrada entre estes e HH no ... Cartório da Secretaria Notarial ..., lavrada em 30 de abril de 1963.
3.1.9. Em data não concretamente apurada do ano de 1997, o prédio rústico denominado ..., referido em 3.1.7., foi doado verbalmente pelos Réus ao falecido CC.
3.1.10. Por volta do ano de 1996, a 1.ª Autora e o falecido marido CC iniciaram a construção da sua casa de habitação no prédio referido 3.1.3.2. para o que procederam ao desaterro desse prédio, tendo, em 1997, mandado espalhar a terra resultante desse aterro nos prédios referidos em 3.1.3.a). e em 3.1.7.
3.1.11. Em data não concretamente apurada, mas entre os anos de 1997 e 2007, a Autora mulher e o falecido marido CC reforçaram o muro em pedra solta que delimitava os três prédios ao longo do limite nascente, colocando-lhe uma fiada de tijolos e cimentando as juntas do muro original.
3.1.12. Na sequência do referido em 3.1.11., no prédio identificado no prédio identificado em 3.1.7., a Autora mulher e o falecido marido MM fecharam uma pequena entrada pedonal, situada a nascente do prédio, que era o único acesso direto dele ao caminho, e refizeram e alteram o muro antigo do prédio identificado em 3.1.7., por todo o seu lado nascente e norte.
3.1.13. Pela mesma altura, mandaram proceder à abertura e colocação de um portão de acesso ao caminho público, do lado nascente do prédio urbano descrito em 3.1.3.1.
3.1.14. O acesso referido em 3.1.13. passou a ser o principal acesso à via pública dos prédios referidos em 3.1.3. e do prédio 3.1.7. e o único acesso do prédio referido em 3.1.7.
3.1.15. Nos anos seguintes, a Autora mulher e o falecido marido, CC, continuaram a tratar dos três supra referidos prédios, cultivando-os, limpando, plantando e cortando árvores e fizeram um murete e entrada em calçada portuguesa no limite norte do prédio identificados no ponto 3.1.3. b), o que ocupou uma área não concretamente determinado do prédio 3.1.7..
3.1.16. A Autora mulher e o falecido marido, CC cortavam os eucaliptos que ao longo dos anos iam nascendo no prédio identificado no ponto 3.1.7., utilizando-os para lenha.
3.1.17. Em dezembro de 2020, as Autoras mandaram cortar dois eucaliptos no prédio referido em 3.1.7.
3.1.18. Em agosto de 2021, as Autoras, sem dar conhecimento e sem pedir autorização dos Réus, mandaram proceder à colocação de um painel de rede por cima do muro de vedação do lado nascente e norte do prédio referido em 3.1.7., para melhor proteger a propriedade do exterior.
3.1.19. Pelo menos desde 1997 que a 1:ª Autora e marido CC e, após a morte deste, as Autoras, de forma contínua, ocupam o prédio referido em 3.1.7. praticando os atos supra referidos, limpando-o, cortando eucaliptos, apanhando a lenha, tratando dos muros e vedações, fazendo depósito de materiais e bens, terraplanagens e fruindo de todas as demais utilidades.
3.1.20. Tais atos foram praticados à vista de toda a gente, inclusive dos Réus, que a eles não se opuseram até à data referida em 3.1.21., com a convicção de exercerem os poderes correspondentes ao direito de propriedade que, assim, jamais lhes foi contestado por quem quer que seja e ignorando que lesavam direitos alheios.
3.1.21. Em 13 de setembro de 2021, os Réus remeteram à 1ª Autora uma carta com o seguinte teor:
“Na qualidade de proprietário do prédio rústico designado ... (…) venho pelo presente meio notificá-los para, no prazo de 10 (dez) dias desobstruir o acesso à minha propriedade, retirando a vedação que colocou em cima do meu muro em pedra e rede.
Também deve deixar de abater as árvores que nos pertencem, como já o fez no ano passado, abatendo dois dos nossos eucaliptos da nossa bouça.
Caso assim não procedam, seremos forçados a recorrer à via judicial o que seria de evitar, dados os constrangimentos, transtornos e acréscimos de despesas que isso lhes irá ocasionar, mais atendendo às relações familiares subjacentes.”.
3.1.22. As Autoras responderam aos Réus por carta registada, datada de 19 de setembro de 2021, através da sua mandatária, afirmando que o prédio lhes pertence porque está na sua posse, por si e seus antecessores, há mais de 20 anos e a convidar os Réus a celebrar a escritura pública de doação.
3.1.23. Apesar da missiva referida em 3.1.21. as Autoras, no dia 8 de janeiro de 2022, mandaram abater 12 eucaliptos no prédio referido em 3.1.7.
3.1.25. Nos dias 23 e 24 de outubro de 2021, o Réu marido e um trabalhador contratado por este, de seu nome NN, derrubaram o muro do lado nascente do prédio identificado em 3.1.7., numa extensão de 3,70 metros de largura.
3.1.26. Na parte do muro derrubado, o Réu marido construiu um novo acesso do prédio à via pública, com largura de 3,70 metros de largura, nele colocando tranqueiros em ferro e uma cancela que fechou com uma corrente e cadeado.
3.1.27. Para além disso, arrancou a vedação existente sobre o muro, em toda a sua extensão do lado nascente e norte, num total de mais de 100 metros de comprimento e colocou vários tranqueiros e uma rede ao longo de toda a sua extensão.
3.1.28. Os escombros resultantes dos atos descritos em 3.1.25. e 3.1.27 e a vedação arrancada foram deixados no meio do prédio.
3.1.29. Os atos descritos em 3.1.25. a 3.1.28 foram praticados sem o conhecimento e contra a vontade das Autoras.
3.1.30. O acesso referido em 3.1.26. não foi licenciado nem autorizado pela Câmara Municipal ....
3.1.31. Para a colocação da vedação referida em 3.1.18. que os Réus retiraram, as Autoras procederam à compra de material no valor total de € 584,51 e contrataram três homens para fazer o serviço durante três dias, tendo pago € 60,00 a cada um, no total de € 180,00.
3.1.32. As Autoras sentem-se apoucadas, tristes e humilhadas perante toda a situação e comportamento dos Réus, que é do conhecimento público da freguesia.
[Da Contestação/Reconvenção]
3.1.33. O tojo que crescia no prédio rústico referido em 3.1.7 foi durante alguns anos roçado por uma senhora de seu nome OO.
3.1.34. São os Réus que procedem ao pagamento dos impostos relativos ao prédio identificado em 3.1.7. que entre o ano de 2011 e 2022 variaram entre 2 cêntimos e 80 cêntimos por cada duas prestações.
3.1.35. O prédio referido em 3.1.7., antes do alteamento do muro, tinha uma entrada do lado nascente do prédio e referida em 3.1.12., há mais de 20, 40 e 50 anos.
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3.2. Factos Não Provados:

Não se provaram outros factos alegados nos articulados, designadamente os seguintes:
3.2.1. A doação verbal referida em 3.1.9. ocorreu para compensar o facto do falecido CC ter ficado prejudicado na partilha referida em 3.1.6. em relação à Ré mulher, sua irmã.
3.2.2. Ficou projetado que a escritura pública de doação seria realizada de seguida, porém, a mesma foi sendo sucessivamente adiada ao longo dos anos porque todos se encontravam em ... e havia uma boa relação familiar e de confiança entre todos.
3.2.3. No ano 1995 a Autora mulher e o falecido marido CC procederam à limpeza do prédio identificado em 3.1.7.
3.2.4. Com o aterro descrito em 3.1.10., a Autora mulher e o falecido marido CC pretenderam uniformizar e tornar o prédio referido em 3.1.7. na continuidade e extensão do logradouro do prédio urbano identificado em 3.1.3.1.
3.2.5. O prédio referido em 3.1.7 tem uma área de 796 m2.
3.2.6. Os Réus adquiriram o prédio referido em 3.1.7. porque aí pretendiam construir a sua casa de habitação.
3.2.7. Os Réus, por si e seus antepossuidores, vêm, há mais de 20, 30 e 40 anos, possuindo, detendo e fruindo o prédio identificado em 3.1.7, dele tudo extraindo e fazendo seus, com exclusão de outrem, todos os seus rendimentos, frutos, proveitos, utilidades e interesses, procedendo à sua respetiva limpeza, autorizando a colocação de terra de desaterro, de roça de mato, plantando árvores e autorizando o abate de árvores, mantendo-os vedados e cuidados e, ainda, pagando os respetivos impostos pelos mesmos devidos.
3.2.8. Os atos referidos supra foram praticados sem violência e sem qualquer interrupção, oposição ou ocultação de quem quer que fosse, de modo a poder ser conhecida por todos aqueles que pudessem ter interesse em contrariá-la e com o ânimo de quem é dono e exerce os direitos correspondentes ao do legítimo proprietário e de que não lesam o direito de outrem.
3.2.9. Antes de proceder às obras no muro referidas em 3.1.11, o falecido CC falou com o Réu marido para que fizesse o mesmo na continuação do muro da sua propriedade para ficar uniforme, o que este aceitou.
3.2.10. Nessa sequência, os Réus pagaram € 550,00 ao falecido CC pelas despesas e mão de obra relativas à recuperação do muro do prédio referido em 3.1.7.
3.2.11. Os atos descritos em 3.1.14 a 3.1.16., bem como a colocação do aterro e dos materiais de construção durante a obra no prédio identificado em 3.1.7. foram previamente autorizados pelos Réus.
3.2.12. A curva na zona da calçada construída pela a Autora mulher e o falecido marido, MM foi autorizada pelos Réus para que facilitar a circulação de automóveis por aqueles, cedendo-lhes 104 metros quadrados.
3.2.13. A senhora LL colocava as ovelhas a pastar no prédio referido em 3.1.7. com autorização do Réu marido.
3.2.14. A senhora OO roçava o prédio referido em 3.1.7. com autorização e consentimento da mãe da Ré e dos Réus.
3.2.15. Após a colocação do portão e até fevereiro de 2021, os Réus serviam-se por esse acesso, porquanto o mesmo estava sempre aberto, fechado apenas pelo trinque.
3.2.16. Até 2009 os Réus iam ao prédio identificado em 3.1.7. quando visitavam a mãe da Ré mulher, e após 2009 deslocavam-se lá pelo menos duas vezes por ano.
3.2.17. Os Réus sentem-se vexados, humilhados e gozados pelo facto das Autoras referirem que eles não são proprietários daquele prédio.
3.2.18. O comportamento das Autoras provoca nos Réus um grande desgosto, revolta, transtorno e grave depressão que com o decorrer do tempo se agrava e aprofunda atentas as relações familiares subjacentes.
3.2.19. As Autoras têm, desde o primeiro momento, perfeito conhecimento e consciência de nunca celebraram com os Réus qualquer contrato de doação ou qualquer outro.
3.2.20. As Autoras omitem, conscientemente, factos essenciais cujo conhecimento obsta à pretensão por si deduzida
3.2.21. As Autoras, face à situação descrita, têm evitado vir a Portugal e ver o estado em que o prédio ficou após a intervenção do Réu marido.
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Não existem outros factos provados ou não provados com interesse para a discussão da causa e os demais alegados são matéria conclusiva/instrumental e/ou de direito ou repetida e irrelevante para a decisão a proferir, designadamente com base na sua natureza meramente instrumental, a considerar apenas em sede de motivação da matéria de facto, efetuando-se a seleção dos factos relevantes de acordo com as regras da repartição do ónus da prova, pelo que não constam dos factos provados ou não provados. Concretamente em relação aos factos descritos nos artigos 36.º a 60.º da contestação/reconvenção, não foram levados ao elenco de facto provados e não provados porquanto são factos que visam apenas fazer contraprova dos motivos indicados pelas Autoras para a doação do prédio.”
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IV MÉRITO DO RECURSO.

NULIDADE DE SENTENÇA.

Dispõe o art.º 615º, nº 1, C.P.C. que é nula a sentença quando:
a) Não contenha a assinatura do juiz;
b) Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão;
c) Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível;
d) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento;
e) O juiz condene em quantidade superior ou em objeto diverso do pedido.
As nulidades da sentença são vícios formais e intrínsecos de tal peça processual e encontram-se taxativamente previstos no normativo legal supra citado.
Os referidos vícios, designados como error in procedendo, respeitam unicamente à estrutura ou aos limites da sentença.
O vício da sentença decorrente da omissão de pronúncia relaciona-se com o dispositivo do art.º 608º do C.P.C., designadamente, com o seu n.º 2, que estabelece as questões que devem ser conhecidas na sentença/acórdão.
Da conjugação das normas decorre que a nulidade da decisão com fundamento na omissão de pronúncia apenas se verifica quando uma questão que devia ser conhecida nessa peça processual não teve aí qualquer tratamento, apreciação ou decisão, sem que a sua resolução tenha sido prejudicada pela solução, eventualmente, dada a outras (cfr. Ac. desta Relação de 5/4/2018, relatora Vera Sottomayor, em www.dgsi.pt, fonte de todos os que se citarão sem indicação de outra).
Porém questões não são factos, argumentos ou considerações. A questão a decidir está intimamente ligada ao pedido da providência e à respetiva causa de pedir. Relevam, de um modo geral, as pretensões deduzidas e os elementos integradores do pedido e da causa de pedir.
Dúvidas não há, porém, que o tribunal só pode apreciar questões que lhe forem suscitadas pelas partes (salvo as que forem de conhecimento oficioso) sob pena de, assim não sendo, cometer a nulidade no segmento inverso, ou seja, conhece de questões que não foram suscitadas, cometendo excesso de pronúncia.
