Ups... Isto não correu muito bem. Por favor experimente outra vez.
AGENTE DE EXECUÇÃO
VENDA EXECUTIVA
ANÚNCIO
RESPONSABILIDADE CIVIL
Sumário
I. Por constituir uma conclusão jurídica sobre a suficiência de elementos recolhidos para permitir a conclusão da titularidade do direito de propriedade de alguém sobre um certo bem, não pode ser levada à matéria de facto provada da sentença a afirmação de que a agente de execução levou a registo uma penhora “…sem comprovar o direito do executado sobre o mesmo…”. II. Não há lugar à reapreciação da matéria de facto quando o concreto facto objecto da impugnação não for susceptível de, face às circunstância próprias do caso em apreciação, ter relevância jurídica, sob pena de se levar a cabo uma actividade processual que se sabe, de antemão, ser inconsequente e contrária aos princípios da celeridade e da economia processual. III. A responsabilidade civil extracontratual que aos Agentes de Execução for imputada no exercício das respectivas funções profissionais e por causa delas, nomeadamente no âmbito da acção executiva, obedece ao regime geral da responsabilidade por factos ilícitos previsto no artigo 483.º e ss. do CC e não ao regime de responsabilidade civil do Estado e demais entidades públicas. IV. Não é certo, nem correspondente ao preço da compra e ao valor das inerentes despesas e impostos, o dano patrimonial do comprador de imóvel relativamente ao qual há incerteza sobre a concreta composição, limites e localização. V. Não é ilícita, nem culposa, a conduta da Agente de Execução que averigua nas bases de dados a existência e penhora um bem inscrito na matriz, onde o Executado figura como único titular do rendimento predial, procede ao registo da penhora do bem omisso no registo predial e à subsequente venda, sem que, no decurso do tempo decorrido até à consumação da venda, tenha chegado ao seu conhecimento a existência de incerteza sobre a real correspondência dos seus limites e composição com a respetiva descrição matricial. VI. Por ter sido comunicada à Agente de Execução depois de consumada a venda e de emitido o respectivo título, a informação de que no portão de acesso ao prédio se encontrava afixado um “placard” de anúncio da venda de imóvel com distinta descrição na matriz e no registo predial, desacompanhada da prova de quando ocorreu essa afixação, não é demonstrativa de menor zelo da Agente de Execução no cumprimento das suas funções. (Sumário do Relator)
Texto Integral
Apelação 3651/22.9T8STR.E1
Tribunal Judicial da Comarca de Santarém, Juízo de Competência Genérica do Entroncamento – Juiz 2
*
Sumário (artigo 663.º, n.º 7, do CPC): (…)
*
Acordam na 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora, sendo
Relator: Ricardo Miranda Peixoto;
1º Adjunto: Maria João Sousa e Faro;
2º Adjunto: Filipe César Osório.
*
***
I. RELATÓRIO
*
A.
(…) intentou a presente acção declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, contra (…), Agente de Execução com a Cédula Profissional n.º (…), pedindo:
a) a condenação da Ré a pagar à Autora, a título de indemnização por danos patrimoniais, a quantia global de € 11.511,57 (onze mil e quinhentos e onze euros e cinquenta e sete cêntimos), acrescida de juros à taxa legal, contados desde a data da citação até efectivo e integral pagamento;
b) a condenação da Ré a pagar à Autora, a título de indemnização por danos não patrimoniais a quantia de € 4.400,00 (quatro mil e quatrocentos euros), acrescida de juros à taxa legal, contados desde a data da citação até efectivo e integral pagamento.
Para o efeito, alega, em síntese, que em Junho de 2019 licitou um prédio urbano na plataforma de leilões electrónicos, no âmbito do Processo de Execução n.º 236/12.1TBGLG que corre termos no Tribunal Judicial da Comarca de Santarém – Juízo de Execução do Entroncamento – Juiz 3. Tendo sido aceite a sua proposta, a Autora depositou a quantia em causa e procedeu ao pagamento dos impostos devidos, pelo que a Ré emitiu o título de transmissão do prédio urbano em causa. Sucede que quando tentou tomar posse do imóvel, deparou-se com um placard de venda da Leiloeira (…) no portão de acesso ao imóvel. Em Agosto de 2021, tentou novamente entrar no prédio em causa, tendo comparecido (…) que se identificou como proprietário do imóvel, adquirido a (…), tendo este, por sua vez, adquirido o imóvel no âmbito do Processo de Insolvência n.º 1942/18.2T8STR, em que era insolvente o anterior proprietário (…).
O imóvel por si adquirido tem duas descrições prediais e dois artigos matriciais, sendo a Ré responsável pelo registo indevido da penhora do imóvel vendido em sede de execução à Autora, pois não estando inscrito na matriz, nem descrito na Conservatória a favor do executado (…), a Ré diligenciou pela sua inscrição e registo, sem suporte documental para o efeito e sem averiguar da efectiva correspondência entre a inscrição na matriz e o registo na Conservatória. A Ré actuou ilicitamente e com culpa, causando danos patrimoniais e não patrimoniais à Autora que advieram do facto de ter comprado um imóvel, do qual não pode dispor ou fruir.
B.
Regularmente citada, a Ré contestou, impugnando a factualidade alegada pela Autora quanto à sua actuação ilícita e culposa no âmbito da venda executiva, invocando que actuou de acordo com a lei e, ao contrário do alegado pela Autora, o prédio urbano em causa já se encontrava, sem qualquer contributo da Ré, inscrito na matriz predial sob o artigo 203, motivo pelo qual foi possível pedir o registo da penhora. Inexiste duplicação de descrições na conservatória e de artigos matriciais.
Requereu a intervenção acessória provocada da sociedade “(…) – Companhia Portuguesa de Seguros, S.A.”, por ter transferida, até ao montante de € 100.000,00, a responsabilidade civil pelas indemnizações que, de acordo com a lei, lhe possam ser exigidas como civilmente responsável pelos prejuízos e/ou danos causados a terceiros.
C.
Admitida a sua intervenção processual como parte acessória, veio a “(…) – Companhia Portuguesa de Seguros, S.A.” contestar, defendendo-se por excepção e por impugnação. Excepcionou a incompetência absoluta do tribunal e a prescrição do direito da Autora. No mais, aderiu à contestação apresentada pela Ré.
D.
Em audiência prévia foi proferido despacho-saneador que identificou o objecto do litígio e enunciou os temas da prova.
E.
Realizada a audiência de discussão e julgamento, foi proferida sentença que julgou a acção totalmente improcedente, por não provada, e em consequência, absolveu a Ré (…) e a Interveniente (…) Portugal – Companhia de Seguros, S.A. dos pedidos formulados pela Autora.
F.
Inconformada com o decidido, a Autora interpôs o presente recurso de apelação.
Concluiu as suas alegações nos seguintes termos (transcrição parcial sem sublinhado e negrito da origem):
“(…)
B. Deve ser integrado na lista dos factos provados o facto J) da lista dos factos não provados: “A Ré levou a registo o acto de penhora sobre o imóvel sem comprovar o direito do Executado sobre o mesmo e a sua conformidade matricial e registral, levando o mesmo a venda executiva em leilão electrónico, apesar do Executado (…) dizer que a casa era de um primo e mesmo assim a Ré procedeu à venda do imóvel à Autora.”.
C. Quando da prova testemunhal resulta provado que o Executado (…) previamente à venda advertiu a Ré na pessoa dos seus funcionários/trabalhadores que “aquilo” era dele e de um primo e que nunca tinha sido dividido, nem os pais e o tio partilharam após a morte dos avós, proprietários originários do prédio onde tinham a sua casa de habitação e que no passado quando teria 6 anos, a avó deu um bocado ao tio para fazer uma casa, que por sua vez à data da penhora estava vazia e abandonada à muitos anos.
D. E, resulta igualmente provado pelo depoimento de (…), trabalhador da Ré (…), que efectuou a verificação do estado do imóvel e redigiu, pelo menos parcialmente, o Auto de Penhora que consubstancia o Doc. 14 junto à Contestação da Ré.
E. Decorre das mais elementares regras de experiência comum: se alguém – (…) –, diz que efectuou a verificação do estado do imóvel e o auto de diligência por referência a um “prédio uno”, todo murado, somente com uma entrada por um portão, com uma casa abandonada de um lado (à esquerda de quem entra) e o resto do terreno cheio de mato, mas que por dentro não tinha delimitações físicas, e o Executado diz que uma parte não é dele, então à cautela é de presumir que o prédio pode não ser do Executado.
F. A este respeito atente-se na Motivação de facto da decisão no que respeita ao depoimento da Testemunha (…): “...referiu-se ao prédio referindo que uma parte também lhe pertencia, apesar de nunca ter sido partilhado, concretizando que o prédio era dos avós, que passou para os seus pais e para os tios e, com o falecimento destes, passou para si e para um primo. Referiu que no terreno existiram duas casas, uma delas era a casa dos tios e a outra era a dos avôs, que estava já em ruínas, sendo que a parte que lhe pertencia era a da casa já em ruínas e a outra era do primo. ...Mais aludiu que sempre referiu que o imóvel era do próprio e do primo e que não tinha havido divisão, que só mostrou o lado que lhe pertencia, que não tinha qualquer habitação.”
G. Por outro lado, veja-se a incongruência de publicitar um imóvel para venda alegando que é um prédio urbano com uma casa, actualmente em ruínas, e se afirmar em julgamento que as alegadas “ruínas” eram pedras que não teriam mais de 50 cm e que nem se viam cobertas pelo mato, afigura-se que uma casa de habitação em ruínas pode não ter portas ou até não ter uma ou outra parede, mas é uma casa em ruínas, mas algumas pedras com 50 cm de altura certamente que não pode ser descrito como “ cuja construção de edifício encontra-se presentemente em ruínas”.
H. Porque, o que a Ré alega em Contestação e a testemunha (…) é que não existia qualquer edifício do lado direito do prédio murado mas sim do lado esquerdo, e este estava abandonado, como referido bastas vezes pelo Executado (…) e pelo seu primo (…).
I. No entanto, apesar de repetidas vezes o Executado (…) ter expressamente referido que o prédio não estava dividido ou partilhado entre si o seu primo, e de a Ré, por intermédio do seu funcionário (…), terem conhecimento directo que o prédio estava todo murado exteriormente sem divisões interiores, onde coexistiram duas casa, ainda assim, a Ré levou o prédio no e-leilões para venda, pelo que, não se pode aceitar a motivação de facto do douto Tribunal no entendimento que foram efectuadas pela Ré diligências no sentido de apurar o direito do executado sobre o imóvel penhorado.
J. Quando foi expressamente referido pela testemunha (…), empregada forense da Ré que em consulta na plataforma, na base de dados tributária, verificaram a existência de dois imóveis em nome do Executado e que não estavam descritos na Conservatória, isto é, as únicas diligências para verificar ou apurar o direito do Executado sobre o imóvel penhorado basearam-se unicamente no facto de nas finanças o prédio em referência nos autos e, vendido em leilão à Recorrente, se encontrar inscrito na matriz em nome do Executado.
K. Quanto ao mais, o que ficou provado é que a Ré não diligenciou pedir esclarecimentos ou prova documental ao Executado sobre a alegada propriedade do imóvel, considerando que este, desde sempre referiu que o prédio era dos avós, morreram os avós, e o pai e o tio e, ficou para ele e para o primo, mas nunca foi efectuada qualquer partilha desde a morte dos avós.
L. A dúvida assim gerada pela afirmação do Executado que o prédio é metade dele e a outra metade do primo impunha outro comportamento da Ré.
M. Ademais porque, como bem refere o Tribunal o prédio já estava inscrito na matriz desde 1938, e se era uno, como referiu a testemunha (…), então tinha de ter sido objecto de divisão, fraccionamento, o que por sua vez, tal facto teria de ter aprovação pelas entidades competentes e passar a constar quer da caderneta predial quer do registo predial.
N. Neste circunspecto, verifica-se mesmo uma desconformidade na motivação de facto do douto Tribunal: “Diga-se que, ouvido o executado, apesar de o mesmo referir que nunca houve partilhas, o mesmo assumiu aquela parte da propriedade como sendo sua, tanto que tinha a seu favor a inscrição matricial. Nunca o executado pôs em causa que o prédio lhe pertencia, tendo o mesmo explicado a quem pertenceu o imóvel e como foi adquirido pelos seus pais e pelo próprio.”
O. Ora, para que o prédio tivesse sido adquirido, pelos pais do Executado e posteriormente pelo Executado, impunha-se que tivesse havido uma partilha por sucessão por morte, o que Executado sempre negou ter acontecido e, o herdeiro até partilha do acervo hereditário não é proprietário dos bens que compõem a herança.
P. A propriedade de um imóvel não se presume, prova-se.
Q. Ademais, quando douto Tribunal a quo refere em contraposição ao argumento anterior que: “É certo que o depoimento deste é contrário ao depoimento prestado pela testemunha (...) que alegou que o terreno pertencia exclusivamente aos seus avôs. Sucede que, tal não contende com as diligências que teriam de ser observadas pela ré enquanto agente de execução”, não relevando esta argumentação, para em sede de fundamentação de direito se concluir pela não verificação dos requisitos da responsabilidade civil da Ré.
R. O prejuízo da Recorrente não advém de um único comportamento da Ré mas sim de um conjunto de comportamentos omissivos, escudada na faculdade legal de lhe ser permitido levar a registo a penhora de um bem imóvel não inscrito no registo predial e, em consequência desse conjunto de actos omissivos e de negligência grosseira decidir vender um prédio à Recorrente, que não existe ou existindo tal prédio não ser da propriedade do Executado mas sim do seu primo, que por sua vez o vendeu ao filho (…).
