AMPLIAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
PAGAMENTO
TÍTULO EXECUTIVO
ÓNUS DA PROVA
Sumário

I – Apenas ao tribunal da 1.ª instância se mostra atribuída a incumbência de ampliar a matéria factual, ainda que não articulada pelas partes, relevante para a boa decisão da causa, que tenha surgido no decurso da produção da prova, ainda que apenas no que se reporte às situações previstas nas alíneas a) e b) do n.º 2 do artigo 5.º do Código de Processo Civil.
III – Tendo a embargada apresentado um título executivo relativamente a determinado montante em dívida, competia ao embargado fazer a prova do pagamento desse montante em dívida, o que fez.
III – Não concordando a embargada que tal pagamento, que não nega, se reportasse à dívida exequenda, o ónus da prova desse facto era da sua competência.
IV – Não o tendo alegado e, consequentemente, não o tendo provado, esse pagamento tem de ser imputado à dívida exequenda.
(Sumário da Relatora)

Texto Integral

Proc. n.º 6738/23.7T8MAI-A.E1
2.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora[1]

Acordam os Juízes da 2.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora:
I – Relatório
No âmbito da execução instaurada pela exequente “(…) e (…), SA” contra o executado (…), este veio deduzir embargos de executado, solicitando, a final, que os embargos sejam julgados procedentes, por provados, e, em consequência, seja extinta a execução.
Para o efeito, alegou, em síntese, que o título executivo dado à execução é um cheque-quirógrafo, pelo que já não vale como título de crédito e não gera obrigações, a não ser quando apoiado na relação subjacente, sendo que foi dado à execução volvido o prazo de seis meses, encontrando-se, por isso, prescrito.
Mais alegou que a obrigação subjacente consubstanciada no cheque, se reporta a uma relação de compra e venda entre a exequente e a sociedade “Importadora Y Comercializadora (…), Limitada”[2], com sede no Chile, tendo o executado apenas se limitado a entregar um cheque à exequente, como garantia, porque não havia cheques da sociedade devedora.
Referiu, por fim, que foi acordado entre a exequente e a sociedade “(…)”, que o montante de € 87.889,63, que esta deve àquela, seria pago, em prestações mensais de € 100,00, tendo já sido pago a quantia total de € 47.500,00.
A exequente/embargada “(…) e (…), SA” veio apresentar contestação, solicitando, a final, que os embargos sejam julgados improcedentes, por não provados, sendo igualmente julgada improcedente a exceção de prescrição invocada.
Para o efeito alegou, em síntese, que a embargada nunca celebrou qualquer acordo verbal com a referida sociedade para pagamento, a prestações, da quantia em execução, sendo que, a partir de outubro de 2023, o embargante, por sua livre e espontânea vontade, e sem qualquer aceitação prévia por parte da embargada, decidiu começar a pagar, mensalmente, a quantia de € 10.000,00, como forma de abater o valor em dívida.
Alegou, igualmente, que, em dezembro de 2023, a embargada contactou diretamente o embargante, transmitindo-lhe que os valores em dívida deveriam ser pagos na totalidade, sob pena de executar o cheque, título executivo da presente execução.
Alegou também que já no âmbito da presente ação executiva a embargada propôs ao embargante a formalização de um acordo de pagamento, acordo esse que o embargante não aceitou.
Alegou ainda que o cheque foi entregue pelo embargante à embargada como forma de pagamento da fatura em dívida e não como garantia de fornecimento de mercadoria da sociedade “(…)”, sendo que tal cheque não se mostra prescrito.
Alegou, por fim, que o embargante sempre se apresentou como sócio da referida sociedade, não tendo sido este o único cheque que lhe entregou por conta de dívidas dessa sociedade.
Realizada a audiência prévia em 14-05-2024, foi proferido despacho saneador, onde se fixou à causa o valor de € 50.000,00, se identificou o objeto do litígio, se enunciou os temas da prova e apreciados os meios de prova.
Já após a realização da primeira sessão de julgamento, a embargada veio requerer a junção de um documento, o qual, após audição do embargante, foi indeferido, por despacho proferido em 24-06-2024.
Desse indeferimento foi interposto recurso, sendo proferido por esta Relação, em 28-02-2025, decisão singular, com o seguinte teor decisório:
Assim, face ao que se deixa exposto, decido negar provimento ao recurso e confirmar o douto despacho recorrido.
Custas pela Apelante.
Registe e notifique.
Realizado o julgamento, foi proferida sentença, em 27-06-2024, com o seguinte teor decisório:
Nestes termos, o Tribunal decide julgar parcialmente procedente a presente oposição à execução mediante embargos do Executado e, em consequência:
1) Declara não verificada a prescrição da acção cambiária;
2) Declara integralmente paga, nesta data, a quantia inscrita no cheque dado à execução;
3) Determina a extinção da acção executiva.
