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CONTRATO DE HOSPEDAGEM
LAR DE IDOSOS
CONTRATO DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS
DENÚNCIA
EXTINÇÃO
Sumário
I. O denominado contrato de prestação de serviços (e alojamento) a que se reportam o artigo 27.º, n.º 2, alínea a), do DL 64/2007, de 14 de Março, e o artigo 10.º da Portaria 67/2012, de 21 de Março, celebrado entre as entidades que gerem estruturas residenciais para pessoas idosas, o utente e um seu familiar, sendo embora socialmente típico, não se encontra regulamentado, remetendo a lei para a autonomia das partes a fixação do seu conteúdo (cfr. o n.º 3 do artigo 9.º da Portaria). II. Não obstante, nele sendo possível reconhecer elementos próprios de diversos contratos típicos, como o de locação, de prestação de serviços e eventualmente de depósito, avultam no feixe de obrigações que recaem sobre a instituição as prestações próprias do contrato de prestação de serviços, na modalidade de mandato, tipo negocial mais próximo cujo regime será assim aplicável. III. O contrato celebrado entre a requerente e sua mãe, por um lado, e a requerida, na qualidade de entidade gestora do equipamento social por outro, rege-se pelas cláusulas convencionadas e ainda pelas disposições que regem o contrato de mandato, por força da remissão operada pelo artigo 1156.º do Código Civil. IV. Tendo as partes estabelecido que o contrato vigoraria “até à prestação de serviço, sem prejuízo do disposto na norma xxxviii do regulamento interno, com início na data abaixo indicada”, podendo todavia “ser denunciado a todo o tempo por iniciativa de qualquer dos outorgantes, com a antecedência de trinta dias” (cfr. cláusulas XI e XII), é lícita a denúncia operada pela entidade prestadora do serviço. (Sumário da Relatora)
Texto Integral
Processo 236/24.9T8PSR.E1 Tribunal Judicial da Comarca de Portalegre Juízo de Competência Genérica de Ponte de Sor - Juiz 2
I. Relatório
(…), residente na Rua (…), n.º 18, em Ponte de Sor, instaurou o presente procedimento cautelar comum contra a Associação de (…) de Ponte de Sor, A.S.S.P.S – IPSS, com sede na Av. do (…), n.º 4, em Ponte de Sor, pedindo a final que a) fosse decretada com carácter de urgência a suspensão da decisão de revogação do contrato de Alojamento e Prestação de Serviços emitida pela IPSS requerida e relativa à residente (…), mãe da requerente, e comunicada a esta última via email em 5 de junho de 2024; b) e, consequentemente, fosse a requerida impedida de proceder à expulsão da mãe da requerente até decisão final sobre a legalidade da revogação do contrato.
Decretada a providência sem audição da requerida, veio esta deduzir oposição, a que a requerente respondeu.
Produzida a prova oferecida pela requerida, foi proferida decisão final que decretou como segue:
- qualificou como contrato misto de arrendamento, a reger pelas normas do arrendamento para habitação com termo certo, com as devidas adaptações, e de prestação de serviços, o contrato celebrado entre a Requerida Associação de (…) de Ponte de Sor, A.S.S.P.S., IPSS e a utente (…), que também foi subscrito pela aqui Requerente (…), filha daquela utente, em 13 de março de 2019, pelo prazo de um ano, sucessivamente renovável, denominado de “Alojamento e Prestação de Serviços”;
- declarou que aquele contrato operou a sua renovação no dia 13 de março de 2024 porquanto não foi atempadamente denunciado por qualquer das partes para a data da sua renovação, pelo que ocorreria, nos mesmos termos, nova renovação daquele em 13 de março de 2025;
- declarou totalmente ineficaz a resolução/revogação do mencionado contrato operado pela Requerida Associação de (…) de Ponte de Sor, A.S.S.P.S., IPSS pela sua comunicação de 05 de junho de 2024, porquanto a resolução do mesmo, pela natureza do contrato e por imperativo legal, só pode ocorrer por via de declaração judicial e com os fundamentos de resolução expressamente previstos na lei, que, no caso, nem sequer se verificam;
- julgou improcedente, por manifesta falta de fundamento legal, o pedido de declaração de caducidade imediata da providência cautelar que a Requerida Associação de (…) de Ponte de Sor, A.S.S.P.S., IPSS apresentou nos autos em 01-10-2024, porquanto a invocada caducidade só opera no prazo de 30 dias a contar da data do trânsito em julgado da sentença que decretou a providência e, consequentemente, quando deduzida oposição pelo(a) Requerido(a), o trânsito em julgado só ocorre relativamente à sentença que decidir a oposição deduzida e admitida;
- considerou que o requerimento apresentado nos autos pela Requerida Associação de (…) de Ponte de Sor, A.S.S.P.S., IPSS em 01 de outubro de 2024, pela vontade inequívoca que dele decorre de a mesma pôr fim ao contrato sub iudice, configura uma verdadeira denúncia daquele contrato, que é válida e tempestiva, por ser feita com mais de 120 dias de antecedência relativamente à renovação prevista para 13 de março de 2025, e, consequentemente, determinou a imediata notificação pessoal da utente (…), por contacto pessoal através de Oficial de Justiça, de que a aqui Requerida Associação de (…) de Ponte de Sor, A.S.S.P.S., IPSS denuncia o contrato de “Alojamento e Prestação de Serviços” que com ela celebrou em 13 de março de 2019 para a renovação prevista para o dia 13 de março de 2025, pelo que no dia 13 de março de 2025 deve entregar à Requerida, livre e devoluto de pessoas e bens, o quarto que a mesma lhe disponibiliza no Lar Casa dos (…), sito em Ponte de Sor, dali se ausentando definitivamente, sendo que a mesma pode denunciar o contrato a todo o tempo, mediante comunicação à Requerida, por escrito, com uma antecedência não inferior a 30 dias do termo pretendido do contrato;
- determinou que a diligência de notificação da utente (…) fosse agendada com conjugação de agendas com a Requerente e a sua Ilustre Mandatária, para, querendo, estarem presentes neste acto, a realizar até ao dia 11 de novembro de 2024, inclusive.
Inconformada com a decisão, apelou a requerente e, tendo desenvolvido na alegação que apresentou os fundamentos da sua discordância com a decisão, formulou a final as seguintes conclusões:
“1.ª Estamos perante causa em que se suscita a questão de saber se, em Lar de Idosos, pode a gerência do Lar pôr livremente termo ao contrato feito com os utentes. Esse o pano de fundo da questão.
2.ª Mas não só essa. Também uma outra, completamente diferente, que é a de saber se o juiz pode assumir interpretar a vontade de uma das partes e dar-lhe acolhimento para, à margem do processo, obter satisfação do que pensa ser o seu direito.
3.ª A douta sentença, que aparentemente parece ter querido dar razão à Requerente, ao declarar ineficaz a decisão do Lar de revogar o contrato e ter censurado até o Lar por o ter feito (tanto que o condenou nas custas da acção), o resultado a que, verdadeiramente, leva é impor uma data fixa à mãe da Requerente para que dele saia; quando, repete-se, o que por ele queria e quer a própria Requerente é garantir a sua permanência na instituição.
4.ª Para aí chegar, pôs a douta sentença de lado princípios fundamentais do processo, como são o do respeito pela necessidade de pedido, pelo princípio do dispositivo, pela necessidade do contraditório, pela vinculação do juiz aos limites do litígio traçados pelas partes (artigos 3.º, n.º 1; 5.º, n.º 1; 615.º, n.º 1, alíneas d) e e), todos do Código do Processo Civil) e desconsiderou a que parece ser a interpretação mais adequada do contrato celebrado com os utentes do Lar.
5.ª A discordância da Recorrente, para além do inevitável registo da surpresa que lhe causou a douta sentença, vai no sentido de que esta não pode manter-se perante a preterição daqueles princípios.
6.ª A Meritíssima Juíza, perante uma pretensão de procedimento cautelar, em que tudo se move no plano da provisoriedade, abdicou do caminho processual tipificado, que é o de averiguar do bonus fumusiuris do direito (só dele) e das medidas cautelares, e seguiu caminho que a signatária considera não adequado, diz mesmo reprovado pelas normas que citou.
7.ª Para decidir como decidiu invocou poder interpretar requerimento da Requerida de resposta ao procedimento cautelar, no sentido de ser o próprio tribunal a mandar, dentro do processo, comunicar à utente do Lar que o contrato terminava na data que o mesmo tribunal fixasse e que efectivamente fixou.
