ACIDENTE DE VIAÇÃO E DE TRABALHO
DANO BIOLÓGICO
PERDA DE CAPACIDADE DE GANHO
Sumário

1. Em ação de responsabilidade civil fundada em acidente de viação, a referência para efeitos de cálculo da perda de retribuição deve ser a retribuição líquida, porquanto as indemnizações não estão sujeitas a impostos e contribuições, ao contrário do que sucede com os salários.
2. Como tem sido afirmado sucessivamente pelo Supremo Tribunal de Justiça, as indemnizações arbitradas pela jurisdição laboral e pela jurisdição civil, quando se trate de acidente de viação que constitua simultaneamente um sinistro laboral, não são cumuláveis, mas antes complementares, pelo que não deve ser descontada na indemnização arbitrada na jurisdição civil aquela que tenha sido fixada na jurisdição laboral.
3. O dano biológico consubstancia um dano pessoal e corporal, pois traduz-se numa lesão na saúde, física e psíquica, pelo que se mostra suscetível de compensação, ou seja, tem uma dimensão não patrimonial, mas pode ter e tem também consequências de natureza patrimonial, pelo que pode, de igual modo, surgir nestas vestes. O dano biológico pode, assim, ser simultânea e cumulativamente indemnizado pela sua vertente não patrimonial e pela sua vertente patrimonial.
4. Na apreciação da dimensão patrimonial do dano biológico atende-se à incapacidade genérica, apurada por referência à Tabela Nacional para Avaliação de Incapacidades Permanentes em Direito Civil, e o critério decisivo para a fixação da respetiva indemnização é a equidade, alavancada pela ponderação de casos análogos (artigos 566.º, n.º 3 e 8.º, n.º 3, do Código Civil).
(Sumário da Relatora)

Texto Integral

Apelação n.º 1882/22.0T8EVR.E1
(1ª Secção)

Sumário: (…)

(Sumário da responsabilidade do Relator, nos termos do artigo 663.º, n.º 7, do Código de Processo Civil)


***

Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora:

I – Relatório

1. (…) intentou a presente ação declarativa de condenação, com a forma de processo comum, contra (…) – Companhia de Seguros, S.A., peticionando que a Ré seja condenada a pagar-lhe a quantia global de € 545.278,43, acrescida dos respetivos juros moratórios, calculados à taxa referente às dívidas civis, desde a citação até efetivo e integral pagamento.

Alegou, para tanto, ter sido vítima de um acidente de viação, culposamente causado pelo condutor do veículo seguro na Ré, do qual emergiram danos patrimoniais e não patrimoniais, cujo ressarcimento aqui peticiona.

2. Regularmente citada, a Ré contestou, reconhecendo que à data a responsabilidade civil emergente da circulação do veículo ligeiro de matrícula (…) encontrava-se transferida para si através do contrato de seguro titulado pela Apólice do Ramo Automóvel n.º (…).

A Ré admitiu ainda a ocorrência e descrição do acidente feita pelo Autor, reconhecendo expressamente o dever de o indemnizar pelos danos que sofreu, impugnando, porém, os danos alegados pelo Autor.

3. Procedeu-se ao saneamento da causa e à fixação do objeto do litígio e dos temas da prova, produziu-se prova pericial e realizou-se a audiência de julgamento, após o que foi proferida sentença, com o seguinte dispositivo:

Nesta conformidade, tudo visto e ponderado, decido julgar parcialmente procedente a ação, e, consequentemente condenar a (…) – Companhia de Seguros, S.A. a pagar ao Autor (…) as quantias de:

a) € 3.413,66 (três mil quatrocentos e treze euros e sessenta e seis cêntimos), pela perda de rendimento no período da incapacidade temporária, acrescida de juros legais à taxa legal de 4% ao ano, desde a data da citação até efetivo e integral pagamento;

b) € 160.000,00 (cento e sessenta mil euros) pela perda de capacidade de ganho e pelo dano biológico, acrescida de juros legais à taxa legal de 4% ao ano, desde a presente data até efetivo e integral pagamento;

c) € 40.000,00 (quarenta mil euros) pelos danos de natureza não patrimonial, acrescida de juros legais à taxa legal de 4% ao ano, desde a presente data até efetivo e integral pagamento;

d) Absolver a Ré do remanescente do pedido.”

4. Inconformada, veio a Ré apelar da sentença, concluindo as suas alegações da seguinte forma:

“1 - No capítulo referente às diferenças salariais a Sentença arbitra a quantia de € 3.413,66.

2- Deveria ter tido em conta nesse cálculo o valor do rendimento líquido e não do rendimento ilíquido.

3- O facto provado 72, deve ser alterado do mesmo ficando a constar:

"72- À data do acidente, o autor exercia a profissão de pedreiro de primeira categoria, auferindo uma retribuição anual líquida de € 11.587,94, por catorze meses”.

4- Em face da modificação da matéria de facto, ora requerida, deve o valor a arbitrar a título de diferenças salariais durante o período de 316 dias, ser de € 826,56 e não € 3.413,66.

5- Tal valor encontra-se pela diferença entre os € 8.718,84 que o Autor deveria ter recebido e os € 7.855,88 que o Autor efetivamente recebeu (artigo 79º dos factos provados).

6- O Autor encontra-se a receber pensão anual e vitalícia de € 558,57 x 14 meses (facto provado 80), pela perda de capacidade de ganho atribuída no âmbito laboral.

7- O presente sinistro foi caracterizado simultaneamente como sendo de trabalho e de viação (facto provado 77).

8- O valor da pensão anual e vitalícia, foi concedida ao Autor a título de indemnização pela incapacidade parcial permanente de que se encontra afectado (artigo 80º dos factos provados).

9- A presente Sentença arbitrou a quantia de € 110.000,00 ao Autor, a título de perda da capacidade de ganho.

10- O que representa uma duplicação do mesmo segmento indemnizatório.

11- Não se podem somar ou cumular indemnizações, doutra forma o Autor, ora recorrido, receberia duas vezes pelo mesmo dano e a Ré, ora recorrente, pagaria duas vezes pelo dano decorrente da perda da capacidade de ganho.

12- Consequentemente, ao decidir na base do critério da perda de rendimento, o Tribunal a quo fez uma errada interpretação da lei, designadamente, do disposto no n.º 3 do artigo 566.º do CPC.”

5. Foram apresentadas contra-alegações, nas quais o Autor pugnou pela improcedência do recurso.

6. Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

II – Questões a Decidir

O objeto do recurso está delimitado pelas conclusões da apelação, não sendo objeto de apreciação questões novas suscitadas em alegações, exceção feita para as questões de conhecimento oficioso (artigos 608.º, n.º 2, 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1, do Código de Processo Civil).