*
Custas por ambas as partes, na proporção do decaimento, que se fixa em 1/5 para Embargante/Executado e 4/5 para Embargada/Exequente.
Notifique-se e registe-se (sendo as partes a notificar via postal simples).
*
Comunique-se a presente sentença ao Agente de Execução.
Dê-se baixa do apenso.
Inconformada com a sentença proferida, veio a embargada “(…) e (…), SA” interpor recurso, apresentando as seguintes conclusões:
A. É objeto do presente recurso a sentença do Tribunal a quo, proferida em 27/06/2024, na qual se declara integralmente paga a quantia inscrita no cheque dado à execução e se determina a extinção da ação executiva.
B. Com efeito, entende a ora recorrente que aquela decisão e sentença faz uma incorreta interpretação e aplicação do direito.
C. A recorrente considera ainda que foram incorretamente e insuficientemente julgados factos, pelo que, face à prova testemunhal produzida e à resultante da documentação junta aos autos, deverá alterar-se os factos provados.
D. Com efeito, desde logo, resulta dos documentos comprovativos de transferências juntos autos que foram realizadas as seguintes transferências:
- transferência bancária de € 7.500,00 realizada em 30 de maio de 2023;
- transferência bancária de € 10.000,00 realizada em 27 de outubro de 2023;
- transferência bancária de € 10.000,00 realizada em 23 de novembro de 2023;
- transferência bancária de € 10.000,00 realizada em 15 de dezembro de 2023;
- transferência bancária de € 10.000,00 realizada em 15 de janeiro de 2024;
E. Por sua vez, em sede de julgamento e inquirição da testemunha (…), ficou provado que:
- o pagamento da quantia de € 7.500,00, realizado em 30/05/2023, foi imputado à fatura FCL-L022/002332 (referida no depoimento sob a designação de 22002332);
- o pagamento da quantia de € 1.000,00, realizado em 14/08/2023, foi imputado à fatura FCL-L022/002332 (referida no depoimento sob a designação de 22002332);
- o pagamento da quantia de € 10.000,00, realizado em 27/10/2023, foi imputado à fatura n.º FCL-L022/002332 (referida no depoimento sob a designação de 22002332);
- o pagamento da quantia de € 10.000,00, realizado em 23/11/2023, foi imputado no montante de € 7.236,82 à fatura n.º FCL-L022/002332 (referida no depoimento sob a designação de 22002332) – ficando liquidada – e no montante de € 2.763,18 à fatura em execução (fatura n.º FCL-L022/002688);
- os restantes pagamentos (€ 10.000,00, realizado em 15/12/2023, € 10.000,00, realizado em 15/01/2024, € 10.000,00, realizado em 20/03/2024 e € 5.000,00, realizado em 19/04/2024) foram imputados à fatura n.º FCL-L022/002688;
- da fatura n.º FCL-L022/002688 no montante de € 87.889,63 foi paga a quantia de € 37.763,18;
F. Vejamos o seu depoimento (J – Juiz; T – Testemunha) – gravação com duração de 00:43:31 nas passagens do áudio de 00:12:07 a 00:22:45:
J – € 7.500,00 pagos a 30 de maio de 2023, imputou, então, a que fatura?
T – é assim, eu não tenho aqui os documentos. À partida consigo responder a isso…
J – não Sr. (…), é para responder exatamente àquilo que lhe estou a perguntar. € 7.500,00 por transferência bancária feita a 30 de maio de 2023. Os senhores receberam este documento. Isto foi junto com a petição inicial e foi notificado. Imputou a que dívida, a que fatura?
T – e deu origem ao nosso recibo A851 no dia 30 de maio de 2023 a uma transferência efetuada por uma conta titulada pela (…) – deixe-me ver que tenho aqui o descritivo do pagamento – é uma transferência efetuada de uma conta da (…), o descritivo é (…) que fez a transferência, de uma conta particular, e terá sido imputada à fatura 2202332 de 25 de fevereiro de 2022. Eu peço desculpa…
J – mas onde é que está essa fatura? Não a juntou ao processo porque?
T – não juntei ao processo porque na altura em que a execução foi instaurada o valor da dívida do Sr. (…) era € 85.126,45.
J - € 10.000,00 a 27 de outubro de 2023, foi imputada a que fatura?
T – se me permite um aparte…
J – Sr. (…) não estamos aqui para dar apartes. O sr. não vem para um tribunal para estar a dar apartes a uma juíza. Oh sr. (…) responda exatamente àquilo que lhe estou a perguntar. Agora vamos até ao fim. Quero manter o julgamento até ao fim e vamos fazer o julgamento até ao fim. € 10.000,00 a 27 de outubro de 2023, foi imputada a que fatura?