No nosso processo civil vigora o princípio da coincidência entre o teor da sentença e o objeto do litígio (a pretensão formulada pelo autor que se identifica pela providência concretamente solicitada pelo mesmo e pelo direito que será objeto de tutela). Por outro lado, às partes cabe alegar os factos essenciais que integram a causa de pedir e aqueles em que se baseiam as exceções invocadas (salvo as situações do art.º 5º, n.ºs 2 e 3, do C.P.C.) -tal entronca ainda no princípio do dispositivo –art.ºs 3º, n.º 1, e 5º, n.º 1, C.P.C..
Nesse sentido, o Tribunal tem de conhecer de “todos os pedidos deduzidos, todas as causas de pedir e excepções invocadas e todas as excepções de que oficiosamente lhe cabe conhecer” (Lebre de Freitas, Montalvão Machado e Rui Pinto, “Código de Processo Civil Anotado”, 2º, 2ª edição, pág. 704).
Como diz Miguel Teixeira de Sousa (“Estudos sobre o Novo Processo Civil”, pág 362), adaptando para os artigos atuais correspondentes, “um limite máximo ao conhecimento do tribunal é estabelecido pela proibição de apreciação de questões que não tenham sido suscitadas pelas partes, salvo se forem de conhecimento oficioso (art. 660°, n° 2, 2.ª parte), e pela impossibilidade de condenação em quantidade superior ou em objecto diverso do pedido (art. 661°, n.° 1). A violação deste limite determina a nulidade da sentença por excesso de pronúncia (art. 668°, n° 1, al. d) 2.ª parte) ou por conhecimento de um pedido diferente do formulado (art. 668°, n° 1, al. e)”. No que respeita ao pedido, enquanto conclusão lógica do alegado na petição e manifestação da tutela jurídica que o autor pretende alcançar com a demanda, é, pois, de grande importância o modo como se mostra formulado, por, como se viu, o juiz não dever deixar de proferir decisão que se contenha nos estritos limites em que foi delineado pelo autor.
A nulidade da sentença por condenação além do pedido e em objeto diverso do pedido resultará da violação ou desrespeito pelo princípio contido no n.º 1 do art.º 609º do C.P.C., de acordo com o qual a sentença não pode exceder os limites quantitativos e qualitativos do pedido.

Conforme Ac. do STJ de 7/4/2016, relatado por Lopes do Rego (cfr. também o de 12/5/2016, relatado por Orlando Afonso):

“1. O que identifica a pretensão material do autor, o efeito jurídico que ele visa alcançar, enquanto elemento individualizador da acção, é o efeito prático-jurídico por ele pretendido e não a exacta caracterização jurídico-normativa da pretensão material, a sua qualificação ou subsunção no âmbito de certa figura ou instituto jurídico, sendo lícito ao tribunal, alterando ou corrigindo tal coloração jurídica, convolar para o decretamento do efeito jurídico adequado à situação litigiosa, sem que tal represente o julgamento de objecto diverso do peticionado.
2. Assim, é lícito ao tribunal, através de uma requalificação ou reconfiguração normativa do pedido, atribuir ao A., por uma via jurídica não coincidente com a que estava subjacente à pretensão material deduzida, o bem jurídico que ele pretendia obter; mas já não será processualmente admissível atribuir-lhe, sob a capa de tal reconfiguração da materialidade do pedido, bens ou direitos substancialmente diversos do que o A. procurava obter através da pretensão que efectivamente, na sua estratégia processual, curou de formular.”
Importa não confundir “questões” com matéria de facto. A sentença é nula se não apreciou uma questão suscitada nos autos ou se apreciou uma questão de que não podia tomar conhecimento. Mas a sentença já não padece do vício da nulidade se tomou em consideração um facto de que não poderia tomar conhecimento nos termos do art.º 5º, n.ºs 1 e 2, do CPC, ou se, ao invés, não considerou provado nem não provado um facto de que deveria tomar conhecimento nos termos dessa mesma norma. Esta situação enquadra-se antes no erro de julgamento.

Neste sentido Ac. do STJ, de 23/3/2017 (relator Tomé Gomes):

“I - O não atendimento de um facto que se encontre provado ou a consideração de algum facto que não devesse ser atendido nos termos do artigo 5.º, n.º 1 e 2, do CPC, não se traduzem em vícios de omissão ou de excesso de pronúncia, dado que tais factos não constituem, por si, uma questão a resolver nos termos do artigo 608.º, n.º 2, do CPC.
II. Tais situações reconduzem-se antes a erros de julgamento passíveis de ser superados nos termos do artigo 607.º, n.º 4, 2.ª parte, aplicável aos acórdãos dos tribunais superiores por via dos artigos 663.º, n.º 2, e 679.º do CPC.
III. O mesmo se deve entender nos casos em que o tribunal considere meios de prova de que lhe não era lícito socorrer-se ou não atenda a meios de prova apresentados ou produzidos, admissíveis necessários e pertinentes. Qualquer dessas eventualidades não se traduz em excesso ou omissão de pronúncia que impliquem a nulidade da sentença, mas, quando muito, em erro de julgamento a considerar em sede de apreciação de mérito.”
Os recorrentes começam por referir que a sentença é nula por excesso de pronúncia, invocando a alínea d) reproduzida. Mas, na argumentação seguinte, aludem também à nulidade por condenação em objeto diverso do pedido, citando também a alínea e) reproduzida.
Se quanto à delimitação teórica das nulidades invocadas nenhuma dúvida de maior se levanta, na sua aplicação ao caso, tal como delimitado na motivação do recurso e resumido nas conclusões apresentadas, discordamos dos recorrentes.
Dizem os recorrentes que a presente ação tem por objeto a questão controvertida da propriedade de um imóvel reclamado, em parte, pela herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de CC e, como tal, a ação intentada tem de o ser, também em nome da respetiva herança e não em nome pessoal das recorridas, sendo que o pedido formulado nunca poderá ser formulado em nome pessoal de ambas as A., mas outrossim, haveria de ter sido efetuado no sentido de se reclamar a propriedade de tal imóvel, como sendo, uma parte, a meação da A. AA, e a outra parte, no caso a meação do falecido, como pertencendo à herança ilíquida e indivisa já aludida, representada por ambas as A.A.. Assim não sucedeu, e os pedidos formulados pelas A.A. vão no sentido que o Tribunal declare como pertencente a ambas, em compropriedade, o prédio objeto da p.i., sem reclamar a real e competente divisão e imputação a cada uma da parte que efetivamente lhes corresponde, o que é substancialmente distinto do peticionado. O Tribunal recorrido não podia ter conhecido desta questão oficiosamente, corrigindo o pedido formulado pelas A.A. e decidindo em objeto distinto do formulado, alterando-o na sua essência e substância e condenando em pedido distinto do formulado na p.i., tanto mais que a decisão proferida nem define a parte que pertence a cada uma das A.A., sendo inegável que o conhecimento desta questão, em alteração ao pedido inicialmente formulado, excedeu o objeto do processo e condenou em pedido diferente do formulado pelas A.A..
Cremos não lhes assistir razão.
De facto, e tal como sublinhou a Mmª Juíza ao pronunciar-se sobre as nulidades, as A.A. intentaram a ação na qualidade, respetivamente, de cônjuge meeira e herdeira, e de herdeira, de CC, matéria que justificam, e é nessa qualidade que peticionam o reconhecimento dos direitos substantivos alegadamente violados.
Temos também por correto que o Tribunal recorrido mais não fez do que interpretar e enquadrar ou qualificar juridicamente o pedido formulado, poder que decorre do art.º 5º, n.º 3, do C.P.C., alicerçado na respetiva causa de pedir. As A.A. identificaram-se como meeira e herdeiras do de cujos CC, alegaram a posse do prédio exercida por aquele e 1ª A., esposa, e pelas A.A. após a sua morte. E outra não podia ser a decisão, atento o facto da herança, da qual são únicas herdeiras as identificadas AA e KK, ter sido aceite, mas não estar partilhada. Aliás, a herança aceite deixa de ser jacente, e apenas esta tem personalidade e capacidade judiciárias (art.ºs 12º, a), e 15º do C.P.C.). Portanto, em juízo teriam sempre de estar os herdeiros, qualquer um, ou todos, em litisconsórcio ativo (cfr. art.ºs 2078º, n.º 1, e 2091º, n.º1, do Código Civil – C.C.). Esta situação foi tratada no Ac. da Rel. de Lisboa de 12/03/2015, relatado por Vaz Gomes, em moldes idênticos aos aqui assumidos.
Pelo exposto, está afastado o excesso de pronúncia – o Tribunal manteve-se no rigoroso âmbito do pedido formulado - e a condenação em objeto diverso – o pedido e a condenação coincidem, devidamente interpretado o primeiro e enquadrado na causa de pedir invocada.
Improcedem por isso as suscitadas nulidades da sentença por qualquer das alíneas mencionadas.
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No Ac. desta Relação de 19/4/2018 relatado por José Alberto Moreira Dias, analisou-se o princípio do contraditório, pelo que, numa abordagem sumária, destacamos que o princípio do contraditório previsto no art.º 3º, do C.P.C., a par de outros que constituem pilares do nosso ordenamento processual, tem duas vertentes:

-inter partes, e decorrência do princípio da igualdade previsto no art.º 4º do C.P.C., garantindo a possibilidade de cada parte se pronunciar sempre sobre os elementos trazidos ao Tribunal pela outra parte, ou condutas processuais, em cada momento e que podem fundamentar a decisão; esta é a vertente tradicional do direito ao contraditório, traduzida nos nºs. 1, 2 e 4, do art.º 3º, sendo o juiz fiscal do seu cumprimento (n.º 3);
-entre as partes e o Tribunal, sendo de observar pelo juiz ao longo de todo o processo, conforme dispõe o art.º 3º no n.º 3, e correspondendo a uma conceção ampla do princípio, e que no fundo emana do direito constitucional de direito de acesso à justiça num sistema equitativo e participado –art.º 20º, n.º 4, Constituição da República Portuguesa; deve ser cumprido como ato prévio de qualquer decisão a tomar no processo, seja de direito (mesmo de conhecimento oficioso), seja de facto, salvo casos de manifesta desnecessidade; é o seu cumprimento que evita a “decisão surpresa” na medida em que, além do mais, permite à parte que antevê que vai ser proferida uma decisão que lhe é desfavorável, argumentar, tentando convencer o Tribunal da bondade da sua posição.
“As decisões surpresa”, proibidas como decorre do exposto, têm o seu maior campo de expressão nas questões de conhecimento oficioso, designadamente quando não foram suscitadas pela parte contrária. 
Cabe ao intérprete e ao aplicador da lei definir caso a caso se pode dispensar a observância desse princípio, face à cláusula de “manifesta desnecessidade (…)”.
A violação desse princípio (ou a sua inobservância) configura uma nulidade processual sempre que tal omissão seja suscetível de influir no exame ou na decisão da causa, sendo consequentemente nula a decisão quando à parte não foi dada possibilidade de se pronunciar sobre os factos e respetivo enquadramento jurídico –cfr. art.ºs. 195º, 197º, n.º 1, e 199º, n.º 1, todos do C.P.C..
Esta nulidade, muito embora processual, quando a decisão-surpresa está coberta por decisão judicial, pode ser invocada e conhecida em sede de recurso.
E, como se disse no Ac. desta Relação de 6/2/2020 (relator Ramos Lopes), com eliminação das notas de rodapé: “A jurisprudência constitucional tem por assente que do ‘conteúdo do direito de defesa e do princípio do contraditório resulta prima facie que cada uma das partes deve poder exercer uma influência efetiva no desenvolvimento do processo, devendo ter a possibilidade, não só de apresentar as razões de facto e de direito que sustentam a sua posição antes de o tribunal decidir questões que lhes digam respeito, mas também de deduzir as suas razões, oferecer as suas provas, controlar as provas do adversário e tomar posição sobre o resultado de umas e outras’, adoptando, pois, um ‘entendimento amplo do contraditório, entendido «como garantia da participação efetiva das partes no desenvolvimento de todo o litígio, mediante a possibilidade de, em plena igualdade, influírem em todos os elementos (factos, provas, questões de direito) que se encontrem em ligação com o objeto da causa e que em qualquer fase do processo apareçam como potencialmente relevantes para a decisão» (Lebre de Freitas, Introdução ao processo civil: conceito e princípios gerais. Coimbra, Coimbra Editora, 1996, p. 96.)’. Exigência postulada pelo princípio do processo justo e equitativo (art. 20º da CRP), o princípio do contraditório possui conteúdo multifacetado: traduzido fundamentalmente na possibilidade de cada uma das partes invocar razões de facto e de direito, oferecer provas, controlar as provas da outra parte e pronunciar-se sobre o valor e resultado desses provas, tem ínsito o reconhecimento do direito da parte à sua audição antes de ser tomada qualquer decisão, além do direito a conhecer todas as condutas assumidas pela contraparte e a tomar posição sobre elas.”
Com todo o respeito, só pode ter sido confusão das recorrentes suscitar a violação deste princípio no que respeita ao incidente suscitado pelas A.A. na réplica, e que levou à sua ponderação e condenação na sentença recorrida como litigantes de má fé, em multa (e já não em indemnização, apesar de peticionada).