8.ª Assumiu, paralelamente, poder chamar à justificação da caracterização que fez do contrato entre a Requerida e a utente dados de facto que não foram alegados, como sejam a previsão de prazo, de ser ele de um ano e de ser renovável.
9.ª Fez uso desses dados de facto e consumou o desvio da tramitação normal do procedimento cautelar para desencadear, pela notificação judicial, a denúncia do contrato, pondo-lhe termo, com prejuízo óbvio para a causa cautelar, que ficou sem objecto.
10.ª Tudo isso fez a Meritíssima juíza sem comunicação às partes de que tinha em mente recorrer à referida via marginal do processo e interpretar o contrato nos termos em que o interpretou e com base nos factos que para tanto decidiu ter em conta.
11.ª Com isso violou o disposto no artigo 3.º, n.º 1, do C.P.Civil (preterição do princípio do pedido e do contraditório), no artigo 15.º, n.º 1, do mesmo Código (princípio da salvaguarda do dispositivo) e no artigo 615.º, n.º 1, alíneas d) e e), do mesmo Código (desrespeito pelo objecto do litígio definido pelas próprias partes).
12.ª Na caracterização que fez do contrato, tendo-o como misto de arrendamento e prestação de serviços, com as “necessárias adaptações”, que não diz quais são, fez a douta sentença uma apreciação que não contempla a tipicidade da situação de fragilidade contratual dos utentes de um Lar de Idosos.
13.ª Tão radical se afigura a interpretação feita, mais ainda a aplicação prática que se lhe seguiu que caso é até para dizer que nem a requerida quereria ir tão longe.
14.ª Ao invés dessa interpretação/caracterização, é como contrato atípico, só denunciável pela utente, e obrigatoriamente mantido pela entidade que dirige o Lar, salvo reiterada e grave violação da disciplina no Lar, que o mesmo contrato deve ser interpretado.
15.ª Que não foi o caso, como a própria Mm.ª Juíza reconheceu, pois que depois de ter entendido, na primeira sentença, que não havia o menor fundamento para a revogação, isso concluiu depois na segunda sentença.
16.ª Tendo a douta sentença violado os princípios consagrados nas normas referidas e adoptado na decisão final que tomou solução que em nada se adequa aos princípios gerais do Processo Civil, não se vê que outra solução caiba ao caso, no âmbito do recurso, que não seja a da anulação da mesma, para que tudo volte ao momento prévio ao da sua prolação”.
Notificada, a requerida apresentou contra alegações, nelas tendo considerado que a decisão não padece dos imputados vícios, e apresentou recurso subordinado, cujos fundamentos condensou nas seguintes conclusões:
“A) Como da sentença recorrida se vê, a parte nela declarada como vencida é a apelante subordinada e, por isso, também é ela condenada nas custas, pelo que e de conformidade com o disposto no n.º 1 do artigo 631º do CPC, não goza a apelante principal de legitimidade para da mesma recorrer, face ao que não pode nem deve o recurso ser admitido.
B) E, se admitido, ao mesmo não pode atribuir-se efeito suspensivo, já que a serem aplicáveis ao contrato dos autos as normas do arrendamento para habitação, como entendeu e decidiu a Mm.ª Juiz, o mesmo circunscreve-se à mãe da apelante principal.
C) É por isso também que, e só, a mãe da apelante principal tinha legitimidade para da sentença recorrer e tal seu recurso ter efeito suspensivo.
D) Ao contrário do que refere a apelante principal, deduzida oposição ao decretamento da providência, nela se tendo designadamente alegado que o contrato dos autos se não rege pelas normas do arrendamento urbano para habitação, como entendido e decidido pela Mm.ª juiz, antes se rege ele pelas do mandato e seu clausulado e que, assim, podia o mesmo ser revogado, como o tinha sido, pela apelante subordinada, mas também, e concretamente no seu artigo 15, que se o entendimento da Mm.ª juiz fosse o devido e correcto, nem por isso estava ela impedida de lhe pôr termo e, desde logo por denúncia, obrigada estava ela a ter que proferir nova decisão, a manter, reduzir ou revogar a dita providência, conforme disposto no artigo 372.º , n.º 1, alínea b) e n.º 3, do CPC.
E) E tendo sido, como foi, com base nisso que vem a Mm.ª juiz, por um lado, a considerar e decidir que não foi legítima nem válida a revogação do contrato por parte da apelante subordinada, mas por outro e também que pode ele cessar por denúncia, na sequência disso ordenando se procedesse à notificação pessoal da utente, (…), de que tal cessação ocorre em 13 de Março, óbvio é que não é verdade, como refere e pretende a apelante principal, que conheceu ela de uma questão de que não podia conhecer, que condenou em objecto diferente do pedido, violou os preceitos adjectivos que cita e padece a sentença das nulidades a que alude.
F) Em contrapartida, dúvidas não há de que padece a mesma de erro de julgamento e não corresponde ela à realidade normativa, na medida em que resulta da distorção do direito. No caso, a qualificação e o regime aplicável do e ao contrato não são os que a Mm.ª juiz refere e aplica, ou seja, não são os do contrato de arrendamento para habitação, mas sim os supra apontados, ou seja, os do contrato de prestação de serviços, na modalidade de hospedagem, e o do mandato.
G) As nulidades da decisão e o erro de julgamento não se confundem, pois que aquelas se circunscrevem a vícios formais, decorrentes da actividade ou de procedimento, relativos à disciplina legal. São vícios que afectam a regularidade da decisão e que obstam ao pronunciamento de mérito, enquanto que o erro de julgamento, de facto ou de direito, resulta de uma distorção da realidade factual ou da aplicação do direito, sendo que foi nesta que a Mm.ª juiz incorreu.
H) Nos contratos, como o dos autos, a cedência de um quarto, individual ou partilhado, e demais espaço é apenas uma das muitas obrigações ou prestações a que a apelante subordinada está adstrita para com os respectivos utentes, como da sua cláusula II se vê, e nenhuma de tais prestações é autónoma, ou mais ou menos importante que as demais, antes todas são complementares e necessárias ao fim e à execução do mesmo.
I) Não foi nem é a falta de habitação que conduziu a mãe da apelante principal e esta a procurar o seu internamento no Lar, como o mesmo ocorre, afinal, com todos os demais, mas sim as “maleitas” que, por regra, acompanham o desenrolar da idade e que, em maior ou menor medida, conduzem a que a respectiva saúde e qualidade de vida se vão degradando, ao mesmo tempo que é com vista a preservar o “estado” vigente ou a evitar que ele se degrade que tal ocorre. É também por isso que os apoios e cuidados constantes dos números 3, 5, 6, 7 e 8 da cláusula II do contrato são determinantes, para além de que de familiares ou com a ajuda de terceiros os não podem ou querem ter e receber.
J) A doutrina e a jurisprudência qualificam tal ou tais contratos como um contrato unitário, complexo e atípico, em tudo semelhante ao contrato de hospedagem, sendo que no caso a natureza e tipo das prestações a que o hospedeiro fica obrigado são quantitativa e qualitativamente superiores.
K) É também por isso que não corresponde ele a nenhum que esteja especificamente previsto e regulado na lei e que o seu regime se rege, desde logo, pelas cláusulas nele insertas, as disposições gerais dos contratos e, na sua insuficiência, pelas normas que regulam os contratos que lhe sejam mais próximos, sendo que, no caso, é o contrato de prestação de serviços, na modalidade do mandato e o mesmo, conforme decorre do artigo 1170.º, n.º 1, do CC, é livremente revogável por qualquer das partes e a todo o tempo, e também tal podendo ocorrer com base na sua cláusula XII, neste caso por denúncia, e foi com base nisso que tal revogação foi efectuada.