T – esses € 10.000,00 ainda farão parte dessa fatura porque ela ascende a € 90.736,82
J – ainda farão ou fazem?
T – é assim, eu não tenho aqui qualquer descritivo. Eu estou a olhar para a antiguidade das faturas e ver qual é a lógica. Mas no dia 14 de agosto houve outro pagamento que não está aí.
J – mas então teve de dar quitações.
T – tem.
J – no recibo não diz qual é a fatura que está paga? Emitiu o recibo de € 7.500,00 e teve de dizer que foi o pagamento da fatura tal, certo?
T – tem razão. Tem razão. Eu não [impercetível] a necessidade de comprovar pagamentos anteriores à data da execução. A execução tem data de dezembro e aí devia € 86.000,00.
J – então diz-me. A fatura € 7.500,00, a transferência de € 7.500,00 foi fatura A fatura 22? Como é que é?
T – não, não.
J – a fatura?
T – o recibo de € 7.500,00 é o recibo A851 do dia 30 de maio. O recibo seguinte é o recibo…
J – não é o recibo. É para pagar que fatura? Imputou a que fatura? Os € 7.500,00?
T - fatura 2202332 de 25 de julho de 2022. Nós no processo, na execução….
J – mais € 10.000,00 pagamento em 27 de outubro de 2023 imputou a que fatura?
T – esse valor terá sido à mesma fatura assim como o pagamento de € 1.000,00….
J – 2202332 de 25 de julho de 2022. E os € 10.000,00 seguintes? 10.000 de 23 de novembro de 2023.
T – dê-me só um segundo. Está pedir-me para fazer uma análise. Essa de 23 do 11 de 2023, há uma parcela que já é para liquidação da fatura em causa.
J – qual fatura? A nossa?
T – a fatura de € 87.000,00 do dia 31 de agosto. Há uma pequena parcela que é desta fatura e o resto é da fatura mais antiga 2332.
J – então concretize. De € 10.000,00 o que é que imputou a quê e o que é que imputou a este processo?
T – pronto permita-me só fazer o cálculo e a análise dos créditos…
J – no dia do julgamento é que faz a análise de imputação dos pagamentos.
T – repare. eu peço-lhe desculpa mas nós instauramos um processo de 85.000 para uma fatura de 87. Está-me a pedir coisas anteriores que já estão mais que resolvidos.
J – 7.500, 10.000, 10.000. os terceiros 10.000 como é que estão imputados? Estão imputados em que termos?
T – só um segundo. Nesse recibo estão 2.763,18 já para esta fatura.
J – não. Para a fatura mais antiga. Vamos começar pela mais antiga.
T – para a fatura mais antiga foram imputados € 7.246,82
J - 7.246 euros e?
T – e 82 cêntimos
J – 7236,82. Pronto e o restante? Tem aí a conta?
T – os 2.763,18 à fatura em causa.
J – á nossa. Depois teve mais 10.000 em 15 de dezembro. Como é que foi os 10.000?
T – foi já para a fatura em causa.
J – para a nossa fatura. E depois 10.000 de 15 de janeiro.
T – foi para a …. Não, peço desculpa. Não tenho aqui sequer …. Foi já para essa fatura.
J – nossa fatura?
T – sim.
J - para a nossa fatura. E há aqui um de € 1.000,00 em?
T – esse pagamento do dia 14 de agosto de 2023 foi de um conta do sr. (…), não foi uma transferência do Chile.
J – aqui estamos a falar de um documento…. De 10 de agosto de 2023. Há um pagamento uma transferência de 10 de agosto de 2023 de € 1.000,00.
T – essa transferência de € 1.000,00 foi efetuada de uma conta do sr. (…) cá em Portugal e foi uma transferência que ainda liquidou aquela fatura antiga a tal de…
J – 2202232?
T – exatamente. Essa fatura ainda foi para isso. Esses pagamentos foram todos por antiguidade dos factos. E depois….
J – então da fatura que veio aqui pedir ao tribunal qual é o montante que já está pago?
T – da fatura que estamos aqui em tribunal…da fatura 87.889,63 e o valor em dívida são € 50.126,45.
J- olhe, peço desculpa. Estes € 1.000,00 imputou a que fatura? Não percebi.
T – foi àquela de julho, junho de 2023.
J – á 1.ª ainda.
T –à mesma. os pagamentos foram todos por ordem cronológica. Os mais antigos à fatura mais antiga e os mais recentes à fatura mais recente.
J – agora… tem ainda mais pagamentos aqui. Que é: € 10.000,00 em 20 de março de 2024.
T – é à mesma fatura. À fatura que está em causa.
J – qual é a mesma? A antiga ou a minha? A nossa do processo?
T – a nossa do processo.
J – a nossa do processo. E há outros pagamento que é?