S. Dito de outra forma, uma interpretação no sentido de que a Ré como Agente de Execução responsável pela venda do prédio, agiu dentro dos limites legais e, a responsabilidade pelo seu alheamento face às explicações e advertências do Executado sobre o prédio penhorado não estar partilhado ser de terceiros, desde logo do Conservador do Registo Predial, a quem compete apreciar a viabilidade do pedido de registo é desconforme aos valores sociojurídicos.
T. Esta tese é incompatível com a sucessão de factos que se encontram provados quer documental quer testemunhalmente nos autos, desde logo, o Executado, em razão do funcionário forense da Ré não lograr encontrar o prédio para averiguar das suas condições e lavrar Auto de Diligência, ao acompanhar a testemunha ao prédio faz expressa advertência de que o mesmo é metade do primo, apesar do prédio ser uno, estar delimitado exteriormente por muros e não ter qualquer divisão interna susceptível de definir onde começa a parte do primo e a parte de que o Executado alegadamente é proprietário – cfr. confessado pelo Executado (…) e por (…).
U. Não foi valorado o facto do Auto de penhora está visivelmente rasurado, com várias letras e não foi redigido integralmente pela testemunha (…) que realizou a diligência no local do prédio conducente à sua elaboração – cfr. referido por (…) e pelo Doc. 14 junto à contestação da Ré..
V. Na efetuação do registo da penhora e do pedido de inscrição do prédio junto da Conservatória do Registo Predial, a R. declara que “…se informa que não se conhecem os primeiros nem os segundos ante-possuidores” – Doc. 9 junto à contestação da Ré.
W. Após a venda do prédio à Recorrente, foi a Ré, por escrito informada que ainda não tinha a chaves para entrar no portão de acesso ao prédio, o Executado declarou não ter as chaves.
X. De seguida, é publicitada a venda do imóvel pela Leiloeira (…) e a Ré, devidamente advertida pela Recorrente, porque alegadamente telefonou para a Leiloeira e verificou que era outro artigo matricial concluiu que era outro prédio, sem atender que o placard estava aposto exactamente no prédio que vendeu à Autora, inconfundível pelo portão de acesso e, porque a imagem era exactamente a mesma do prédio quando publicitado no e-leilões.
Y. Ademais a R. publicita o prédio para venda descrevendo o mesmo como tendo uma construção de habitação actualmente em ruínas, quando a acreditar nas suas testemunhas não existia nenhuma habitação em ruínas, existindo sim do lado esquerdo de quem entra no portão uma casa de habitação abandonada.
Z. Ora este comportamento da Ré foi causa adequada para o prejuízo sofrido pela Recorrente e peticionado nos autos, pondo em causa a credibilidade dos Agentes de Execução.
AA. Se a tanto, se acrescer o teor da informação prestada posteriormente à Autora e ao Tribunal pelo Município da Chamusca e pelo Serviço de Finanças, isto é, um Serviço de Finanças que não sabe onde se encontram os documentos que fundamentam a inscrição em 2012 do Executado como proprietário do prédio e pelo Município que certifica que verificou no local pelos seus técnicos a identificação e localização do prédio para posteriormente vir esclarecer que existem divergências entre os documentos emitidos e não explicar a razão, cumpre questionar de quem é a responsabilidade?
BB. Deve ser aditado um novo facto à lista de factos provados: “A inscrição a favor de (…) – NIF: (…), do prédio urbano inscrito na matriz sob o artigo (…), da freguesia de (…) começou a produzir efeitos a partir de 31/12/2012, não tendo o Serviço de Finanças da Chamusca localizado a documentação suporte a essa inscrição matricial. Tendo este Serviço de Finanças sugerido que a mudança de titularidade poderá estar relacionada o Proc. n.º 236/12.1TBGLG, tendo conseguido apurar, que este artigo matricial corresponde ao registo predial n.º (…), da freguesia de (…), tendo este prédio sido aberto em 2017, na Conservatória do registo Predial de Arruda dos Vinhos”.
CC. Com relevância para a motivação da matéria de facto objecto dos presentes autos o Tribunal a quo considerou o Doc. 17 junto à petição inicial – certidão emitida pela Autoridade Tributária e Aduaneira, onde se certifica: “... que o artigo urbano (…), da freguesia de (…) foi inscrito na matriz no ano de 1938, em nome de (…), tendo sido posteriormente transmitido para (…), encontrando-se actualmente em nome de (…). Mais certifico que o referido prédio não sofreu alterações matriciais, nomeadamente quanto à sua composição e localiza-se na (…) e possui as seguintes confrontações, NORTE: Prédio Seguinte; SUL: (…); NASCENTE: Servidão e POENTE: (…).” – Facto Provado 16.
DD. Posteriormente, em resposta ao Tribunal: “para vir aos autos juntar cópia do(s) documento(s) que serviu(iram) de base à inscrição do imóvel na matriz sob o artigo (…), da freguesia de (…), a favor de (…), informando ainda em que data em concreto essa inscrição começou a produzir efeitos”, o Serviço de Finanças em 08.04.2024 (Ref.ª citius 10561200) respondeu: “No seguimento da confirmação telefónica da identificação correcta do imóvel urbano inscrito na matriz sob o artigo (…), da freguesia de (…), vimos informar que a inscrição a favor do Sr. (…) – NIF: (…)” começou a produzir efeitos a partir de 31/12/2012, mas não se conseguiu localizar a documentação suporte a essa inscrição matricial. Ainda assim, com a mudança de titularidade poderá estar relacionado o Proc. N.º 236/12.1TBGLG e também se conseguiu apurar, que este artigo matricial corresponde ao registo predial n.º (…), da freguesia de (…), tendo este prédio sido aberto em 2017, na Conservatória do Registo Predial de Arruda dos Vinhos, junto da qual poderá ser obtida documentação eventualmente pertinente.”
EE. Esta informação só por si é alarmante porque provinda da Autoridade Tributária, e se associada ao depoimento da testemunha (…) ainda mais grave se torna e densifica a causa de pedir da Recorrente.
FF. Impõe-se, igualmente o aditamento de novo facto à lista de factos provados: “Em 05.04.2024, a Câmara Municipal da Chamusca respondeu ao ofício do Tribunal nos seguintes termos: “…Em 25/08/2021, a Câmara Municipal da Chamusca emitiu certidão, que teve como suporte, os documentos apresentados pela requerente, a saber: certidão da conservatória do registo predial do prédio urbano e a respectiva caderneta predial urbana. Compulsadas as duas certidões, verifica-se que há efectivamente divergências entre elas, sendo certo que a certidão da Autoridade Tributária não é coincidente com a certidão emitida por esta Autarquia, não se vislumbrando quais os fundamentos que estiveram na origem de tal divergência.”
GG. Ainda, com relevância, para a motivação da matéria de facto objecto dos presentes autos o Tribunal a quo considerou o Doc. 18 junto à petição inicial – certidão emitida pela Câmara Municipal de Chamusca, onde se certifica que: “Certifico, conforme despacho do Senhor Presidente, exarado no requerimento apresentado por (…) – Advogada, na qualidade de mandatária de (…), contribuinte fiscal n.º (…), proprietária do prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial da Chamusca sob o n.º (…), o qual está inscrito na matriz predial urbana sob o artigo n.º (…), se localiza na Rua anteriormente conhecida por “(…)” e que tem actualmente a toponímia de Rua (…), com o n.º de polícia 27, código postal (…), no lugar e freguesia de (…), concelho de Chamusca. O prédio tem as seguintes confrontações: A Norte com o prédio com o n.º de polícia 25, a Sul com Rua da (…), a Nascente com serventia particular e do Poente com Rua (…)” – Facto Provado 17.
HH. Com efeito, em cumprimento do Despacho Saneador foi oficiada: “A Câmara Municipal de Chamusca, com cópia dos docs. 17, 18 e 21 juntos pela Autora na p.i. e do doc. 5 junto com contestação da ré (…), para, no prazo de 10 dias, esclarecer se, e o que justifica, que o imóvel inscrito na matriz sob o artigo (…), da freguesia de (…), do concelho de Chamusca, que tem (…)675 m2 de área total, se localize no mesmo local do imóvel descrito na Conservatória do Registo Predial de Chamusca sob a ficha n.º (…), da freguesia de (…) e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo (…), da freguesia de (…), concelho de Chamusca, já que este tem 840 m2 de área total, e as confrontações de ambos os imóveis não são coincidentes, conforme certidão anexa emitida pelo Serviço de Finanças de Chamusca em 31/08/2021, por referência à certidão igualmente anexa emitida pela Câmara Municipal de Chamusca em 25/08/2021.”
II. Em 05.04.2024 e 10.04.2024 (Ref.ª citius 10556649 e 10567111), a Câmara Municipal da Chamusca juntando o mapa da localização do prédio para melhor compreensão, respondeu ao Tribunal nos seguintes termos: “ …Em 25/08/2021, a Câmara Municipal da Chamusca emitiu a certidão ora em crise, que teve como suporte, os documentos apresentados pela requerente acima identificada, a saber: certidão da conservatória do registo predial do prédio urbano e a respectiva caderneta predial urbana. Compulsadas as duas certidões, verifica-se que há efectivamente divergências entre elas, sendo certo que a certidão da Autoridade Tributária não é coincidente com a certidão emitida por esta Autarquia, não se vislumbrando quais os fundamentos que estiveram na origem de tal divergência. Para melhor esclarecimento dos factos, junta-se planta de localização.”
JJ. E, também neste caso, o douto Tribunal a quo desconsiderou a informação prestada pela Câmara Municipal da Chamusca, isto é, que existem divergências que o Município não sabe explicar para que dois prédios com descrições prediais e artigos matriciais diferentes se localizem no mesmo local, ora, em face da certidão emitida pelo Município da Chamusca em 25.08.2021 e da informação prestada ao Tribunal em 05.04.2024 e 10.04.2024, resulta que o prédio inscrito na matriz sob o artigo (…), da freguesia de (…) e inscrito no registo predial com o n.º (…), dessa mesma freguesia de (…), está localizado e corresponde materialmente ao prédio que em Agosto de 2021 se encontrava registado a favor de (…), com a descrição (…), freguesia de (…), sito na Rua (…), n.º 27, e inscrito na respectiva matriz predial urbana sob o n.º (…), que teve origem, por sua vez no antigo artigo matricial (…) – Factos Provados 17, 18, 19, 20, 21, 22 e 23.
KK. Aditamento de novo facto à lista de factos provados: “Na inscrição promovida pela Ré para efeitos de penhora do prédio não descrito adquirido pela Autora, no âmbito do Processo de Execução n.º 236/12.1TBGLG, a Ré prestou a seguinte declaração: “Para efeito de penhora dos prédios não descritos, informa-se que não se conhecem primeiros nem segundos ante-possuidores apesar das várias tentativas de consultas quer documentalmente quer pessoalmente. A identificação dos prédios e do actual possuidor encontram-se nas cadernetas prediais, que se juntam como documento anexo, mais informa que a proveniência matricial é a que consta da caderneta predial (artigo … relativamente ao actual … – Distrito de Santarém, concelho da Chamusca e Freguesia de …).”
LL. Tal facto resulta provado do Doc. 9 junto com a Contestação da Ré e que é o Pedido de Registo n.º (…).
MM. E, resulta igualmente do depoimento da testemunha (…), que declarou ser empregada forense da Ré para quem trabalha à 11/12 anos, competindo-lhe entre outras tarefas fazer registos, notificações e constatação do estado dos imóveis e quando confrontada com o Doc. 9 junto à Contestação, constante a fls. 67 verso dos autos esclareceu que efectuou o registo da penhora e o pedido de inscrição do prédio e declarou que não se conhecem os primeiros nem os segundos ante-possuidores, sendo esta a prática quando os prédios estão omissos.
NN. Em esclarecimentos à Mm.ª Juíza, respondeu que o prédio estava omisso na Conservatória do Registo Predial, só tinha a caderneta predial, que é documento suficiente para inscrever o prédio na Conservatória, e não costumam contactar com o Executado para averiguar dos ante-possuidores e da situação do prédio, já que ainda não tinham efectuado a penhora, o que resulta claramente do depoimento da testemunha da Ré (…), é ser bastante uma caderneta predial para proceder à inscrição de prédio omisso na Conservatória do Registo Predial conjuntamente com a penhora e informar singelamente que não conhecem primeiros nem segundos ante-possuidores.
OO. Sendo ainda confessado por esta testemunha que não costumam averiguar junto do Executado os ante-possuidores e a situação do prédio, mais adiantando que não lhes compete averiguar se o prédio existe ou não competindo tal dever ao Conservador do Registo Predial porquanto não têm mais elementos, mas somente uma caderneta predial.
PP. Ora a Ré, enquanto Agente de Execução, não pode invocar desconhecimento dos problemas suscitados com o tráfego jurídico da transmissão de direitos de propriedade sobre bens imóveis.
QQ. Assim, muito embora o Tribunal a quo não se tenha pronunciado sobre este facto, nem considerando-o como provado, nem considerando-o como não provado, o certo é que da análise da instrução da causa, resultou provado, com efeito a demonstração deste facto resulta, não só, de presunções de outros factos considerados provados, como do depoimento de testemunhas e dos documentos juntos à Contestação pela Ré.
RR. Considerou o douto Tribunal que em face dos factos provados não resultou demonstrada a responsabilidade civil extra contratual da Ré, entende, no entanto, a Recorrente que os factos provados e os factos provados adicionados pelo presente recurso forçosamente conduzem a outra apreciação da responsabilidade civil da Ré nos danos sofridos pela Autora.