L) É esse o entendimento sufragado nos acórdãos, todos disponíveis em www.dgsi.pt, que já se citaram na oposição e, desde logo, o desta Relação, de 9/10/2014, de cujo sumário se faz constar: “Édeprestaçãodeserviçosnamodalidadedehospedagem,ocontratopeloqualaempresadeumempreendimentoturísticocedeumdeterminadoapartamentoeproporcionaoutrosserviçosconexos,designadamentefornecimentoderoupasdecama,serviçosdelimpeza,utilizaçãodepiscina,jacúzi,saladereuniõeswifi,etc.,porumdeterminadoperíodomedianteopagamentomensaldeumaquantiacerta”; M) O mesmo ocorrendo no acórdão da Relação do Porto, de 09/05/1996, quando refere: “Ahospedagemqueseverificaquandoalguémproporcionaaoutremhabitaçãoeprestehabitualmenteserviçosrelacionadoscomestaouforneçaalimentosmedianteretribuição,éumcontratomisto,constituídodesublocaçãoacompanhadadeprestaçãodeserviços,sendoestaúltimaessencialàconfiguraçãodoconceito,enquantoquealocaçãoécomponentemeramentesubordinada.Ocontratodehospedagemrege-sepeloregimejurídicodocontratodeprestaçãodeserviços.Asnormasdovinculismoarrendatícionãosãoaplicáveisàhospedagem.Seoautor,alémdahabitação,forneciaaosréusamobíliadequarto,luz,roupadecama,águatoalhasdebanhoelimpeza,configura-seumcontratodehospedagem”. N) E, bem assim, no acórdão da Relação de Guimarães, de 04/12/2012, no qual se diz:”Deacordocomoartigo76.ºdoRAU(emtudoidênticoaoquedispunhaorevogadoartigo 1109.º doCC)considera-sehóspedesaspessoasaquemoarrendatárioprestehabitualmenteserviçosrelacionadoscomesta,ouforneçaalimentos,medianteretribuição.Oacordodecedênciadegozodeumquartomobiladoparadormida,acompanhadodealimentaçãoconfecionadaeofornecimentoderoupalavada,medianteretribuiçãomensalfixa,configuraumcontratodehospedagem”. O) E também no citado pela Mm.ª juiz, na primeira sentença, ou seja, o acórdão da Relação do Porto, de 14/07/2020, onde, a pág. 18 do mesmo, se refere que “ocontratodeinternamentoemLar,éumcontratocomplexoqueenvolve elementosprópriosdeváriasfigurascontratuais,constituindoasnormasdocontratodeprestaçãodeserviços,definidonoartigo1154.ºdoCC,oseunúcleoprincipalaatenderparadeterminaradisciplinaaplicável.Trata-se,comefeito,deumcontratomisto,muitosemelhanteaocontratodehospedagememquecoexistemelementosdocontratodeprestaçãodeserviçosedocontratodelocação”. P) Pelo exposto, irrefutável é que fez a Mm.ª juiz indevida e incorrecta leitura, interpretação e aplicação do direito, designadamente do disposto nos artigos: 405.º, 1022.º, 1154.º, 1156.º e 1170.º do CC, assim os violando, sendo que, se tal não tivesse ocorrido, teria ela entendido e decidido que o contrato se não rege pelas normas do arrendamento urbano, mas sim e apenas pelas do mandato e seu respectivo clausulado, ao mesmo tempo que, assim também, teria ela julgado a oposição procedente e revogado a providência, antes decretada. Q) Acresce que também em sede de direito adjectivo deveria a requerida providência ter sido recusada, já que os factos e objectivos invocados pela apelante principal foram “engendrados”, como nos artigos 35º e 38º a 44º da oposição se diz, pois que se não vê como da eventual saída da mãe do Lar poderiam ou podem advir para a mesma os riscos, perigos e danos que refere, quando, ao mesmo tempo e contraditoriamente, acusa ela a apelante subordinada e respectivos funcionários de estar ela a ser vitima dos maus tratos, enumerados a fls. 3 do presente recurso e, para o seu decretamento, o artigo 367.º do CPC exige não apenas a sua alegação, mas também a sua prova. R) Tudo para dizer e concluir que merece o recurso subordinado provimento, ou seja, deve a sentença recorrida ser revogada e substituída por acórdão que julgue a oposição procedente, revogue a providência e, bem assim, condene a apelante principal nas custas, ao mesmo tempo que, mercê disso e em consonância com o que decorre da filosofia defendida no preâmbulo ao Dec.-Lei n.º 329/A/95, de 12/12, quando refere que: “odireitoprocessualdeveestarsubordinadoàconcretizaçãoerealizaçãododireitosubstantivo.Odireitoadjectivosóexisteporqueexistedireitosubstantivo.Deveprivilegiar-seaobtençãodeumadecisãodeméritosobreasdecisõesdepuraforma”, prejudicado fica o conhecimento das nulidades por ela suscitadas, e tal corresponder à verdadeira expressão do direito e da Justiça.”.
A utente (…) veio aderir ao recurso apresentado pela requerente sua filha.
* Questão prévia:
Da Ilegitimidade da recorrente e do efeito suspensivo atribuído ao recurso
Na sua oposição suscitou a requerida a ilegitimidade da requerente para interpor o presente recurso, na consideração de que apenas a sua Mãe, utente da instituição, teria legitimidade para tanto, por apenas esta ter sido afectada pela decisão.
A questão da legitimidade da requerente para a instauração da presente providência foi apreciada pela Sr.ª juíza na decisão final, tendo-lhe dado resposta afirmativa, dado que, enquanto filha da idosa acolhida na instituição requerida foi, também ela, chamada a subscrever o contrato como terceira outorgante, tendo ainda sido notificada da decisão de revogação, no reconhecimento por banda da Associação de (…) de Ponte de Sor, ASSPS-IPSS de que a declaração assim se tornava eficaz por ser feita a contraparte, argumentação com a qual concordamos.
Reconhecida a legitimidade da requerente para a instauração da providência, por ser também parte no contrato, a par de sua Mãe, utente do equipamento social gerido pela requerida, foi, também aquela, prejudicada nos seus interesses pela decisão de fazer cessar o contrato pela considerada lícita denúncia. Com efeito, estando pais e filhos reciprocamente vinculados aos deveres de respeito, auxílio e assistência (cfr. n.º 1 do artigo 1874.º do Código Civil), deixando a requerida de prestar os serviços contratados e que são parte relevante das prestações que integram o referido dever de assistência que recai sobre a requerente, será esta chamada a preencher tal lacuna, donde ser directamente afectada pela decisão, o que lhe confere legitimidade para recorrer.
Acresce que, tendo a utente (…) aderido ao recurso interposto, sempre feneceria o argumento da ilegitimidade da recorrente por se encontrar desacompanhada da beneficiária dos serviços prestados pela recorrida.
Quanto ao efeito fixado ao recurso, tendo a 1.ª instância considerado -bem ou mal, não releva para este efeito-, que eram aplicáveis ao contrato celebrado as regras do arrendamento para habitação, tendo aquele cessado a sua vigência, com o consequente “despejo” da utente (…), é consequente a aplicação do disposto nos artigos 647.º, n.º 3, alínea b) e 623.º, n.º 3, alínea b), do Código de Processo Civil.
Improcede, pelo exposto, a questão prévia suscitada pela apelada.
*
Assente que pelo teor das conclusões se fixa e delimita o objecto do recurso, são as seguintes as questões a decidir:
i. Das nulidades da sentença.
ii. Da qualificação do contrato celebrado e da sua cessação.
* Das nulidades da sentença
A requerente e também recorrente (…) imputou à decisão recorrida o vício extremo da nulidade, ora por se apresentar como uma decisão surpresa, ora porque, tendo desrespeitado os princípios do dispositivo, da necessidade do pedido e de vinculação do juiz aos limites do litígio traçados pelas partes, é nula por excesso de pronúncia e condenação em objecto diverso do pedido (alíneas d) e e) do CPCiv.).
Averiguemos, pois, se a decisão recorrida padece dos invocados vícios.
A apelante veio a juízo requerer em sede cautelar, prévia à acção declarativa que pretende instaurar, que a requerida fosse impedida de “proceder à expulsão da mãe da requerente até decisão final sobre a legalidade da revogação do contrato”.
Em fundamento alegou, em síntese, ter celebrado, conjuntamente com sua Mãe, contrato denominado de “alojamento e prestação de serviços”, nos termos do qual a requerida, ali primeira outorgante, se obrigou a prestar àquela os cuidados discriminados na cláusula II do dito acordo, tudo nos termos do documento que fez juntar aos autos.
Mais alegou que por carta que pela requerida lhe foi remetida no dia 5 de Junho, esta comunicou a sua decisão de revogar o contrato, com efeitos a partir de 1 de Julho de 2023, revogação que reputa ilícita, porque sem causa, já que é uma clara retaliação ao email que a requerente remetera à instituição em 28 de Maio, conduta que não é imputável à beneficiária da prestação, sua Mãe, (…), actuando a requerida de má fé e em abuso de direito. E porque, segundo alega, a expulsão de sua Mãe da instituição onde se encontra desde há 5 anos, com interrupção dos cuidados de que carece, é susceptível de causar dano grave na sua saúde, impõe-se o recurso ao presente procedimento comum, devendo ser decretada a providência requerida sem audição da requerida.