T – e há o pagamento de € 5.000,00.
J - € 5.000,00? Em 19 de abril?
T – no dia 19 de abril.
J – no dia 19 de abril de 2024 imputou a que fatura?
T – à mais recente. Àquela que está em causa.
J – à nossa fatura.
T – à nossa fatura. Nossa fatura….
J – então, na sua versão, qual é então o valor total da nossa fatura que está pago?
T – o valor pago são € 37.763,18.
J – o remanescente imputou à fatura….
T – á fatura mais antiga.
J – tem a fatura mais antiga?
T – não. Eu tenho aqui uma mensagem trocada com a (…) …
J – não, não… as mensagens não servem, só servem faturas….
T – eu tinha na minha posse… 3 cheques….
J - olhe, a fatura foi remetida ali ao sr. (…)? Ou à sociedade? essa fatura de que me está a falar.
T – essa fatura… toda a documentação foi enviada para o sr. (…). A documentação, inclusive, do tal pagamento para o Chile foi enviada em carta fechada.
J – olhe… o tal Chile o tal pagamento para aqui não releva. Os srs. é que estão a dizer que os pagamentos que recebeu imputaram a uma determinada fatura. O sr. não tem aí a fatura. Como é que sabe o número da fatura se não a tem aí consigo?
T – tenho o extrato contabilístico da conta.
J – tem o estrato contabilístico da conta mas não tem a fatura em si.
T – essa fatura eu posso enviar. Se quiser a fatura por email eu faço-a chegar em 2 minutos.
J – então chegue por favor. Pode mandar para o email do seu advogado, se o tiver… Tem o email ou quer que eu lhe diga? Então pronto. Mande lá a fatura. Assim ficamos aqui todos… se calhar chegamos a um consenso.
T – se me permite… só partilhar um pequeno esclarecimento…
J – oh… sr. (…), não partilhe absolutamente nada tá bem? Está aqui para responder a perguntas certas e determinadas.
G. Face ao depoimento desta testemunha, conjuntamente com os comprovativos de pagamentos juntos com a petição de embargos e em sede de audiência de julgamento, deveria, também, ter sido dado como provado que:
- A transferência bancária de € 7.500,00 realizada em 30 de maio de 2023 foi efetuada por (…), não contendo nenhum descritivo nomeadamente de que o pagamento efetuado deveria ser imputado a determinada fatura;
- A transferência bancária € 10.000,00 realizada em 27 de outubro de 2023 foi efetuada por Imp. Y Comer. (…) e o seu descrito somente refere “PAGO DE INDUSTRIA”;
- A transferência de € 10.000,00 realizada em 23 de novembro de 2023 foi efetuada por Imp. Y Comer. (…) e o seu descrito somente refere “PAGO DE MERCADERIA”;
- A transferência de € 10.000,00 realizada em 15 de dezembro de 2023 foi efetuada por Imp. Y Comer. (…) e o seu descrito somente refere “PAGO DE MERCADERIA”;
- A transferência de € 10.000,00 realizada em 15 de janeiro de 2024 foi efetuada por Imp. Y Comer. (…) e o seu descrito somente refere “PAGO DE IMPORTACION”;
- A transferência de € 1.000,00 realizada em 14 de agosto de 2023 foi efetuada por (…) não contendo nenhum descritivo nomeadamente de que o pagamento efetuado deveria ser imputado a determinada fatura;
- A transferência de € 10.000,00 realizada em 20 de março de 2024 foi efetuada por Imp. Y Comer. (…);
- A transferência de € 5.000,00 realizada em 19 de abril de 2024 foi efetuada por Imp. Y Comer. (…);
H. Face a esta alteração e aprofundamento da matéria de facto, temos como assente que:
I. Foram efetuados pagamentos num montante global de € 63.500,00 através de transferências bancárias;
II. Desse montante, o embargante (…) efetuou pessoalmente duas transferências bancárias no montante global de € 8.500,00: uma transferência no montante de € 7.500,00, em 30 de maio de 2023, e outra transferência no montante de € 1.000,00, em 14 de agosto de 2023;
III. As restantes transferências no montante global de € 55.000,00 foram efetuadas pela sociedade Importadora Y Comercializadora (…), Limitada;
IV. Em nenhuma dessas transferências bancárias é feita qualquer alusão de que esse pagamento se destina ao pagamento de alguma fatura em específico;
V. A embargada/exequente imputou essas transferências ao pagamento da fatura mais antiga, até à sua liquidação total, e o remanescente desses pagamentos à fatura mais recente e subjacente à execução;
I. Considerando os factos provados e a matéria assente, impunha-se outra decisão do Tribunal a quo diferente da extinção da ação executiva por pagamento integral da quantia inscrita no cheque dado à execução.