SS. Desde logo porque a Ré desde o início que teve conhecimento da eventual desconformidade entre o teor da caderneta predial e as declarações do executado (…), que sempre referiu que o prédio era dos avós, morreram os avós, o pai e os tios e ficou para ele e para o primo e nunca foi feita qualquer divisão ou partilha do prédio, tal afirmação deveria ser bastante para exigir da Ré uma averiguação da propriedade do imóvel.
TT. Até porque no limite no prédio não constava inscrito outro comproprietário e, sempre cumpriria definir em concreto que direito em sede de venda executiva estava a transmitir e onde se encontravam as extremas do prédio assim penhorado e vendido à Autora.
UU. Em resumo bastaria a sucessão de factos relativamente ao prédio e após a sua venda para ser exigido à Ré, enquanto Agente de execução, outro comportamento prevenindo a venda de um bem cujo direito de propriedade suscitava dúvidas. (…)
VV. E, atenta a sua qualidade de Agente de Execução não pode desconhecer que a propriedade não se presume, prova-se.
WW. O agente de execução é o auxiliar da justiça, que na prossecução do interesse público, exerce poderes de autoridade pública no cumprimento das diligências que realiza nos processos de execução, nas notificações, nas citações, nas apreensões, nas vendas e nas publicações no âmbito de processos judiciais, ou em actos de natureza similar, devendo ter um comportamento público e profissional adequados à dignidade e responsabilidade associadas às funções que exerce, cumprindo pontual e escrupulosamente os deveres estatutários, legais, regulamentares e que os usos, costumes e tradições profissionais lhe imponham, estando obrigado a pugnar pela boa aplicação do direito, pela rápida administração da justiça e pelo aperfeiçoamento do exercício da profissão, não agindo contra o direito (artigos 121.º, 124.º e 162.º do Estatuto da Ordem dos solicitadores e Agentes de Execução).
XX. Estando em causa, nos presentes autos, a ilegalidade/ilicitude do acto de venda de um bem imóvel, em leilão electrónico, que não se encontrava previamente inscrito a favor do Executado (…) no registo predial, o objecto do litígio prende-se com a verificação dos requisitos da responsabilidade civil extracontratual da Ré (artigo 483.º do Código Civil). (…)
DDD. E, de todo o supra exposto, ficou demonstrado que a Ré registou um acto de penhora sobre um imóvel omisso no registo predial, apesar do Executado expressamente referir que o prédio era metade dele e metade do primo e que a casa de habitação que se encontrava no prédio era do primo, e subsequentemente, levou o imóvel a venda executiva, em leilão electrónico, induzindo em erro, a Recorrente que ao licitar o imóvel acreditou na fé pública das declarações da Ré, isto é, que aquele exacto imóvel aí publicitado existia e que sobre ele não existiam divergências de propriedade ou quaisquer ónus ou encargos, pelo que a conduta supra descrita constitui um comportamento humano dominável pela vontade, razão por que se conclui pela existência de um facto voluntário.
EEE. Quanto à culpa: foi a Ré que levou a registo o acto de penhora sobre o imóvel sem comprovar o direito do Executado sobre o mesmo e a sua conformidade matricial e registral, levando o mesmo a venda executiva em leilão electrónico, apesar do Executado (…) dizer que a casa era de um primo, e mesmo assim a Ré procedeu à venda do imóvel à Recorrente.
FFF. Sendo a Ré, Agente de Execução, com poderes de autoridade pública impunha-se que verificasse, ao efectuar o registo de penhora de um prédio, omisso no registo predial e não constando o Executado na matriz predial como titular, se o Executado era titular do direito de propriedade sobre o mesmo, sendo que em caso de dúvida e sem comprovação suficiente deveria abster-se de realizar a penhora do imóvel e por maioria de razão não promover a sua venda a terceiros por leilão electrónico, sem que tais dúvidas fossem dissipadas, pelo que é ilícita e culposa – e geradora de indemnização – a conduta da Ré que vem a concretizar a venda à Recorrente do imóvel em crise sem verificar se tal era admissível legalmente e se o imóvel objecto de penhora pertencia aos executados.
GGG. A responsabilidade civil imputada à Ré assenta assim na omissão por banda desta de um comportamento profissional devido, em concreto, da verificação do direito de propriedade do Executado sobre o bem imóvel, penhorado e vendido à Recorrente.
HHH. Ora, se a Ré – Agente de Execução – tivesse levado a cabo o comportamento devido, o mesmo é dizer o comportamento lícito alternativo à ilícita omissão daquele, nunca a Recorrente teria adquirido o imóvel.
III. Quanto ao dano: A Recorrente despendeu a quantia de € 11.511,57 (onze mil e quinhentos e onze euros e cinquenta e sete cêntimos) na aquisição do imóvel adquirido no leilão electrónico promovido pela Ré, ficando privada desta quantia e do bem.
JJJ. E, por último, o nexo de causalidade: O acto de penhora e a venda do imóvel à Autora, são causa adequada do dano sofrido pela Recorrente.
KKK. A Recorrente perdeu capacidade económica, tendo disposto das suas economias para adquirir um imóvel, do qual nunca pode usufruir ou dispor, sentindo-se profundamente triste e incomodada por ter ficado sem as suas economias, produto do seu trabalho, porquanto acreditou que o imóvel publicitado e que licitou, correspondia às informações da Ré constantes no e-leilões.
LLL. Por outro lado, os danos não patrimoniais sofridos pela Recorrente, são indemnizáveis e, pela sua gravidade, merecem a tutela do direito (artigo 496.º, n.º 1, do Código Civil).
MMM. Devendo em consequência a douta decisão ser substituída por outra que julgue a acção procedente por provada e, em consequência, seja a Ré condenada pelos danos causados à Recorrente. (…)”.
G.
A Recorrida (…) respondeu, sustentando, em síntese, que:
- a Autora/Apelante refere-se a depoimentos de testemunhas sem indicar com precisão as passagens da respectiva gravação, ou simplesmente omitindo essas passagens, nomeadamente das testemunhas (…), (…) e (…);
- algumas as transcrições constantes das alegações da Autora/Apelante são adulteradas, sem indicação de interrupções através de reticências (...) ou qualquer outra sinalética que permita uma “cópia limpa” do conteúdo dos depoimentos ou declarações, como acima se assinalou;
- a sentença recorrida não sofre de patologia na apreciação da prova ou na subsunção dos factos aos normativos legais aplicáveis;
- a Autora/Apelante não consegue explicar como é que o executado (…) consta como único proprietário, titular do imóvel inscrito na matriz sob o artigo (…), da freguesia de (…), tendo pago o respectivo IMI durante anos;
- a penhora foi realizada após a Ré/Apelada ter procedido à consulta nas bases de dados mencionadas no artigo 749.º, n.º 1, do CPC, não lhe incumbindo “comprovar o direito do executado sobre o mesmo e a sua conformidade matricial e registral”;
- a Autora/Apelante não devia contactar o Executado previamente à abertura da descrição na Conservatória e antes do registo da penhora, sob pena de este poder alienar ou onerar os seus bens antes da realização e do registo da penhora;
- os novos factos que a Autora/Apelante pretende aditar aos provados, constituem matéria irrelevante para determinar a responsabilidade ou culpa da Ré/Apelada à data dos factos em que esta detectou, registou, penhorou e promoveu a venda em leilão do imóvel inscrito na matriz sob o artigo (…), da freguesia de (…), a favor do Executado (…) porque balizados temporalmente entre a data da penhora (12/07/2017) e a data da entrega do título de transmissão à Autora/Apelante (04/09/2019), sendo que o facto de algumas entidades públicas não conseguirem explicar documentos pelas mesmas emitidos após a conclusão do processo de venda em leilão judicial, não é uma insuficiência ou deficiência que possa ser imputada à Ré/Apelada;
- é sobre a Autora/Apelante que impende o ónus da prova dos pressupostos da ilicitude e da culpa da Ré/Apelada.
H.
Também a Recorrida / Interveniente (…) respondeu, formulando as seguintes conclusões (transcrição parcial, sem negrito ou sublinhado da origem):
“(…) B. (…) não cumpre o ónus de impugnação da matéria de facto, tão pouco da de direito, não indicando qualquer norma jurídica que o tribunal tenha aplicado incorretamente ou em que sentido a deveria ter interpretado, termos em que a apelação necessariamente improcede;
C. Acresce que, ao não ter cumprido o ónus de impugnação da matéria de facto com recurso à prova gravada, a recorrente usou indevidamente o prazo adicional de 10 dias indevidamente, pelo que o recurso é extemporâneo;
D. Assim, nos termos conjugados dos artigos 638.º, nºs 1 e 7, 639.º, n.º 1 e 640.º do CPC, não poderá o douto Tribunal ad quem conhecer da apelação interposta pela recorrente. (…)
F. Ao contrário do que pretende a recorrente, de forma alguma poderia constar dos factos provados que o prédio não fosse propriedade da (…), embora a divisão aparentemente nunca tenha sido formalizada;
G. Não pode pois, de forma alguma ser dado como provado o facto j) dos factos não provados, que além do mais é errático e enganoso, não restando duvidas quanto à propriedade por parte do (…);
H. Estando a venda em leilão concluída e a propriedade do imóvel na esfera jurídica da ora recorrente era a este que cabia, como podia e devia, reagir nos termos do artigo 838.º, n.º 1, do CPC deduzindo o incidente com vista à anulação da venda e a indemnização a que tenha direito;
I. O único motivo plausível para a recorrente não ter tomado posse do imóvel é que, como se disse supra, bem sabia que apenas uma parte do que aparentava ser um único prédio, era pertença do executado (…);
J. De todo o modo, ainda que se questione os factos aqui apresentados, poderia ainda a recorrente lançar mão de uma ação especial de reivindicação da posse, prevista nos artigos 1311.º e seguintes do Código Civil, o que também não fez!
K. Fez pois o agente de execução tudo quanto lhe competia e estava ao seu alcance, não lhe cabendo questionar da oportunidade e exatidão da descrição predial a realizar, que é da exclusiva competência do conservador.
L. Assim se conclui que há apenas uma causa para a recorrente ter ficado desapossada do imóvel que adquiriu, que é a sua própria inércia!
M. Configura, por isso, abuso de direito a pretensão que aqui vem deduzir contra a gente de execução!
N. Não foi pois a conduta da agente de execução que causou qualquer dano na esfera jurídica da recorrente, não estando por isso quanto a esta verificados os pressupostos da responsabilidade civil por facto ilícito, previstos no artigo 483.º do Código Civil, pelo que a ação não poda deixar de improceder, não merecendo por isso censura a douta sentença recorrida;
O. Termos em que deve a apelação improceder e ser confirmada a douta sentença recorrida (…).”
I.
Colheram-se os vistos dos Ex.mos Srs. Juízes Desembargadores Adjuntos.
J. Questões a decidir
São as seguintes as questões em apreciação no presente recurso:[1]
1. Se deve ser alterada a matéria de facto provada e não provada, da sentença recorrida;
2. Se por desempenho profissional alegadamente negligente, na qualidade de agente de execução em processo executivo, a Ré é responsável civil pelo ressarcimento de danos sofridos pela Autora, adquirente de prédio penhorado e vendido no mesmo processo como bem pertencente ao Executado mas cuja titularidade da propriedade se mostrava controvertida.
*
***
II. FUNDAMENTAÇÃO
*
***
A. De facto
*
Reprodução integral dos factos provados e não provados da decisão a matéria de facto como decidido na sentença sob recurso (negrito e itálico da origem):
“A. Factos Provados (…)
1. A autora, em 19/06/2019, licitou pelo valor de € 11.087,00 (onze mil e oitenta e sete euros), na plataforma de leilões electrónicos: o “prédio urbano, sito na (…), descrito na Conservatória do Registo Predial de Chamusca sob o n.º (…), da freguesia de (…) e inscrito na respectiva matriz sob o artigo (…)”.
2. Esta venda foi efectuada no âmbito do Processo de Execução 236/12.1TBGLG, que corre termos no Tribunal Judicial da Comarca de Santarém – Juízo de Execução do Entroncamento – Juiz 3.
3. A Ré é a Agente de Execução no Processo de Execução n.º 236/12.1TBGLG, sendo detentora da cédula profissional n.º (…), emitida pela Ordem dos Solicitadores e dos Agentes de Execução.
4. A autora depositou a quantia de € 11.087,00 correspondente ao preço do imóvel na conta cliente da ré.
5. Em 10/07/2019, a Ré, na qualidade de Agente de Execução, proferiu decisão de aceitação da proposta da Autora no valor de € 11.087,00, efectuada no leilão electrónico com o (…).
6. A autora liquidou os imposto devidos pela compra deste imóvel, a saber: o Imposto Municipal sobre Transmissões Onerosas de Imóveis no montante de € 110,87 (cento e dez euros e oitenta e sete cêntimos) e o Imposto de Selo na quantia de € 88,70 (oitenta e oito euros e setenta cêntimos).
7. A autora liquidou ainda na mesma data, o montante de € 225,00 (duzentos e vinte e cinco euros) correspondente ao valor do registo predial.
8. Com data de 02/08/2019, a Ré emitiu o título de transmissão do “prédio urbano, sito na (…), descrito na Conservatória do Registo Predial de Chamusca sob o n.º (…), da freguesia de (…) e inscrito na respectiva matriz sob o artigo (…)”.
9. Por correspondência datada de 04/09/2019, a Ré enviou o título de transmissão do imóvel à autora.
10. A Ré na mesma comunicação informou a Autora que tinha enviado notificação para entrega da chaves, aguardando o seu resultado.
11. Em 8 de Outubro de 2019, ainda a Autora solicitava à Ré que lhe fossem entregues as chaves do imóvel.
12. E, quando a Autora tentou tomar posse do imóvel defrontou-se com um placard de venda da Leiloeira (…), no portão de acesso ao imóvel.