Não se encontra também o Tribunal ad quem obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes, sendo livre na interpretação e aplicação do direito (artigo 5.º, n.º 3, do Código de Processo Civil).

Assim, cumpre apreciar se:

a) a matéria de facto deve ser alterada nos termos pugnados pela Ré;

b) a decisão de direito padece de erro.

III – Fundamentação de Facto

1. No n.º 1 do artigo 662.º do Código de Processo Civil, norma atinente à “modificabilidade da decisão de facto”, prescreve-se que “a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.”

E no artigo 640.º do Código de Processo Civil, sob a epígrafe “ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto”, estabelece-se que:

“1 - Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:

a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;

b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;

c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.

2 - No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:

a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;

b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.”

Constata-se que o Recorrente indicou o ponto de facto de cuja decisão discorda, bem como os meios de prova que, no seu entendimento, impõem decisão diversa, apontando ainda a decisão que se lhe afigura que seria a mais correta em face desses meios de prova, pelo que deve ser apreciada a impugnação da decisão atinente ao facto provado sob 72.

2. O Tribunal a quo julgou provados os seguintes factos:

1. No dia 15 de outubro de 2019, pelas 17 horas e 25 minutos, na estrada regional 373, ao quilómetro 63,400, na União das freguesias de Alandroal (Nossa Senhora da Conceição), São Brás dos Matos (Mina do Bugalho) e Juromenha (Nossa Senhora do Loreto), no concelho do Alandroal, distrito de Évora, ocorreu um choque em cadeia, que envolveu o veículo automóvel ligeiro de mercadorias de marca Iveco, modelo (…), com a matrícula (…), e os veículos automóvel ligeiros de mercadorias de marca Renault, modelo (…), com as matrículas (…) e (…), bem como o Autor.

2. O veículo (…), propriedade da sociedade comercial (…), Aluguer de Automóveis, S.A., era conduzido por (…), funcionário do proprietário, que conduzia o referido veículo por conta e no interesse do seu proprietário e por itinerário por este previamente delineado.

3. Os veículos (…) e (…) encontravam-se parados e estacionados na berma da mencionada estrada regional n.º 373, ao quilómetro 63,400, no sentido Alandroal – Redondo e estavam sinalizados mediante o acionamento das luzes avisadoras de perigo (vulgarmente designadas de “quatro piscas”).

4. A presença dos veículos encontrava-se ainda assinalada pelos sinais verticais temporários (n.º A23 do Decreto Regulamentar n.º 22-A/98, 01,10) colocados ao longo da via, no sentido de trânsito Alandroal-Redondo em que seguia o veículo (…), com uma antecedência superior a 400 metros, anunciando realização de obras na via pública.

5. Os condutores dos veículos (…) e (…) e o autor encontravam-se no local a proceder à colocação de sinais temporários de aviso dessas mesmas obras na via pública e da presença de obstáculos na via, sendo certo que tais obras estavam autorizadas pela entidade competente.

6. Os dois veículos (…) e (…) estavam a uma distância entre si de cerca de dois metros e o Autor encontrava-se na frente do veículo (…) e à retaguarda do veículo (…), junto à berma direita da estrada, atento o sentido Alandroal – Redondo e atento a tudo quanto se passava na estrada e aos demais utentes da via.

7. Trazia consigo um sinal vertical de trânsito temporário de aviso de obras na via, que ia colocar na berma da mencionada estrada.

8. O veículo (…) circulava nessa mesma estrada no sentido Alandroal – Redondo, o seu condutor seguia desatento ao que se passava na estrada e aos demais utentes da via e a uma velocidade superior a 120 Km/hora,

9. Transpôs a linha longitudinal contínua provisoriamente marcada no eixo da via e invadiu a hemifaixa de rodagem contrária destinada ao sentido de trânsito Redondo – Alandroal para contornar e ultrapassar os veículos (…) e (…), aí passando a circular.

10. Na mesma hemifaixa de rodagem, circulava em sentido contrário (Redondo – Alandroal) um veículo pesado de mercadorias, em aproximação do local onde se encontravam parados os veículos (…) e (…), impossibilitando a pretendida manobra de ultrapassagem por parte do veículo (…).

11. Constatando tal facto já após ter iniciado a manobra de ultrapassagem e de ter invadido a hemifaixa contrária, o condutor do veículo (…) regressou parcialmente à hemifaixa de rodagem destinada ao sentido em que seguia (Alandroal – Redondo) mas já não conseguiu travar nem parar o veículo (…), perdendo o seu controlo, e ao quilómetro 63,400 da referida estrada e a cerca de 1.190 metros do início da reta, o veículo (…), conduzido por(…) colidiu e embateu de frente e com a sua parte frontal direita, na parte traseira esquerda do veículo (…).

12. Em consequência do embate, o veículo (…) foi projetado para a frente e na diagonal, numa distância superior a três metros, e arrastando a traseira do veículo em cerca de 70 centímetros no sentido do eixo da via.

13. O veículo (…) acabou por embater com a parte da frente esquerda sensivelmente no centro da traseira do veículo (…), o qual, por sua vez, foi também projetado para a frente numa distância superior a 1 metro.

14. Quer o veículo (…) quer o veículo (…) acabaram por ficar imobilizados na via, atravessados na hemifaixa direita de rodagem destinada ao sentido de trânsito Alandroal – Redondo e na berma direita, ficando a roda esquerda dianteira do veículo (…) a cerca de 5,80 m da berma contrária (esquerda) e a roda esquerda traseira a cerca de 5,20 bem como a roda esquerda dianteira e traseira do veículo (…) a cerca de 4,90 m da berma contrária (esquerda).

15. O veículo (…) segurado na ré ficou imobilizado no centro e eixo da via, ficando ligeiramente atravessado, com a roda esquerda dianteira a cerca de 2,70 m da berma contrária (esquerda) e a roda dianteira direita a cerca de 1,70 m da berma direita e a roda esquerda traseira a cerca de 2,90 da berma esquerda e a roda direita traseira a cerca de 1,50 m da berma direita.

16. Após o choque em cadeia acima descrito, a parte frontal do veículo (…) ficou distanciado de cerca de 0,25 m da traseira do veículo (…), cuja frente ficou distanciada de 0,90 m da traseira do veículo (…).

17. Com o embate do veículo (…) no veículo (…) e a consequente projeção deste, o Autor, que se encontrava junto à berma direita entre os veículos (…) e (…), atento o sentido de marcha daquele veículo, foi colhido pelo veículo (…).

18. O veículo (…) embateu com a parte frontal na zona parte lateral esquerda do corpo do Autor, concretamente, na zona da coxa, anca e grelha costal esquerdas, e foi projetado e prensado contra a parte traseira do veículo (…).

19. Em consequência, o Autor acabou por cair, prostrado, no chão, perpendicularmente à via, com a cabeça virada para o eixo da estrada e as pernas para a berma direita.