J. Estabelece o artigo 783.º do Código Civil que:
“1. Se o devedor, por diversas dívidas da mesma espécie ao mesmo credor, efectuar uma prestação que não chegue para as extinguir a todas, fica à sua escolha designar as dívidas a que o cumprimento se refere.
2. O devedor, porém, não pode designar contra a vontade do credor uma dívida que ainda não esteja vencida, se o prazo tiver sido estabelecido em benefício do credor; e também não lhe é lícito designar contra a vontade do credor uma dívida de montante superior ao da prestação efectuada, desde que o credor tenha o direito de recusar a prestação parcial.”
K. E o n.º 1 do artigo 784.º do Código Civil que:
“1. Se o devedor não fizer a designação, deve o cumprimento imputar-se na dívida vencida; entre várias dívidas vencidas, na que oferece menor garantia para o credor; entre várias dívidas igualmente garantidas, na mais onerosa para o devedor; entre várias dívidas igualmente onerosas, na que primeiro se tenha vencido; se várias se tiverem vencido simultaneamente, na mais antiga em data.”
L. Assim, o devedor pode escolher as dívidas a que o cumprimento parcial se refere.
M. Se o não fizer, é legítimo ao credor imputar esse cumprimento parcial na dívida mais antiga.
N. O ónus da prova da escolha da dívida a que o pagamento parcial se refere é da incumbência do devedor.
O. Não resulta provado nos presentes autos que os pagamentos efetuados, quer pela a sociedade Importadora Y Comercializadora (…), Limitada quer pelo embargante / executado, seriam para imputar a alguma fatura em específico.
P. Pelo que se afigura legítimo e legal que o embargado tenha imputado essas transferências ao pagamento das dívidas mais antigas, não podendo o tribunal considerar que todos os pagamentos desde 30 de maio de 2023 foram efetuados para pagamento da fatura dada à execução.
Q. E não poderia o Tribunal a quo concluir, como concluiu, pelo pagamento da totalidade da quantia exequenda e, consequentemente, pela extinção da ação executiva, isto é, pela imputação da globalidade dos pagamentos à dívida mais recente.
R. Nem tão pouco poderia o Tribunal a quo aventar, como o fez, que o cheque havia sido emitido em branco e preenchido posteriormente pelo valor entendido por pertinente, uma vez que o cheque foi emitido pelo valor de € 50.000,00 apesar do valor em dívida ascender a € 113.626,45 (ou de € 106.126,45 se se considerar o pagamento do valor de € 7.500,00 realizado em 30/05/2023).
S. Nem deveria o Tribunal a quo pôr em causa a aceitação de um cheque para pagamento de uma dívida quase 10 meses depois da venda, por ser contra as práticas comerciais, desconsiderando que o cheque foi aceite precisamente porque o Embargante, em incumprimento grosseiro das práticas comerciais, não efetuou em prazo os pagamentos por si assumidos nem disponibilizou à Embargada outras garantias de pagamento.
T. E muito menos concluir pela existência de um comportamento que “roça a litigância de má-fé” pelo facto de se ter instaurado a execução pela globalidade do valor do cheque.
U. Relembrando-se que à data da instauração da execução, ao contrário do que conclui o Tribunal a quo, o valor em dívida ascendia € 75.126,45, sendo assim de montante bastante superior ao valor do cheque executado.
V. E que a essa data (data da instauração da execução) a dívida era integralmente relativa à fatura mais recente, razão pela qual não se apresentou na execução a fatura mais antiga que se encontrava paga.
W. Sendo a apresentação da fatura mais antiga posteriormente, quando a Embargante invocou abusivamente os pagamentos da sociedade “Importadora Y Comercializadora (…), Limitada” com o intuito de se esquivar às suas obrigações.
X. Mesmo que assim não se entendesse, o que não se concebe, sempre seria de concluir que somente o valor de € 8.500,00 foi efetivamente pago pessoalmente pelo embargante.
Y. Pelo que somente esse valor poderia ser imputado diretamente à fatura n.º FCL-L022/002688 no montante de € 87.889,63.
Z. Os restantes pagamentos cujo montante global ascende a € 55.000,00 foram efetuados pela sociedade Importadora Y Comercializadora (…), Limitada.
AA. Sendo legítimo à exequente/embargada imputar os mesmos, primeiramente, ao pagamento da dívida mais antiga titulada pela fatura n.º FCL-L022/002332, e posteriormente, e após liquidação integral dos valores em aberto e por pagar desta fatura, à fatura dos autos executivos.