13. A Autora solicitou à Ré que esclarecesse esta situação porque o executado (…) afirmava desconhecer o assunto.
14. E o alegado anterior proprietário dizia à Autora que não sabia de nada.
15. A Autora tentou junto da Câmara Municipal de Chamusca, junto da Conservatória do Registo Predial e do Serviço de Finanças de Chamusca obter informação sobre a localização e confrontações do prédio, anteriores possuidores, se houve alteração ao número de policia e ao artigo matricial.
16. Nessa sequência, foi emitida certidão pela Autoridade Tributária e Aduaneira, datada de 31.08.2021, onde se certifica: “... que o artigo urbano (…), da freguesia de (…) foi inscrito na matriz no ano de 1938, em nome de (…), tendo sido posteriormente transmitido para (…), encontrando-se atualmente em nome de (…). Mais certifico que o referido prédio não sofreu alterações matriciais, nomeadamente quanto à sua composição e localiza-se na (…) e possui as seguintes confrontações, NORTE: Prédio Seguinte; SUL: (…); NASCENTE: Servidão e POENTE: (…)”.
17. Foi emitida certidão pela Câmara Municipal de Chamusca, datada de 25.08.2021, onde se certifica que “Certifico, conforme despacho do Senhor Presidente, exarado no requerimento apresentado por (…) – Advogada, na qualidade de mandatária de (…), contribuinte fiscal n.º (…), proprietária do prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial da Chamusca sob o n.º (…), o qual está inscrito na matriz predial urbana sob o artigo n.º (…), se localiza na Rua anteriormente conhecida por “(…)” e que tem atualmente a toponímia de Rua (…), com o n.º de polícia 27, código postal (…) no lugar e freguesia de (…), concelho de Chamusca. O prédio tem as seguintes confrontações: A Norte com o prédio com o n.º de polícia 25, a Sul com Rua da (…), a Nascente com serventia particular e do Poente com Rua (…)”.
18. Em Agosto de 2021, a Autora tentou entrar no prédio que adquiriu, tendo solicitado a presença do alegado anterior proprietário e executado (…).
19. Como não logrou entrar na propriedade, face aos portões de que não tinha chaves requereu a intervenção da GNR, fazendo prova que era a proprietária do imóvel.
20. A GNR, com a intervenção de um vizinho telefonou para o proprietário (…), que quando chegou ao local, se identificou e comprovou documentalmente que tinham adquirido este imóvel por contrato de compra e venda a (…) em 23/10/2020.
21. (…) adquiriu em 16/01/2020, o imóvel no Processo de insolvência n.º 1942/18.2T8STR, que corre termos no Tribunal Judicial da Comarca de Santarém – Juízo do Comércio de Coimbra-Juiz 3 – vide Doc. 21
22. Sendo o insolvente, o anterior proprietário (…) – vide Docs. 21 e 22.
23. O prédio registado a favor de (…) tem a descrição (…), freguesia de (…), sito na Rua (…), n.º 27, e encontra-se inscrito na respectiva matriz predial urbana sob o n.º (…), que teve origem, por sua vez no antigo artigo matricial (…).
24. O prédio com o artigo matricial (…), foi inscrito na Conservatória do Registo Predial em 1996 por dissolução da comunhão conjugal e sucessão a favor de (…).
25. O prédio adquirido pela Autora encontrava-se omisso na Conservatória do Registo Predial e foi promovida a sua inscrição pela Ré, para efeitos de registo de penhora no âmbito do Processo de Execução n.º 236/12.1TBGLG.
26. O prédio que a Autora adquiriu com o artigo matricial (…), da freguesia de (…) foi inscrito na matriz no ano de 1938, em nome de (…).
27. A autora pagou para aquisição do imóvel na venda executiva no âmbito do Processo de Execução n.º 236/12.1TBGLG, os seguintes montantes:
- € 11.087,00 correspondente ao preço do imóvel;
- € 110,87 relativo ao Imposto Municipal sobre Transmissões Onerosas de Imóveis;
- € 88,70 relativo ao Imposto de Selo;
- € 225,00 do registo predial.
28. A Autora sente-se profundamente triste e incomodada por ter ficado sem as suas economias para aquisição do imóvel, do qual nunca pode usufruir ou dispor.
29. Por causa de indemnizações que, nos termos da lei, em consequência da sua actividade profissional possam vir a ser devidas a terceiros, a ora Ré, por contrato de seguro de Grupo, garantiu a sua responsabilidade civil até ao montante de € 100.000,00, pelas indemnizações que, de acordo com a lei possam ser exigidas como civilmente responsável pelos prejuízos e/ou danos causados a terceiros, nos termos da apólice n.º (…).
30. O referido contrato tem por objecto a garantia da responsabilidade que, ao abrigo da lei civil, seja imputável à ora Ré por erros ou faltas cometidas no exercício da actividade profissional de Agente de Execução, até ao limite, em capital, de € 100.000,00, com uma franquia de 10% dos prejuízos a deduzir em caso de sinistro, com um mínimo de € 1.000,00 e um máximo de € 2.500,00.
31. A execução que corre termos no Tribunal Judicial da Comarca de Santarém – Entroncamento, Juízo de Execução-Juiz 3, sob o n.º 236/12.1TBGLG, foi instaurada pelo Banco (…), S.A. contra os executados (…) e (…).
32. Como decorrência do exercício da actividade de Agente de Execução da ora Ré e na sequência de consulta efectuada em 24/01/2017 às bases de dados da Autoridade Tributária, foram detectados, relativamente ao executado (…), dois imóveis inscritos na matriz a favor deste executado: - Um prédio urbano localizado na (…), inscrito na respectiva matriz sob o artigo (…), da freguesia de (…); - Um outro prédio urbano localizado na Rua do (…), n.º 5, (…), inscrito na respectiva matriz sob o artigo (…), da freguesia de (…).
33. Estes dois imóveis embora estivessem inscritos na matriz em nome do executado (…) junto da Autoridade Tributária (AT), não se encontravam descritos na Conservatória do Registo Predial, conforme atestam os resultados da pesquisa por matriz, efectuada às bases de dados dos Serviços de Registo Predial, a que a ora Ré, na sua qualidade de Agente de Execução, tem acesso.
34. A Ré, no exercício das suas funções, requereu a abertura da respectivas descrições junto da Conservatória do Registo Predial para assim poder registar as penhoras, o que veio a acontecer em 12/07/2017.
35. Ao prédio inscrito na matriz sob o artigo (…), passou a corresponder na Conservatória do Registo Predial de Chamusca a descrição n.º (…), da freguesia de (…).
36. O prédio aqui em causa foi descrito na Conservatória do Registo Predial com base nos elementos constantes da matriz (artigo urbano …, da freguesia de …).
37. À data das consultas efectuadas nas bases de dados pela Agente de Execução, à data da realização da penhora e à data da venda em leilão, o imóvel sempre se encontrou inscrito na matriz sob o artigo (…), da freguesia de (…), e o titular inscrito era o executado (…), contribuinte fiscal n.º (…).
38. Por email de 08/10/2019, a Autora ainda continuava a solicitar ao escritório da AE que o executado fosse notificado para entregar as chaves, quando é certo que o executado já havia sido notificado para o efeito em 04/09/2019, e já tinha sido comunicado à Autora que não existiam chaves.
39. Foi também neste email de 08/10/2019 que a Autora referiu estar afixado um cartaz/aviso para venda num portão onde a Autora refere ter ido “tomar conhecimento do local”, sendo possível identificar pela fotografia que acompanhava aquele email que a entidade que estava a proceder à venda desse imóvel era a Leiloeira do (…).
40. Nesse mesmo email de 08/10/2019 a Autora informava que o executado (…) lhe tinha transmitido que desconhecia o assunto relacionado com o cartaz/anúncio para venda.
41. Face àquela comunicação da Autora, logo em Outubro de 2019 o escritório da AE diligenciou junto da Leiloeira do (…) no sentido de se inteirar acerca da identificação do imóvel que estava em venda, e ao tempo obteve a informação de que se que se tratava de um imóvel que estava em venda num processo de insolvência em que o insolvente era um indivíduo de nome (…).
42. O referido imóvel foi apreendido e arrolado em 28/08/2018 para o processo de insolvência que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca de Santarém – Juízo de Comércio de Santarém-Juiz 2, sob o n.º 1942/18.2T8STR.
43. Foi possível saber também que se tratava de um prédio urbano, composto de casa de r/c para habitação, com 4 divisões, anexos, cómodos e quintal, sito na Rua (…), n.º 27, na freguesia de (…).
44. Constava ainda que o imóvel em venda se encontrava descrito na Conservatória do Registo Predial de Chamusca sob a ficha n.º (…) e inscrito na matriz sob o artigo (…).
45. Após o último email da Autora dirigido ao escritório da Ré, de Outubro de 2019, a Ré nunca mais foi contactada pela Autora relativamente a este assunto, pelo que presumiu que a Autora tivesse finalmente tomado posse pacífica e normalmente do imóvel, até porque já tinha sido tratada e entregue à Autora toda a documentação respeitante à venda do imóvel por esta adquirido.
46. O artigo matricial (…) surgiu do resultado das buscas efectuadas às bases de dados da A.T. e a Ré não teve qualquer influência na sua criação, porque aquela matriz já existia desde 1938.
47. Aquando da notificação do auto de penhora ao executado (…), este foi notificado para, sob pena de ser condenado como litigante de má-fé, indicar os direitos, ónus e encargos não registáveis que recaíssem sobre os bens penhorados bem como os respectivos titulares ou beneficiários, e o executado nada declarou.
48. A (…) – Companhia Portuguesa de Seguros, S.A., foi incorporada, por fusão, na ora contestante (…) – Companhia de Seguros, S.A com todo o seu ativo e passivo, na modalidade de transferência global do património.
49. A fusão mostra-se registada no Registo Comercial, pela inscrição n.º (…), Ap. (…).
50. Em resultado da fusão, foi cancelada a matrícula da (…) – Companhia Portuguesa de Seguros, S.A., mediante a inscrição (…).
51. A fusão foi publicada em 04-01-2022 no Portal da Justiça, conforme impressão que se junta e dá aqui por inteiramente reproduzida (Doc. n.º 3).
52. A Autoridade de Supervisão de Seguros e Fundos de Pensões autorizou a transmissão da carteira de seguros do Ramo Não Vida da (…) – Companhia Portuguesa de Seguros, S.A., para a requerente (…) – Companhia de Seguros, S.A., conforme aviso de 09-11-2021, divulgado no sitio online da referida Autoridade, de que se junta e dá aqui por inteiramente reproduzida uma impressão.
53. A Ré (…) tinha a sua responsabilidade civil por danos causados a terceiros no exercício da sua atividade de Agente de Execução encontrava-se transferida para a (…) – Companhia Portuguesa de Seguros, S.A, por contrato de seguro de que é tomadora a Ordem dos Solicitadores e Agentes de Execução.
*
B. Factos Não Provados (…)
A. Em meados de 2020, quando a Autora tentou entrar no imóvel foi impedida por alguém que se arrogava proprietário do mesmo, o Sr. (…).
B. E que acusou a Autora e a Ré de falsificarem documentos.
C. A Conservatória do Registo Predial informou telefonicamente que o prédio com o artigo matricial (…) estava omisso na Conservatória e que foi registado em 2012 por causa da penhora em conjunto com outro artigo matricial, tendo a descrição (…), constando no registo predial como sujeito passivo da penhora (…).
D. Mais informaram que a penhora efectuada pela Ré incidiu sobre dois prédios, o referido com o artigo matricial (…) e sobre o prédio com o artigo matricial (…), a que foi atribuída a descrição (…), sito na Rua do (…), 5.
E. Também a explicação do Serviço de Finanças é que por conferência de matrizes em 31/12/2012 o prédio tinha passado para o nome de (…) e depois para o nome da A..
F. Em coincidência temporal com o registo predial da penhora efectuada pela Ré, no Processo de Execução n.º 236/12.1TBGLG..
G. O prédio nem sequer na matriz predial urbana se encontrava inscrito a favor do Executado (…).
H. O prédio passou para o executado (…) em 2012, por conferência de matrizes sem qualquer suporte documental que titulasse o direito do Executado (…).
I. A Ré registou um acto de penhora sobre um imóvel não inscrito na matriz a favor do Executado (…).
J. A Ré levou a registo o acto de penhora sobre o imóvel sem comprovar o direito do Executado sobre o mesmo e a sua conformidade matricial e registral, levando o mesmo a venda executiva em leilão electrónico, apesar do Executado (…) dizer que a casa era de um primo, e mesmo assim a Ré procedeu à venda do imóvel à Autora. (…)”.
*
Do recurso da decisão da matéria de facto
*
Vem o presente recurso interposto da matéria de facto provada e não provada da sentença de primeira instância.
Vejamos, por isso, em primeiro lugar, se foram observados os requisitos de impugnação da matéria de facto.
Prevê o artigo 640.º do C.P.C.:
“1 – Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) – Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) – Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) – A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
2 – No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:
a) – Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição, do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;
b) – Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.”
*
A Recorrente interpôs recurso da matéria de facto com os seguintes pontos:
a)
Deve ser considerado provado o conteúdo do facto J) dos factos não provados da sentença, com o seguinte teor:
“A Ré levou a registo o acto de penhora sobre o imóvel sem comprovar o direito do Executado sobre o mesmo e a sua conformidade matricial e registral, levando o mesmo a venda executiva em leilão electrónico, apesar do Executado (…) dizer que a casa era de um primo, e mesmo assim a Ré procedeu à venda do imóvel à Autora”.