20. A mencionada estrada regional tem um piso em asfalto/betuminoso em bom estado de conservação e boa aderência, apresentando a via no local do acidente uma largura de 6,70 metros para o trânsito de dois sentidos opostos, correspondendo-lhe uma hemifaixa de rodagem de cerca de 3,35 metros para cada um dos sentidos de trânsito.

21. Os dois sentidos de trânsito estão delimitados por marcas traçadas na via em bom estado e sem qualquer separador físico.

22. No local do acidente, a estrada forma uma reta com cerca de 1,920 Km.

23. No local, àquela hora, a visibilidade era boa em ambos os sentidos de trânsito, sendo que era pleno dia, encontrando-se por isso a via iluminada por luz natural / luz solar.

24. Na ocasião do acidente, fazia bom tempo, o piso da via estava seco e também limpo.

25. A velocidade permitida no local é de 70 quilómetros horários para o veículo segurado pela Ré.

26. No local encontrava-se colocado sinal vertical de proibição de ultrapassagens.

27. O veículo (…) ficou com totalmente inutilizado.

28. Em consequência do embate, o Autor ficou com politraumatismos, ferimentos e escoriações no corpo.

29. Foi transportado de ambulância e veículo de emergência médica para o Serviço de Urgência do Hospital do Espírito Santo de Évora, apresentando traumatismo da coluna lombar, da bacia e do joelho esquerdo.

30. Recebeu tratamento hospitalar, com a colocação de uma tala para imobilização do joelho esquerdo, e foi submetido a vários meios complementares de diagnóstico.

31. Posteriormente foi transferido para o Hospital de Braga, onde foi internado durante 7 dias, período em que recebeu tratamento clínico hospitalar e foi submetido a vários exames complementares de diagnóstico.

32. Em consequência direta e necessária do descrito embate, o Autor sofreu as seguintes fraturas:

_ fratura toracolombar de L2 tipo A4;

_ fratura da bacia;

_ fratura dos ramos ílio e isquiopúbicos esquerdos;

_ fratura da cabeça do perónio esquerdo com lesão ligamentar complexa do joelho/antero-postero-externo e do ligamento cruzado anterior (LCA).

33. E no dia 23 de outubro de 2019, o Autor foi transferido e internado no Serviço de Ortopedia do Hospital da Luz da Arrábida até à data da alta hospitalar no dia 29 de outubro de 2019, tendo sido submetido, no dia 25 de outubro de 2019, a cirurgia de redução e fixação de L1-L3 com sistema Viper 2 Expidium Synthes, identificação de pedículos de L1 L2-l3, colocação de fios guia em L1-L2-L3 sob controlo radiológico em face e perfil, colocação de parafusos monoaxiais 45x5 em L1, parafuso poliaxial 45x5 em L2 direito e monoaxial 45x6 em L3, colocação de barras previamente moldadas, distração pedicular L1-L3 e encerramento de portas de entrada.

34. O Autor, após a alta hospitalar, teve que fazer penso duas vezes por semana - com penso hospitalar no dia 4 de novembro de 2019 - retirar os agrafos ao 14º dia, podendo apenas deambular com canadianas e tala de Depuy, sempre com recomendação médica de carga mínima no membro inferior esquerdo, evitar flexão de tronco, não realizar esforços e efetuar exercícios de reabilitação de fisioterapia.

35. Foi ainda sujeito à toma de vários fármacos, nomeadamente Paracetamol 1gr, Gabapentina 300mg, Esomeprazol 40mg, Naproxeno 500mg, Cefurogina 500mg e Metamizol 575mg.

36. No dia 11 de janeiro de 2020, o Autor voltou a ser internado no Hospital da Luz da Arrábida no Porto para reconstrução do joelho esquerdo e foi submetido a uma segunda cirurgia de artroscopia com plastia do ligamento cruzado anterior (LCA) e STG, do ligamento cruzado posterior (LCP) (allo- peronial) do ligamento posterolateral (ST – Arciero) e do menisco interno e externo do joelho esquerdo.

37. O Autor teve alta hospitalar no dia seguinte (12.01.2020), saiu com uma tala no joelho e teve que andar de canadianas e teve que se deslocar novamente a este Hospital para consulta no dia 20 de janeiro de 2020.

38. Foi ainda sujeito à colocação de gelo no joelho e à toma Xarelto 10mg.

39. No dia 31 de março de 2020, o Autor voltou a ser internado no Hospital da Luz da Arrábida no Porto para ser submetido à sua terceira cirurgia de artroscopia com revisão de plastia postero externa, tipo LaPrade do joelho esquerdo, teve alta hospitalar no dia seguinte (01.04.2020).

40. Teve que andar com tala no joelho e deslocar-se de canadianas e teve que se deslocar novamente a este Hospital para consulta no dia 6 de abril de 2020.

41. Foi ainda sujeito à colocação de gelo no joelho e à toma de vários fármacos, nomeadamente Xarelto 10mg, Ipobrufeno 600mg, Paracetamol 1000mg e amoxicilina e ácido de calvulânico.

42. O autor frequentou consultas de ortopedia com o Dr. (…) e com o Dr. (…) no Hospital do Porto, nos dias 04.11.2019, 05.11.2019, 13.11.2019, 22.11.2019, 23.11.2019, 27.11.2019, 20.12.2019, 23.12.2019, 24.12.2019, 27.01.2020, 28.01.2020, 10.02.2020, 09.03.2020, 10.03.2020, 24.03.2020, 26.03.2020, 06.04.2020, 13.04.2020, 14.04.2020, 13.05.2020, 22.06.2020, 29.06.2020, 01.07.2020, 02.07.2020, 30.07.2020 e 25.08.2020 assim como vários exames, de ressonância magnética em 08.11.2019 e de raio x em 25.06.2020, como ainda cuidados teve receber cuidas de penso e enfermagem nos dias 08.11.2019, 27.01.2020 e 13.04.2020.

43. O Autor foi também submetido a consultas de medicina física e de reabilitação no Hospital da Luz em Guimarães e fez ainda tratamentos de fisioterapia nesse mesmo Hospital da Luz de Guimarães, com sessões diárias, com início em 29 de novembro de 2019, num total de pelo menos 20 sessões.

44. O Autor padeceu de uma incapacidade temporária total desde o dia do sinistro até ao dia 26 de agosto de 2020.

45. A partir do acidente, o Autor passou a deslocar- se para toda e qualquer atividade com recurso a canadianas e ortóteses do joelho, o que continuará para o resto da vida assim como irá necessitar de tomar até ao resto da vida vários fármacos, nomeadamente analgésicos e relaxantes musculares, como terá que submeter-se a tratamentos regulares de fisioterapia.