BB. Concluindo-se, também por aqui, que da fatura n.º FCL-L022/002688 no montante de € 87.889,63 somente foi liquidada e paga a quantia de € 37.763,18, encontrando-se por liquidar € 50.126,45, calculado nos seguintes termos:
fatura n.º FCL-L022/002332 – valor em dívida de € 25.736,82 (soma dos pagamentos realizados e imputados de € 10.000,00 + € 10.000,00 + € 5.736,82);
- pagamento efetuado pela (…) no montante € 10.000,00 (de 27/10/2023):
€ 25.736,82 - € 10.000,00 = € 15.736,82;
- pagamento efetuado pela (…) no montante de € 10.000,00 (de 23/11/2023):
€ 15.736,82 - € 10.000,00 = € 5.736,82;
- pagamento efetuado pela (…) no montante de € 10.000,00 (de 15/12/2023):
€ 5.736,82 - € 10.000,00 = Fatura liquidada e remanescente de € 4.263,18 a imputar na fatura n.º FCL-L022/002688
fatura n.º FCL-L022/002688 (Execução) – valor global de € 87.889,63
- pagamento efetuado por (…) no montante de € 7.500,00 (de 30/05/2023):
€ 87.889,63 - € 7.500,00 = € 80.389,63
- pagamento efetuado por (…) no montante de € 1.000,00 (de 18/08/2023):
€ 80.389,63 - € 1.000,00 = € 79.389,63
- pagamento efetuado pela (…) no montante de € 4.263,18 (de 15/12/2023) – resultante da diferença entre o valor transferido de € 10.000,00 e o valor imputado à fatura FCL-L022/002332 de € 5.736,82 -:
€ 79.389,63 - € 4.263,18 = € 75.126,45
- pagamento efetuado pela (…) no montante de € 10.000,00 (de 15/01/2024):
€ 75.126,45 - € 10.000,00 = € 65.126,45
- pagamento efetuado pela (…) no montante de € 10.000,00 (de 20/03/2024):
€ 65.126,45 - € 10.000,00 = € 55.126,45
- pagamento efetuado pela (…) no montante de € 5.000,00 (de 19/04/2024):
€ 55.126,45 - € 5.000,00 = € 50.126,45
Valor ainda em dívida de € 50.126,45
CC. Pelo que, não poderia o Tribunal a quo concluir, como concluiu, pelo pagamento da totalidade da quantia exequenda e, consequentemente, pela extinção da ação executiva.
Nestes termos, e nos demais de direito que V. Exa. doutamente suprirá, deverá o presente recurso ser declarado procedente e, em consequência, ser a decisão recorrida substituída por outra que julgue improcedente a oposição à execução mediante embargos de executado, assim se fazendo Justiça.
O embargante (…) veio contra-alegar, pugnando pela improcedência do recurso, apresentando as seguintes conclusões:
1. A embargada omitiu no r. i. que recebeu pagamentos superiores ao que pedia no cheque exequendo.
2. A embargada nunca alegou, nem na contestação, nem na audiência prévia, apenas no julgamento, que alguns desses pagamentos feitos pelo embargante para pagar o cheque exequendo deveriam ser imputados ao pagamento de outras facturas da Importadora Y Comercializadora (…), Limitada, estranha à presente acção executiva.
3. Logo ficou precludido o seu direito de alegar o facto.
4. O embargante nunca teve a oportunidade de se pronunciar nos articulados sobre essa matéria.
5. A embargada ao alegar esses factos apenas no julgamento, fê-lo tardiamente, violando os artigos 5.º/1, 552.º/1-d), do CPC e 574.º do CPC.
Termos em que deverá o recurso ser julgado improcedente, mantendo-se a douta sentença proferida pelo tribunal a quo.
O tribunal de 1.ª instância admitiu o recurso como sendo de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e efeito devolutivo.
Recebido neste Tribunal nos seus exatos termos, foram colhidos os vistos, pelo que cumpre agora decidir.
II – Objeto do Recurso
Nos termos dos artigos 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1, ambos do Código de Processo Civil, o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da recorrente, ressalvada a matéria de conhecimento oficioso (artigo 662.º, n.º 2, do Código de Processo Civil).
Assim, no caso em apreço, as questões que importa decidir são:
1) Impugnação da matéria de facto; e
2) Errada aplicação do direito.
III – Matéria de Facto
O tribunal recorrido deu como provados os seguintes factos:
1. “(…) e (…), S.A.” (Embargada) instaurou, em 26 de Dezembro de 2023, acção executiva contra … (Embargante), com vista à cobrança coerciva da quantia de € 50.000.
2. Fundamentou a sua pretensão no cheque no sobredito valor, assinado pelo Embargante, datado de 26 de Junho de 2023, junto com o requerimento executivo e cujo demais teor ora se dá por reproduzido.
3. Tal cheque foi emitido na sequência da factura n.º FCL – L022/002688, datada de 31 de Agosto de 2022, em nome da sociedade “Importadora Y Comercializadora (…), Limitada”, também junta com o requerimento executivo e cujo teor ora se dá por reproduzido.