De facto, como bem fez notar a Mmª Juíza quando se pronunciou sobre a nulidade, foi proferido despacho em 2/10/2022 concedendo expressamente aos R.R. a oportunidade de contradizerem os pressupostos e o pedido relativo ao incidente. Não o fizeram, porque assim terão decidido. Diversamente do que sustentam os recorridos, não se esperou que os recorrentes, notificados por si da réplica, apresentassem a resposta ao incidente aí suscitado. O Tribunal, para que não restasse qualquer dúvida quanto à possibilidade de resposta, determinou expressa notificação para o efeito.
Por isso, sem necessidade de maior desenvolvimento, uma vez que não é a questão teórica relativa à aplicabilidade do princípio do contraditório que é motivo de controvérsia no recurso, mas sim a sua aplicação no caso, improcede também esta nulidade porque não houve violação do mesmo. 
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IV MÉRITO DO RECURSO.

-IMPUGNAÇÃO DA DECISÃO SOBRE A MATÉRIA DE FACTO.

Os recorrentes anunciam a sua intenção de impugnar a matéria de facto.
O art.º 640º do C.P.C., nos n.ºs 1 e 2, impõe determinados ónus (ónus impugnatórios) a cumprir, sob pena de rejeição dessa pretensão.
Iremos enunciá-los, e faremos a sua apreciação caso a caso, o que se justifica face aos termos como a impugnação foi apresentada pelos recorrentes.
Estão ali consignados requisitos de ordem formal que permitem a este Tribunal apreciar a impugnação da matéria de facto, nomeadamente a indicação dos concretos pontos de facto que o recorrente considera incorretamente julgados, com enunciação na motivação do recurso e síntese nas conclusões; a especificação na motivação dos meios de prova constantes do processo ou que nele tenham sido registados que, no seu entender, determinam uma decisão diversa quanto a cada um dos factos impugnados; fundando-se a impugnação em parte na prova gravada, a indicação na motivação das passagens da gravação relevantes; apreciando criticamente os meios de prova, a expressão na motivação da decisão que no seu entender deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas; tudo conforme vem melhor mencionado na obra de Abrantes Geraldes “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, Almedina, 4ª Edição, págs. 155 e 156.
Conforme Acs. do STJ, designadamente de 29/10/2015, de 03/05/2016 e de 21/03/2019, podemos distinguir nestas exigências um ónus primário ou fundamental de delimitação do objeto do recurso e de fundamentação concludente da impugnação, e um ónus secundário tendente a possibilitar um acesso mais ou menos facilitado aos meios de prova gravados relevantes para a apreciação da impugnação deduzida. No primeiro caso, cabem as exigências de concretização dos pontos de factos que se consideram incorretamente julgados, especificação dos concretos meios de prova que sustentam a decisão errada e/ou diversa (sendo que o Tribunal pode considerar esses e, ao abrigo do princípio do inquisitório, outros que entenda relevantes, apreciando livremente as provas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto impugnado, exceto no que respeita a factos para cuja prova a lei exija formalidades especiais ou que só possam ser provados por documentos ou que estejam plenamente provados por documento, acordo ou confissão, conforme art.º 607º, n.º 5 do C.P.C.), e a indicação do sentido em que se deveria ter julgado a matéria de facto, na posição do recorrente, ou da decisão a proferir (art.º 640º, n.º 1, a), b) e c)). No segundo caso, cabe a exigência de indicação exata das passagens da gravação dos depoimentos que se pretendem ver reapreciados (a), n.º 2, do art.º 640º). Em ambos os casos, a cominação para a falta de cumprimento das exigências é a rejeição imediata do recurso (cfr. a dita disposição), sem possibilidade de prévia oportunidade de aperfeiçoamento da peça. Em ambos os casos, os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade devem orientar a decisão de rejeição (já que a parte ficará prejudicada ao não ver apreciado o seu recurso por motivos de ordem formal). A nuance entre os dois casos decorrerá do bom senso com que se analisam as exigências, as quais antes de mais têm que ver com o facto de possibilitar à parte contrária um efetivo exercício do contraditório, para além de serem decorrência dos princípios estruturantes da cooperação e da lealdade e boa fé processuais, visando-se com elas assegurar a seriedade do próprio recurso. Se as primeiras exigências são imprescindíveis a esse exercício e orientam também o Tribunal de recurso relativamente ao que se lhe pretende sujeitar, a segunda exigência, tendo em vista a melhor orientação para esse efeito, ainda que seja cumprida de forma imprecisa, caso a parte contrária tendo apreendido convenientemente o alcance do visado e o Tribunal esteja habilitado ao pretendido reexame, não imporá a rejeição do recurso, mas antes o seu aproveitamento. Deste modo se dará prevalência ao mérito sobre a forma, princípio enformador do atual C.P.C..
Além disso, a sanção de rejeição do recurso apenas poderá abarcar o segmento relativo à impugnação da matéria de facto e, dentro deste segmento, apenas deverá abranger os pontos relativamente aos quais tenham sido desrespeitadas as referidas regras.
Por último, e continuando a seguir a orientação do nosso STJ, face ao que se pretende assegurar com cada um dos ónus, a especificação dos pontos concretos de facto impugnados deve constar das conclusões (art.ºs 635º, n.º 4, 640º, n.º 1, a), e 639º, n.º 1, do C.P.C.). No mais (meios de prova concretos e indicação das passagens das gravações), basta que constem do corpo das alegações.
Em 17/10/2023 foi proferido Acórdão Uniformizador de Jurisprudência pelo STJ (n.º 12/2023, publicado no Diário da República n.º 220/2023, Série I de 2023-11-14, págs. 44 a 65), no sentido de se interpretar a exigência da indicação da decisão pretendida prevista na alínea c) do n.º 1 do art.º 640º, na ótica de que o recorrente não está vinculado a indicar nas conclusões a decisão alternativa pretendida, desde que a mesma resulte, de forma inequívoca, das alegações.
Trata-se da consagração de uma corrente do STJ apologista de um menor rigor formal exigido no cumprimento dos ónus formais impostos no art.º 640º do C.P.C., promotora da verdade material em detrimento da observação de formalidades, de menor relevância, desde que não seja postergado o exercício cabal do contraditório, bem como seja apreendida em termos claros pelo julgador a pretensão recursiva, chamando à colação os princípios da proporcionalidade e razoabilidade, instrumentais em relação a cada situação concreta.
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Das conclusões 12 e 13 apresentadas resulta a intenção dos recorrentes quanto à matéria a impugnar e quanto ao sentido pretendido: os pontos 3.1.3 alínea a), 3.1.4, 3.1.5, 3.1.9, 3.1.16, 3.1.19, 3.1.20, 3.1.32, da matéria de facto provada da sentença recorrida; os pontos 3.1.33, 3.1.34, 3.2.7, 3.2.8, 3.2.11, 3.2.17, 3.2.18, 3.2.19, dos factos não provados (mais à frente referem-se também ao 3.2.20).
Pretendem que se inverta o seu sentido.
Porém, na conclusão 53, sugerem a seguinte redação para os pontos não provados que, na sua ótica, devem passar a provados:
“- Os Réus, por si e seus antepossuidores, vêm, há mais de 20, 30 e 40 anos, possuindo, detendo e fruindo o prédio identificado em 3.1.7, dele tudo extraindo e fazendo seus, com exclusão de outrem, todos os seus rendimentos, frutos, proveitos, utilidades e interesses, procedendo à sua respetiva limpeza, autorizando a colocação de terra de desaterro, de roça de mato, plantando árvores e autorizando o abate de árvores, mantendo-os vedados e cuidados e, ainda, pagando os respetivos impostos pelos mesmos devidos.
- Os atos referidos supra foram praticados sem violência e sem qualquer interrupção, oposição ou ocultação de quem quer que fosse, de modo a poder ser conhecida por todos aqueles que pudessem ter interesse em contrariá-la e com o ânimo de quem é dono e exerce os direitos correspondentes ao do legítimo proprietário e de que não lesam o direito de outrem.
- Os atos descritos em 3.1.14 a 3.1.16., bem como a colocação do aterro e dos materiais de construção durante a obra no prédio identificado em 3.1.7 foram previamente autorizados pelos Réus.
Daqui decorre que, no que se refere ao ponto 3.1.16, afinal, o mesmo não deverá ser retirado dos factos provados, pugnando antes os recorrentes por uma sua leitura diversa. Excluímos desde já a sua reapreciação.
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Antes de mais, cabe esclarecer o que parece tratar-se de um lapso: os pontos 3.1.33 e 3.1.34 figuram na matéria provada. Por isso, quanto aos mesmos, temos a impugnação por excluída.
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Quando os recorrentes se referem ao ponto 3.1.7 para dizer que foi dado como provado em violação dos art.ºs 947º, 392º e 393º, do C.C. (por ausência de prova formal, designadamente escritura pública de doação), na verdade estarão a referir-se ao ponto 3.1.9 onde a doação está consignada.
A sua redação é a seguinte: “3.1.9. Em data não concretamente apurada do ano de 1997, o prédio rústico denominado ..., referido em 3.1.7., foi doado verbalmente pelos Réus ao falecido CC.”
Não há dúvida quanto ao modo de formalização da doação de imóvel, conforme dispõe o art.º 947º, n.º 1: “Sem prejuízo do disposto em lei especial, a doação de coisas imóveis só é válida se for celebrada por escritura pública ou por documento particular autenticado.”
O n.º 1 do art.º 364º do C.C. refere que “Quando a lei exigir, como forma da declaração negocial, documento autêntico, autenticado ou particular, não pode este ser substituído por outro meio de prova ou por outro documento que não seja de força probatória superior.”
Do n.º 2 do art.º 364º (“Se, porém, resultar claramente da lei que o documento é exigido apenas para prova da declaração, pode ser substituído por confissão expressa, judicial ou extrajudicial, contanto que, neste último caso, a confissão conste de documento de igual ou superior valor probatório.”) decorre que os documentos poderão constituir formalidades ad probationem, desde que resulte da lei que a finalidade tida em vista ao ser formulada certa exigência de forma foi apenas a de obter prova segura acerca do ato.
No caso do contrato de doação de imóvel, a necessidade de redução das declarações em escritura pública ou documento particular autenticado torna este tipo de negócio um contrato solene, não podendo a prova ser efetuada senão por documento de valor idêntico, o que faz depender a validade do contrato de um requisito ad substantiam – cfr. artº 364º, ex vi do artº 219º, do C.C..
Porque neste ponto o que está em causa é a alegada violação de uma norma de direito probatório material, e o suposto desrespeito pelo art.º 607º, n.º 5, quando se refere à prova vinculada (nomeadamente a que só pode ser dada como provada mediante documento), aplicável ao Tribunal da Relação por força do art.º 663º, n.º 2, C.P.C., impõe-se oficiosamente a sua verificação.
Ora, sucede que as A.A. não pretendem valer-se de uma doação válida para fundamentar o seu pedido, não é essa a causa de pedir, mas sim a usucapião; nessa medida, nada impede o recurso a qualquer meio de prova para sustentar que as declarações (verbais) respetivas foram produzidas, ou seja, o acordo.
Para melhor entendimento, e embora a propósito de outra(s) matéria(s), destacamos aqui o Ac. desta Relação de 20/2/2020 (relatora Sandra Melo), a que a presente relatora também recorreu e seguiu nos processos n.º 137/21.2T8VCT.G1, proferido em 13/07/2022 (publicado), n.º 5976/18.9T8BRG.G1, proferido em 18/01/2024 (não publicado), e n.º 509/22.5T8BGC.G1, proferido em 20/02/2025 (não publicado): “Ao pretender-se provar a celebração de um contrato nulo por forma não se visa demonstrar que foi reproduzida a declaração de vontade de celebrar um negócio a que se atribui valor contratual. A parte não se propõe provar que ocorreu uma declaração de vontade juridicamente vinculativa do seu emitente, mas, antes pelo contrário, pretende demonstrar que esta vinculação não teve lugar, por falta de forma.
Por outro lado, a razão de ser desta proibição de prova reside no facto de haver que proteger a validade dos documentos escritos: seria perigoso admitir que um meio de prova tão frágil e inseguro como a testemunhal ou uma posterior declaração de uma parte pudesse contrariar a força que é legalmente dada a documento. A admissibilidade da prova testemunhal de acordos contra ou para além do conteúdo do documento, ou sem suporte documental quando este é legalmente exigido, abriria a porta para que qualquer contraente, recorrendo a um meio de prova mais frágil escapasse ao que se obrigara ou deveria obrigar por escrito válido, retirando dessa forma a eficácia aos documentos e à sua exigência.
Da mesma forma, com a proibição da valoração da prova testemunhal ou confissão (entre simuladores) para considerar a declaração negocial quando por disposição da lei ou estipulação das partes, a mesma houver de ser reduzida a escrito ou necessitar de ser provada por escrito, pretende-se salvaguardar o valor que a lei e as partes pretenderam conferir a tais documentos, não permitindo que as mesmas contornem tais exigências, mediante o recurso a um meio de prova menos confiável, superando todas as vantagens que se pretendem obter com a exigência de forma especial, que passam, também, pela ponderação que é inerente à exigência de maior solenidade na celebração do contrato. (4)
Assim, não se aplicam as restrições probatórias aplicáveis à prova das declarações negociais aos casos em que as afirmações proferidas pelas partes apenas valem como forma de apurar o que determinou uma transferência patrimonial e em que se pretende demonstrar que apesar de terem sido proferidos certos dizeres ou tomados certos comportamentos, estes não valem enquanto declarações de vontade juridicamente vinculantes, por vício de forma.