Na decisão proferida sem contraditório a Sr.ª juíza qualificou o contrato celebrado entre as partes como “misto de arrendamento para habitação e prestação de serviços”, cuja resolução tem que ser fundamentada e judicialmente declarada. Não o tendo sido, reconheceu o direito da requerente manter a sua Mãe na instituição requerida e, tendo julgado verificado “o periculum in mora”, decretou a providência.
Na oposição que deduziu após notificação da decisão proferida, a requerida defendeu que o contrato celebrado vem sendo correctamente caracterizado como atípico, embora socialmente típico, devendo reger-se pelas normas do tipo contratual mais próximo, no caso o contrato de prestação de serviços na modalidade de mandato, cujo regime é assim aplicável, sendo por isso livremente revogável, tal como as partes convencionaram. Acrescentou que o mesmo contrato pode também ser resolvido, resolução que, como a requerente bem sabe, encontra fundamento nas queixas constantes e descontentamento permanente, não só da utente (…), como daquela sua filha, que desde o ingresso da primeira na instituição não cessam de fazer exigências que a oponente, a despeito de todos os seus esforços, não consegue satisfazer.
Ouvidas as testemunhas oferecidas, foi proferida decisão final, na qual, mantendo-se a caracterização do contrato, “a título principal”, como de “arrendamento para habitação” e, como tal, sujeito ao regime próprio destes contratos “com as devidas adaptações”, considerou-se que não podia a requerida operar a sua resolução, uma vez que os fundamentos resolutivos são os fixados na lei e o direito do senhorio, afora o caso da falta de pagamento de rendas, tem que ser exercido judicialmente. Por conseguinte, tendo verificado que os factos relatados não constituem fundamento legal de resolução, concluiu-se na sentença pela ineficácia da resolução/revogação do contrato operada pela requerida.
Não obstante o assim decidido, entendeu a Sr.ª Juíza que a declaração apresentada nos autos pela requerida em 1 de Outubro de 2024 -no qual requereu que fosse reconhecida e declarada a caducidade da providência decretada, por não ter sido instaurada a acção principal no prazo de 30 dias conforme impõe o artigo 373.º, n.º 1, alínea a) do CPC – expressava inequivocamente a sua vontade de pôr termo ao contrato, tendo valor de denúncia, a qual seria assim “válida e tempestiva, por ter sido feita com mais de 120 dias de antecedência relativamente à renovação prevista para 13 de Março de 2025”. Partindo desse entendimento, determinou “a imediata notificação pessoal da utente (…) através de Oficial de Justiça, de que a aqui requerida Associação de (…) de Ponte de Sor, A.S.S.P.S, IPSS denuncia o contrato de “Alojamento e Prestação de Serviços” que com ela celebrou em 13 de março de 2019 para a renovação prevista para o dia 13 de março de 2025, pelo que no dia 13 de março de 2025 deve entregar à requerida, livre e devoluto de pessoas e bens, o quarto que a mesma lhe disponibiliza no Lar Casa dos (…), dali se ausentando definitivamente (…)”.
Face ao assim determinado, estaremos perante uma decisão surpresa, conforme a recorrente denuncia?
É sabido e resulta da lei que o juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras do direito (cfr. n.º 3 do artigo 5.º do CPC). Todavia, impõe-lhe igualmente a lei – artigo 3.º, n.º 3, do mesmo diploma legal – que observe e faça cumprir, “(…) ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem”.
É certo, portanto, que não obstante a liberdade de indagação, interpretação e aplicação do direito, o juiz, sempre que se afaste de forma relevante, no exercício dessa liberdade e desse poder, das posições jurídicas que as partes defenderam no processo, deverá dar-lhes a possibilidade de previamente se pronunciarem, evitando, dessa forma, que venham a ser confrontadas com soluções jurídicas inesperadas e com as quais razoavelmente não contariam.
Neste sentido, assinala o acórdão do STJ de 15 de Março de 2018, processo n.º 2057/11.0TVLSB.L1.S2, em www.dgsi.pt, que “as decisões-surpresa são apenas aquelas que assentam em fundamentos que não foram ponderados pelas partes, isto é, aquelas em que se detecte uma total desvinculação da solução adoptada pelo tribunal relativamente ao alegado pelas partes”[1].
No caso vertente, a Sr.ª juíza, divergindo do enquadramento jurídico oferecido pelas partes, veio a qualificar o acordo celebrado como um contrato misto de arrendamento para habitação e prestação de serviços, mas sujeito ao regime jurídico próprio dos primeiros. Todavia, tal enquadramento era já conhecido desde o proferimento da decisão inicial, pelo que não poderá considerar-se uma decisão surpreendente. Já a consideração de um requerimento apresentado posteriormente nos autos como válida e eficaz denúncia do contrato, sem conferir às partes a possibilidade de previamente se pronunciarem, é com certeza uma decisão surpresa.
É controvertida a questão de saber se eventual violação do princípio da proibição de decisões surpresa que decorre do disposto no n.º 3 do artigo 3.º do CPC configura nulidade processual nos termos do artigo 195.º do CPC, assim submetida ao regime previsto nos artigos 201.º e seguintes do mesmo diploma, devendo ser arguida no prazo de 10 dias e perante o Tribunal onde a irregularidade se verificou[2] ou se a omissão de acto imposto pela lei vicia a decisão posteriormente proferida, determinando a sua nulidade por excesso de pronúncia, entendimento que tem vindo a registar crescente adesão[3]. Tal discussão perde aqui, todavia, qualquer relevância porque a decisão proferida, independentemente da eventual violação do contraditório, extravasou claramente da causa de pedir invocada, tendo ainda decretado um “despejo” que ninguém pediu, sendo portando nula nos termos previstos nas alíneas d) e e) do n.º 1 do artigo 615.º do CPCiv.
O excesso de pronúncia que é causa da nulidade da sentença nos termos prevenidos na parte final da alínea d) do n.º 1 do artigo 615.º, sanciona a violação do dever consagrado no n.º 2 do artigo 608.º e aí delimitado. Nos termos do aqui preceituado, o juiz encontra-se obrigado a resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras, mas não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes,salvo se a lei permitir ou impuser o seu conhecimento oficioso. E “as questões que o tribunal deve apreciar e decidir são apenas aquelas que contendem directamente com a substanciação da causa de pedir, do pedido ou das excepções (…)” (acórdão do TRP de 9 de Março de 2020, no processo 1925/13.9T2AVR.P1, acessível em www.dgsi.pt).
O artigo 5.º, n.º 1, do CPC, epigrafado de “Ónus de alegação das partes e poderes de cognição do tribunal”, continua a fazer recair sobre as partes o ónus da alegação dos “factos essenciais que constituem a causa de pedir e [d]aqueles em que se baseiam as excepções invocadas” (vide n.º 1). Os factos essenciais que constituem a causa de pedir devem ser alegados pelo autor na petição inicial (artigo 552.º), mantendo-se também o princípio de que toda a defesa deve ser deduzida na contestação, ou seja, também o réu está obrigado a alegar nesta peça os factos essenciais que consubstanciam as excepções, sob pena de preclusão (artigos 572.º, alínea c) e 573.º, n.ºs 1 e 2).
Por outro lado, o tribunal está ainda quantitativa e qualitativamente limitado pelo pedido ou pedido deduzidos (cfr. artigo 609.º do Código de Processo Civil).