Mantém que a prova do facto advém: do depoimento do Executado (…) cujas partes reputadas relevantes transcreve nas alegações de recurso, indicando os minutos da gravação correspondentes (cfr. fls. 13 a 15); do testemunho de (…) que refere por súmula, indicando os minutos da gravação correspondentes (cfr. fls. 16). Alude também ao testemunho de (…) mas sem transcrever ou indicar as passagens da gravação (fls. 17 e 18).
b)
Devem ser aditados os seguintes factos à matéria de facto provada:
i. “A inscrição a favor de (…) – NIF: (…), do prédio urbano inscrito na matriz sob o artigo (…), da freguesia de (…) começou a produzir efeitos a partir de 31/12/2012, não tendo o Serviço de Finanças da Chamusca localizado a documentação suporte a essa inscrição matricial. Tendo este Serviço de Finanças sugerido que a mudança de titularidade poderá estar relacionada o Proc. n.º 236/12.1TBGLG, tendo conseguido apurar, que este artigo matricial corresponde ao registo predial n.º (…), da freguesia de (…), tendo este prédio sido aberto em 2017, na Conservatória do Registo Predial de Arruda dos Vinhos”.
Invoca para tanto o teor do documento 17 junto à petição inicial – certidão emitida pela Autoridade Tributária e Aduaneira – bem como a resposta dada pelo Serviço de Finanças no dia 08.04.2024 (ref.ª Citius 10561200) a ofício que lhe fora enviado pelo tribunal.
ii. “Em 05.04.2024, a Câmara Municipal da Chamusca respondeu ao ofício do Tribunal nos seguintes termos: “…Em 25/08/2021, a Câmara Municipal da Chamusca emitiu certidão, que teve como suporte, os documentos apresentados pela requerente, a saber: certidão da conservatória do registo predial do prédio urbano e a respectiva caderneta predial urbana. Compulsadas as duas certidões, verifica-se que há efectivamente divergências entre elas, sendo certo que a certidão da Autoridade Tributária não é coincidente com a certidão emitida por esta Autarquia, não se vislumbrando quais os fundamentos que estiveram na origem de tal divergência.”
Estriba o teor do facto em apreço no documento 18 junto à petição inicial – certidão emitida pela Câmara Municipal de Chamusca –, assim como na resposta junta no dia 05.04.2024 aos autos pela Câmara Municipal da Chamusca, a ofício do tribunal.
iii. “Na inscrição promovida pela Ré para efeitos de penhora do prédio não descrito adquirido pela Autora, no âmbito do Processo de Execução n.º 236/12.1TBGLG, a Ré prestou a seguinte declaração: “Para efeito de penhora dos prédios não descritos, informa-se que não se conhecem primeiros nem segundos ante-possuidores apesar das várias tentativas de consultas quer documentalmente quer pessoalmente. A identificação dos prédios e do actual possuidor encontram-se nas cadernetas prediais, que se juntam como documento anexo, mais informa que a proveniência matricial é a que consta da caderneta predial (artigo … relativamente ao actual … – Distrito de Santarém, concelho da Chamusca e Freguesia de …).”
O facto em apreço resulta do documento 9 junto com a contestação da Ré, constituído pelo pedido de registo n.º (…) e do testemunho de (…), empregada forense da Ré.
*
Deste modo, com excepção do testemunho de (…), relativamente à qual a Recorrente não cumpre a obrigação de transcrever ou indicar as passagens da gravação, mostra-se cumprido o pressuposto de indicação dos meios de prova que, no entendimento do Autor, imporiam decisão distinta do facto não provado J) e o aditamento dos elencados factos aos provados.
Mostram-se, por isso, cumpridos os requisitos previstos nas alíneas a) e c) do números 1 do artigo 640.º do CPC.
*
Nos termos do disposto no artigo 662.º, n.º 1, do C.P.C., cuja epígrafe é “modificabilidade da decisão de facto”, “a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa”.
Neste particular, o tribunal de recurso, sem embargo da atendibilidade da prova plena que resulte dos autos, deve verter o que emergir da apreciação crítica e livre dos demais elementos probatórios e usar, se for o caso, as presunções judiciais que as circunstâncias justificarem, designadamente a partir dos factos instrumentais, como decorre do n.º 4 do artigo 607.º e da alínea a) do n.º 2 do artigo 5.º, ambos do C.P.C. ([2]), tanto mais que a anulação de uma sentença deve confinar-se aos casos em que, como previsto na alínea c) do n.º 2 do artigo 662.º do C.P.C., não constem “…do processo todos os elementos que, nos termos do número anterior, permitam a alteração da decisão proferida sobre a matéria de facto”.
Como se refere no acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 10.07.2024, relatado pelo Desembargador Jorge Martins Ribeiro no processo n.º 99/22.9T8GDM.P1 ([3]), para reapreciar a decisão de facto impugnada, o Tribunal da Relação “…tem de, por um lado, analisar os fundamentos da motivação que conduziu a primeira instância a julgar um facto como provado ou como não provado e, por outro, averiguar, em função da sua própria e autónoma convicção, formada através da análise crítica dos meios de prova disponíveis e à luz das mesmas regras de direito probatório, se na elaboração dessa decisão e na sua motivação ocorre, por exemplo, alguma contradição, uma desconsideração de qualquer um dos meios de prova ou uma violação das regras da experiência comum, da lógica ou da ciência – elaboração, diga-se, que deve ser feita à luz de um cidadão de normal formação e capacidade intelectual, de um cidadão comum na sociedade em questão – sem prejuízo de, independentemente do antes dito, poder chegar a uma decisão de facto diferente em função da valoração concretamente efetuada em sede de recurso.”
Ainda sobre a intervenção da Relação na decisão da matéria de facto decidida em 1ª instância, será pertinente invocar a fundamentação clara do acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 02.11.2017, relatado pela Desembargadora Maria João Matos no processo n.º 212/16.5T8MNC.G1, ([4])
“…quando os elementos fornecidos pelo processo impuserem decisão diversa, insuscetível de ser destruída por quaisquer outras provas, a dita modificação da matéria de facto - que a ela conduza - constitui um dever do Tribunal de Recurso, e não uma faculdade do mesmo (o que, de algum modo, também já se retiraria do artigo 607.º, n.º 4, do C.P.C., aqui aplicável ex vi do artigo 663.º, n.º 2, do mesmo diploma).
Estarão, nomeadamente, aqui em causa, situações de aplicação de regras vinculativas extraídas do direito probatório material (regulado, grosso modo, no C.C.), onde se inserem as regras relativas ao ónus de prova, à admissibilidade dos meios de prova, e à força probatória de cada um deles, sendo que qualquer um destes aspetos não respeita apenas às provas a produzir em juízo.
Quando tais normas sejam ignoradas (deixadas de aplicar), ou violadas (mal aplicadas), pelo Tribunal a quo, deverá o Tribunal da Relação, em sede de recurso, sanar esse vício; e de forma oficiosa. Será, nomeadamente, o caso em que, para prova de determinado facto tenha sido apresentado documento autêntico - com força probatória plena - cuja falsidade não tenha sido suscitada (artigos 371.º, n.º 1 e 376.º, n.º 1, ambos do C.P.C.), ou quando exista acordo das partes (artigo 574.º, n.º 2, do C.P.C.), ou quando tenha ocorrido confissão relevante cuja força vinculada tenha sido desrespeitada (artigo 358.º do C.C., e artigos 484.º, n.º 1 e 463.º, ambos do C.P.C.), ou quando tenha sido considerado provado certo facto com base em meio de prova legalmente insuficiente (v.g. presunção judicial ou depoimentos de testemunhas, nos termos dos artigos 351.º e 393.º, ambos do C.P.C.).
Ao fazê-lo, tanto poderá afirmar novos factos, como desconsiderar outros (que antes tinham sido afirmados).”
*
a)
Tendo presentes estes considerandos, analisemos os argumentos utilizados pelo Recorrente para sustentar que o tribunal a quo deveria ter dado como provado o facto não provado J) com o seguinte teor:
“A Ré levou a registo o acto de penhora sobre o imóvel sem comprovar o direito do Executado sobre o mesmo e a sua conformidade matricial e registral, levando o mesmo a venda executiva em leilão electrónico, apesar do Executado (…) dizer que a casa era de um primo, e mesmo assim a Ré procedeu à venda do imóvel à Autora”.
Mas antes, convém ter presente que os excertos da redacção “a Ré levou a registo o acto de penhora sobre o imóvel…”, “…levando o mesmo a venda executiva em leilão electrónico…” e “…a Ré procedeu à venda do imóvel à Autora”, encontram já acolhimento nos factos provados números 2 a 5, 8, 9, 25 e 34.
Aquilo que está verdadeiramente em causa no facto não provado J), é que a Ré se tenha abstido de “…comprovar o direito do Executado sobre o mesmo e a sua conformidade matricial e registral…” antes da penhora e que “…o Executado (…) ...” haja dito “…que a casa era de um primo…” na ocasião em que a Ré decidiu proceder à venda do imóvel à Autora. Note-se que a redacção do facto que a Recorrente considera estar provado nenhuma referência faz a um elemento que seria quanto a nós, fundamental à economia da decisão da presente demanda: o conhecimento, pela Ré, de que outras pessoas se arrogassem proprietárias do imóvel penhorado.
Relativamente à parte de que a Ré levou a registo a penhora “…sem comprovar o direito do executado sobre o mesmo…”, o que está subjacente à objecção colocada pela Recorrente é um juízo conclusivo, na medida em que considera insuficientes as diligências levadas a cabo pela Ré previamente à penhora – entre as quais a consulta efectuada em 24.01.2017 às bases de dados da A.T., da qual resultou o apuramento de que o Executado era titular do rendimento de dois prédios (cfr. facto provado 32).
Sem que a Recorrente impugne o conteúdo do facto provado número 32., do qual consta que essa diligência foi feita pela Ré (o que, aliás, a Recorrente expressamente admite no 1º parágrafo de fls. 18 das suas alegações de recurso), é incontornável que a Ré averiguou a existência de bens em nome do Executado, sendo que o vocábulo “comprovar” usado na redacção do facto é um juízo de valor que, para alem do mais, pressupõe uma conclusão jurídica sobre a bastança dos elementos recolhidos para produzir a prova da titularidade do direito de propriedade.
Segundo Paulo Faria, se “o tema da instrução pode aqui ser identificado por referência a conceitos de direito ou conclusivos (…) já a decisão sobre a matéria de facto nunca se poderá bastar com tais formulações genéricas, de direito ou conclusivas, exigindo-se que o tribunal se pronuncie sobre os factos essenciais e instrumentais.”[5]
Ou com Miguel Teixeira de Sousa, “…[a] selecção da matéria de facto não pode conter qualquer apreciação de direito, isto é, qualquer valoração segundo a interpretação ou a aplicação da lei ou qualquer juízo, indução ou conclusão jurídico (…)”.[6]
Se determinado ponto da matéria de facto integrar uma afirmação ou valoração de factos que se insira na análise das questões jurídicas que definem o objecto da acção, comportando uma resposta, ou componente de resposta àquelas questões, deve ser eliminado.
Trata-se, por isso, de um elemento que não pode constar dos factos provados cujo enfoque deve quedar-se pelas concretas diligências realizadas pela Ré para apurar a existência de bens pertencentes ao Executado, sendo a análise da questão sobre se resultou, ou não, suficientemente “comprovada” a titularidade do direito deste sobre os bens, uma conclusão juridicamente fundamentada a formular noutra sede da decisão.
Deste modo, não pode ser atendida esta parte da impugnação dirigida pela Recorrente ao facto não provado n.º 6.
Atentemos agora na segunda parte do mesmo facto, referente à decisão tomada pela Ré de proceder à venda do imóvel à Autora apesar de “…o Executado (…) dizer que a casa era de um primo (…)”.
Aqui, contrariamente à passagem anteriormente versada, estamos perante um facto objectivo traduzido na afirmação, produzida pelo Executado, à data em que a Ré decidiu proceder à venda do bem, de que a casa era pertença de um primo.
Nas suas alegações de recurso (cfr. parágrafos 2 e 3 de fls. 18), a Recorrente sustenta que o Executado desde sempre referiu que o prédio era dos avós, morreram os avós, e o pai e o tio e, ficou para ele e para o primo, mas nunca foi efectuada qualquer partilha desde a morte dos avós, o que indiciaria que o prédio fosse metade dele e outra metade do primo.
Para tanto, invoca a Recorrente os seguintes elementos de prova:
- o depoimento do Executado, traduzido na seguinte passagem em que afirmou ter indicado e dito “…a quem lá foi tirar fotografias e depois a uma Senhora que eu pensei que era a Dra. (…), mas afinal não era…” “…que era meu e do meu primo que eu não tenho casa nenhuma” (minutos 39:47 – 44:35);
- o testemunho de (…), empregado da Ré (…) entre 2016 e 2022 que efectuou a verificação do estado do imóvel e redigiu parte do auto de diligência junto como documento 14 da contestação da Ré por referência a um “prédio uno”, todo murado, somente com uma entrada por um portão, com uma casa abandonada de um lado (à esquerda de quem entra) e o resto do terreno cheio de mato, mas que por dentro não tinha delimitações físicas (minutos 04.34 – 08:00).
Ouvido o registo dos testemunhos do Executado e de (…), convergiram quanto à indicação dada pelo Executado à testemunha Hugo durante a visita deste ao local, de que a moradia e o terreno existentes “do lado esquerdo” não lhe pertenciam e que o Executado disse que era dono do terreno situado do lado direito.
Convergiram também quanto à informação de que não havia qualquer separação física entre os terrenos que o Executado referiu pertencer-lhe e não lhe pertencer.