Não se pretende demonstrar que ocorreu uma declaração negocial qua tale, mas que foram proferidas declarações que não podem valer como tal. Estas restrições de prova não são, pois, extensíveis à demonstração da celebração de contratos nulos.
Neste sentido é reiterada a posição dos nossos tribunais, citando-se, a título de exemplo, o recente acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 07/11/2019 no processo 4013/15.0T8LRS.L1-7, que explica de forma acutilante “A questão que se coloca é, pois, como efetuar a prova de um contrato nulo” citando Pires de Lima e Antunes Varela, in Código Civil Anotado, 3ª edição revista e atualizada, 1986, Volume II, pág. 683, em anotação ao artigo 1143º, “As razões justificativas do carácter formal do contrato - tiradas da extrema falibilidade da prova testemunhal - levariam, em último termo, a impedir a produção de testemunhas para prova da entrega de dinheiro e sua consequente restituição ao abrigo da nulidade do contrato. Não se trata, porém, duma consequência forçosa, necessária do regime estabelecido. Concebe-se perfeitamente que a lei considere bastante a sanção da nulidade do contrato (sem prejuízo da prova testemunhal da entrega da coisa mutuada), para garantir a observância da forma visada. Aos efeitos da nulidade do mútuo é aplicável o disposto no artigo 289.º, n. 1, e não a doutrina do enriquecimento sem causa (art. 474.º)”.”
Essa é a leitura a fazer dos art.ºs 364º, 392º e 393º, n.º 1, do C.C.. No caso em apreço, embora não se pretenda retirar efeitos da nulidade, na verdade também não se pretende provar e tirar efeitos de um contrato válido, contornando a exigência de forma. Portanto, não se aplica qualquer restrição probatória.
Improcede, por isso, a argumentação apresentada.
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Vejamos agora a restante matéria que os recorrentes dizem pretender impugnar.
Referem-se ao ponto 3.1.3 alínea a). Ora, lidas as peças processuais e as alegações de recurso, o que está em causa é o prédio inscrito na matriz sob o artigo 2528º; esse ponto refere-se ao artigo 2521º; só podemos por isso considerar que se tratou de lapso essa menção, pelo que se considera excluída a sua impugnação.
O mesmo se diga quanto aos pontos 3.1.4 e 3.1.5, que não é matéria que esteja em causa, nomeadamente no recurso. Referem-se aos prédios inscritos sob os artigos 2521º e 2316º. Exclui-se também da impugnação.
A referência ao ponto 3.1.7 já vimos que se terá devido a lapso (troca com o 3.1.9) e por isso também não está em causa.
Isto posto, quanto aos factos provados restam os pontos 3.1.9 (a referida doação verbal), 3.1.19, 3.1.20 (3.1.19. Pelo menos desde 1997 que a 1.ª Autora e marido CC e, após a morte deste, as Autoras, de forma contínua, ocupam o prédio referido em 3.1.7. praticando os atos supra referidos, limpando-o, cortando eucaliptos, apanhando a lenha, tratando dos muros e vedações, fazendo depósito de materiais e bens, terraplanagens e fruindo de todas as demais utilidades./3.1.20. Tais atos foram praticados à vista de toda a gente, inclusive dos Réus, que a eles não se opuseram até à data referida em 3.1.21., com a convicção de exercerem os poderes correspondentes ao direito de propriedade que, assim, jamais lhes foi contestado por quem quer que seja e ignorando que lesavam direitos alheios.), e 3.1.32 (3.1.32. As Autoras sentem-se apoucadas, tristes e humilhadas perante toda a situação e comportamento dos Réus, que é do conhecimento público da freguesia.).
Dos factos não provados, trata-se dos seguintes:
3.2.7. Os Réus, por si e seus antepossuidores, vêm, há mais de 20, 30 e 40 anos, possuindo, detendo e fruindo o prédio identificado em 3.1.7, dele tudo extraindo e fazendo seus, com exclusão de outrem, todos os seus rendimentos, frutos, proveitos, utilidades e interesses, procedendo à sua respetiva limpeza, autorizando a colocação de terra de desaterro, de roça de mato, plantando árvores e autorizando o abate de árvores, mantendo-os vedados e cuidados e, ainda, pagando os respetivos impostos pelos mesmos devidos.
3.2.8. Os atos referidos supra foram praticados sem violência e sem qualquer interrupção, oposição ou ocultação de quem quer que fosse, de modo a poder ser conhecida por todos aqueles que pudessem ter interesse em contrariá-la e com o ânimo de quem é dono e exerce os direitos correspondentes ao do legítimo proprietário e de que não lesam o direito de outrem.
3.2.11. Os atos descritos em 3.1.14 a 3.1.16., bem como a colocação do aterro e dos materiais de construção durante a obra no prédio identificado em 3.1.7. foram previamente autorizados pelos Réus.
3.2.17. Os Réus sentem-se vexados, humilhados e gozados pelo facto das Autoras referirem que eles não são proprietários daquele prédio.
3.2.18. O comportamento das Autoras provoca nos Réus um grande desgosto, revolta, transtorno e grave depressão que com o decorrer do tempo se agrava e aprofunda atentas as relações familiares subjacentes.
3.2.19. As Autoras têm, desde o primeiro momento, perfeito conhecimento e consciência de nunca celebraram com os Réus qualquer contrato de doação ou qualquer outro.
3.2.20. As Autoras omitem, conscientemente, factos essenciais cujo conhecimento obsta à pretensão por si deduzida.
Basicamente podemos reconduzir a matéria impugnada, grosso modo, a quatro temas:
-os atos materiais sobre o prédio inscrito sob o artigo 2528º (assim designado por nós, por facilidade de identificação), o que se desdobra em dois subtemas, devidamente destrinçados: os atos praticados pelas A.A. (e antecessores) sobre o prédio inscrito sob o artigo 2528º, e o modo e a convicção com que foram praticados; os atos praticados pelos R.R. sobre esse mesmo prédio, e o modo e a convicção com que foram praticados;
-a sua doação;
-as consequências dos atos praticados por R.R. e por A.A., respetivamente para as A.A. e para os R.R.;
-a omissão de factos para os autos por parte das A.A. (sem tecermos aqui apreciações quanto ao seu conteúdo).
Vejamos, quanto a estas matérias, se este Tribunal está em condições de reapreciar a prova produzida, o que passa por verificar, antes de mais, se foram cumpridos os restantes ónus impugnatórios, já que resulta do exposto que indicaram a matéria em causa e a redação pretendida para a mesma (art.º 640º, n.º 1, alíneas a) e c)).
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Para apreciar a correção da impugnação apresentada, temos de abordar, conjugadamente, vários princípios e objetivos orientadores da tarefa de reapreciação da prova.
O Tribunal, neste caso o de 1ª instância, deve apresentar a sua convicção sobre a matéria de facto de forma fundamentada e circunstanciada, assim cumprindo a determinação constitucional de obrigatoriedade de fundamentação de todas as decisões que não sejam de mero expediente, expressa no art.º 205º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa. A importância da obrigação de fundamentação levou o legislador ordinário a prever a mesma no art.º 154º do C.P.C., e especificamente no que respeita às sentenças no art.º 607º do mesmo diploma, daí decorrendo que a fundamentação tem de ser factual e jurídica, e, no que concerne à matéria de facto, com a eliminação no novo C.P.C. da fase de resposta ao questionário, tem também de constar a análise crítica das provas (…), ou seja, aquilo que nas sentenças se costuma designar como “motivação”.
A importância deste princípio levou também a que o seu incumprimento afetasse a sentença de nulidade, sendo praticamente pacífico que apenas está em causa a falta absoluta de fundamentação (ou, no máximo, uma insuficiência grosseira que lhe equivalha) –art.º 615º, n.º 1, d), C.P.C..
Daí decorre que também à parte são imputados ónus quando pretende, em sede recursiva, ver alterada a decisão proferida, seja no que respeita à matéria de facto, seja em sede (e/ou) de aplicação do direito.
São as conclusões de recurso que, em primeiro lugar, orientam a tarefa de delimitação das pretensões recursivas.
Dispõe o artº. 639º, nº. 1, do C.P.C., que o recorrente deve apresentar a sua alegação, na qual conclui, de forma sintética, pela indicação dos fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão, ou seja, as conclusões extraídas da motivação do recurso serão uma síntese dos fundamentos em que se baseia a discordância do recorrente relativamente à decisão recorrida. O nº. 2 do mesmo artigo concretiza as indicações que delas devem constar quando e na parte em que a discordância se prende com a aplicação do direito: as normas jurídicas violadas, o sentido com que, no entender do recorrente, as normas que constituem o fundamento da decisão na parte jurídica deviam ter sido interpretadas e aplicadas, caso a razão da discordância se prenda com o que se entende ser erro na determinação da norma aplicável, qual a norma que então devia ter sido aplicada. Acresce, se for o caso, a arguição de nulidades de sentença (artº. 615º, b) a e), do C.P.C.). Sendo apresentada impugnação da matéria de facto rege o artº. 640º do C.P.C. de que já tratámos (cfr. artºs. 635º, nº. 4, 640º, nº. 1, a), e 639º, nº. 1, do C.P.C.).
As conclusões correspondem às questões, de facto ou de direito, que o recorrente pretende ver reapreciadas; e é sobre essas questões que o Tribunal de recurso se tem de debruçar, sob pena de cometer nulidade por omissão ou por excesso de pronúncia (artº. 615º, nº. 1, d), ex vi artº. 666º, nº. 1, do C.P.C.). Têm a função de delimitação objetiva do recurso, conforme decorre do artº. 635º, nºs. 3 e 4, do C.P.C., a qual é semelhante à do pedido na petição inicial, ou à das exceções na contestação, salvo casos em que ao Tribunal de recurso é possível com base nos elementos dos autos julgar matérias de conhecimento oficioso –cfr. António Santos Abrantes Geraldes, “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, págs. 105 a 112 da 4ª edição.
Restringindo a apreciação ao campo da impugnação da matéria de facto, impõe-se, como decorre das obrigações do Tribunal, por um lado, e da parte recorrente, por outro, contrapor a imposição de fundamentação do Tribunal aos ónus impugnatórios a cargo do recorrente.
Para tal, recorremos às palavras do Ac. desta Relação de 9/11/2023 (2984/22.9T8GMR.G1), também relatado por Maria João Pinto de Matos, que sintetiza com recurso à doutrina, essa matéria, nestes termos: “Dir-se-á mesmo que as exigências legais referidas [art.º 640º] têm uma dupla função: não só a de delimitar o âmbito do recurso, mas também a de conferir efetividade ao uso do contraditório pela parte contrária (pois só na medida em que se sabe especificamente o que se impugna, e qual a lógica de raciocínio expendido na valoração/conjugação deste ou daquele meio de prova, é que se habilita a contraparte a poder contrariá-lo).
Por outras palavras, se o dever - constitucional (art.º 205.º, n.º 1, da CRP) e processual civil (art.ºs 154.º e 607.º, n.ºs 3 e 4, do CPC) - impõe ao juiz que fundamente a sua decisão de facto, por meio de uma análise crítica da prova produzida perante si, compreende-se que se imponha ao recorrente que, ao impugná-la, apresente a sua própria. Logo, deverá apresentar “um discurso argumentativo onde, em primeiro lugar, alinhe as provas, identificando-as, ou seja, localizando-as no processo e tratando-se de depoimentos a respetiva passagem e, em segundo lugar, produza uma análise crítica relativa a essas provas, mostrando minimamente por que razão se “impunha” a formação de uma convicção no sentido pretendido” por si (Ac. da RP, de 17.03.2014, Alberto Ruço, Processo n.º 3785/11.5TBVFR.P1).
Com efeito, “livre apreciação da prova” não corresponde a “arbitrária apreciação da prova”. Deste modo, o Juiz deverá objetivar e exteriorizar o modo como a sua convicção se formou, impondo-se a “identificação precisa dos meios probatórios concretos em que se alicerçou a convicção do Julgador”, e ainda “a menção das razões justificativas da opção pelo Julgador entre os meios de prova de sinal oposto relativos ao mesmo facto” (Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2.ª edição, Coimbra Editora, Limitada, 1985, pág. 655).
“É assim que o juiz [de 1ª Instância] explicará por que motivo deu mais crédito a uma testemunha do que a outra, por que motivo deu prevalência a um laudo pericial em detrimento de outro, por que motivo o depoimento de certa testemunha tecnicamente qualificada levou à desconsideração de um relatório pericial ou por que motivo não deu como provado certo facto apesar de o mesmo ser referido em vários depoimentos. E é ainda assim por referência a certo depoimento e a propósito do crédito que merece (ou não), o juiz aludirá ao modo como o depoente se comportou em audiência, como reagiu às questões colocadas, às hesitações que não teve (teve), a naturalidade e tranquilidade que teve (ou não)” (Paulo Pimenta, Processo Civil Declarativo, Almedina, 2014, pág. 325).
“Destarte, o Tribunal ao expressar a sua convicção, deve indicar os fundamentos suficientes que a determinaram, para que através das regras da lógica e da experiência se possa controlar a razoabilidade daquela convicção sobre o julgamento dos factos provados e não provados, permitindo aferir das razões que motivaram o julgador a concluir num sentido ou noutro (provado, não provado, provado apenas…, provado com o esclarecimento de que…), de modo a possibilitar a reapreciação da respetiva decisão da matéria de facto pelo Tribunal de 2ª Instância” (Ana Luísa Geraldes, “Impugnação e reapreciação da decisão sobre a matéria de facto”, Estudos em Homenagem ao Prof. Dr. Lebre de Freitas, Volume I, Coimbra Editora, 2013, pág. 591, com bold apócrifo).