46. Ao longo desse período, o Autor sofreu dores, principalmente aquando do acidente e nos momentos que imediatamente se seguiram assim como nos dias que se sucederam às cirurgias, o que perturbou o seu sono e o descanso.

47. O Autor ainda hoje sente dores contínuas e diárias, especialmente nas mudanças de tempo, sendo que as sentirá até ao final da sua vida, especialmente na região das costas, da bacia e anca do lado esquerdo como da perna e joelho esquerdos.

48. O Autor apresenta um quantum doloris fixável no grau 5/7.

49. As lesões sofridas e as inerentes limitações até à data da alta (em 25.08.2020) impossibilitaram, nos primeiros meses, e dificultaram, após, ao Autor a execução das suas tarefas básicas diárias, tal como fazer a sua higiene pessoal para o que precisou da ajuda dos seus familiares.

50. O que também impedia o Autor de sair de casa para atividades de lazer e recreio, apenas saindo para proceder aos seus tratamentos e consultas.

51. O Autor teve medo de morrer.

52. Antes era uma pessoa enérgica, passou a ser uma pessoa algo triste e taciturna, que perdeu a alegria de viver.

53. Por força do acidente, o Autor ficou a padecer das seguintes sequelas:

a) ao nível do ráquis:

_ cicatrizes lineares, de tipo cirúrgico, com 3 centímetros de comprimento cada, dispostas paralelamente à coluna vertebral e localizadas na região dorso-lombar, 3 em posição para vertebral direita e 2 à esquerda;

_ raquialgia consistente em dores à palpação das apófises espinhosas da coluna vertebral dorso-lombar e da musculatura paravertebral direita e esquerda; e

_ limitação dolorosa da mobilidade global da coluna dorso-lombar, mais acentuada para o movimento de flexão do tronco.

b) ao nível do membro inferior esquerdo:

_ dismorfia da coxa e do joelho, verificando-se amiotrofia da coxa de 2,5 centímetros assim como amiotrofia da perna de 2 centímetros, com diminuição da força muscular (3-4/5) comparativamente ao lado contralateral;

_ cicatriz, de tipo cirúrgico, com forma angulada, cujo ramo horizontal mede 3 centímetros e o ramo vertical 5 centímetros, localizada na face lateral do joelho e terço inferior da face lateral da coxa;

_ cicatriz, de tipo cirúrgico, linear com 12 centímetros de comprimento, localizada na face lateral do joelho, em posição anterior relativamente à cicatriz supra descrita;

_ formação nodular redonda com 1,5 centímetros de diâmetro, visível e palpável imediatamente abaixo da face anterio do joelho, adjacente a cicatriz linear, de tipo cirúrgico, com 3,5 centímetros de comprimento, com aspeto sugestivo de colocação de âncora cirúrgica para reparação de rotura ligamentar, com sangramento recorrente devido à pele estar muito fina, apergaminhada e friável;

_ instabilidade e dor antero-posterior e lateral do joelho;

_ limitação dolorosa da mobilidade articular do joelho para o movimento de flexão, que é limitada até aos 110º-120º.

54. O Autor ficou a sentir dificuldades para a realização das transferências de posição, para passar de sentado para ortostatismo, de sentado para deitado e deitado para ortostatismo como também sente dificuldades em subir e principalmente descer escadas ou planos inclinados e na marcha em pisos irregulares.

55. O Autor sente adormecimento na face anterior da coxa esquerda, sentindo desconforto em estar muito tempo em pé parado como também sentado.

56. O Autor sente também desconforto na região inguinal esquerda e quando se tenta ajoelhar ou colocar-se de cócaras.

57. Diariamente sente dores dorso-lombares e no joelho esquerdo, com aumento de volume da articulação, ou seja, inchaço do joelho esquerdo, bem como dificuldade na flexão ou rotação vertebral.

58. O Autor ficou impossibilitado de executar marcha rápida ou corrida, deslocando- se lentamente, com ajuda de canadiana, utilizando sempre ortótese do joelho esquerdo devido à instabilidade articular do mesmo, sendo que as dores ao nível do joelho acentuam-se com a marcha prolongada durante mais de 10 a 15 minutos, vendo-se forçado a parar e sentar-se.

59. O Autor ficou impossibilitado de transportar ou manusear objetos pesados.

60. O Autor é esquerdino.

61. O Autor tem que usar de forma permanente e para o resto da vida uma ortótese no joelho esquerdo, o que lhe causa desconforto e muito calor no Verão.

62. As lesões sofridas com o acidente originaram dez cicatrizes visíveis e permanentes no corpo do Autor, sendo que a mais extensa tem um comprimento de 12 centímetros.

63. O Autor anda e desloca-se com recurso a canadiana, o que prejudica a sua imagem e autoestima.

64. O Autor sente-se desanimado, diminuído, enfeado, socialmente estigmatizado e complexado.

65. O autor sente-se entristecido por causa de tais cicatrizes e da sua imagem associada a canadianas.

66. O Autor apresenta um dano estético permanente fixável no grau 4 numa escala de gravidade crescente de 1 a 7.

67. As limitações físicas do Autor limitam o seu desempenho e prazer sexual, sendo-lhe impossível realizar determinadas posições de coito, com repercussão permanente na atividade sexual fixável no grau 4/7.

68. As lesões sofridas pelo Autor têm repercussão permanente nas atividades desportivas e de lazer fixável no grau 3/7.

69. As lesões sofridas pelo acidente causaram no Autor sequelas que lhe determinam um défice Funcional Permanente da Integridade Físico-psíquica fixável em 29 pontos.

70. O Autor tem o 4º ano de escolaridade, tendo trabalhado sempre no sector da construção civil e da agricultura.

71. Em consequência do acidente o Autor deixou de poder exercer a sua atividade profissional habitual, que nunca mais retomou após o acidente, bem como qualquer outra dentro da sua área de preparação técnico-profissional.

72. À data do acidente, o Autor exercia a profissão de pedreiro de primeira categoria, auferindo uma retribuição anual de € 13.017,04.

73. Nos tempos livres, feriados, fins- de-semana e férias, o Autor auxiliava a esposa na agricultura e criação de gado, o que deixou de poder fazer face às descritas limitações físicas.

74. Antes do acidente, o Autor era uma pessoa bem constituída e saudável.

75. O Autor nasceu em 15 de outubro de 1967.

76. À data a responsabilidade civil emergente da circulação do veículo ligeiro de matrícula (…) encontrava -se transferida para a Ré através do contrato de seguro titulado pela Apólice do Ramo automóvel n.º (…).


*

77. Em consequência do acidente acima referenciado, correu termos o processo de acidente de trabalho n.º 1338/20.6T8EVR, com a cobertura da apólice n.º (…) contratado entre a entidade empregadora do Autor e a Ré, que terminou na fase conciliatória e foi proferida sentença em 17.11.2021, transitada em julgado.