Todavia, (…) não confirmou que o Executado lhe tenha dito que parte do imóvel pertencesse a um seu primo, como o Executado disse no seu testemunho, limitando-se a referir que este o informou de que a parte do lado esquerdo do terreno onde se encontra a moradia e anexos, não lhe pertencia. Por outro lado, (…) afirmou ter perguntado ao Executado onde estava o prédio urbano, a casa, ao que este respondeu que se tratava de umas ruínas muito antigas e degradadas, compostas por pedra no chão com apenas 50 cms. de altura, ali existentes, mas o testemunho previamente prestado pelo Executado não fez qualquer alusão a esta conversa.
Uma vez que (…) não confirmou a prestação de qualquer informação pelo Executado relativa aos anteproprietários do imóvel penhorado, nomeadamente que tivesse pertencido aos avós e depois da morte destes, ao pai e o tio e, posteriormente, para ele e para o primo, sem que tivesse alguma vez sido realizada a partilha, afigura-se insuficiente apenas o testemunho do Executado para demonstrar que tivesse dado essa informação ao então funcionário da Ré.
Acresce que o testemunho do Executado evidenciou algumas debilidades, nomeadamente no que respeita:
- à identidade da mulher que foi falar com ele ao terreno antes da venda do imóvel, começando por afirmar que pensava que tinha sido a Ré, vindo, a instâncias do mandatário desta, a reconhecer que tinha estado com a Autora nessa ocasião, a quem informou que só era proprietário de metade do terreno e que a outra metade pertencia ao seu primo (prestação e informação que é contrária à versão sustentada pela Autora em declarações de parte); e
- quanto ao seu conhecimento de que era ele quem figurava como único titular inscrito do rendimento do prédio nas finanças, começando por dizer que não sabia como para, em fase ulterior do seu testemunho, admitir que começou a pagar o IMI anos depois da morte dos pais e que foi às Finanças por causa de outro imóvel dos seus pais onde foi informado que era ele quem passava a figurar como titular e que tinha de pagar o IMI do prédio.
Deste modo, a prova produzida em julgamento, designadamente os testemunhos do Executado e de (…), não permite a conclusão de que o Executado (…) disse à Ré, ou a alguém por si encarregado de averiguar sobre o prédio, que a casa era de um primo.
Termos em que não se acolhe a alteração propugnada pela Recorrente relativamente ao facto não provado J).
*
b)
Sustenta a Recorrente que, em resultado do conteúdo de documentos juntos aos autos, devem ser aditados ao elenco dos provados, os supratranscritos factos.
No rol de factos provados e não provados da sentença recorrida nenhuma referência é feita aos factos propostos pela Recorrente nas suas alegações de recurso.
Importa, antes do mais, aferir qual o efectivo relevo para a decisão da causa das propostas de factos indicados pela Recorrente.
Na verdade, vem sendo entendido pela jurisprudência dos nossos tribunais que a impugnação da decisão de facto não se justifica a se, de forma independente e autónoma da decisão de mérito, assumindo antes um carácter instrumental face à mesma, pelo que essa impugnação só deve ser conhecida pelo tribunal superior se os factos que o impugnante pretende ver alterados assumirem, em face do regime substantivo e das regras do ónus da prova aplicáveis ao caso, algum interesse real e efectivo, no sentido de poder alterar a própria decisão jurídica do litígio no sentido defendido pelo recorrente.
Se, por qualquer motivo, o facto a que se dirige aquela impugnação, segundo as várias soluções plausíveis da questão de direito, for irrelevante para a decisão a proferir, torna-se inútil e inconsequente a atividade de reapreciar o julgamento da matéria de facto, por não resultar de tal atividade jurisdicional qualquer efeito útil para o processo.
Consta da fundamentação do acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 24.04.2012, relatado pelo Juiz Desembargador António Beça Pereira no processo n.º 219/10.6T2VGS.C1 que aqui se acompanha, “a impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto, consagrada no artigo 685.º-B, visa, em primeira linha, modificar o julgamento feito sobre os factos que se consideram incorrectamentejulgados. Mas, este instrumento processual tem por fim último possibilitar alterar a matéria de facto que o tribunal a quo considerou provada, para, face à nova realidade a que por esse caminho se chegou, se possa concluir que afinal existe o direito que foi invocado, ou que não se verifica um outro cuja existência se reconheceu; ou seja, que o enquadramento jurídico dos factos agora tidos por provados conduz a decisão diferente da anteriormente alcançada. O seu efectivo objectivo é conceder à parte uma ferramenta processual que lhe permita modificar a matéria de facto considerada provada ou não provada, de modo a que, por essa via, obtenha um efeito juridicamente útil ou relevante.
Se, por qualquer motivo, o facto a que se dirige aquela impugnação for, “segundo as várias soluções plausíveis da questão de direito (…)”, irrelevante para a decisão a proferir, então torna-se inútil a actividade de reapreciar o julgamento da matéria de facto, pois, nesse caso, mesmo que, em conformidade com a pretensão do recorrente, se modifique o juízo anteriormente formulado, sempre o facto que agora se considerou provado ou não provado continua a ser juridicamente inócuo ou insuficiente.
Quer isto dizer que não há lugar à reapreciação da matéria de facto quando o facto concreto objecto da impugnação não for susceptível de, face às circunstância próprias do caso em apreciação, ter relevância jurídica, sob pena de se levar a cabo uma actividade processual que se sabe, de antemão, ser inconsequente, o que contraria os princípios da celeridade e da economia processual consagrados nos artigos 2.º n.º 1, 137.º e 138.º (…)” [7] (sublinhados nossos).
No mesmo sentido, entre muitos outros, os acórdãos do Tribunal da Relação de Guimarães de 29.02.2024, relatado pela Desembargadora Maria João Matos, no processo n.º 249/19.2T8PVL.G1, do Tribunal da Relação do Porto de 27.01.2022, relatado pelo Desembargador Filipe Caroço no processo n.º 504/19.1T8PVZ.P2 e de 04.05.2022, relatado pelo Desembargador Miguel Baldaia de Morais no processo n.º 40/18.3T8PVZ.P1, do Tribunal da Relação de Lisboa de 14.03.2013, relatado pelo Juiz Desembargador Jorge Vilaça no processo n.º 933/11.9TVLSB-A.L1-2 e do Supremo Tribunal de Justiça de 14.07.2021, relatado pelo Conselheiro Fernando Baptista no processo n.º 65/18.9T8EPS.G1.S1. [8]
Na situação vertente, de acordo com a versão de factos carreada pela Autora, a questão a decidir é composta pela verificação dos pressupostos da responsabilidade civil da Ré / Recorrida com o enfoque na questão da ilicitude e da culpa da sua conduta enquanto Agente de Execução do processo executivo n.º 236/12.1TBGLG, no qual penhorou e procedeu à venda de um imóvel como pertencente ao aí Executado, bem esse que a aqui Autora comprou, mas do qual não chegou a tomar posse porquanto se viu impedida de o fazer por terceiro que se arrogou proprietário do mesmo espaço físico. Segundo a Autora, este comprovou documentalmente que tinha adquirido o prédio descrito na Conservatória do Registo Predial da Chamusca sob o n.º (…), da freguesia de (…), como sito na Rua (…), n.º 27, em 23.10.2020, por contrato de compra e venda a (…) que, por sua vez, na data de 16.01.2020, o havia adquirido no processo de insolvência de (…) que correu termos sob o n.º 1942/18.2T8STR do Tribunal Judicial da Comarca de Santarém,
É entendimento da Recorrente que a Ré / Recorrida, através de “…um conjunto de comportamentos omissivos, escudada na faculdade legal de lhe ser permitido levar a registo a penhora de um bem imóvel não inscrito no registo predial (…)”, agiu com negligência grosseira ao “…decidir vender um prédio à Autora, que não existe ou, existindo tal prédio, não ser da propriedade do Executado mas sim do seu primo que por sua vez, o vendeu ao filho (…).”
Relativamente a estas considerações da Recorrente, devemos ter presente que, tendo a sua pretensão fundamento em alegada responsabilidade decorrente da decisão da Agente de Execução realizar a venda de um bem imóvel que não existe ou, existindo, pertence a terceiro, é incontornável que a culpa da Ré terá de estar relacionada com o seu conhecimento, até ao momento em que tomou a decisão de proceder à sua venda ou em que a venda se consumou, dessa inexistência / pertença a terceiro ou, pelo menos, com o seu conhecimento de factos que levassem um pessoa normal, colocada nas suas concretas circunstâncias, a ter boas razões para duvidar da existência do imóvel ou da sua pertença ao Executado.
Começando por analisar a matéria de facto cujo aditamento a Recorrente pretende, temos:
b) i.
Quanto à proposta de facto provado aludida em i. supra:
A primeira parte, respeita à inscrição de (…), Executado, como titular do rendimento do prédio urbano inscrito na matriz sob o artigo (…), da freguesia de (…), com efeitos reportados a 31.12.2012.
Nesta parte da redacção sugerida pela Recorrente não resulta qualquer intervenção da Ré na inscrição do Executado (…) como titular do rendimento do prédio em apreço no Serviço de Finanças.
A relevância da matéria em apreço encontra-se contida na factualidade provada, já que a existência da inscrição do Executado como titular do rendimento do artigo (…), da freguesia de (…) com efeitos desde 31.12.2012, é coerente com a constatação que a Ré, no exercício da actividade de Agente de Execução, em consulta efectuada às bases de dados da Autoridade Tributária vários anos depois – mais concretamente, em 24.01.2017 –, fez dessa mesma inscrição, nos termos reportados pelo seguinte teor do facto provado n.º 32:
“32. Como decorrência do exercício da actividade de Agente de Execução da ora Ré e na sequência de consulta efectuada em 24/01/2017 às bases de dados da Autoridade Tributária, foram detectados, relativamente ao executado (…), dois imóveis inscritos na matriz a favor deste executado: - Um prédio urbano localizado na (…), inscrito na respectiva matriz sob o artigo (…), da freguesia de (…); (…)”.
Deste modo, estamos perante informação que é, em parte redundante porque já contida no facto provado n.º 32 e, noutra parte, irrelevante, porque não acrescenta nada à conduta adoptada pela Ré, nem à que esta deveria ter adoptado, ante a existência da aludida inscrição matricial em nome do Executado.
A segunda parte da redacção sugerida pela Recorrente diz respeito à dificuldade do Serviço de Finanças de Chamusca em localizar a documentação de suporte da inscrição matricial de (…) como titular do rendimento predial do imóvel penhorado.
Essa dificuldade do Serviço de Finanças não constitui um facto de que possa advir qualquer responsabilização da Ré.
Antes pelo contrário: se o Serviço de Finanças afirma desconhecer os documentos de suporte de um acto de inscrição do Executado como titular do rendimento predial, apenas à Autoridade Tributária são imputáveis as razões pelas quais procedeu ou aceitou proceder a essa inscrição.
Acresce que a fonte da qual promana a aludida afirmação do Serviço de Finanças é uma informação junta aos presentes autos a 08.04.2024 (ref.ª Citius 10561200) em resposta a ofício do Tribunal, indagando das razões pelas quais aquele serviço procedeu à inscrição do Executado como titular do rendimento em apreço.
Estamos, portanto, perante uma informação que, tanto quanto da prova produzida nos autos resulta, não foi divulgada à Ré nos momentos da penhora, da venda, nem sequer da propositura da presente acção.
Assim, parece-nos evidente que a informação prestada no decurso dos presentes autos pelo Serviço de Finanças da Chamusca e que a Recorrente pretende ver aditada ao elenco dos factos provados, não tem qualquer relevância para demonstrar que a Ré, por acção ou omissão, incumpriu os deveres a que estava obrigada como agente de execução.
Consequentemente, a redacção proposta pela Recorrente não deve ser aditada à matéria de facto provada.
b) ii.
No que concerne ao facto aludido em ii. supra:
Em causa está uma informação prestada pela Câmara Municipal da Chamusca no decurso da presente acção, a 05.04.2024, em resposta a ofício do tribunal, cujo teor reporta aos termos em que foi emitida certidão por aquela autoridade administrativa no dia 25.08.2021. Dessa informação resulta que a C.M. da Chamusca se baseou, na emissão a referida certidão, em documentos apresentados pela requerente (a certidão da conservatória do registo predial do prédio urbano e a respectiva caderneta predial urbana), vindo a constatar, algures no decurso da presente acção, “…que há efectivamente divergências entre elas, sendo certo que a certidão da Autoridade Tributária não é coincidente com a certidão emitida por esta Autarquia, não se vislumbrando quais os fundamentos que estiveram na origem de tal divergência.”
Também aqui se não lobriga, nem a Recorrente explica, onde é que, no conteúdo da informação prestada pela C.M da Chamusca, há algum comportamento imputável à Ré ou, sequer, elemento levado ao seu conhecimento que lhe impusesse conduta distinta da que adoptou aquando da penhora e da venda do imóvel.
O que se verifica – a partir do documento n.º 18 junto à p.i. – é que a certidão da C. M. da Chamusca datada de 25.08.2021, foi emitida a pedido da Recorrente, por intermédio da sua ilustre advogada, a Dr.ª (…), inexistindo vislumbre de intervenção da Ré / Recorrida nessa ocorrência.
Acresce que para além de ter sido colhida no decurso da presente acção, muito depois dos factos que dão fundamento à acção, a informação prestada pela Câmara Municipal nos autos a 05.04.2024, emana de autoridade administrativa que não tem qualquer competência para dirimir dúvidas sobre a titularidade do direito de propriedade sobre imóveis, sobre a sua inscrição na matriz ou no registo predial, sendo irrelevante aquilo que possa certificar a tal respeito ou sobre a interpretação de documentos que lhe foram apresentados pela Recorrente.
Deste modo, também a pretensão de aditamento deste facto ao elenco dos provados carece de justificação.
c) iii.