Dir-se-á mesmo que, este esforço exigido ao Juiz de fundamentação e de análise crítica da prova produzida “exerce a dupla função de facilitar o reexame da causa pelo Tribunal Superior e de reforçar o autocontrolo do julgador, sendo um elemento fundamental na transparência da justiça, inerente ao ato jurisdicional” (José Lebre de Freitas, A Ação Declarativa Comum à Luz do Código de Processo Civil de 2013, 3.ª edição, Coimbra Editora, setembro de 2013, pág. 281).
É, pois, irrecusável e imperativo que, “tal como se impõe que o tribunal faça a análise crítica das provas (de todas as que se tenham revelado decisivas)… também o Recorrente ao enunciar os concreto meios de prova que devem conduzir a uma decisão diversa deve seguir semelhante metodologia”, não bastando nomeadamente para o efeito “reproduzir um ou outro segmento descontextualizado dos depoimentos” (Ana Luísa Geraldes, “Impugnação e reapreciação da decisão sobre a matéria de facto”, Estudos em Homenagem ao Prof. Dr. Lebre de Freitas, Volume I, Coimbra Editora, 2013, pág. 595, com bold apócrifo).
Compreende-se que assim seja, isto é, que a “censura quanto à forma de formação da convicção do Tribunal não” possa “assentar de forma simplista no ataque da fase final da formação dessa convicção, isto é, na valoração da prova; tal censura terá de assentar na violação de qualquer dos passos para a formação de tal convicção, designadamente porque não existem os dados objetivos que se apontam na motivação ou porque se violaram os princípios para a aquisição desses dados objetivos ou porque não houve liberdade na formação da convicção.
Doutra forma, seria uma inversão da posição dos personagens do processo, como seja a de substituir a convicção de quem tem de julgar, pela convicção dos que esperam a decisão” (Ac. do TC n.º 198/2004, de 24 de março de 2004, publicado no DR, II Série, de 02.06.2004, reproduzindo Ac. da RC, sem outra identificação).”
A questão que ao nosso caso importa coloca-se na amplitude a dar à exigência prevista no art.º 640º, n.º 1, b), e, reflexamente, n.º 2, a).
Refere Abrantes Geraldes (obra citada, pág. 159) que as referidas (todas as desse artigo) exigências “devem ser apreciadas à luz de um critério de rigor. Trata-se, afinal, de uma decorrência do princípio da auto-responsabilidade das partes, impedindo que a impugnação da decisão da matéria de facto se transforme numa mera manifestação de inconsequente inconformismo.” Desenvolvendo, podemos ver o Ac. do STJ de 28/04/2026 do qual foi relator.
Com estas exigências prende-se ainda uma outra matéria: a respeitante aos poderes/deveres (e critérios) da Relação nesta sua função de reapreciação da matéria de facto, nomeadamente quando nos situamos, como é o caso, no âmbito de meios de prova sujeitos à livre apreciação do julgador.
Dispõe o art.º 662º, n.º 1, do C.P.C. que “A Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.” A Relação usa do princípio da livre apreciação da prova com a mesma amplitude de poderes da 1ª instância, nos termos que resultam do n.º 5 do art.º 607º do C.P.C.. Assim, após análise conjugada de todos os meios de prova produzidos, a Relação deve proceder à reapreciação da prova de acordo com a própria convicção que sobre ela forma, sem quaisquer limitações, a não ser as impostas pelas regras de direito material. A propósito refere também Abrantes Geraldes na mesma obra, pág. 273, "(…) a Relação deve alterar a decisão da matéria de facto sempre que, no seu juízo autónomo, os elementos de prova que se mostrem acessíveis determinem uma solução diversa, designadamente em resultado da reponderação dos documentos, depoimentos e relatórios periciais, complementados ou não pelas regras de experiência”. E na pág. 274 (…) “a Relação tem autonomia decisória, competindo-lhe formar e formular a sua própria convicção, mediante a reapreciação dos meios de prova indicados pelas partes ou daquelas que se mostrem acessíveis e com observância do princípio do dispositivo no que concerne à identificação dos pontos de discórdia”.  
Porém, não está em causa proceder-se a novo e global julgamento, não sendo exigido nem permitido à Relação que de motu proprio se confronte com a generalidade dos meios de prova que estão sujeitos a livre apreciação e que, ao abrigo desse princípio foram valorados pelo Tribunal de 1ª instância, para deles se extrair uma decisão inteiramente nova (pág. 279). Assim, a Relação irá examinar a decisão da primeira instância e seus fundamentos, analisar as provas gravadas e proceder ao confronto do resultado desta análise com aquela decisão e fundamentos, pronunciando-se apenas quanto aos concretos pontos impugnados.
O Tribunal da Relação, nesta sua função de reapreciação da decisão de facto, não opera apenas em casos de erros manifestos de apreciação, mas também pode formar uma convicção diversa da 1ª instância sobre os pontos de facto impugnados, o que deve levar a nova decisão que contenha esse resultado, fundamentadamente, ou seja, com base bastante para alterar aquela que foi a convicção (errada) do juiz de 1ª instância (erro de julgamento - error in iudicando, concretamente error facti).
Face ao princípio do dispositivo, deve o recorrente indicar os meios de prova que, no seu entender, deviam ter feito o Tribunal a quo trilhar caminho diverso no seu juízo probatório, embora, o Tribunal ad quem não esteja limitado a essa indicação – o qual será o seu ponto de partida e pode até ser o bastante- podendo e devendo se tal se impuser (além dos demais poderes conferidos em termos de retorno à primeira instância ou de oficiosidade) socorrer-se de todos os meios de prova produzidos nos autos para confirmar ou rebater a argumentação do recorrente.
O Ac. desta Relação de 29-10-2020 (processo n.º 2163/17.7T8VCT.G1, relatado por Alcides Rodrigues) sintetiza os princípios a ter em consideração na atuação do Tribunal de recurso, recorrendo à doutrina -Abrantes Geraldes, “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, 2017 – 4ª ed., Almedina, pp. 271/300, Luís Filipe Pires de Sousa, “Prova testemunhal”, 2017 – reimpressão, Almedina, pp. 384 a 396, Miguel Teixeira de Sousa, em anotação ao Ac. do STJ de 24/09/2013, Cadernos de Direito Privado, n.º 44, Outubro/dezembro 2013, p. 33 e Francisco Manuel Lucas Ferreira de Almeida, “Direito Processual Civil”, Vol. II, 2015, Almedina, pp. 462 a 469- e jurisprudência -Acs. do STJ de 7/09/2017 (relator Tomé Gomes), de 24/09/2013 (relator Azevedo Ramos), de 03/11/2009 (relator Moreira Alves) e de 01/07/2010 (relator Bettencourt de Faria); Acs. da RG de 11/07/2017 (relatora Maria João Matos. Aqui 2ª adjunta), de 14/06/2017 (relator Pedro Damião e Cunha) e de 02/11/2017 (relator António Barroca Penha), todos consultáveis em www.dgsi.pt.- desta forma (negrito nosso):
- só tem que se pronunciar sobre a matéria de facto impugnada pelo recorrente;
- sobre essa matéria de facto impugnada, tem que realizar um novo julgamento;
- nesse novo julgamento forma a sua convicção de uma forma autónoma, de acordo com o princípio da livre apreciação das provas, mediante a reapreciação de todos os elementos probatórios que se mostrem acessíveis (e não apenas os indicados pelas partes);
- a reapreciação da matéria de facto por parte da Relação tem que ter a mesma amplitude que o julgamento de primeira instância;
- a intervenção da Relação não se pode limitar à correção de erros manifestos de apreciação da matéria de facto, sendo também insuficiente a menção a eventuais dificuldades decorrentes dos princípios da imediação, da oralidade e da livre apreciação das provas;
- ao reapreciar a prova, valorando-a de acordo com o princípio da livre convicção, a que está também sujeita, se conseguir formar, relativamente aos concretos pontos impugnados, uma convicção segura acerca da existência de erro de julgamento da matéria de facto, deve proceder à modificação da decisão;
- se a decisão factual do tribunal da 1ª instância se basear numa livre convicção objetivada numa fundamentação compreensível onde se optou por uma das soluções permitidas pela razão e pelas regras de experiência comum, a fonte de tal convicção -obtida com benefício da imediação e oralidade- apenas poderá ser afastada se ficar demonstrado ser inadmissível a sua utilização pelas mesmas regras da lógica e da experiência comum.
Significa isto que cabe ao recorrente a indicação precisa, e respeitante a cada facto, do meio probatório em que baseia a sua discordância, e ainda, quando se trata nomeadamente de depoimentos/declarações gravados, precisar o(s) segmentos(s) em que se sustenta (destacando as partes relevantes). Só desse modo, apreciando criticamente e contrapondo à argumentação do Tribunal a sua própria, de modo a demonstrar a falta de conformidade (de suporte ou de lógica) da convicção a que chegou o Tribunal recorrido, exerce verdadeiramente o seu direito de recurso. É perante esses elementos que o Tribunal da Relação exerce a sua função neste campo: “…quando os elementos fornecidos pelo processo impuserem decisão diversa, insuscetível de ser destruída por quaisquer outras provas, a dita modificação da matéria de facto - que a ela conduza - constitui um dever do Tribunal de Recurso, e não uma faculdade do mesmo (o que, de algum modo, também já se retiraria do art.º 607.º, n.º 4, do CPC, aqui aplicável ex vi do art.º 663.º, n.º 2, do mesmo diploma).” – cfr. o Ac. de 9/11/2023 supra citado; (…) “…mantendo-se em vigor os princípios da imediação, da oralidade, da concentração e da livre apreciação da prova, e guiando-se o julgamento humano por padrões de probabilidade e não de certeza absoluta -, precisa-se ainda que o uso, pela Relação, dos poderes de alteração da decisão da 1.ª Instância sobre a matéria de facto só deve ser usado quando seja possível, com a necessária segurança, concluir pela existência de erro de apreciação relativamente a concretos pontos de facto impugnados.
Por outras palavras, a alteração da matéria de facto só deve ser efetuada pelo Tribunal da Relação quando o mesmo, depois de proceder à audição efetiva da prova gravada, conclua, com a necessária segurança, no sentido de que os depoimentos prestados em audiência, conjugados com a restante prova produzida, apontam em direção diversa, e delimitam uma conclusão diferente daquela que vingou na 1.ª Instância. “Em caso de dúvida, face a depoimentos contraditórios entre si e à fragilidade da prova produzida, deverá prevalecer a decisão proferida pela primeira Instância em observância aos princípios da imediação, da oralidade e da livre apreciação da prova, com a consequente improcedência do recurso nesta parte” (Ana Luísa Geraldes, “Impugnação e reapreciação da decisão sobre a matéria de facto”, Estudos em Homenagem ao Prof. Dr. Lebre de Freitas, Volume I, Coimbra Editora, pág. 609).”
A indicação dos concretos meios de prova que justificam a alteração pretendida pelo recorrente pode ser dirigida a vários factos impugnados (em bloco), quando estejam diretamente relacionados entre si, desde que as razões invocadas para a sua alteração sejam precisamente as mesmas, e da impugnação resultem claras essas razões – neste sentido, cfr., entre outros, os Acs. do STJ de 14/01/2021 (João Cura Mariano), de 19/05/2021 (Chambel Mourisco), de 14/07/2021 (Júlio Gomes), e de 9/07/2024 (Jorge Leal).
Pode, ilustrativamente, ler-se no sumário do Ac. do STJ de 14/7/2021 (relator Fernando Batista) o seguinte:
“III - Limitando-se o impugnante a discorrer sobre os meios de prova carreados aos autos, sem a indicação/separação dos concretos meios de prova que, relativamente a cada um desses factos, impunham uma resposta diferente da proferida pelo tribunal recorrido, numa análise crítica dessa prova, não dá cumprimento ao ónus referido na al. b) do n.º 1 do art. 640.º do CPC.
IV - Ou seja, o apelante deve fazer corresponder a cada uma das pretendidas alterações da matéria de facto o(s) segmento(s) dos depoimentos testemunhais e a parte concreta dos documentos que fundou as mesmas, sob pena de se tornar inviável o estabelecimento de uma concreta correlação entre estes e aquelas.”
Pode ler-se no sumário do Ac. de 16/01/2024 (relator Luís Espírito Santo): “I – A alínea b) do nº 1 do artigo 640º do Código de Processo Civil impõe ao impugnante a obrigação processual que consiste no dever de efectuar a correspondência directa, concreta e objectiva, entre os meios probatórios por si indicados e a justificação (por eles representada) para a modificação dos pontos de facto considerados incorrectamente valorados.
II – O que significa que não é suficiente, para se considerar cumprida a exigência da alínea b) do nº 1 do artigo 640º do Código de Processo Civil, a mera reunião aglomerada dos diversos meios de prova entendidos por relevantes, feita genericamente e em estilo descritivo, numa amálgama indiferenciada, sem nenhuma referência concreta e objectiva aos pontos de facto em causa, individualmente identificados.
III – É, deste modo e no caso concreto, correcta a decisão do Tribunal da Relação de rejeição do conhecimento da impugnação de facto por incumprimento do disposto na alínea b) do nº 1 do artigo 640º do Código de Processo Civil.