78. No âmbito desse processo foi concedida alta médica ao Autor em 25 de agosto de 2020.

79. E o Autor recebeu da Ré a quantia de € 7.855,88 a título de Incapacidade Temporária Absoluta Parcial no período compreendido entre o dia 16.10.2019 e o dia 25.08.2020.

80. Ainda no âmbito desse processo foi fixada ao Autor uma IPP avaliável em 47,4%, encontrando-se o mesmo a receber a pesão anual vitalícia de € 558,57 vezes 14 meses a que acresce um subsídio de elevada incapacidade no valor de € 4.844.00.”

3. Em sede de impugnação da decisão da matéria de facto sustenta a Ré que deve ser alterado o facto 72, pugnando pela seguinte redação:

"72- À data do acidente, o Autor exercia a profissão de pedreiro de primeira categoria, auferindo uma retribuição anual líquida € 11.587,94 por catorze meses”.

O Tribunal a quo consignou na sentença a seguinte motivação para o facto em apreço:

A factualidade descrita em 72 e 77 a 80 encontra-se atestada pelo teor dos documentos juntos aos autos (cfr. cópia do auto de tentativa de conciliação realizada no âmbito do processo laboral e cópias dos documentos de pagamento das pensões devidas ao Autor), resultando igualmente comprovada pela declaração de IRS do Autor referente ao ano de 2019 – em que o rendimento declarado pelo Autor corresponde ao salário mensal de € 929,65 – e, além do mais, os factos 77 a 80 foram consensualmente aceites pelas partes.”

Aponta a Ré o facto de que o valor consignado no facto em apreço corresponde ao salário ilíquido.

Compulsados os documentos indicados pelo Tribunal a quo na motivação verificamos que o valor indicado foi extraído do auto de conciliação (doc. 2 junto com a cont.), onde se assinala expressamente que esta é a “retribuição anual ilíquida” do Autor.

Por outro lado, o valor que a Ré considera corresponder ao salário anual líquido não foi extraído deste ou de outro documento junto aos autos.

Entendemos, assim, que devendo a matéria de facto espelhar a prova produzida nos autos, deverá apenas aditar-se ao facto em apreço a menção de que a retribuição anual aí referida é “ilíquida”, relegando-se, no mais, a apreciação da questão para a fundamentação de direito.

B) Fundamentação de direito

1. Na situação vertente julgou-se ser a Ré responsável pelas consequências de um sinistro automóvel, em face do que foi a mesma condenada no pagamento de uma indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais ao Autor.

O sinistro em causa constitui também um acidente de trabalho, tendo corrido termos o correspondente processo laboral, no âmbito do qual foi fixada ao Autor uma IPP de 47,4% e arbitrada uma indemnização sob a forma de pensão anual vitalícia, com o valor de € 558,57 vezes 14, a que acresce um subsídio de elevada incapacidade no valor de € 4.844,00.

A R. dissente da decisão sob recurso nos segmentos relativos às diferenças salariais e à perda da capacidade de ganho, aduzindo, quanto ao primeiro aspeto, que o valor da remuneração a atender para este efeito deve ser o líquido e não o valor ilíquido, pelo que deverá ser descontada a TSU à retribuição ilíquida do Autor; e quanto ao segundo aspeto, que não pode haver cumulação da indemnização cível com a laboral, por consubstanciar uma duplicação de indemnizações, pelo que deverá ser revogada a decisão na parte relativa ao arbitramento da indemnização de € 110.000,00 pela perda da capacidade de ganho.

2. Começando pela questão atinente às perdas salariais, o Tribunal a quo considerou que uma vez que o Autor foi ressarcido, no âmbito do acidente de trabalho, na percentagem de 70% da sua retribuição, com respeito a 316 dias em que se encontrou em situação de incapacidade temporária absoluta, o Autor permanece prejudicado na medida correspondente a 30% da sua retribuição, pois deixou de auferir esta quantia por causa do acidente.

Assim, tendo sido pago ao Autor o valor de € 7.855,88 no âmbito da jurisdição laboral, assistir-lhe-ia o direito a receber nestes autos a quantia de € 3.413,16, calculada com base na retribuição provada sob 72, a qual corresponde a um valor ilíquido, como vimos já.

Porém, tem vindo a ser decidido na jurisprudência que o valor de referência para o cálculo da indemnização deve ser o líquido, como se afirmou, entre outros, nos recentes Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 21.01.2021 (Maria dos Prazeres Beleza), (Processo n.º 6705/14.1T8LRS.L1.S1) e de 12.10.2023 (João Cura Mariano), (Processo n.º 22082/15.0T8PRT.P1.S1), ambos in http://www.dgsi.pt/.

Trata-se de apurar o valor efetivamente recebido pelo lesado, dele se excluindo, portanto, as quantias sujeitas a impostos ou contribuições, na medida em que se destinam a ser entregues ao Estado.

Por outro lado, as indemnizações por danos decorrentes de sinistros, arbitradas judicialmente, não são tributadas em IRS, nem se encontram sujeitas a descontos para a Segurança Social.

Diz-se, com efeito, no Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares:

- artigo 9.º (“Rendimentos da categoria G”)

“1 - Constituem incrementos patrimoniais, desde que não considerados rendimentos de outras categorias: (…)

b) As indemnizações que visem a reparação de danos não patrimoniais, excetuadas as fixadas por decisão judicial ou arbitral ou resultantes de acordo homologado judicialmente, de danos emergentes não comprovados e de lucros cessantes, considerando-se neste último caso como tais apenas as que se destinem a ressarcir os benefícios líquidos deixados de obter em consequência da lesão;”

- artigo 12.º (“Delimitação negativa de incidência”)

“1 - O IRS não incide, salvo quanto às prestações previstas no regime jurídico dos acidentes em serviço e das doenças profissionais no âmbito da Administração Pública, estabelecido pelo Decreto-Lei n.º 503/99, de 20 de novembro, alterado pelas Leis n.os 59/2008, de 11 de setembro, 64-A/2008, de 31 de dezembro, e 11/2014, de 6 de março, sobre as indemnizações devidas em consequência de lesão corporal, doença ou morte, pagas ou atribuídas, nelas se incluindo as pensões e indemnizações auferidas em resultado do cumprimento do serviço militar, as atribuídas ao abrigo do artigo 127.º do Estatuto da Aposentação, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 498/72, de 9 de dezembro, e as pensões de preço de sangue, bem como a transmissão ao cônjuge ou unido de facto sobrevivo de pensão de deficiente militar auferida ao abrigo do artigo 8.º do Decreto-Lei n.º 240/98, de 7 de agosto: (…)

b) Ao abrigo de contrato de seguro, decisão judicial ou acordo homologado judicialmente”.