O facto aqui proposto pela Recorrente respeita aos termos que constam do requerimento apresentado pela Ré junto da Conservatória do Registo Predial, para registo da penhora realizada, “Pedido de Registo n.º (…)” reproduzido no documento 9 junto com a contestação da Ré.
Reportando ao teor de documento junto pela Ré / Recorrida e aceite pela Autora / Recorrente, não há qualquer dúvida quanto a tratar-se de matéria assente por acordo das partes.
A questão está, uma vez mais, no interesse que a declaração emanada pela Ré / Recorrida, constante daquele requerimento, pode revestir para a decisão da causa.
Nela, a Ré informa a Conservatória do Registo Predial que “…não se conhecem primeiros nem segundos ante-possuidores apesar das várias tentativas de consultas quer documentalmente quer pessoalmente. A identificação dos prédios e do actual possuidor encontram-se nas cadernetas prediais, que se juntam como documento anexo, mais informa que a proveniência matricial é a que consta da caderneta predial (artigo … relativamente ao actual … – Distrito de Santarém, concelho da Chamusca e Freguesia de …).”
Trata-se de uma declaração emitida pela Ré com vista à realização do registo da penhora incidente sobre prédio omisso na Conservatória do Registo Predial, na qual a primeira dá conta de que não se conhecem os antepossuidores e que os elementos de identificação dos prédios e actual possuidor (o Executado) resultam da caderneta predial.
Sem se nos afigurar, no presente momento da decisão, um facto essencial para determinar a responsabilização da Ré, acede-se, todavia, em proceder ao seu aditamento por revestir uma relevância instrumental ou complementar, já que respeita a um momento necessário da tramitação que conduziu à venda executiva do imóvel para além de que, como se viu, está assente por acordo.
Assim, aditar-se-á o seguinte facto ao elenco dos provados:
“No pedido de inscrição promovida pela Ré no sítio “registo predial online”, da penhora do prédio não descrito, inscrito sob o artigo (…) urbano da freguesia de (…), na Repartição de Finanças da Chamusca, no âmbito do Processo de Execução n.º 236/12.1TBGLG, a Ré prestou a seguinte declaração: “Para efeito de penhora dos prédios não descritos, informa-se que não se conhecem primeiros nem segundos ante-possuidores apesar das várias tentativas de consultas quer documentalmente quer pessoalmente. A identificação dos prédios e do actual possuidor encontram-se nas cadernetas prediais, que se juntam como documento anexo, mais informa que a proveniência matricial é a que consta da caderneta predial (artigo … relativamente ao actual … – Distrito de Santarém, concelho da Chamusca e Freguesia de …).”
*
Em consequência da apreciação vinda de expor, a única alteração ao elenco da matéria de facto provada e não provada da sentença, supra transcrita e que aqui se dá por reproduzida, consiste no aditamento do seguinte facto ao rol dos provados:
“54. “No pedido de inscrição promovida pela Ré no sítio “registo predial online”, da penhora do prédio não descrito, inscrito sob o artigo 203 urbano da freguesia de (…), na Repartição de Finanças da Chamusca, no âmbito do Processo de Execução n.º 236/12.1TBGLG, a R. prestou a seguinte declaração: “Para efeito de penhora dos prédios não descritos, informa-se que não se conhecem primeiros nem segundos ante-possuidores apesar das várias tentativas de consultas quer documentalmente quer pessoalmente. A identificação dos prédios e do actual possuidor encontram-se nas cadernetas prediais, que se juntam como documento anexo, mais informa que a proveniência matricial é a que consta da caderneta predial (artigo … relativamente ao actual … – Distrito de Santarém, concelho da Chamusca e Freguesia de …).”
*
***
B. De direito
*
A questão jurídica que, nos termos delimitados pelas conclusões do recurso, se impõe conhecer, respeita aos fundamentos da obrigação baseada na responsabilidade civil da Ré, de indemnizar a Autora pelos danos que esta sofreu com a compra de prédio urbano em processo de execução.
Concretizando: em causa está a imputação de desempenho profissional negligente à Ré, na qualidade de agente de execução no referido processo executivo, por aí ter penhorado e vendido o referido imóvel como bem pertencente ao Executado mas cuja titularidade da propriedade se mostrava, afinal, controvertida.
*
***
Dos deveres do/a agente de execução
*
Está provado que a Ré, detentora da cédula profissional n.º (…), emitida pela Ordem dos Solicitadores e dos Agentes de Execução, actuou na qualidade de Agente de Execução do processo de execução n.º 236/12.1TBGLG do Juízo de Execução do Entroncamento-Juiz 3, no qual procedeu à penhora e à venda, como bem pertencente ao Executado, do imóvel inscrito sob o artigo (…) urbano da freguesia de (…), na Repartição de Finanças da Chamusca.
A figura do agente de execução tem a sua origem na publicação do Decreto-Lei n.º 38/2003, de 8 de Março que introduziu a figura do solicitador / agente de execução com a incumbência de, sob o controlo e dependência funcional do juiz, realizar todas as diligências do processo de execução não reservadas ao tribunal ou aos funcionários judiciais, incluindo citações, consultar o registo informático de execuções e realizar todas as diligências úteis à identificação e localização de bens penhoráveis, realizar a penhora e tomar posse dos bens penhorados como depositário, administrar os bens penhorados e decidir sobre a consignação de rendimentos, ouvido o executado, em benefício do exequente, decidir sobre a venda e modalidade da mesma (cfr. artigos 808.º, 833.º, 838.º, 848.º, 864.º, 879.º e 886.º-A do CPC, na redacção introduzida pelo referido diploma).
Na actual redacção do CPC, o artigo 719.º, n.º 1, prevê que “cabe ao agente de execução efectuar todas as diligências do processo executivo que não estejam atribuídas à secretaria ou sejam da competência do juiz, incluindo, nomeadamente, citações, notificações, publicações, consultas de bases de dados, penhoras e seus registos, liquidações e pagamentos.”
O Estatuto da Ordem dos Solicitadores e dos Agentes de Execução – EOSAE (Lei n.º 154/2015, de 14.09) prevê que o Agente de Execução é o profissional liberal (artigo 136.º, n.º 1), “…auxiliar da justiça que, na prossecução do interesse público, exerce poderes de autoridade pública no cumprimento das diligências que realiza nos processos de execução, nas notificações, nas citações, nas apreensões, nas vendas e nas publicações no âmbito de processos judiciais, ou em actos de natureza similar que, ainda que não tenham natureza judicial, a estes podem ser equiparados ou ser dos mesmos instrutórios” (artigo 162.º, n.º 1), clarificando que não é mandatário nem representante do exequente (artigo 162.º, n.º 3).
Sendo muitas e relevantes as atribuições processuais do agente de execução no domínio da acção executiva, algumas das quais com profundas implicações na vida patrimonial dos executados – como a prática de actos de penhora ou de venda dos bens penhorados – a sua actividade está sujeita a regras estatutárias e deontológicas que também incluem a responsabilização pessoal pelos danos resultantes da conduta violadora, com dolo ou mera culpa, dos direitos e interesses do cliente, impondo-lhes a obrigação de “…celebrar e manter um seguro de responsabilidade civil profissional tendo em conta a natureza e âmbito dos riscos inerentes à sua atividade, por um capital de montante não inferior ao legal e regulamentarmente fixado” (cfr. n.ºs 1 e 2 do artigo 15.º do Código Deontológico dos Solicitadores e dos Agentes de Execução – CDSAE, aprovado pelo Regulamento n.º 202/2015, de 28.04).
Desde logo, o CDSAE estabelece nos artigos 23.º a 28.º um conjunto de deveres de conduta a manter pelo agente de execução “…com respeito estrito pelo disposto na lei e no ECS, dos quais se destacam: a proporcionalidade dos procedimentos a que recorre face à natureza dos objetivos a atingir (alínea e) do n.º 2 do artigo 23.º); o zelo e a competência na utilização dos meios legais suscetíveis de lhe permitirem aceder às informações necessárias à execução de que é responsável (alínea f) do n.º 2 do artigo 23.º); o uso de especial cuidado e humanidade em situações de natureza mais sensível, nomeadamente aquelas que envolvam penhoras (n.º 3 do artigo 23.º); assumir, face ao executado, uma postura de ponderação e equilíbrio (n.º 1 do artigo 27.º); em caso algum recorrer a coerções inúteis ou empregar meios desproporcionados face à situação concreta (n.º 3 do artigo 27.º); agir com cortesia e de boa-fé na relação com terceiras partes, respeitando os direitos de que sejam titulares (artigo 28.º).
Também os artigos 119.º e 121.º do EOSAE, preveem os deveres de independência do seu exercício profissional relativamente aos próprios interesses ou a influências exteriores, de adopção de comportamento público e profissional adequados à dignidade e à responsabilidade associadas às funções que exercem, de cumprimento do código de ética e deontologia de conduta profissional, designadamente a honestidade, a probidade, a rectidão, a lealdade, a cortesia, a pontualidade e a sinceridade, sendo que o artigo 124.º do mesmo diploma densifica um conjunto de concretos deveres gerais a cumprir, entre os quais aqui se retêm os de “não agir contra o direito, não usar meios ou expedientes ilegais ou dilatórios, nem promover diligências inúteis ou prejudiciais para a correta aplicação do direito, administração da justiça e descoberta da verdade” (alínea l) do n.º 2) e “manter os seus conhecimentos atualizados, designadamente através do acompanhamento das alterações legislativas e regulamentares” (alínea n) do n.º 2).
Citada no acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 21.11.2022, relatado pelo Desembargador Carlos Castelo Branco no processo n.º 3002/19.0T8CSC.L1-2 [9], Maria Olinda Garcia (in “A responsabilidade do exequente e de outros intervenientes processuais – Breves considerações”, Coimbra Editora, 2004, págs. 35 e 36), refere que “(…) o agente de execução, no cumprimento das múltiplas tarefas que a lei lhe determina, essencialmente na prática de actos de penhora, caso actue dolosa ou negligentemente, causando, consequentemente, danos (patrimoniais ou morais) ao executado, incorrerá também em responsabilidade civil, nos termos gerais, quando se encontrem preenchidos todos os requisitos do artigo 483.º do CC. (…) “O princípio geral de atuação do agente de execução na fase da penhora é o de que tal atuação esteja estritamente subordinada à prossecução da satisfação do interesse do credor lesado, “com observância das regras legais que delimitam a penhorabilidade dos bens e estabelecem o modo de proceder à sua apreensão. Consequentemente, a actuação do agente de execução que extravase de tal propósito, traduzindo-se na violação culposa de direitos do executado ou de normas que protejam interesses deste sujeito, na medida em que seja causadora de danos, permitirá ao executado exigir o ressarcimento dos danos sofridos, podendo também verificar-se a eventual responsabilidade criminal daquele sujeito.” (sublinhados nossos).
Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, consideram mais correcto [10] o entendimento seguido pelos acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 11.04.2013, proferido pelo Juiz Conselheiro Abrantes Geraldes no proc. n.º 5548/09.9TVLSNB.L1.S1 [11]e do Tribunal dos Conflitos de 01.02.2018 , relatado pela Juíza Conselheira Teresa de Sousa no processo n.º 018/17 [12] que, aliás, é seguido pela generalidade da jurisprudência dos nossos tribunais superiores, no sentido de que no domínio da vigência do Estatuto da Câmara dos Solicitadores aprovado pelo DL n.º 88/2003, de 26/4, alterado pela Lei n.º 49/2004, de 24/8 e Lei n.º 14/2006, de 26/4 e pelo DL n.º 226/2008, de 20/11, a responsabilidade civil extracontratual que aos Agentes de Execução for imputada no exercício das respectivas funções profissionais e por causa delas obedece ao regime geral da responsabilidade por factos ilícitos previsto no artigo 483.º e seguintes do Código Civil, e não ao regime de responsabilidade civil do Estado e demais entidades públicas previsto na Lei nº 67/2007, de 31/12.
*
***
Dos pressupostos da responsabilidade civil
*
Aqui chegados, resta-nos subsumir a factualidade provada ao regime jurídico aplicável que, como vimos, é o da responsabilidade civil extracontratual ou pela prática de facto ilícito, regulado pelo artigo 483.º do Código Civil que reclama o preenchimento dos pressupostos gerais, nossos bem conhecidos, do cometimento, pela Ré, de acção ou omissão, voluntária, ilícita e culposa e causadora de dano à Autora, passível de a fazer incorrer na obrigação de indemnizar.
Entre estes, o especial enfoque deve dirigir-se à verificação, pela conduta da Ré, do pressuposto da culpa, nas subcategorias do dolo ou da mera culpa, esta última traduzida na omissão da diligência que, tendo em consideração as concretas circunstâncias do caso por si conhecidas na ocasião, seria exigível adoptar a um agente de execução diligente e cumpridor dos seus deveres profissionais (artigo 487.º, n.º 2, do Código Civil).
Nos termos colocados pelas conclusões do presente recurso, o cerne da questão está, segundo a Recorrente, em ter a Ré penhorado e promovido a venda de um bem como sendo pertencente ao Executado, comprado pela Autora / Recorrente no âmbito da acção executiva e que, afinal, não é do Executado ou, caso seja, não lhe pertence totalmente, o que diverge da descrição predial realizada quando do registo da penhora a impulso da Ré.
*
Ora, em primeiro lugar, impõe-se ter presente que a alegada desconformidade da descrição predial do bem anunciado e vendido com a realidade física do local e com a real condição jurídica do imóvel não é, nem resulta dos presentes autos ser, uma certeza.
Vejamos porquê.