IV - A circunstância de não ser de rejeitar o conhecimento da impugnação de facto, nos termos do artigo 640º, nº 1, do Código de Processo Civil, por desproporcional e não razoável, quando as questões em análise se encontrarem devidamente focalizadas, sendo praticamente intuitiva a sua compreensibilidade, não obsta, por seu turno, à dita rejeição se o não cumprimento formal dos mesmos requisitos, exigidos na norma legal referida, se verificar num contexto em que os factos controvertidos são variados e relativamente complexos, importando dilucidá-los de forma organizada, metódica e especificada, como a lei obriga.
V – Tais princípios gerais da proporcionalidade e razoabilidade têm essencialmente uma função moderadora da rigidez e do exacerbado formalismo na análise do cumprimento do artigo 640º, nº 1, do Código de Processo Civil, funcionando como uma espécie de filtro de segurança do sistema, sem que, em circunstância alguma, devam servir como forma de desculpabilização, panaceia ou manto (ilimitado) de cobertura e salvaguarda de falhas ou omissões, quando é evidente e inegável o não acatamento de cada uma das obrigações processuais aí especificamente exigidas, com o inerente prejuízo para o exercício do contraditório que assiste à contraparte.”
No Ac. de 30/11/2023 (Manuel Capelo), diz-se: “A leitura interpretativa do art. 640 do CPC processa-se seguindo a ideia base de no cumprimento dos ónus, reportando sempre a um caso concreto, preferir o mérito e a substância sobre os requisitos ou exigências puramente formais, não esquecendo nunca que estes requisitos de forma devem ser respeitados de forma a permitirem, sem necessidade de serem completados por qualquer esforço interpretativo da responsabilidade do julgador( e do recorrido), um acesso fácil e direto ao objeto da impugnação: aos concretos factos que se impugnam; aos concretos meios de prova e razões que impunham decisão diversa; e a decisão que diversamente se protesta dever ser proferida.
Não se extraindo diretamente do enunciado do art. 640 do CPC que o recorrente quando impugne a matéria de facto tenha de replicar uma fundamentação igual ou semelhante à que que deve ser observada pelo julgador nos termos do art. 607 nº4 primeira parte do CPC - que reporta à análise crítica da prova e à especificação dos fundamentos decisivos para a convicção -, a aparente inexistência desta obrigação apenas pode ser entendida como advertência para que a impugnação que realize deva ser precisa, clara e completa, de acordo com o que a lei lhe exige e a finalidade a que se destina. Deve indicar quanto a cada facto impugnado os concretos meios de prova em que baseia a sua discordância, sendo que “concreto meio de prova” no que se refere às testemunhas não é a transcrição de todo o depoimento, mas apenas o segmento decisivo e relevante quanto ao facto singular impugnado, do mesmo modo que, quanto aos documentos, não é apenas a identificação do mesmo. Podemos então ver como contrapartida à obrigação de o tribunal fazer a análise crítica das provas (de todas as provas que se tenham revelado decisivas), aquela outra que impende sobre o recorrente ao ter de enunciar sobre cada concreto facto os concretos meios de prova que devem conduzir a uma decisão diversa – não esquecendo a necessidade de o julgador perceber das alegações a análise (necessariamente crítica) que o recorrente faz não bastando reproduzir um ou outro segmento dos depoimentos.
Sendo mais ou menos exigível, segundo o caso, que o recorrente explicite a sua discordância fundada nos concretos meios probatórios ou pontos de facto que considere incorretamente julgados, certo é que as insuficiências, discrepâncias ou deficiências da prova produzida têm de resultar do que e como se alegue e conclua, no confronto com o resultado que pelo Tribunal foi declarado. Afirmar-se simplesmente que, com base nos mesmos elementos probatórios de que o tribunal se serviu, a decisão sobre o facto impugnado deveria ser diversa, poderá por vezes permitir ao Tribunal da Relação que se pronuncie sobre esse facto por ser evidente e manifesto pelo próprio meio de prova a discrepância. Porém, a maior parte das vezes, a indagação do desacordo sem enunciação das respetivas razões dificilmente permitirá ao julgador conhecer da impugnação. A impugnação não é uma possibilidade de o recorrente obter uma segunda convicção sobre o mesmo facto identificando-o a ele e ao meio de prova, obrigando o juiz a ir à procura de eventuais razões de discordância que o recorrente não alegou. É pelo contrário a invocação de um erro sobre a matéria de facto com a indicação de qual é o facto, qual é o meio de prova, quais as razões de discordância e como deveria ser julgado.
Na observação das alegações/conclusões de recurso da apelação verificamos que a recorrente não alegou as razões da sua discordância (dizer que uns factos provados deveriam ser julgados como não provados ou vice versa não é, como vimos, enunciação das razões do erro mas sim o resultado que se pretende) e não discriminou para cada facto isolado os concretos meios de prova (o segmento do depoimento ou o teor dos documentos ou parte do documento relevante), o que faz concluir que não cumpriu os ónus do art. 640 do CPC como estes são prescritos. Porém, deve perguntar-se também se o modo como realizou a impugnação permite atingir mesmo assim de forma fácil, direta e inteligível os objetivos de precisão e rigor que a lei pretende.
O legislador indicou que o impugnante não deve limitar-se a atacar, de forma genérica e global, a decisão de facto, pedindo simplesmente a reapreciação de toda ou parte da prova produzida em primeira instância e daí que há muito o STJ se pronuncie no sentido de não estar cumprido o ónus se o apelante, nas alegações e nas conclusões, agrega a matéria de facto impugnada em blocos ou temas e indica os meios de prova relativamente a cada um desses blocos, mas omitindo-os relativamente a cada um dos concretos factos cuja decisão impugna – vd. acs. de 19-12-2018, no proc. n.º 271/14.5TTMTS.P1. S1 e de 05-09-2018 no proc. n.º 15787/15.8T8PRT.P1. S2. E igual jurisprudência recomenda que esta problemática seja presidida pelo princípio da proporcionalidade com a preocupação de efetuar uma análise rigorosa em face de cada caso concreto no sentido de se poder aproveitar das alegações/conclusões o que, sem esforço ou excesso de interpretação do art. 640 do CPC, seja inteligível da impugnação e da possibilidade de a conhecer.
Da jurisprudência deste tribunal, obtemos que quando a impugnação não tenha sido facto a facto mas sim por blocos de factos deverá, com base nas indicações fornecidas pelo recorrente e não da responsabilidade ou critério do julgador, decidir-se se esse conjunto de factos impugnados se refere à mesma realidade (que deverá ser enunciada) e se os concretos meios de prova indicados pelo recorrente são comuns a esses factos. Quando tal aconteça (e seja indicado) a impugnação poderá ser admissível – vd . ac. STJ de 19/5/2021, Processo 4925/17.6T80AZ.P1.S1 in dgsi.pt. - se os factos individuais do bloco se inserem, digamos assim, num facto maior da mesma natureza, respeitando a aspetos da mesma realidade e se os meios de prova, quanto a toda essa realidade concreta e concretizada são os mesmos. Em verdade nestas situações estamos ainda no domínio da impugnação de um único facto/realidade desmultiplicado em vários e cuja prova é servida pelos mesmos meios, conforme expressa indicação do recorrente.
Não é o que ocorre no caso porque a recorrente não referiu que todos os factos impugnados como provados e não provados correspondiam (e não correspondem) à mesma realidade ou que os meios probatórios (com a devida concretização) eram os mesmos, não podendo, obviamente, tomar-se a não indicação como uma forma implícita de uniformização, ou seja, que se nada se disse todos os factos eram a mesma realidade e todos os meios de prova na sua extensão eram os mesmos. A imposição da indicação precisa dos meios de prova que devem conduzir à pretendida modificação dos factos concretamente impugnados, deve estar presente quer a impugnação se realize facto a facto, quer seja aportada a conjunto de factos com a mesma natureza temática e servida pelos mesmos meios probatórios. O que não pode é, como no caso em presença, pretender-se o um novo escrutínio indiscriminado e global da factualidade subjacente à causa.”.
Veja-se o Ac. do STJ de 5/9/2018 (relator Gonçalves Rocha), que sumariou: “I - A alínea b), do nº 1, do art. 640º do CPC, ao exigir que o recorrente especifique os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão diversa sobre os pontos da matéria de facto impugnados, exige que esta concretização seja feita relativamente a cada um daqueles factos e com indicação dos respectivos meios de prova, documental e/ou testemunhal e das passagens de cada um dos depoimentos.
II - Não cumpre aquele ónus o apelante que, nas alegações e nas conclusões, divide a matéria de facto impugnada em vários blocos de factos e indica os meios de prova relativamente a cada um desses blocos, mas omitindo-os relativamente a cada um dos concretos factos cuja decisão impugna.”.
Para completar esta questão, remetemos para a exaustiva ponderação que foi feita no Ac. desta Relação de 2/4/2025, com recurso a decisões/posições do STJ e inclusive do nosso Tribunal Constitucional, o qual foi relatado precisamente pelo aqui 2º adjunto (Gonçalo Oliveira Magalhães), tendo como 1ª adjunta a aqui igualmente 1ª adjunta (Rosália Cunha), designadamente: Acs. do STJ de 20/12/2017 (299/13.2TTVRL.G1.S2, Ribeiro Cardoso), STJ de 14/07/2021 (1006/11.0TTLRA.C1.S1, Júlio Gomes), STJ de 21/03/2023 (296/19.4T8ESP.P1.S1, Nuno Pinto de Oliveira), STJ de 26/05/2023 (6713/19.6T8GMR.G1.S1, Catarina Serra), e do TC n.º 148/2025, de 18.02.
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Passamos a aplicar o que ficou exposto.
No caso em apreciação, a produção da prova por declarações de parte e testemunhal decorreu ao longo de 9 sessões de audiência de julgamento (a 10ª foi para produção de alegações orais). Os recorrentes, na indicação dos meios probatórios, para além de, como melhor veremos, não terem feito qualquer correspondência entre cada facto impugnado ou cada tema ou subtema (sem prejuízo do que já excluímos da reapreciação) e o respetivo depoimento/declaração de parte, apenas não se referiram aos depoimentos de PP, QQ e RR. De resto, resumem os depoimentos de LL, JJ, SS, TT, UU, VV, WW, XX, YY, ZZ, das duas A.A. e dos dois R.R..
Destes depoimentos/declarações transcrevem segmentos extensos, quase sempre por várias páginas (veja-se o caso de UU, de VV, de XX, das partes).
E posto isso, concluem, perante todos os depoimentos e declarações das partes, pela insuficiência de prova da versão que colheu para o Tribunal, e pela prova da versão que foi levada aos factos não provados e que é a sua. Introduzem matéria de direito nesta sequência, e dizem ainda que “…a sentença em crise não efectuou uma análise crítica e cuidada e ponderada dos vários depoimentos das testemunhas produzidos em sede de audiência de julgamento, designadamente, os supra transcritos, o que inelutavelmente conduziria a uma resposta diferente e oposta à matéria de facto dada como provada e não provada ora colocada em causa os presentes autos.”
A crítica que apontam é, por isso, a seguinte: “A convicção do Tribunal que deu causa à matéria de facto sindicada no presente recurso, resultou essencialmente no depoimento das testemunhas LL, JJ, SS e TT.
No entanto, os depoimentos em apreço não deviam ter merecido a credibilidade que lhes foi reconhecida por parte do Tribunal a quo, por se revelarem insipientes, inconsistentes e sem demonstrar a sua verdadeira razão de ciência, não servindo para fundamentar as respostas dadas à matéria de facto em referência.”
O Tribunal recorrido disse, a propósito dos factos em causa: “As Autoras também não põem em causa que esse prédio denominado ..., pertenceu aos Réus por o terem adquirido ao anterior proprietário. Todavia, o que alegam e que os Réus negam – sendo esse o cerne do litígio em causa – é que aquele prédio tenha sido doado à 1.ª Autora e seu falecido marido em 1994, os quais, a partir dessa altura, começaram a praticar atos como se fossem seus proprietários.
Relativamente a esta matéria (factos vertidos nos pontos 3.1.9. a 3.1.16. e 3.1.19. e 3.1.20.), a convicção do Tribunal resultou essencialmente no depoimento das testemunhas LL, JJ, SS e TT, que se mostraram espontâneos, revelaram isenção, objetividade e consistência, demonstrando conhecer bem o prédio e que, por isso, mereceram credibilidade.
Esses depoimentos foram ainda conjugados com os autos de inspeção ao local, fotografias juntas e as regras da experiência comum.
Com efeito, a testemunha LL, vizinha dos prédios em causa e amiga da 1.ª Autora, referiu que era ela quem, a pedido da Autora mulher, contratava outras pessoas para limpar os prédios em causa nestes autos, inclusive o ... e que, posteriormente, também a mando da Autora, durante cerca de dois anos, levou as suas ovelhas para aí pastarem e, dessa forma, mantê-los limpos. Esta testemunha, embora não tenha conseguido precisar as datas em que praticou os atos supra referidos, afirmou que tal ocorreu quando pouco tempo antes da mãe da Ré ter ido para a ..., em 2009.
Disse ainda, confirmando o que já tinha sido relatado por Autoras e Réus, que era ela quem guardava a chave do portão de acesso a ambos os prédios e que era essa sua chave que o Réu marido lhe solicitava sempre que pretendia deslocar-se àqueles prédios.
Para além disso, referiu que agiu sempre convencida de que todos os atos que praticava naquele prédio eram a mando dos seus legítimos proprietários, a 1.ª Autora e seu falecido marido.