Resulta dos preceitos citados que, cabendo às partes dar início ao processo e fixar o seu objeto, o juiz só pode decidir nos limites desse mesmo objecto, ainda que goze de ampla liberdade na aplicação do direito, cumprido que seja o contraditório. Deste modo, haverá excesso de pronúncia e condenação em objecto diverso sempre que a causa do julgado não se identifique com a causa de pedir ou o julgado não coincida com o pedido[4]. Daí que, conforme sublinhou o STJ no acórdão de 19-09-2019 (Revista n.º 461/17.9T8GMR.G1.S1), “A realização da justiça deve ser conseguida no quadro dos princípios estruturantes do processo civil, como são os princípios do dispositivo, do contraditório, da igualdade das partes e da imparcialidade do juiz, traves-mestras do princípio fundamental do processo equitativo proclamado no artigo 20.º, n.º 4, da CRP. II - A sentença e o acórdão devem conter-se dentro dos limites objectivo e subjectivo da pretensão deduzida, não sendo lícito ao juiz desviar-se desse âmbito ou desvirtuá-lo. III - O tribunal pode proceder à qualificação jurídica que julgue adequada, dentro da factualidade alegada e provada e nos limites do efeito jurídico pretendido, mas está processualmente vedado atribuir-lhe, sob a capa de tal reconfiguração, bens ou direitos substancialmente diversos dos que o autor procurava obter através da pretensão que efectivamente formulou. IV - É nulo o acórdão que conheça de causas de pedir não invocadas e que, violando o princípio do dispositivo na vertente relativa à conformação objectiva da instância, não observe os limites impostos pelo artigo 609.º, n.º 1, do CPC” (este entendimento é reafirmado no acórdão de 24/1/2019, no processo 948/14.5TVLSB.L1.S1, e no acórdão deste mesmo TRE de 19/12/2019, processo 240/18.6T8BJA.E1, todos acessíveis em www.dgsi.pt).
No caso em apreço a requerente veio a juízo, como vimos, requerer que a requerida fosse cautelarmente impedida de cessar de prestar a sua mãe os cuidados a que se encontrava obrigada no âmbito do acordo tripartido entre todas celebrado enquanto não fosse judicialmente apreciada, em futura acção a instaurar, a (i)licitude da revogação do acordo por esta levada a cabo. Na oposição que ofereceu, a requerida defendeu a licitude da resolução/revogação do contrato e a produção dos respectivos efeitos, com a cessação da vinculação das partes. Assim configurado e delimitado o objeto do processo, independentemente da qualificação jurídica empreendida pelo tribunal, apenas lhe caberia pronunciar-se sobre a licitude da revogação/resolução operada pela requerida, sendo-lhe até permitido, se fosse o caso, qualificar como denúncia a declaração emitida. No entanto, já lhe estava vedado interpretar e valorar como tal um requerimento posterior, no qual, note-se, pedia a requerida que fosse declarada caducada a providência decretada e extinto o procedimento cautelar, e considerar que o tempo entretanto decorrido na pendência dos presentes autos valia como pré-aviso.
Resulta do exposto que o tribunal veio a emitir pronúncia sobre questões que não lhe foram submetidas por nenhuma das partes e apreciou pretensão que nenhuma delas formulou, sendo portanto nula a decisão recorrida nos termos das convocadas alíneas d) e e) do n.º 1 do artigo 615.º do CPCiv., com a consequência de dever ser desconsiderado tudo o que nela a propósito se expendeu e, consequentemente, os dois últimos segmentos decisórios.
* II. Fundamentação De Facto
É a seguinte a factualidade a atender:
1. A Requerente é filha de (…), residente na IPSS Requerida.
2. A Requerente é co-outorgante (3.ª outorgante no contrato) no contrato de Alojamento e Prestação de Serviços celebrado com a Requerida no dia 11 de Março de 2019, com o conteúdo constante do documento n.º 2 junto com a petição inicial, cujo teor aqui se dá por reproduzido.
3. A mãe da Requerente, (…), nasceu em 28 de Novembro de 1934 e é residente na IPSS Requerida desde 11 de Março de 2019, com base no contrato de Alojamento e Prestação de Serviços referido em 2, datado desse mesmo dia.
4. O contrato de Alojamento e prestação de serviços com a Instituição de Solidariedade Social (IPSS), A.S.S.P.S – Casa dos (…), tem como objeto a prestação de serviços de Alojamento em quarto duplo, Alimentação, Cuidados de higiene, Tratamento de roupas, Assistência médica, Cuidados de enfermagem, Apoio psicossocial e Atividades de animação sociocultural.
5. Em 5 de Junho de 2024, pelas 15:48 horas, a Requerente foi informada, por email enviado pela Direção da Associação de (…) de Ponte de Sor – Casa dos (…), que o contrato estabelecido com a residente (…) era objeto de revogação, com efeitos a partir, inclusive, de 1 de julho de 2024, referindo “consequência direta do conteúdo do email enviado por V. Ex.ª e recebido a 28 de Maio passado”, conforme email junto com a petição inicial como documento n.º 3, cujo teor se dá por reproduzido quanto ao mais.
6. No email enviado pela requerente à requerida no dia 28 de Maio e referido na resposta a que se refere o ponto anterior, a requerente expôs factualidade que “tanto a desagradou”, relatando ser “prática corrente, tanto da parte da manhã como à noite, as senhoras funcionárias (mais patente a senhora … e/ou as funcionárias que com a mesma fazem equipa), no exercício das suas funções, encetarem procedimentos em desrespeito com as regras de higiene e desconsideração pelo idoso (neste caso a minha mãe) no que tange à dinâmica da retirada de descartáveis (fraldas) da senhora residente que com a mesma partilha quarto”, acrescentando que “no seu entender tal não pode acontecer porque os mesmos [actos], atenta a sua reiteração e gravidade, tanto mais que são consumados num idoso indefeso e vulnerável, tais como privações; como a de partilhar o seu quarto em condições de higiene que inibem a utente de se aprontar em tempo útil de ir tomar o pequeno almoço, porque tem de permanecer fechada na casa de banho a aguardar a dissipação do cheiro, a proibição de abertura de portas e/ou janelas para dissipação de cheiros, a falta de sensibilidade, consideração e respeito quando em tom altivo se diz “são normas” são inevitavelmente causadoras de mau estar físico e psicológico, e, são os mesmos susceptíveis de causar danos irreparáveis na saúde do idoso ou até fatais, e ainda, pela sua natureza e reiteração podem indiciar a prática do crime de maus tratos a pessoa idosa”, aqui se dando por reproduzido quanto ao mais o seu teor.
7. A Requerente remeteu aquele e-mail em proteção da sua mãe, do seu bem-estar, dignidade e integridade, e por considerar que os actos ali relatados eram aptos a causar mal-estar físico e psicológico / emocional, à sua mãe que, atenta a sua avançada idade, a sua saúde e o seu elevado grau de vulnerabilidade, se não fossem corrigidos (o que solicitou por via daquele email e, antes, ao gestor de pessoal, como referido no mencionado email), seriam os mesmos suscetíveis de causar danos irreparáveis na saúde da idosa (sua mãe) ou até fatais, e, ainda, pela sua natureza e reiteração poderiam indiciar a prática do crime de maus tratos a pessoa idosa.
8. Em resposta ao email de 28 de Maio de 2024, a Requerida informou a Requerente da decisão de revogação do contrato de Alojamento de Prestação e Serviços de sua mãe com efeitos a partir de 01 de julho de 2024.
9. Da intenção de revogação do contrato pela Requerida não foi a mãe da Requerida ouvida, nem foram encetadas quaisquer diligências para o apuramento dos factos.
10. A mãe da Requerente não sabe absolutamente de nada do acontecido quanto ao email que a instituição Requerida dirigiu à sua filha (a Requerente) no dia 05-06-2024, informando-a da revogação do contrato e da obrigatoriedade da sua ausência em definitivo daquela Instituição, onde reside desde 2019.
11. No dia 14 do mês de Junho, a Requerente apresentou reclamação para o órgão competente contra a decisão que revogou o contrato de Alojamento e Prestação de Serviços da residente sua mãe, que está junta à petição inicial como documento n.º 5, e cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
12. No mesmo dia (14 de Junho), pelas 11:58 horas, recebeu a Requerente um email da Requerida a informar que o contrato de Alojamento e Prestação de Serviços celebrado em 11 de Março de 2019 havia sido revogado de forma irreversível pela Direção daquela instituição, e, se até ao dia 25 de Junho de 2024 a aqui Requerente (a filha) não desse conhecimento à residente (a sua mãe) …, tal seria de sua responsabilidade, porquanto a Direção daquela Instituição fá-lo-ia, escusando-se a qualquer “responsabilidade por situação anómala que infelizmente possa acontecer à sra. (…)”, comunicação junta com a petição inicial como documento n.º 6, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
13. A Requerente ficou atemorizada, com receio que o ameaçado se concretizasse, temendo pela integridade física e psicológica / emocional de sua mãe; atenta a sua avançada idade (89 anos), o seu elevado grau de vulnerabilidade, conjugado com o seu problema de saúde, porquanto a sua mãe tem um problema cardiorrespiratório diagnosticado, conforme declaração médica junta aos autos em 20-06-2024, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
14. A Requerida tem alojados um total de 72 utentes.
15. Desde a sua admissão, em 11-03-2019, a utente (…) já teve anteriormente 8 companheiras de quarto.
16. As substituições das companheiras de quarto tiveram, em parte, na sua origem reclamações da utente (…) e da aqui Requerente, alegando que os hábitos de rotina das companheiras de quarto impediam a utente (…) de descansar durante a noite, o que era prejudicial para a saúde da mesma.