4. O cheque foi apresentado a pagamento em 27 de Junho de 2023 e foi devolvido por falta de provisão.
5. O cheque identificado em 02) foi emitido pelo Embargante para caucionar o fornecimento da mercadoria facturada à sociedade devedora (factura identificada em 03).
6. Para pagamento da factura identificada em 03) foram efectuados os seguintes pagamentos:
i. € 7.500 por transferência bancária feita em 30 de Maio de 2023
ii. € 1.000 por transferência feira em 13 de Agosto de 2023
iii. € 10.000 por transferência bancária feita em 27 de Outubro de 2023
iv. € 10.000 por transferência bancária feita em 23 de Novembro de 2023
v. € 10.000 por transferência bancária feita em 15 de Dezembro de 2023
vi. € 10.000 por transferência bancária feita em 15 de Janeiro de 2024
vii. € 10.000 por transferência bancária feita em 20 de Março de 2024
viii. € 5.000 por transferência bancária feita em 19 de Abril de 2024.
E deu como não provado o seguinte facto:
A. Que a Embargada e a sociedade devedora acordaram verbalmente que o pagamento da factura identificada em 03) seria feito em prestações mensais de € 10.000,00, cada.
IV – Enquadramento jurídico
O que importa analisar no presente recurso são as questões supra elencadas.
1 – Impugnação da matéria de facto
Segundo a recorrente deveriam ser acrescentados à matéria factual dada como provada catorze novos factos, em face do depoimento da testemunha (...) e dos documentos juntos com a petição de embargos de executado.
Verificados os requisitos impostos pelo artigo 640.º, nºs. 1 e 2, alínea a), do Código de Processo Civil, é de apreciar a presente impugnação fáctica.

a) Catorze novos factos
Pretende a recorrente que sejam acrescentados os seguintes novos factos à matéria factual dada como provada:
1 - o pagamento da quantia de € 7.500,00, realizado em 30/05/2023, foi imputado à fatura FCL-L022/002332 (referida no depoimento sob a designação de 22002332);
2 - o pagamento da quantia de € 1.000,00, realizado em 14/08/2023, foi imputado à fatura FCL-L022/002332 (referida no depoimento sob a designação de 22002332);
3 - o pagamento da quantia de € 10.000,00, realizado em 27/10/2023, foi imputado à fatura n.º FCL-L022/002332 (referida no depoimento sob a designação de 22002332);
4 - o pagamento da quantia de € 10.000,00, realizado em 23/11/2023, foi imputado no montante de € 7.236,82 à fatura n.º FCL-L022/002332 (referida no depoimento sob a designação de 22002332) – ficando liquidada – e no montante de € 2.763,18 à fatura em execução (fatura n.º FCL-L022/002688);
5 - os restantes pagamentos (€ 10.000,00, realizado em 15/12/2023, € 10.000,00, realizado em 15/01/2024, € 10.000,00, realizado em 20/03/2024, e € 5.000,00, realizado em 19/04/2024) foram imputados à fatura n.º FCL-L022/002688;
6 - da fatura n.º FCL-L022/002688 no montante de € 87.889,63 foi paga a quantia de € 37.763,18;
7 - A transferência bancária de € 7.500,00 realizada em 30 de maio de 2023 foi efetuada por (…), não contendo nenhum descritivo nomeadamente de que o pagamento efetuado deveria ser imputado a determinada fatura;
8 - A transferência bancária € 10.000,00 realizada em 27 de outubro de 2023 foi efetuada por Imp. Y Comer. (…), LI e o seu descrito somente refere “PAGO DE INDUSTRIA”;
9 - A transferência de € 10.000,00 realizada em 23 de novembro de 2023 foi efetuada por Imp. Y Comer. (…), LI e o seu descrito somente refere “PAGO DE MERCADERIA”;
10 - A transferência de € 10.000,00 realizada em 15 de dezembro de 2023 foi efetuada por Imp. Y Comer. (…), LI e o seu descrito somente refere “PAGO DE MERCADERIA”;
11 - A transferência de € 10.000,00 realizada em 15 de janeiro de 2024 foi efetuada por Imp. Y Comer. (…), LI e o seu descrito somente refere “PAGO DE IMPORTACION”;
12 - A transferência de € 1.000,00 realizada em 14 de agosto de 2023 foi efetuada por (…) não contendo nenhum descritivo nomeadamente de que o pagamento efetuado deveria ser imputado a determinada fatura;
13 - A transferência de € 10.000,00 realizada em 20 de março de 2024 foi efetuada por Imp. Y Comer. (…), LI;
14 - A transferência de € 5.000,00 realizada em 19 de abril de 2024 foi efetuada por Imp. Y Comer. (…), LI;

Acontece, porém, que tais factos não se mostram alegados na contestação apresentada, na qual apenas consta que os pagamentos, a prestações, efetuados pelo embargante à embargada, o foram sem o seu consentimento, visto que sempre pretendeu que a dívida fosse paga toda de uma única vez, jamais tendo a embargada alegado que tais pagamentos não se referiam ao pagamento da quantia exequenda.