Por sua vez, a testemunha JJ relatou que a mãe da Ré, de quem era muito amiga, lhe contava que os Réus tinham doado aquela bouça ao seu filho CC, marido da 1ª Autora e que, para além disso, era ele quem o usava, tendo inclusivamente alteado o muro que delimitava todos os prédios e, nessa sequência, fechado o “portelo” que lhe dava acesso, colocou nele aterro e cortou eucaliptos, não tendo conhecimento de que para praticar tais atos tivesse pedido autorização àqueles.
Ora, esta testemunha, para além de ter prestado um depoimento que nos pareceu credível, demonstrou conhecer bem a situação dos autos porquanto mantinha uma relação próxima de amizade com a mãe da Ré e com o falecido CC e vivia perto dos prédios, o que justifica que tivesse assistido a conversas de família e assistido a muitos dos atos ali praticados.
Acresce que o depoimento desta testemunha foi também corroborado pela testemunha SS que, para além de ser um amigo muito próximo do falecido CC, trabalhou na construção da casa dele, por conta e ordem da sua, à data, entidade patronal e, mais tarde, por conta própria, alteou o muro que delimita as propriedades e deitou abaixo eucaliptos, advindo daqui o seu conhecimento.
Esta testemunha, de forma muito espontânea e objetiva, relatou que o falecido CC de quem era muito amigo, lhe disse, aquando da construção da casa, que a irmã lhe tinha doado o ... e que, para além disso, todos os trabalhos que executou naquele prédio ou que buliam com a sua propriedade, tais como, colocação de materiais de construção e aterro, alterar muros e corte de eucaliptos foram feitos a mando daquele e/ou da Autora mulher e por eles pagos, sem a presença dos Réus, razão pela qual sempre esteve convencido de que aquela bouça, tal como os outros prédios, pertenciam ao falecido e à Autora.
Também a testemunha TT, filho da testemunha LL, referiu que desde que a mãe da Ré foi para ..., há cerca de 14/15 anos, os seus pais colocavam os seus animais a pastar naqueles prédios e, por vezes, procediam à sua limpeza, a pedido da 1ª Autora e do seu falecido marido. Disse ainda que o falecido CC chegou a mandar abaixo eucaliptos e que, por isso, sempre os viu como proprietários dos três prédios pois agiam como tal, ao contrário dos Réus a quem nunca viu no ....
Além disso, na deslocação ao local foi possível verificar que os prédios em causa são contíguos e dão a perceção de se tratar da mesma propriedade, sem qualquer divisão entre eles (conforme resulta da fotografia n.º 6), delimitados por um muro com as mesmas características (de pedra sobre pedra com uma fiada de tijolo mais recente) e cujo acesso principal à via pública se fazia pelo portão exibido na fotografia n.º 1, pelo menos desde a sua construção até à colocação do portão exibido na fotografia n.º 4 (que está assente que apenas foi colocado em 2021). É certo que resultou da prova testemunhal que já quando pertencia ao proprietário anterior HH, entre este prédio e os demais prédios que pertenciam aos pais da Ré e do falecido marido da Autora, não havia delimitação física. Todavia tinham saídas autónomas, o que deixou de se verificar com o alteamento do muro e a construção do portão pelo falecido marido da Autora e por esta.
Foi ainda possível constatar que existe um caminho de acesso à casa das Autoras, feito em calçada portuguesa (fotografia n.º 1 e 6 do auto de inspeção) que as partes reconhecem ter sido feito pelo falecido marido da Autora e por esta que se estende por alguns metros pelo prédio referido em 3.1.7.
Ou seja, o que resultou da prova, mormente dos depoimentos supra referidos, é que depois da construção da habitação da 1.ª Autora e seu falecido marido, ocorrida no ano de 1996, conforme referiram, de forma quase unânime, as testemunhas, os Réus deixaram de praticar quaisquer atos naquele prédio até outubro de 2021, quando mandaram proceder à colocação do portão que consta da fotografia n.º 4 do auto de inspeção e deu origem aos presentes autos.
Note-se que apenas as testemunhas UU e VV, que foram quem, a mando do Réu marido, procederam, em 2021, à abertura para o prédio em causa, referiram ter visto o Réu marido praticar atos naquele prédio. O primeiro referiu que o viu a cortar azevinho naquele prédio e com uma máquina de cortar tojo. O segundo afirmou ter ido lá buscar tojo, em abril de 2013, a mando do Réus.
Tais afirmações, para além de não terem sido devidamente contextualizadas, padecem de incoerências quanto à forma como eles lá entraram (alegadamente saltando o muro e uma rede, sendo que o que resultou da prova é que a rede apenas foi colocada em 2021).
De resto, não foram sequer confirmadas pelo próprio Réu e foram contrariadas pela primeira versão do depoimento de WW, como infra se exporará. Daí que esses depoimentos não tenham convencido o Tribunal, tanto mais que foram contrariadas pelos depoimentos das testemunhas arroladas pelas Autoras, acima analisados e que foram considerados credíveis.
Por fim, os próprios Réus não negaram que a 1:ª Autora e o seu falecido marido tivessem colocado o aterro naquele prédio, reforçado o muro que o delimitava aquele propriedade da via pública, colocado o portão que servia de acesso às três propriedades, colocando uma entrada em calçada portuguesa para o prédio urbano, utilizando uma pequena área daquele prédio, e cortado os eucaliptos que lá crescia para aproveitar a sua lenha.
É certo que alegaram que todos aqueles atos foram praticados com autorização deles e que, inclusivamente, pagaram as obras de alteamento do muro na parte que delimitava o prédio em causa. Porém, a prova produzida não foi suficiente para convencer o Tribunal da sua versão.
Relativamente ao pagamento pelos Réus do alteamento do muro, a prova ficou muito aquém, dado que as testemunhas foram muito pouco convincentes.
O depoimento da testemunha WW foi marcadamente tendencioso e com inúmeras contradições, para além de não revelar praticamente nenhum conhecimento pessoal e direto sobre a factualidade em questão, limitando-se a fazer afirmações genéricas. Desde logo há que apontar que esta testemunha começa por afirmar que nunca viu os Réus naquele prédio e que quem o limpava era a testemunha LL para, na sessão seguinte (a seu depoimento prolongou-se para a sessão seguinte), vir “dar o dito por não dito”, referindo que afinal o viu várias vezes por lá a limpar, não sabendo, contudo, concretizar as datas, revelando muito pouca isenção e veracidade nas suas afirmações.
Para além disso, a forma pouco espontânea como relatou o episódio em que alegadamente viu o Réu marido a pagar ao falecido CC pelo alteamento do muro, totalmente fora do contexto do que lhe estava a ser perguntado, não convenceu minimamente o Tribunal.
E, embora a testemunha XX, filho dos Réus, tenha relatado o mesmo episódio, estes depoimentos, já por si pouco convincentes, contradizem-se em pontos relevantes: na reação do falecido CC – tendo aquela testemunha dito que aceitou o dinheiro sem qualquer objeção e esta referido que só após alguma insistência é que aceitou – e na identificação das pessoas que assistiram à entrega do dinheiro– este referiu que assistiu à entrega do dinheiro, recordando-se designadamente da quantia e aquela, contrariando-o, referiu que embora os filhos do Réu estivessem em casa, o dinheiro foi entregue quando foram encher o vinho, momento em que estava apenas ela, o Réu e o falecido CC.
Assim sendo, estes depoimentos são manifestamente insuficientes para concluir pela veracidade daqueles factos.
Por outro lado, embora a testemunha XX tenha vindo corroborar a versão dos Réus, referindo que o corte dos eucaliptos, a colocação das ovelhas pela testemunha LL, a abertura de uma janela na habitação para o ..., a colocação do aterro nesse prédio e a reconstrução do muro foi feita com autorização prévia dos seus pais, o seu depoimento foi vago, pouco seguro, sendo notório o interesse em favorecer os Réus, seus pais. Isto porque, embora a testemunha tenha afirmado ter presenciado essas conversas, fê-lo sem a mínima concretização do contexto em que tal ocorreu. Para além disso, não deixa de ser estranho e pouco credível que todos aqueles pedidos de autorização e a entrega de dinheiro tenham sido feitos na sua presença e/ou serem do seu conhecimento e estarem tão presentes na sua memória.
Por sua vez, a testemunha AAA, amigo próximo do Réu marido, revelou pouco conhecimento sobre os factos, pois nunca frequentou o prédio em causa até à entrada da presente ação e, por isso, nunca presenciou quaisquer atos que lá tivessem sido praticados, limitando-se a referir que assistiu a conversas sobre o aterro e a abertura de janelas em convívios familiares mas sem nunca precisar o que é que ouviu, nomeadamente, se ouviu o falecido CC a pedir autorização e quem estava presente.
Por tudo isto não se deu como provada a matéria vertida nos pontos 3.2.9. a 3.2.12. e 3.2.15., tendo o Tribunal, ao invés, ficado convencido que aqueles atos foram praticados pela 1:ª Autora e seu marido agindo na qualidade de seus proprietários.
Na verdade, da conjugação dos depoimentos das testemunhas LL, JJ, SS e TT com a própria natureza dos atos em causa – desde a colocação do aterro do prédio urbano, à construção do muro, à abertura de uma única entrada comum à do prédio urbano, ao corte dos eucaliptos, à autorização da testemunha LL para pastoreio das ovelhas e à sua limpeza a mando do falecido marido da Autora e desta, à construção de uma entrada em calçada portuguesa que ocupa uma parte do prédio – e a sua relevância, em especial o espalhar do aterro que alterou as características do prédio, a alteração do acesso e a construção da entrada, são bem demonstrativos que a Autora e seu falecido marido se comportavam como seus verdadeiros proprietários. Não nos parece minimamente credível, ainda que estivesse subjacente uma relação familiar de grande proximidade, que os Réus, considerando-se proprietários do dito prédio, os permitissem, tanto mais que nem sequer tinham chave do portão de acesso após a abertura da nova entrada, conforme foi por eles próprios referido e foi confirmado pela testemunha LL.
O que o tribunal ficou convencido da conjugação de toda a prova produzida e da inspeção ao local é que a Autora e o seu falecido marido, desde a conclusão da construção da sua habitação e a colocação do aterro, em 1997, sempre usaram a parcela como quiseram, com conhecimento dos Réus que nunca se opuseram apesar das Autoras não terem feito qualquer prova das razões por ela alegadas para a realização da doação, isto é, que o falecido CC tivesse ficado prejudicado na escritura de partilhas realizada no dia ../../1994 servindo a doação para o compensar.
Todavia, o Tribunal ainda assim ficou convencido que a doação ocorreu, independentemente das razões (que, na verdade, nem precisam de existir, como acontece na grande maioria das situações), sustentando a sua convicção no depoimento das testemunhas
JJ e SS em conjugação com a própria postura dos Réus perante os atos que foram sendo praticados ao longo de todos estes anos e o comportamento dos Autores que, tal como referido, revelam a intenção de possuir como donos.
De resto, a própria relação que unia os Réus e o falecido marido da Autora, de grande proximidade e paternalismo, tratando-o como um filho e auxiliando-o economicamente durante toda a sua vida, conforme resultou evidente de toda a prova produzida, nomeadamente das próprias declarações daqueles e da Autora, e o facto daquele prédio estar fisicamente ligado ao prédio onde foi construída a casa de habitação (note-se que a Ré referiu que aquele prédio foi por eles adquirido, por sugestão da sua mãe precisamente porque se encontrava fisicamente ligado às restantes propriedades dela e assim garantiam o afastamento de vizinhos indesejados), permitiu reforçar a convicção de que terá ocorrido uma doação.
O facto de os Réus continuarem a pagar os impostos relativos àquele prédio nenhuma relevância tem dado estarmos a falar de uma quantia irrisória.
O ano em que essa doação (ponto 3.1.9) ocorreu não resulta, pelo menos de forma clara, da prova produzida. Todavia, pelas razões expostas no parágrafo anterior, podemos considerar que terá ocorrido no ano de 1997, ano em que foi feito o depósito do aterro, seguido de outros atos de maior relevo, como a reconstrução do muro, o encerramento da entrada autónoma e a abertura, no prédio urbano, de um acesso comum, ao prédio em causa, atos estes cuja data concreta também não foi possível apurar, dado que as partes e as testemunhas não conseguiram precisá-las, mas que tendo em conta os depoimentos de SS de UU, coincidentes nesta parte, foi possível constatar ter ocorrido entre a data da conclusão da habitação, em 1996, e o ano de 2007 (ponto 3.1.11).
(…)
Os sentimentos manifestados pelas Autoras (ponto 3.1.32) foram relatados por elas e confirmados por testemunhas que com elas mantêm uma relação próxima, designadamente FF, pai do atual companheiro da Autora, BBB e LL.
(…)
A factualidade vertida nos pontos 3.2.7. a 3.2.14. foi motivada na sequência da motivação dos factos descritos nos pontos 3.1.9. a 3.1.16 e 3.1.19. e 3.1.20.
A factualidade vertida no ponto 3.2.15. considerou-se não provada porquanto dos depoimentos da testemunha LL e do próprio Réu resultou que sempre que este pretendia aceder àqueles prédios recolhia a chave que se encontrava na posse daquela testemunha.
A restante matéria (pontos 3.2.16. a 3.2.21) resultou não provada porquanto a prova produzida foi insuficiente.”
Que dizer?
Em primeiro lugar, que a impugnação é genérica, ainda que parcelar (cfr. as palavras usadas no sumário do Ac. desta Relação de 3/03/2022, relatado por José Flores, e o de 14/3/2024 relatado por Fernanda Proença Fernandes).