Não é, pois, correta a afirmação do Autor de que se for considerada a retribuição líquida, “reverte” para a Ré a quantia que era devida ao Estado, na medida em que no caso destas indemnizações, o Estado nada tem a receber do lesado.

Também não é, deste modo, correta a afirmação do Autor de que “a unidade do sistema jurídico” impõe o cálculo da indemnização com base na retribuição ilíquida, de modo a que seja entregue ao lesado todo o produto do seu trabalho, porquanto a parte da retribuição que é afeta a impostos e contribuições não constitui um rendimento disponível para utilização pelo lesado, em virtude da sua destinação ao Estado.

Deve, assim, proceder-se ao desconto da Taxa Social Única, na percentagem de 11%, em conformidade com o artigo 53.º da Lei n.º 110/2009, de 16.09 (aprova o Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial de Segurança Social).

Ponderando, consequentemente, o período de 316 dias de incapacidade temporária absoluta, que é aceite pela Ré, concluímos que a retribuição líquida, apurada mediante o desconto da TSU, perfaz € 10.029,89.

De seguida, abatendo a este valor a quantia que o Autor já recebeu no âmbito laboral – € 7.855,88 (facto 79) –, alcançamos a indemnização a que o Autor tem direito, a este título, a qual se cifra em € 2.174,01.

A decisão sindicada deve, pois, ser alterada no sentido de reduzir a indemnização por perdas salariais ao valor de € 2.174,01.

3. a) Relativamente à questão suscitada pela Ré quanto à indemnização pela perda da capacidade de ganho, convoca a mesma a articulação entre a jurisdição laboral e a civil, sendo afirmado consistentemente pelo Supremo Tribunal de Justiça que as duas indemnizações não são cumuláveis, mas antes complementares, porquanto se destinam a ressarcir danos diferentes.

Assim, para além da incapacidade para o trabalho indemnizada na jurisdição laboral, subsiste a afetação da saúde física e psíquica e a perda de capacidade funcional suscetíveis de indemnização na jurisdição civil em sede de dano biológico.

Com efeito, dos acidentes de viação podem resultar consequências ao nível da capacidade dos indivíduos que se repercutam na sua atividade profissional habitual, impedindo a realização dessa atividade pelo período de vida útil remanescente do lesado, assim como podem resultar consequências que não obstem à continuação da atividade profissional habitual do lesado, mas impliquem esforços acrescidos.

A indemnização do dano biológico destinou-se inicialmente a compensar essa penosidade acrescida no exercício da atividade profissional e a perda de oportunidades associada à condição físico-psíquica decorrente do acidente.

No entanto, ainda quando ocorra incapacidade para o trabalho habitual, indemnizada no âmbito da jurisdição laboral, não deixa de se verificar uma diminuição das faculdades físicas e psíquicas do indivíduo que merece ressarcimento autónomo.

Neste sentido, entre outros, pronunciou-se o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12.07.2018 (Rosa Tching), (Processo n.º 1842/15.8T8STR.E1.S1, in http://www.dgsi.pt/):

“I - As indemnizações devidas pelo responsável civil e pelo responsável laboral em consequência de acidente, simultaneamente de viação e de trabalho, assentam em critérios distintos e têm uma funcionalidade própria, não sendo cumuláveis, mas antes complementares até ao ressarcimento total do prejuízo causado ao lesado/sinistrado.

II - Esta concorrência de responsabilidades configura uma solidariedade imprópria ou imperfeita, podendo o lesado/sinistrado exigir, alternativamente, a indemnização ou ressarcimento dos danos a qualquer dos responsáveis, civil ou laboral, escolhendo aquele de que pretende obter em primeira linha a indemnização, sendo que o pagamento da indemnização pelo responsável pelo sinistro laboral não envolve extinção, mesmo parcial, da obrigação comum, não liberando o responsável pelo acidente.

III - A indemnização devida ao lesado/sinistrado a título de perda da sua capacidade de ganho, mesmo no caso do autor ter optado pela indemnização arbitrada em sede de acidente de trabalho, não contempla a compensação do dano biológico, consubstanciado na diminuição somático-psíquica e funcional do lesado, com substancial e notória repercussão na sua vida pessoal e profissional, porquanto estamos perante dois danos de natureza diferente.

IV - A indemnização fixada em sede de acidente de trabalho tem por objeto o dano decorrente da perda total ou parcial da capacidade do lesado para o exercício da sua actividade profissional habitual, durante o período previsível dessa actividade e, consequentemente, dos rendimentos que dela poderia auferir.

V - A compensação do dano biológico tem como base e fundamento a perda ou diminuição de capacidades funcionais que, mesmo não importando perda ou redução da capacidade para o exercício profissional da actividade habitual do lesado, impliquem ainda assim um maior esforço no exercício dessa actividade e/ou a supressão ou restrição de outras oportunidades profissionais ou de índole pessoal, no decurso do tempo de vida expetável, mesmo fora do quadro da sua profissão habitual.

VI - Neste campo, relevam apenas e tão só as implicações de alcance económico e já não as respeitantes a outras incidências no espetro da qualidade de vida, mas sem um alcance dessa natureza, não sendo, por isso, de ter em conta, em sede de indemnização por dano biológico, as implicações na vida sexual do lesado, que devem ser ponderadas, antes, em sede de danos não patrimoniais.” (no mesmo sentido, v. os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 30.04.2020 (Maria do Rosário Morgado), Processo n.º 6918/16.1T8VNG.P1.S1; de 12.04.2024 (Mário Belo Morgado), Processo n.º 15899/17.3T8PRT.P1.S1; de 31.10.2024 (Catarina Serra), Proc. n.º 3322/21.3T8VCT.G1.S1; de 16.01.2025 (Isabel Salgado), Proc. 14893/19.4T8PRT.P1.S1, todos in http://www.dgsi.pt/).

Deste modo, não há que descontar na indemnização arbitrada na jurisdição civil aquela que foi fixada na jurisdição laboral, como se decidiu, entre outros, no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 29.03.2022 (Maria João Vaz Tomé), (Processo n.º 119/19.4T8STR.E1.S1, in http://www.dgsi.pt/):

“III. Verifica-se a existência de danos distintos, cujo ressarcimento se impõe, sem que haja lugar a qualquer dedução do montante indemnizatório atribuído no foro laboral na indemnização conferida na ação cível. Não pode falar-se de violação do princípio da integralidade do ressarcimento, segundo o qual o lesado não pode vir a encontrar-se numa posição patrimonial mais favorável do que aquela em que estaria se a lesão não houvesse ocorrido. O acidente não é fonte de lucro ou de enriquecimento para o lesado, não existindo uma dupla indemnização pelo mesmo dano. O montante obtido pelo lesado no foro laboral não repara o mesmo prejuízo que é pressuposto e medida da indemnização por si pretendida nesta ação. O ressarcimento concedido com base na incapacidade parcial permanente não obsta à indemnização do dano biológico: o lesado não peticiona, nesta ação, a indemnização do dano da incapacidade profissional.”

b) Um aspeto que tem sido debatido e aflora na jurisprudência citada é o que respeita ao enquadramento do dano biológico na dicotomia clássica de dano patrimonial e dano não patrimonial.