17. Essas reclamações tiveram como fundamento:
- O facto de a companheira de quarto ressonar em tom elevado, impedindo o descanso;
- A companheira ter por hábito ouvir o rádio no quarto, o que incomodava o descanso;
- A companheira usar repetidamente a casa de banho, impedindo o seu descanso;
- A cama da companheira estar dotada de um colchão anti escaras, o qual, pela sucessiva pressurização, em virtude do ruído produzido, impede o seu descanso;
- A realização da higiene pessoal da companheira acamada no período em que está no quarto provoca incómodos, em virtude do acentuado mau odor.
18. A Requerida tentou, na medida do possível, atender às reclamações apresentadas pela utente (…), o que levou a que providenciasse pelas apontadas substituições, sendo que estas alterações não foram bem aceites pelos demais utentes do Lar Casa dos (…).
19. Em 28-02-2022 a aqui Requerente (…), na qualidade de filha da utente (…), remeteu à Direção do Lar Casa dos (…) o requerimento junto à oposição como documento n.º 3, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, através do qual solicitou à Direção a disponibilização de um quarto individual para aquela utente, indicando como fundamentos que a companheira de quarto da mesma sofrerá de problemas de roncopatia, sendo certo que, não padecendo a utente (…) de problemas de audição, e não sendo possível aumentar a dosagem da sua medicação para dormir, pelos graves problemas cardíacos de que a mesma padece, toda aquela descrita situação impede totalmente o necessário descanso desta.
20. Com intuito de pôr fim à situação descrita supra, a Direção do Lar da Requerida, a pedido da aqui Requerente apresentado em 28-02-2022, veio, no dia 30-05-2022, a disponibilizar à utente (…) um quarto individual, conforme pedido previamente feito pela mesma, o que fez logo que surgiu vaga para quarto individual.
21. Quando a Requerida comunicou à Requerente a disponibilidade de um quarto individual para a utente (…), a mesma limitou-se a responder que já não estavam interessadas nessa solução, não esclarecendo os motivos/fundamentos para essa súbita perda de interesse.
22. Na véspera de Natal do ano de 2023, ao constatarem que o equipamento do ar condicionado do quarto da utente (…) estava avariado já há 2 dias, a aqui Requerente e o seu marido reclamaram verbalmente, e em tom exaltado, desta situação junto da Direção do Lar Casa dos (…), exigindo que fosse disponibilizado um sistema de aquecimento à utente.
23. Naquele período o ar condicionado esteve avariado em toda a ala onde se situa o quarto da utente (…) por um período em concreto não apurado, mas sempre superior a 3 dias, porquanto a empresa de manutenção do equipamento não logrou proceder à sua reparação com maior brevidade.
24. Na sequência da reclamação da aqui Requerente e do seu marido, a Requerida veio a disponibilizar um radiador para o quarto da utente (…).
25. A atual companheira de quarto da utente (…) está totalmente acamada, dependente de terceiros para lhe fazerem a sua higiene pessoal e não fala, tendo instalado na sua cama um colchão com mecanismo anti escaras, o qual funciona à base de pressurização alternada dos diversos pontos do colchão, estando este equipamento ligado 24 horas por dia.
26. A Requerida acedeu a substituir a anterior companheira de quarto da utente (…) na sequência de reclamações do teor das supra enunciadas, por uma pessoa à escolha desta, sendo que também com esta a mesma veio a incompatibilizar-se, alegando que usava demasiado a casa de banho, que de tal uso advinham maus e insuportáveis cheiros, que tinha demasiadas rotinas, impedindo o seu descanso.
27. Na sequência desta reclamação da utente (…) a Direção do Lar substituiu a companheira de quarto pela atual, que se encontra totalmente acamada, não fala e tem instalado na sua cama um colchão anti escaras, com o respetivo mecanismo ligado 24 horas por dia.
28. As reclamações em causa foram apresentadas pela aqui Requerente, filha da utente (…), na decorrência das queixas que a utente fez à sua filha.
29. Na sequência das sucessivas reclamações apresentadas pela utente (…), as funcionárias da limpeza do Lar Casa dos (…) passaram a recusar-se a ir sozinhas ao quarto da mesma, a fim de evitar confusões da parte daquela sem a presença de outra pessoa.
30. Desde data não concretamente apurada até, pelo menos, o dia 26 de Janeiro de 2022, foi companheira de quarto da utente (…) a utente (…).
31. (…), filha de (…), no dia 26 de Janeiro de 2022 remeteu à Direção do Lar Casa dos (…) o requerimento junto como documento n.º 1 à oposição, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais, através do qual solicitou a intervenção da Direção para resolver os problemas que ali enuncia.
32. Desde data não concretamente apurada até, pelo menos, o dia 07-11-2023, foi companheira de quarto da utente (…) a utente (…).
33. (…), sobrinha de (…), no dia 07 de Novembro de 2023, remeteu à Direção do Lar Casa dos (…) o requerimento junto como documento n.º 2 à oposição, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, através do qual solicitou a intervenção da Direção para proceder à mudança de quarto da utente (…), ali sendo referido que esta é uma nova mudança de quarto, porquanto, segundo esta residente teria comunicado à sobrinha, “a senhora do quarto” teria estado a discutir com ela.
34. A utente (…) foi sempre cortês e educada com os elementos da Direção do Lar Casa dos (…), bem como com os respectivos funcionários.
* De Direito
Da natureza do contrato celebrado e da sua cessação
A primeira tarefa empreendida na decisão recorrida foi a da caracterização jurídica do contrato celebrado, em ordem a determinar o respectivo regime, tendo o tribunal concluído que estava em causa um contrato misto de arrendamento e prestação de serviços, com prevalência do primeiro, a determinar a sua sujeição ao regime jurídico dos contratos de arrendamento para habitação. Trata-se de entendimento que não secundamos.
As partes denominaram o contrato celebrado de “alojamento e prestação de serviços”, consignando que o mesmo era celebrado “nos termos do artigo 25.º do Decreto-Lei n.º 64/2007”, regendo-se pelas cláusulas que reciprocamente aceitaram e constam do documento escrito que subscreveram. Mostrando-se o contrato assinado apenas pela requerente e requerida, tendo aquela assinado também no local destinado à assinatura da utente, o que a semelhança das assinaturas revela, terá de se entender que actuou como gestora de negócios de sua mãe (cfr. artigo 498.º do Código Civil), uma vez que não resulta dos autos encontrar-se a utente (…) incapacitada. Tal gestão, com o ingresso da gerida no Lar e sua permanência no mesmo, terá que se ter como ratificada, questão que as partes, de resto, não suscitaram.
O DL 64/2007, de 14 de Março (alterado pelos DL 33/2014, de 4 de Março e 126-A/2021, de 31 de Dezembro) veio definir “o regime de instalação, funcionamento e fiscalização dos estabelecimentos de apoio social, adiante designados por estabelecimentos, em que sejam exercidas atividades e serviços do âmbito da segurança social relativos a crianças, jovens, pessoas idosas ou pessoas com deficiência, bem como os destinados à prevenção e reparação das situações de carência, de disfunção e de marginalização social, estabelecendo ainda o respetivo regime sancionatório” (cfr. artigo 1.º) e, embora não contenha um regime típico do contrato celebrado entre as partes, não deixa de a ele fazer menção como contrato de prestação de serviço (cfr. artigo 27.º, n.º 2, alínea a)).
Releva ainda ao caso a Portaria67/2012, de 21 de Março, publicada no DR, I-Série, n.º 58, de 21 de Março de 2015 (alterada e republicada pela Portaria n.º 349/2023, DR n.º 219/2023, Série I, de 3 de Novembro de 2023, com início de vigência em 14/11/2023), a qual veio definir as condições de organização, funcionamento e instalação das estruturas residenciais para pessoas idosas, visando “uniformizar a legislação existente, integrando as respostas residenciais para pessoas idosas sob uma designação comum, e proceder ao ajustamento desta resposta social às exigências de uma gestão eficaz e eficiente dos recursos e a uma gestão da qualidade e segurança das estruturas físicas, prevendo diversas modalidades de alojamento, designadamente, o alojamento em tipologias habitacionais e ou em quartos”.