Ora, tratando-se de factos novos, não é possível ao tribunal ad quem proceder à sua apreciação.
Na realidade, é ao tribunal da 1.ª instância, e apenas a ele, que se mostra atribuída a incumbência de ampliar a matéria factual, ainda que não articulada pelas partes, relevante para a boa decisão da causa, que tenha surgido no decurso da produção da prova, ainda que apenas no que se reporte às situações previstas nas alíneas a) e b) do n.º 2 do artigo 5.º do Código de Processo Civil.
Veja-se, a este propósito, o acórdão deste Tribunal da Relação, proferido em 15-04-2021:[3]
Os factos que a apelante pretende que sejam dados como provados não estão alegados. Os factos instrumentais e os que sejam complemento ou concretização do que as partes tenham alegado têm que resultar da instrução da causa e sobre eles as partes têm que ter tido a possibilidade de se pronunciar e oferecer prova.
O momento próprio para o efeito é durante a audiência de discussão e julgamento. Se durante a produção da prova forem referidos factos instrumentais ou complementares dos factos fundadores do direito, mesmo não alegados, o juiz pode tê-los em conta depois da parte contrária ter oportunidade de se pronunciar e ser produzida prova sobre os mesmos.
[…]
O tribunal da Relação só pode apreciar questões de facto e de direito que foram ou devessem ter sido apreciadas na sentença recorrida. Não é válida a opção de aguardar para a fase de recurso, na hipótese da decisão lhe ser desfavorável, para vir invocar factos novos não submetidos ao império do contraditório e análise decisório no tribunal recorrido.
Assim, não se toma conhecimento desta parte da impugnação da matéria de facto.

Nesta conformidade, e sem sequer se entrar na discussão sobre a essencialidade ou não dos factos não alegados que a embargada pretende, em sede de recurso, que sejam acrescentados à matéria factual dada como provada, por estarmos em sede recursiva não se toma conhecimento destes factos, visto se tratarem de factos novos não alegados.
Pelo exposto, improcede na totalidade a impugnação fáctica pretendida pela recorrente.

2 – Errada aplicação do direito
Entende a recorrente que, nos termos dos artigos 783.º e 784.º do Código Civil, uma vez que o devedor não escolheu as dívidas a que o seu cumprimento parcial se referia, foi legítimo ao credor imputar esse cumprimento parcial na dívida mais antiga e não na dívida exequenda, pelo que se deve concluir que ainda se encontra em dívida o montante de € 50.126,45.
Acontece, porém, que nem a recorrente alegou tais factos na contestação quando o embargante invocou os pagamentos que já tinha efetuado por conta da dívida exequenda, tendo se limitado a alegar que nunca tinha acordado com o embargante ou a sociedade devedora que o pagamento da dívida exequenda pudesse ser efetuado em prestações; nem consta da matéria dada como provada que os pagamentos efetuados e provados não tenham sido para pagamento da dívida exequenda (facto provado 6).
Sempre se dirá que, nos termos do artigo 342.º do Código Civil, tendo a embargada apresentado um título executivo relativamente a determinado montante em dívida, competia ao embargado fazer a prova do pagamento desse montante em dívida, o que fez. Não concordando a embargada que tal pagamento, que não nega, se reportasse à dívida exequenda, o ónus da prova desse facto era da sua competência. Não tendo alegado e, consequentemente, provado tal facto, a sentença recorrida não poderia ter decidido de outro modo.
Nesta conformidade, em face da matéria que se mostra dada como assente, apenas é possível concluir nos termos em que a sentença recorrida concluiu, pelo que o recurso terá de improceder.
Sumário elaborado pela relatora (artigo 663.º, n.º 7, do Código de Processo Civil):
(…)
V – Decisão
Pelo exposto, acordam os juízes da 2.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora em julgar totalmente improcedente o recurso, mantendo-se a sentença recorrida.
Custas pela recorrente (artigo 527.º, nºs. 1 e 2, do Código de Processo Civil).
Notifique.
Évora, 9 de abril de 2025
Emília Ramos Costa (relatora)
Cristina Dá Mesquita

Ana Margarida Carvalho Pinheiro Leite


_________________________________________________
[1] Relatora: Emília Ramos Costa; 1.ª Adjunta: Cristina Dá Mesquita; 2.ª Adjunta: Ana Margarida Carvalho Pinheiro Leite.
[2] Doravante “(…)”.
[3] No âmbito do processo n.º 570/20.7T8EVR.E1, consultável em www.dgsi.pt.