O dano biológico consubstancia um dano pessoal e corporal, pois traduz-se numa lesão na saúde, física e psíquica, envolvendo, consequentemente, a ofensa do direito à integridade física e psíquica, tutelada no artigo 25.º da Constituição, bem como no artigo 70.º do Código Civil.

Na pirâmide dos direitos fundamentais de personalidade a integridade física e psíquica ocupa o lugar imediatamente a seguir à vida, constituindo ambos o núcleo de proteção da pessoa humana, na dimensão da sua eminente dignidade, que representa um dos fundamentos da República Portuguesa (artigo 1.º da Constituição).

Deste modo, o dano biológico mostra-se suscetível de compensação, ou seja, tem uma dimensão não patrimonial, mas pode ter e tem também consequências de natureza patrimonial, pelo que pode, de igual modo, surgir nestas vestes. O dano biológico pode, assim, ser simultânea e cumulativamente indemnizado pela sua vertente não patrimonial e pela sua vertente patrimonial.

Analisando a evolução da jurisprudência nacional a este respeito, explica Maria da Graça Trigo («O conceito de dano biológico como concretização jurisprudencial do princípio da reparação integral dos danos – Breve contributo», Revista Julgar, n.º 46, jan-abr 2022, págs. 259-260) que perante o caráter limitado da apreciação do dano biológico neste estreitamento conceitual, surgiram “vozes favoráveis à utilização do conceito de dano corporal, propondo a ponderação de um elenco de variáveis que, na senda do direito italiano, integraria esse conceito: dano de afirmação pessoal ou dano à vida de relação; dano estético; dano psíquico; dano sexual; dano à capacidade laboral genérica ou geral.

Nesta enumeração podemos identificar alguns dos principais factores que a jurisprudência viria a considerar no labor de, progressivamente, alcançar o pleno ressarcimento das vítimas de eventos lesivos. Os primeiros factores elencados (dano de afirmação pessoal ou dano à vida de relação, dano estético, dano psíquico, dano sexual) a ponderar geralmente ao nível do alargamento dos danos não patrimoniais relevantes a compensar. O último factor indicado (dano à capacidade laboral genérica ou geral) a ponderar sobretudo ao nível do alargamento dos danos patrimoniais relevantes a indemnizar.”

Maria da Graça Trigo (ibidem, pág. 262) aponta, então, as situações típicas nas quais se ponderava o dano biológico nesta dimensão de dano patrimonial futuro e que se reconduziam aos sinistrados que se encontravam fora do mercado de trabalho ou que, encontrando-se a trabalhar, não se viam impedidos de continuar a exercer a sua profissão habitual.

O dano relevante não é, pois, a perda de capacidade laboral, mas distintamente a aludida “perda de capacidade genérica ou geral”, por isso, a referência pertinente é o índice da incapacidade geral permanente do lesado, fixado segundo as Tabelas de Incapacidade Geral Permanente em Direito Civil (ibidem, págs. 266-267).

Esta específica e alargada configuração do dano biológico justifica que, mesmo quando a capacidade laboral é afetada, não deixe de ser também atendida e estimada a referida incapacidade genérica ou geral.

Trata-se de uma indemnização a ser apreciada segundo o critério da equidade plasmado no n.º 3 do artigo 566.º do Código Civil, devendo os elementos a tomar em consideração para esse efeito ser analisados numa perspetiva comparada.

Efetivamente, o n.º 3 do artigo 8.º do Código Civil aponta para que “Nas decisões que proferir, o julgador terá em consideração todos os casos que mereçam tratamento análogo, a fim de obter uma interpretação e aplicação uniformes do direito”.

No Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12.10.2023 (Nuno Ataíde das Neves) (Proc. n.º 1969/19.7T8PTM.E1.S1, in http://www.dgsi.pt/) sintetizou-se, assim, o estado atual da questão:

“I. Procurando dissipar uma linha rígida divisória entre os danos patrimoniais e os danos não patrimoniais, a doutrina e a jurisprudência adoptaram a expressão “dano biológico”, concebendo este em muitas situações de afectação da integridade físico-psíquica, em que a própria natureza híbrida ou indefinida do dano não é passível de situar ou enquadrar este apenas na esfera patrimonial ou na dimensão não patrimonial, porquanto a sua materialização não se ajusta apenas às dores da alma, assim como não se adequa tão-só na perda de utilidades de índole económica, não dependendo a sua ressarcibilidade da efectiva e comprovada perda de rendimentos, mas sim da demonstração de que, em resultado de tal dano, o lesado passou a ser portador de limitações ou constrangimentos que, não obstante possa continuar a conseguir realizar as suas tarefas profissionais e de natureza pessoal, o faz mediante um esforço acrescido, ou de um vigor muito superior àquele que teria se não tivesse sofrido esse dano, em ordem a constatar-se se tal dano virá a originar, no futuro e durante o período activo do lesado ou da sua vida, e por si só, uma perda da capacidade de ganho, ou se o mesmo se traduz apenas numa afectação da sua potencialidade física, psíquica ou intelectual, sem prejuízo do natural agravamento inerente ao decorrer da idade.

II. Com um enquadramento ou com outro, que seja classificado como dano patrimonial, que seja visto como dano não patrimonial, o dano biológico é em si ressarcível, como dano autónomo, mesmo quando não sejam verificadas consequências em termos de perda de capacidade aquisitiva.

III. O valor do dano biológico tem de ser fixado com recurso a regras de equidade (artigo 566.º, n.º 3, do CC), mediante a ponderação séria e não arbitrária ou aleatória de diversos indicadores, designadamente a idade do lesado, a sua esperança de vida, o seu grau de incapacidade geral permanente (isto é, a percentagem do défice funcional permanente da integridade físico-psíquica), as suas potencialidades de ganho em profissão ou atividades económicas compatíveis com as suas qualificações e aquele défice, um exercício muito cuidado de análise de previsibilidade, um cálculo que tem de se alicerçar nos princípios da certeza, da segurança e da igualdade, em observância de outros casos com contornos paralelos anteriormente tratados pela jurisprudência de um juízo sempre presidido pela equidade.”

c) Compulsada a sentença sindicada, verificamos que o Tribunal a quo aborda em conjunto a indemnização do dano designado perda da capacidade de ganho e a indemnização do dano designado dano biológico em sentido restrito.