A referida portaria veio, portanto, definir as condições de organização, funcionamento e instalação a que devem obedecer as estruturas residenciais para pessoas idosas, enquanto estabelecimentos para alojamento coletivo, de utilização temporária ou permanente, em que sejam desenvolvidas atividades de apoio social e prestados cuidados de enfermagem (artigo 1.º, n.ºs 1 e 2), aplicando-se às “estruturas residenciais a implementar em edifícios a construir de raiz ou em edifícios já existentes a adaptar para o efeito; com processos, em curso, de licenciamento da construção ou da atividade ou de acordo de cooperação a celebrar com o ISS, I.P., à data da entrada em vigor da portaria; com licença de funcionamento ou autorização provisória de funcionamento ou, quando aplicável, acordo de cooperação celebrado com o ISS, I.P.” (artigo 2.º, n.º 1, alíneas a), b) e c)).
O diploma refere-se no artigo 7.º às modalidades de alojamento disponibilizadas pelas ditas estruturas residenciais e enumera no preceito imediato os serviços a prestar -a) Alimentação adequada às necessidades dos residentes, respeitando as prescrições médicas; b) Cuidados de higiene pessoal; c) Tratamento de roupa; d) Higiene dos espaços; e) Atividades de animação sociocultural, lúdico-recreativas e ocupacionais que visem contribuir para um clima de relacionamento saudável entre os residentes e para a estimulação e manutenção das suas capacidades físicas e psíquicas; f) Apoio no desempenho das atividades da vida diária; g) Cuidados de enfermagem, bem como o acesso a cuidados de saúde; h) Administração de fármacos, quando prescritos- entre outros que as partes poderão contratar, nos termos do n.º 3 do preceito.
Impõe ainda à “estrutura residencial” que permita: a) A convivência social, através do relacionamento entre os residentes e destes com os familiares e amigos, com os cuidadores e com a própria comunidade, de acordo com os seus interesses; b) A participação dos familiares ou representante legal, no apoio ao residente sempre que possível e desde que este apoio contribua para um maior bem-estar e equilíbrio psico afetivo do residente e também “assistência religiosa, sempre que o residente o solicite, ou, na incapacidade deste, a pedido dos seus familiares ou representante legal”.
Nos termos do artigo 9.º é obrigatória a elaboração de um processo individual do residente, com respeito pelo seu projecto de vida, as suas potencialidades e competências, do qual devem obrigatoriamente constar os elementos elencados nas diversas alíneas (vide n.º 1) e, finalmente, sob o n.º 10, epigrafado de “Contrato de prestação de serviços” dispõe-se que:
1. Devem ser celebrados por escrito contratos de alojamento e prestação de serviços com os residentes e ou seus familiares e, quando exista, com o representante legal, donde constem os direitos e obrigações das partes.
2. Do contrato é entregue um exemplar ao residente e ou familiares e arquivado outro no respetivo processo individual.
3. Qualquer alteração ao contrato é efetuada por mútuo consentimento e assinada pelas partes”.
Acresce a vinculação das partes, como de resto sucedeu no caso dos autos, ao cumprimento do regulamento interno da instituição, de modo a não prejudicar o exercício da atividade que a esta cabe desempenhar.
Atendendo ao teor dos citados diplomas, e não sendo a denominação que deles consta elemento decisivo na qualificação do contrato, terá certamente de se ter em conta. De outro lado, considerando o feixe de direitos e deveres que para cada um dos contraentes decorre da celebração de um contrato desta natureza, afigura-se que, contendo elementos próprios do contrato de locação e eventualmente até de depósito, nele avultam as obrigações próprias do contrato de prestação de serviços. Assim, de um lado temos a vinculação da instituição requerida a fornecer a cada utente toda uma série de serviços, todos eles subordinados a uma específica finalidade, a saber, assegurar o seu bem estar, proporcionando-lhes serviços permanentes adequados, idóneos a contribuir para estimular um processo de envelhecimento activo e, tanto quanto possível, saudável, criando condições que incentivem um convívio social benéfico, preservando as relações familiares do idoso, tudo com respeito pelo seu grau de autonomia e independência, cabendo ao utente, em contrapartida, pagar uma retribuição. Isso mesmo, aliás, resulta do contrato celebrado entre a aqui requerente, sua mãe, como utente do equipamento social gerido pela requerida, e por esta.
Estamos assim perante um contrato que, não obstante a sua tipicidade social, se apresenta como atípico, não fornecendo a lei um regime próprio e completo do mesmo, antes remetendo para a autonomia das partes a fixação do seu conteúdo (cfr. o n.º 3 do artigo 9.º da Portaria). Não obstante, nele reconhecendo, conforme se deixou já referido, elementos próprios de diversos contratos típicos, como o de locação e de prestação de serviços, afigura-se que o tipo negocial mais próximo, cujo regime será assim aplicável, é a prestação de serviços na modalidade de mandato, regulado nos artigos 1154.º a 1156.º e 1157.º e seguintes do Código Civil. Assim foi entendido pelo TRL em acórdão de 16/1/2007, no processo 9668/2006-7, no qual se afirmou que “tem a natureza de contrato de prestação de serviços (artigo 1154.º do Código Civil) aquele em que uma sociedade se obriga a prestar, mediante retribuição, assistência a pessoas idosas internadas num lar”, o que foi reiterado no acórdão do TRP de 14/7/2020, no processo 214/16.1T8VGS.P1, e foi aceite sem controvérsia no acórdão deste TRE de 19/1/2020, no processo 514/19.7T8TMR.E1, todos acessíveis em www.dgsi.pt.
Face a tal caracterização, o contrato celebrado entre a requerente e sua mãe, por um lado, e a requerida por outro, rege-se pelas cláusulas convencionadas e ainda pelas disposições que regem o contrato de mandato, por força da remissão operada pelo artigo 1156.º do Código Civil.
Definido o regime aplicável, importa agora decidir se a factualidade indiciariamente provada permite que se tenham por verificados os pressupostos da providência requerida.
Resulta dos factos indiciariamente apurados que na sequência -mas não exclusivamente em consequência- do email que a requerente enviou à requerida em 28 de Maio, esta veio revogar o contrato, que expressamente qualificou como misto de “pousada ou albergaria”, em todo o caso livremente revogável nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 1170.º, n.º 1, do CC, disposição legal que invocou. A requerente, como vimos, rejeita tal interpretação dos termos do contrato, sustentando que o mesmo, atentas a sua específica finalidade e especial fragilidade da outorgante (…), utente do equipamento gerido pela requerida, não é livremente revogável pela requerida nem pode ser por esta denunciado, sendo “obrigatoriamente mantido, salvo reiterada e grave violação da disciplina no Lar” – resolução por justa causa que no caso se não verifica.
A este respeito, impõe-se reconhecer que os contratos em causa têm uma inescapável finalidade social, ainda quando a entidade prestadora dos serviços é privada, que extravasa dos interesses privados e particulares das partes contratantes. Apenas assim se justifica o estabelecimento de regras apertadas no que respeita à instalação, funcionamento e fiscalização dos estabelecimentos de apoio social, independentemente da sua natureza, não deixando a legislação pertinente e a que fizemos referência de enunciar os direitos e deveres dos utentes, seus familiares e instituições que gerem os equipamentos (cfr. ainda a Portaria n.º 196-A/2015, de 1 de Julho, posteriormente alterada pela Portaria n.º 218-D/2019, que define os critérios, regras e formas em que assenta o modelo de cooperação que vigora entre o ISS, IP e as instituições particulares de solidariedade social ou legalmente equiparadas).
Não obstante, sendo a regulamentação existente omissa quanto ao modo de cessação dos contratos celebrados, porque submetidos ao modelo de contratação privatístico, encontram-se sujeitos aos princípios consagrados na lei civil, havendo que respeitar a autonomia das partes e a sua liberdade de estipulação (cfr. artigo 405.º do CC), sem embargo do eventual funcionamento da válvula de escape que o instituto do abuso de direito sempre representa, em ordem a garantir a justiça da solução que venha a ser encontrada.