Isto é, para nós, quanto basta para a rejeição da impugnação da matéria de facto por incumprimento do disposto no art.º 640º, n.º 1, b), do C.P.C.; concretamente, os recorrentes não indicam os meios de prova a reanalisar relativamente a cada um dos factos impugnados, provados e não provados. E consequentemente também não indicam, com precisão, os pontos relevantes da prova gravada em que se sustentam, reproduzindo extensas partes dos mesmos, o que a nosso ver foi o que a alínea a) do n.º 2 do mesmo artigo quis evitar. Se esta lacuna, ainda assim, poderia ser ultrapassada (dada a localização e transcrição das passagens onde se tentaria localizar os excertos em causa), a primeira é imperativa na dinâmica do recurso.
Concretizaremos cada um dos incumprimentos.
Relativamente às matérias relativas aos danos não patrimoniais e à litigância de má fé, lida a motivação das alegações de recurso, os recorrentes não apresentam qualquer argumentação, nem indicam o respetivo meio de prova que imponha decisão diversa (contrária, como pretendido) -cfr. pontos 3.1.32 dos factos provados, e 3.2.17, 3.2.18, 3.2.19 e 3.2.20 dos factos não provados. Na introdução dos resumos e das reproduções dos depoimentos aludem apenas aos pontos 3.1.3 al. a), 3.1.4, 3.1.5, 3.1.9, 3.1.16, 3.1.19, 3.1.20, 3.1.32 (sem prejuízo do que já verificados estar fora do âmbito da impugnação, e sem prejuízo de não abordarem toda essa matéria, especificadamente). Na finalização da motivação, ao indicar a redação que sugerem dos factos não provados, retomam (parte da) dessa matéria não provada que querem alterar, e rematam concluindo que se provou que foram os R.R./recorridos que levaram a cabo atos de posse sobre o prédio, na convicção de serem os proprietários; tal não resulta a contrario da falta de prova dessa atuação por parte das A.A., embora possa resultar da ponderação dos mesmos meios de prova e duma argumentação conjugada, mas ainda assim individualizada e expressa, o que os recorrentes não apresentaram.
Os recorrentes insurgem-se genericamente contra a decisão do Tribunal, e invocam praticamente toda a prova testemunhal como tendo sido mal interpretada/valorada (“…atenta a prova produzida resultante desses mesmos depoimentos e da restante prova documental produzida, impunha-se uma decisão diferente quanto à matéria de facto dada como provada e não provada.”; “…contra as regras da experiência…”), sem destaque de concretas passagens da gravação respetiva que lhes dê razão (do seu ponto de vista).
Embora nesta parte esteja em causa essencialmente o mérito da impugnação, os recorrentes omitem qualquer referência concreta à prova documental e ao resultado da inspeção judicial, tudo ponderado na sentença.
A lei pretendeu que, lendo as alegações de recurso, se perceba com exatidão o que, na visão de quem recorre, esteve mal, com base em que meio de prova assim o entende, e, quando gravada, em que segmento da mesma encontra fundamento. Só depois desse primeiro passo, pode (e deve) concatenar tudo o que destaca, para justificar que o Tribunal recorrido errou no seu julgamento da matéria de facto.
Note-se que a presente relatora já aceitou a impugnação em bloco, englobando vários pontos da matéria de facto, quando está em causa um bloco de factos atinente a uma determinada situação ou realidade (cfr. Ac. de 2/06/2021, proferido no processo n.º 5201/17.0T8GMR.G1, não publicado).
No caso, trata-se de pontos da matéria que incluem vários dados de facto, que, por sua vez, se refletem em várias apreciações jurídicas: os atos materiais de (posse) de A.A. e de R.R., o modo e a convicção de quem atua respetivamente, a existência de uma doação verbal, as consequências da atuação de uns e outros, e a omissão de factos relevantes (embora este último ponto, a nosso ver, seria antes uma conclusão a retirar da factualidade). Por isso, não podemos aceitar uma impugnação que tudo engloba, porque a uniformidade de tema não se verifica, e não são aduzidas razões concretas para a impugnação conjunta, nomeadamente que estejam em causa os mesmos fundamentos (o que, ainda assim, no caso só se poderia verificar parcialmente, no que respeita aos atos materiais de posse de uns e de outros).
Por último, e muito embora as recorridas não tenham suscitado a questão da rejeição da impugnação da matéria de facto, basta ler as suas contra-alegações para nos suscitar sérias dúvidas quanto ao pleno exercício do seu direito ao contraditório, daí resultando prejudicada a sua defesa. De facto, limitaram-se a mencionar, a título de exemplo da falta de razão dos recorrentes, o depoimento de LL. No mais, remetem para a fundamentação da sentença. Ficamos com dúvidas se o facto de não fazerem qualquer menção aos factos considerados não provados e que também se queriam impugnar, se deveu a lapso devido face ao modo como a alegação é apresentada, ou a estratégia processual.
Em segundo lugar, cumpre dizer que, tratando-se de prova sujeita à livre apreciação do julgador, os recorrentes apenas discordam dessa convicção, da credibilidade dada a cada testemunha/parte, mas não lhe imputam erro de julgamento no sentido que lhe demos. Uma convicção diferente não é o mesmo que uma convicção errada; foi esta situação que se quis acolher no âmbito do poder/dever de correção que se exige ao Tribunal da Relação.
Para além de fazerem uma diferente interpretação dos factos e do seu contexto, que motivo (encontrado nos meios de prova a ponderar) apontam os recorrentes para se desconsiderar algum dos depoimentos no sentido que lhe deu o Tribunal, ou para lhes retirar a credibilidade - ou seja, que não existem os dados objetivos que se apontam na motivação, ou que se violaram os princípios para a aquisição desses dados objetivos, ou que não houve liberdade na formação da convicção?
A nosso ver não o fazem, não sinalizam nada de concreto que possa melindrar a convicção expressa pelo Tribunal recorrido.
O que os recorrentes verdadeiramente pretendem é um novo julgamento, e que prevaleça a sua convicção em detrimento da convicção livre e fundamentada do julgador de 1ª instância. Na perspetiva que defendemos, não é isto que se pode obter da reapreciação da prova, pelo que a sua pretensão de alterar a matéria de facto, a nosso ver, sempre estaria votada ao insucesso.
Note-se que as provas foram, na motivação, devidamente ponderadas e concatenadas entre si. Inclusive o Tribunal recorrido justificou porque é que deu credibilidade a umas e não a outras testemunhas, a uma e não a outra versão. Impunha-se aos recorrentes que fizessem o mesmo, de forma justificada, com base nos depoimentos/declarações prestados, e não de forma genérica.
Em suma, os recorrentes sustentam o seu recurso no que concerne à impugnação da matéria de facto num erróneo exame crítico das provas produzidas. Mas, ao não indicarem as exatas passagens da prova gravada que são aptas a poder fundamentar esse erro, o mérito da impugnação fica seriamente comprometido. Os recorrentes pretendem que toda a prova pessoal produzida seja reponderada, e globalmente avalizada, situação que não foi, a nosso ver, o que se pretendeu ao conferir poderes de reapreciação, ainda que amplos, ao Tribunal da Relação. Não obstante este Tribunal poder e dever, como vimos, formar autonomamente a sua convicção sobre a matéria impugnada, perspetivando-se que a posição assumida pelo Tribunal a quo tem suporte objetivado, é essa que deve prevalecer. Cabia aos recorrentes argumentar (com concretas passagens dos depoimentos ou da prova documental), no sentido de infirmar esse suporte; não basta indicar depoimentos em sentido diverso; o recorrente terá de aduzir argumentos no sentido de infirmar diretamente os termos do raciocínio probatório adotado pelo tribunal a quo, evidenciando que o mesmo é injustificado e consubstancia um exercício incorreto da hierarquização dos parâmetros de credibilização dos meios de prova produzidos, ou seja, que é inconsistente (cfr. Ac. desta Relação de 17/5/2018, relatado por José Flores).
E assim é porque, conforme citação já feita supra de Ana Luísa Geraldes “Em caso de dúvida, face a depoimentos contraditórios entre si e à fragilidade da prova produzida, deverá prevalecer a decisão proferida pela primeira Instância em observância aos princípios da imediação, da oralidade e da livre apreciação da prova, com a consequente improcedência do recurso nesta parte… “.
Identicamente, Miguel Teixeira de Sousa (“Blog IPPC” (jurisprudência 623- anotação ao ac. da RC de 7/2/2017) refere: “É verdade que os elementos de que a Relação dispõe não coincidem -- nomeadamente, em termos de imediação -- com aqueles que a 1.ª instância tinha ao dispor para formar a convicção sobre a prova do facto. No entanto, isso não significa que, como, aliás, o STJ tem unanimemente entendido, nem que a Relação esteja dispensada de formar uma convicção própria sobre a prova do facto, nem que funcione uma presunção de correcção da decisão recorrida. Importa, pois, verificar quais os elementos que devem ser considerados pela Relação para a formação da sua convicção sobre a prova produzida. Quanto a estes elementos, há uma diferença entre a 1.ª instância e a Relação: a 1.ª instância apenas dispõe dos meios de prova; a Relação dispõe daqueles meios e ainda da decisão da 1.ª instância. Como é claro, esta decisão, cuja correcção incumbe à Relação controlar, não pode ser ignorada por esta 2.ª instância. É neste sentido que se pode afirmar que, no juízo sobre a confirmação ou a revogação da decisão da 1.ª instância, a Relação pode utilizar um critério de razoabilidade ou de aceitabilidade dessa decisão. Este critério conduz a confirmar a decisão recorrida, não apenas quando for indiscutível que a mesma é correcta, mas também quando aquela se situar numa margem de razoabilidade ou de aceitabilidade reconhecida pela Relação. Correspondentemente, a decisão deve ser revogada se a mesma se situar fora desta margem.”.
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Em conclusão, a matéria de facto mantém-se como foi elencada pela 1ª instância.
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DECISÃO DE DIREITO.

Os recorrentes impugnaram a aplicação do direito apenas na medida em que obtivesse procedência na impugnação da matéria de facto.
Não tendo logrado atingir tal objetivo, desnecessária se torna qualquer outra apreciação, estando o direito corretamente aplicado no que concerne à matéria que constitui o objeto dos autos: o pedido de reivindicação e suas decorrências.
De facto, a suposta violação das regras do ónus da prova e do art.º 7º do Código de Registo Predial supunham a alteração da factualidade provada relativa à aquisição do direito de propriedade por usucapião, por parte das A.A., ou seja, à posse -pelo menos dessa. Mantendo-se essa versão dos factos, tem aplicação o art.º 344º, n.º 1, do C.C. (cfr. art.º 7º citado e art.º 350º, n.º 2, do C.C.). Prevalece por isso a titularidade da 1ª A. enquanto meeira e da herança, sobre o prédio inscrito sob o artigo 2528º.
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Insurgem-se também os recorrentes relativamente à sua condenação como litigantes de má fé.
Porém, também nesse tema, a apreciação da sua pretensão dependia de se ter alterado a matéria de facto, em concreto no que respeita à questão da prova da doação verbal.
Esse facto manteve-se como provado. Trata-se de um facto pessoal, que os recorrentes negaram.
O art.º 542º do C.P.C. concretiza as situações de má-fé material -dedução de pedido ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar, e a alteração da verdade dos factos ou a omissão de factos relevantes para a decisão da causa- e de má-fé instrumental -omissão grave do dever de cooperação, uso manifestamente reprovável do processo, ou dos meios processuais, para conseguir um fim ilegal, para entorpecer a ação da justiça, ou para impedir a descoberta da verdade, ou para protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão.
Do art.º 542º do C.P.C. retira-se que é sancionável a título de má-fé, não só a lide dolosa, mas também a lide temerária, quando as regras de conduta processual conformes com a boa-fé são violadas com culpa grave ou erro grosseiro. Na verdade, a litigância de má-fé só é censurável se, na dedução da sua pretensão, as partes não ignoravam a falta de fundamento dos factos alegados.
Ora, aplicando o direito à situação fáctica, não podemos deixar de concluir que se um facto pessoal foi negado e provou-se ter-se verificado, a alteração da verdade dos factos é dolosa, como bem fundamentou o Tribunal recorrido –art.º 542º, n.º 2, b), do C.P.C..
Não se pode argumentar, face a isso, e salvo o devido respeito, com o temor que pode advir da propositura de uma ação sempre que não se prove a versão apresentada. Não é isso que está em causa. Está em causa a prova de um facto concreto, tendo sido alegado o seu oposto por quem nele teve intervenção.
Não foi questionado o montante da multa aplicada.
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Deve, por isso, improceder na íntegra o presente recurso de apelação.
Os recorrentes, vencidos, devem arcar com as custas – art.º 527º, n.ºs. 1 e 2, C.P.C..
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VI DISPOSITIVO.

Pelo exposto, acordam os juízes do Tribunal da Relação em julgar o recurso totalmente improcedente e, em consequência, negar provimento à apelação e confirmar a sentença recorrida.
Custas a cargo dos recorrentes (artº. 527º, nºs. 1 e 2, C.P.C.).
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Guimarães, 8 de maio de 2025.
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Os Juízes Desembargadores
Relatora: Lígia Paula Ferreira Sousa Santos Venade
1ª Adjunta: Rosália Cunha
2º Adjunto: Gonçalo Oliveira Magalhães
(A presente peça processual tem assinaturas eletrónicas)