Explica-se na fundamentação desta decisão que “a indemnização a fixar pela limitação funcional, ou dano biológico, deve ser apta a ressarcir o lesado pelos danos de natureza patrimonial e não patrimonial”.

Assim, o Tribunal a quo começou por considerar um conjunto de factos relevantes para a apreciação global do referido dano biológico:

- Em consequência das lesões causadas pelo acidente, sobreveio para o autor um Défice Funcional Permanente da Integridade Físico-Psíquica de 29 (vinte e nove) pontos, ficando o mesmo a padecer das sequelas descritas no facto n.º 53 e das limitações de mobilidade referidas nos factos n.º 54 a 59;
- O Autor tem que usar de forma permanente uma canadiana e para o resto da vida uma ortótese no joelho esquerdo;
- As lesões apresentadas pelo Autor têm repercussão permanente na atividade sexual fixável no grau 4/7 e nas atividades desportivas e de lazer fixável no grau 3/7;
- Em consequência do acidente o Autor deixou de poder exercer a sua atividade profissional habitual, que nunca mais retomou após o acidente, bem como qualquer outra dentro da sua área de preparação técnico-profissional;
- À data do acidente, o autor exercia a profissão de pedreiro de primeira categoria, auferindo uma retribuição anual de € 13.017,04 e nos tempos livres, feriados, fins- de-semana e férias, o autor auxiliava a esposa na agricultura e criação de gado, o que deixou de poder fazer face às descritas limitações físicas;
- O Autor tem o 4º ano de escolaridade e tinha 52 anos à data do acidente”.

A este título foi, assim, arbitrada uma indemnização total de € 160.000,00, dividida pelos seguintes parcelares:

- Uma indemnização pela designada perda da capacidade de ganho, no valor de € 110.00,00, para a qual foram especificamente ponderados os seguintes factos:

- na sua idade – 52 anos à data da consolidação das lesões;

- no tempo previsível de vida (e não apenas a vida ativa, pois que a indemnização vai além do impacto das lesões na esfera profissional), fixável em vinte e seis anos, tendo por referência a esperança média de vida para os homens em Portugal (78 anos – de acordo com os dados disponibilizados no site da Pordata);

- o rendimento anual auferido pelo Autor e bem assim o contributo adicional do mesmo para a económica familiar com a atividade agrícola e pecuária a que se dedicava nos fins de semana;

- neste juízo cumpre igualmente atentar no grau de escolaridade/qualificações do lesado, prognosticando-se como muito difícil a colocação do A. no exercício efetivo de alguma outra profissão da sua área de preparação técnico-profissional;

- a circunstância do pagamento da indemnização se traduzir numa prestação única e proporcionar um rendimento global imediato.”

- Uma indemnização pelo designado dano biológico em sentido restrito, no valor de € 50.000,00, para a qual foram especificamente ponderados os seguintes factos:

- As limitações físicas do autor limitam o seu desempenho e prazer sexual, sendo-lhe impossível realizar determinadas posições de coito, com repercussão permanente na atividade sexual fixável no grau 4/7;

- As lesões sofridas pelo Autor têm repercussão permanente nas atividades desportivas e de lazer fixável no grau 3/7.

- As lesões sofridas pelo acidente causaram no autor sequelas que lhe determinam um défice Funcional Permanente da Integridade Físico-psíquica fixável em 29 pontos.”

Com respeito ao primeiro segmento indemnizatório, o Tribunal a quo efetuou um cálculo com base numa fórmula consistente em multiplicar o salário anual do lesado pelo seu tempo de vida útil e o respetivo défice funcional, apurando o montante de € 98.148,48.

Seguidamente, apelando à equidade, considerou jurisprudência atinente a casos semelhantes, e fixou, a final, a indemnização pela perda da capacidade de ganho em € 110.000,00 e a indemnização atinente ao dano biológico em sentido restrito em € 50.000,00.

Ou seja, estas duas indemnizações foram arbitradas para ressarcimento do dano biológico na sua dimensão patrimonial e não patrimonial, respetivamente.

O défice funcional permanente da integridade físico-psíquica aqui considerado foi apurado por referência à Tabela Nacional para Avaliação de Incapacidades Permanentes em Direito Civil, e o critério decisivo para a fixação das indemnizações foi a equidade, alavancada pela ponderação de casos análogos.

Assim, entendemos que a circunstância de ter sido arbitrada, em sede de jurisdição laboral, uma indemnização por incapacidade para o trabalho, não obsta a que seja estimada, como consequência patrimonial da lesão, a incapacidade genérica fixada à luz da Tabela Nacional para Avaliação de Incapacidades Permanentes em Direito Civil.

Está aqui em causa a dificuldade em angariar outro trabalho, por força da incapacidade de que o A. ficou a padecer, conjugadamente com os limites da sua preparação técnico-profissional e a sua idade.

Com efeito, possuindo o Autor apenas a 4ª classe, as atividades profissionais a que pode dedicar-se assentam, tendencialmente, em destreza e esforço físico, como sucedia com a sua atividade profissional habitual de pedreiro e a sua atividade de fins-de-semana ligada à agricultura e à pecuária.

Por força do acidente, o Autor passou a ter dificuldades na marcha em pisos irregulares, passou a sentir desconforto em estar muito tempo em pé parado como também sentado, passou a ter de se deslocar com o apoio de canadianas, entre outras limitações, o que tornará, efetivamente, muito difícil a realização pelo A. de qualquer outro trabalho.

Por outro lado, a sua reconversão profissional enfrentará ainda, previsivelmente, as dificuldades associadas ao avanço da idade, porquanto na data de consolidação das lesões já tinha 52 anos.

Julgamos, deste modo, que a objeção da Ré à decisão em apreço não deve encontrar acolhimento, impondo-se a improcedência do recurso nesta parte.

C) Custas

As custas devem ser suportadas pelas partes, na proporção do respetivo decaimento (artigo 527.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Civil).

IV - Dispositivo

Em face do exposto e tudo ponderado, acordam os Juízes da Secção Cível deste Tribunal da Relação em julgar parcialmente procedente a apelação, e em conformidade:

- alteram a decisão recorrida, na parte contida no dispositivo, sob a), condenando a Ré a pagar ao Autor a quantia de € 2.174,01, pela perda de rendimento no período da incapacidade temporária, acrescida de juros legais à taxa legal de 4% ao ano, desde a data da citação até efetivo e integral pagamento;

- confirmam, no mais, a decisão recorrida.

Custas pelas partes, na proporção do respetivo decaimento.

Notifique e registe.

Évora, 09 de Abril de 2025

Sónia Moura (Relatora)

Ricardo Miranda Peixoto (1º Adjunto)

Maria Adelaide Domingos (2ª Adjunta)