No caso dos autos verifica-se terem as partes estabelecido que o contrato vigoraria “até à prestação de serviço, sem prejuízo do disposto na norma xxxviii[5] do regulamento interno, com início na data abaixo indicada”, podendo todavia “ser denunciado a todo o tempo por iniciativa de qualquer dos outorgantes, com a antecedência de trinta dias” (cfr. cláusulas XI e XII).
Tendo aplicado o regime relativo ao contrato de arrendamento, considerou-se na sentença recorrida que o acordo formalizado nos autos vigorava pelo período de 1 ano, renovando-se automaticamente por igual período enquanto não fosse denunciado por qualquer uma das partes. Recusada a aplicação do referido regime, o que resulta das cláusulas transcritas é que o contrato foi celebrado sem prazo, pelo que se manteria até ser denunciado por qualquer uma das partes.
É sabido que as partes, ao celebrarem um contrato, podem vincular-se por tempo determinado ou nada convencionarem a tal respeito. Em homenagem ao princípio de ordem pública de que a ninguém pode ser exigido que se mantenha vinculado por tempo indeterminado (Prof. Almeida e Costa, “Direito das Obrigações”, 9.ª ed., Coimbra 2006, pág. 289), a denúncia, enquanto causa extintiva dos contratos, é uma declaração unilateral receptícia, através da qual uma das partes põe termo à relação contratual. Trata-se de uma faculdade discricionária, não carecendo portanto de fundamentação, e não confere à contraparte o direito a qualquer indemnização pela cessação do contrato. Trata-se ainda de uma forma típica de fazer cessar relações duradouras por tempo indeterminado, sendo igualmente um meio de impedir a prorrogação ou renovação de um contrato celebrado por tempo determinado, caso em que deve fazer-se para o termo do prazo da renovação (cfr. Prof. A. Varela, "Das obrigações em geral", 7.ª ed., II, pág. 280).
No caso que nos ocupa, estando perante uma relação duradora e que perdurava há já 5 anos, eis que a requerida declarou pretender “revogar” o contrato, cumprindo os 30 dias de pré aviso constantes da transcrita cláusula XII. E cremos, dados os termos do contrato celebrado, que poderia efectivamente denunciar o contrato, conforme denunciou. Aliás, e aqui dissentindo igualmente da decisão recorrida, afigura-se, em face da factualidade assente nos autos, que teria até fundamento para resolver o contrato por incumprimento por banda da contraparte.
Não estando em causa os deveres que recaem sobre a requerida no sentido de prover à satisfação das necessidades da utente e promover o seu bem estar, a verdade é que a partilha de um espaço implica sempre cedências e alguns incómodos. Sucede, porém, que todas as companheiras atribuídas à utente e aqui aderente (…), em número agora de 9, se revelaram incómodas e até insuportáveis, dando origem a reclamações sucessivas, de maneira que as funcionárias do Lar Casa dos (…) passaram a recusar-se a ir sozinhas ao quarto da mesma, a fim de evitar confusões da parte daquela sem a presença de outra pessoa (cfr. ponto 29), o que é naturalmente susceptível de afectar o funcionamento da instituição. Acresce que podendo os incómodos sentidos pela utente ser eliminados com a atribuição de um quarto privativo, o que chegou a ser pedido pela requerente sua filha, quando o quarto ficou disponível foi tal evidente solução declinada, sem que tenha sido adiantada qualquer justificação para o efeito (cfr. pontos 19, 20 e 21).
Finalmente, quando analisada a missiva enviada pela requerente à direcção da requerida, afigura-se evidente que a imputação às funcionárias da instituição de condutas susceptíveis de integrarem a prática de ilícito de natureza penal, na circunstância o crime de maus tratos a idoso, na sequência de queixas provocadas pelos maus cheiros sentidos aquando da higienização da companheira de quarto da utente (…), quando bastaria para o evitar que esta se ausentasse do compartimento durante a realização de tal tarefa, o que terá autonomia para fazer, só podia ser interpretado, como foi, como uma ameaça para que as exigências daquela fossem mais uma vez atendidas.
Não pode ainda deixar de se concordar com a requerida quando aponta a óbvia contradição em que recai a requerente, ora dando conta do seu desagrado pela forma como a mãe vem sendo tratada na instituição, acenando com a imputação de ilícito penal – ainda que nada nos factos apurados suporte a validade de uma queixa dessa gravidade –, e a recusa em aceitar a cessação do contrato, o que sempre implicaria que não pudesse ser dado como verificado o alegado “periculum in mora”.
Uma nota final para referir que, atentos os factos apurados e a circunstância de uma solução requerida pela própria requerente – a atribuição a sua mãe de um quarto privativo – ter sido posteriormente recusada sem qualquer justificação, não se vislumbra que a requerida esteja a exercer o seu direito de denúncia de forma abusiva, o que implicaria um juízo de completa desconformidade com as razões sociais ou económicas com o legitima, ferindo o sentimento de justiça dominante, que os factos apurados não sustentam.
Nos termos do artigo 334.º do Código Civil, é ilegítimo o exercício de um direito quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social desse direito. Existirá, assim, abuso do direito quando “admitido um certo direito como válido em tese geral, todavia, no caso concreto, ele aparece exercitado em termos clamorosamente ofensivos da justiça, entendida segundo o critério social dominante” (Prof. Manuel de Andrade, Teoria Geral I, Coimbra, 1958, pág. 63). Como resulta claro da fórmula legal, o excesso cometido tem que ser manifesto, no sentido de que os tribunais só podem fiscalizar a “moralidade dos actos praticados no exercício de direitos ou a sua conformidade com as razões sociais ou económicas que os legitimam, se houver manifesto abuso” (Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, vol. I, Coimbra Editora, pág. 298). Não é, pelos motivos expostos, aqui o caso, com a consequência de se ter a denúncia do contrato como válida e eficaz, negando-se, em consequência, a providência requerida.
* III. Decisão Acordam as juízas da 2.ª secção cível do Tribunal da Relação de Évora em:
a) Julgar procedente o recurso da requerente, declarando nula a decisão recorrida nos termos expostos;
b) Julgar procedente o recurso da requerida, julgando improcedente a providência requerida.
Sem custas o recurso da requerente.
Custas na 1.ª instância e do recurso da requerida a cargo da requerente (artigo 527.º, n.ºs 1 e 2, do CPCivil).
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Évora, 09 de Abril de 2025
Maria Domingas Simões (Relatora)
Ana Margarida Leite (1ª Adjunta)
Cristina Dá Mesquita (2ª Adjunta)
Sumário (…)
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[1] Neste mesmo sentido, defende o Cons. Lopes do Rego, «a audição excepcional e complementar das partes (…) só deverá ter lugar quando se trate de apreciar questões jurídicas susceptíveis de se repercutirem, de forma relevante e inovatória, no conteúdo da decisão e quando não fosse exigível que a parte interessada a houvesse perspectivado durante o processo» (in Comentários ao Código de Processo Civil, volume I, 2.ª edição, Almedina, pág. 33).
[2] Cfr., neste preciso sentido, recente aresto do STJ de 2/6/2020, processo 496/13.0TVLSB.L1.S1, ainda que a propósito da violação do disposto no n.º 3 do artigo 665.º do CPC, e o comentário crítico do Prof. M. Teixeira de Sousa no Blog do IPPC, entrada de 8/3/2021.
[3] Assim, o aresto do mesmo STJ de 13/10/2020, no processo 392/14.4.T8CHV-A.G1.S1, e o acórdão do TRG 19/3/2020, processo 6760/19.8T8GMR-A.G1, este com anotação concordante do Prof. MTS –Blog IPPC, entrada de 8/9/2020 –, na esteira da opinião já antes ali expendida.
[4] Assim, ainda com actualidade, Prof. A. dos Reis, CPC Anotado, Volume V, págs. 49 e seguintes.
[5] Com o seguinte teor:
“NORMA XXXVIII – Cessação da prestação de serviços por facto não imputável ao prestador
1. A cessação da Prestação de Serviços ao utente pode acontecer:
a. Por desistência, o utente, familiar ou o seu representante legal, tem de informar a instituição com um mês de antecedência, da data prevista para abandonar a resposta social e rescinde-se o contrato de prestação de serviços;
b. Por denúncia da prestação de serviço da responsabilidade da Instituição, por comportamento reiteradamente inaceitável relativo ao não cumprimento das normas constantes do presente Regulamento.