A Ré procedeu à penhora do artigo matricial urbano (…), localizado na (…), na freguesia de (…), cuja titularidade do rendimento predial se encontrava inscrita a favor do Executado (…), contribuinte fiscal n.º (…), como apurou em consulta efectuada a 24.01.2017, às bases de dados da Autoridade Tributária. A inscrição do prédio em pareço na matriz remonta ao ano de 1938, sendo o então titular do rendimento (…). A descrição na Conservatória do Registo Predial da Chamusca, onde o prédio era omisso, foi feita em conformidade com o referido teor da caderneta predial, passando a corresponder-lhe o n.º (…), da freguesia de (…).
O prédio registado a favor de (…) tem a descrição (…), freguesia de (…), sito na Rua (…), n.º 27 e encontra-se inscrito na respectiva matriz predial urbana sob o artigo (…) que teve origem no antigo artigo matricial (…), no seguimento de dissolução da comunhão conjugal e sucessão a favor de (…).
Trata-se, tanto quanto das descrições das cadernetas prediais e do registo decorre, de prédios distintos, sendo que a matéria de facto apurada nos presentes autos não permite concluir que haja sobreposição dos respectivos limites físicos.
Na verdade, sem que o objecto da presente acção seja a delimitação dos dois prédios ou a reivindicação das respectivas parcelas de terreno (que, note-se bem, nem o proprietário … do prédio descrito sob o n.º …, da freguesia de …, na C. R. Predial da Chamusca, nem o Executado anteproprietário do prédio vendido à Autora, ou sequer esta, alguma vez propuseram), a factualidade provada na presente acção é inconclusiva quanto à real composição e à correspondência física de cada um dos imóveis com as suas respectivas descrições, sendo que a divergência entre ambas se afiguraria essencial ao preenchimento do pressuposto do dano invocado pela Ré, no montante correspondente ao preço e despesas pagas pela compra do bem. Isto porque a matéria de facto provada não permite afastar a possibilidade de a Autora ter adquirido um prédio cujas reais condições físicas sejam de valor equiparado ou, até, superior à expectativa que lhe foi criada pela descrição do prédio em apreço.
Isto dito, o que existe, é uma incerteza quanto aos concretos limites e localização do prédio comprado pela Autora, na medida em que terceiro (…) se arroga titular de uma casa e terreno contíguo que a Autora / Recorrente afirma ter sido induzida a acreditar que fazia parte do prédio por si comprado.
Note-se que a documentação apresentada por (…), respeitante à aquisição do imóvel descrito no n.º (…), da freguesia de (…) por compra e venda a (…) em 23.10.2020 e deste, por sua vez, por compra e venda no processo de insolvência n.º 1942/18.2T8STR, em 16.01.2020, faz prova plena da aquisição derivada do imóvel descrito, mas não da efectiva correspondência dos elementos constantes da descrição do prédio (localização, área, confrontações, entre outros) com uma determinada realidade física.
Nem a invocada condição jurídica de mero contitular do direito de propriedade na pessoa do Executado antes da venda – direito que se teria transmitido para a Autora através da compra na acção executiva – se mostra uma conclusão jurídica suficientemente fundada, na medida em que a factualidade alegada pela Autora e provada, não evidencia o trajecto percorrido no tempo até à actualidade por cada um dos prédios e respectivos titulares inscritos.
Embora a produção de prova tenha permitido o vislumbre de um percurso [no seu testemunho, o Executado referiu uma cedência de terreno do artigo (…) a um dos filhos de anteproprietário, no qual foi construída a casa que o titular do prédio descrito no n.º (…), da freguesia de (…) e inscrito na respectiva matriz predial urbana sob o artigo (…) agora reclama sua], a verdade é a matéria de facto alegada e o objecto da presente acção não consentem, sobre tal realidade, qualquer conclusão.
Porém, é sabido que cedência verbal de porções de terreno de antigos prédios dá origem à declaração de novos artigos na matriz, sobretudo quando neles é edificada uma casa, sendo, não raro, uma forma de operar a repartição, por acordo de vontades informal, de imóveis pelos herdeiros do proprietário. Uma tal realidade poderia justificar, não apenas que o Executado tenha, no seu testemunho, afirmado que a parte da casa e terreno adjacente (situado do lado esquerdo) fosse pertença do primo e a parte restante fosse a sua, como ainda a inscrição do Exequente como único titular do rendimento do artigo matricial urbano (…).
*
Feita a precedente análise com relevância para a determinação do prejuízo patrimonial cuja reparação vem reclamada pela Autora na presente acção, passemos agora a apreciação da culpa imputada pela Recorrente à Ré na modalidade de conduta profissional negligente.
Da matéria de facto provada resulta que a Ré baseou a sua decisão de proceder à penhora do bem imóvel em apreço, no apuramento titularidade do seu rendimento pelo Executado através de consulta efectuada nas bases de dados da A.T., uma vez que a averiguação realizada junto do registo predial não permitiu apurar a existência de bens em nome do Executado.
Trata-se de uma conduta lícita, regulada concretamente no n.º 1 do artigo 749.º, ex vi do n.º 3 do artigo 748.º, ambos do CPC, nos seguintes termos: “a realização da penhora é precedida das diligências que o agente de execução considere úteis à identificação ou localização de bens penhoráveis, observado o disposto no n.º 2 do artigo 751.º, a realizar no prazo máximo de 20 dias, procedendo este, sempre que necessário, à consulta, nas bases de dados da administração tributária, da segurança social, das conservatórias do registo predial, comercial e automóvel e de outros registos ou arquivos semelhantes, de todas as informações sobre a identificação do executado junto desses serviços e sobre a identificação e a localização dos seus bens.”
Notificado que foi do auto de penhora para, sob pena de ser condenado como litigante de má-fé, indicar os direitos, ónus e encargos não registáveis que recaíssem sobre os bens penhorados bem como os respectivos titulares ou beneficiários, o Executado (…) nada declarou.
Aqui chegados, devemos ter presente que, dos factos provados da acção, nenhuma informação resulta ter sido levada ao conhecimento da Ré, ou dos seus colaboradores, até ao momento da aludida notificação do auto de penhora, que pudesse induzir um agente de execução, prudente e cumpridor, a duvidar que o imóvel penhorado fosse pertença do Executado.
Segundo a Recorrente, impunha-se à Ré o uso de outra diligência com vista a “comprovar” a titularidade do direito de propriedade do prédio inscrito na matriz em nome do Executado.
Porém, a Autora não concretiza as outras diligências que Ré havia de ter realizado para alcançar semelhante desiderato.
Note-se que, para além das prerrogativas de averiguação que lhe confere o n.º 1 do artigo 749.º do CPC – de consulta, nas bases de dados da administração tributária, da segurança social, das conservatórias do registo predial, comercial e automóvel e de outros registos ou arquivos semelhantes, de todas as informações sobre a identificação do executado junto desses serviços e sobre a identificação e a localização dos seus bens – e da disponibilização, pelo Banco de Portugal, de informação acerca das instituições nas quais o executado detém contas ou depósitos bancários (n.º 6 do mesmo artigo 749.º), o agente de execução não dispõe de outros, nem lhe está conferida autoridade para decidir controvérsias quanto à titularidade de direitos.
E as informações que lhes podem ser disponibilizadas, apenas incluem (cfr. n.º 2 do artigo 749.º do CPC): a) O nome, o número de identificação fiscal e o domicílio fiscal relativamente às bases de dados da administração tributária; e b) O nome e os números de identificação civil ou de beneficiário da segurança social, relativamente às bases de dados das conservatórias do registo predial, comercial e automóvel e de outros registos ou arquivos semelhantes ou da segurança social, respetivamente.
Na verdade, a consulta de outras declarações ou de outros elementos protegidos pelo sigilo fiscal, bem como de outros dados sujeitos a regime de confidencialidade, fica sujeita a despacho judicial de autorização, aplicando-se o n.º 2 do artigo 418.º, com as necessárias adaptações (cfr. n.º 7 do artigo 749.º).
Vejamos, agora, se posteriormente à penhora foram transmitidos à Ré, ou por si apurados, factos que devessem ter suscitado a sua reserva relativamente à titularidade, pelo Executado, do direito sobre o imóvel penhorado.
Vimos já que, notificado para o efeito, o Executado nada informou pelos meios processuais próprios.
Seguiu-se o registo e a venda do imóvel que resultou consumada na data de 02.08.2019, com a emissão do título de transmissão pela Ré, enviado à Autora a 04.09.2019 (factos provados n.os 8 e 9).
Só posteriormente, em email datado de 08.10.2019, a Autora comunicou à Ré que quando se dirigiu ao prédio para tomar conhecimento do local, se deparou com um placard de venda da “Leiloeira do (…)” no portão de acesso, solicitando-lhe que esclarecesse essa situação porque o Executado (…) afirmava desconhecer o assunto (factos provados n.os 12, 13, 39 e 40).
Face à comunicação da A., o escritório da Ré diligenciou, em Outubro de 2019, junto da “Leiloeira do (…)” no sentido de se inteirar acerca da identificação do imóvel que estava em venda, tendo obtido na ocasião a informação de que se que se tratava do descrito na Conservatória do Registo Predial de Chamusca sob a ficha n.º (…) e inscrito na matriz sob o artigo (…), prédio urbano, composto de casa de r/c para habitação, com 4 divisões, anexos, cómodos e quintal, sito na Rua (…), n.º 27, na freguesia de (…) e que estava à venda no processo de insolvência n.º 1942/18.2T8STR, em que o insolvente era … (factos provados n.os 39 a 44).
Tratava-se de um prédio com descrição e titular distintos do prédio penhorado e vendido à Autora. A Ré nunca mais foi contactada pela Autora relativamente a este assunto, sendo que já tinha sido tratada e entregue à Autora toda a documentação respeitante à venda do imóvel por esta adquirido.
Ora, a factualidade provada não permite alcançar a conclusão de que a Ré podia e devia ter agido de forma distinta.
Desde logo, porque o único facto provado apto a suscitar alguma reserva quanto aos limites físicos ou à titularidade do direito do Executado sobre o prédio – traduzido no placard de venda colocado no portão –, é levado ao conhecimento da Ré em momento posterior à venda e ao envio do título.
Até esse momento, nenhuma outra ocorrência permitiria à Ré suspeitar que houvesse uma disputa relativamente aos limites ou à localização do prédio.
E mesmo depois, considerados os elementos que colheu junto da “Leiloeira do (…)”, não resultaria líquido que houvesse tal disputa, por poderem corresponder a espaços físicos distintos, apesar de próximos ou confinantes.
Na verdade, só em Agosto de 2021, quando (…) se arrogou titular do espaço onde a Autora considerava situar-se o prédio por si adquirido, resultou aparente a existência de uma indefinição de estremas ou limites dos prédios. Porém, como já houve o ensejo de referir, não são neste momento claros os limites físicos de cada um dos prédios, nem possível afirmar que há, sequer, uma divergência entre a descrição do prédio comprado pela Autora e a sua realidade física.
Em qualquer caso, mostrando-se a venda já efectuada, assistia ao comprador a prerrogativa processual de pedir a anulação da venda e indemnização no processo de execução, através da demonstração da existência “…de algum ónus ou limitação que não fosse tomado em consideração e que exceda os limites normais inerentes aos direitos da mesma categoria, ou de erro sobre a coisa transmitida, por falta de conformidade com o que foi anunciado”, sendo a questão decidida pelo juiz da causa (cfr. n.ºs 1 e 2 do artigo 838.º do CPC).
Para além do mais, prevê a alínea d) do n.º 1 do artigo 839.º do CPC que a venda fica sem efeito se “…a coisa vendida não pertencia ao executado e foi reivindicada pelo dono”.
Sem prejuízo da faculdade de requer que a venda seja dada sem efeito nos termos da norma acabada de citar, a decisão de requerer, ou não, a anulação da venda pelos meios e nos prazos processuais próprios, compete à Autora, não à Ré. Trata-se de um meio expedito de obviar ao prejuízo que a Autora considera ter sofrido (mas como vimos, não resulta evidente da matéria de facto) com a compra do imóvel.
Deste modo, não é assacável a Ré o incumprimento de qualquer regra processual ou profissional, enquanto agente de execução, na condução do processo que levou à penhora e à venda do imóvel em apreço. Nem que as concretas circunstâncias por si conhecidas no momento em que tomou as decisões de penhorar ou de vender o bem imóvel em apreço, justificassem, num critério de prudente e razoável exercício das suas funções, a realização de outras diligências para além daquelas que comprovadamente levou a cabo.
Deste modo, para além da ausência do pressuposto do dano, nos termos supra desenvolvidos, também se não mostram preenchidos os pressupostos da ilicitude e da culpa da Ré na verificação dos eventos que a factualidade provada reflecte.
*
Deste modo, carece de fundamento jurídico a pretensão da Recorrente em ver revogada a sentença recorrida.
*
***
Custas (…)
Não havendo norma que preveja isenção (artigo 4.º, n.º 2, do RCP), o presente recurso está sujeito a custas (artigo 607.º, n.º 6, ex vi do artigo 663.º, n.º 2, ambos do CPC).
No critério definido pelos artigos 527.º, n.ºs 1 e 2 e 607.º, n.º 6, ambos do CPC, a responsabilidade pelo pagamento dos encargos e das custas de parte assenta no critério do vencimento ou decaimento na causa, ou, não havendo vencimento, no critério do proveito.
No caso, a Recorrente não obteve vencimento do recurso, pelo que devem as custas ser suportadas por si.
*
***
III. DECISÃO
*
Nestes termos, acordam os Juízes Desembargadores que compõem o coletivo da 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora em:
1. Julgar improcedente a apelação e, consequentemente, confirmar a sentença recorrida que absolveu as Rés do pedido formulado pela Autora.
2. Condenar em custas a Recorrente.
*
Notifique.
*
***
Évora, 09 de Abril de 2025
Ricardo Miranda Peixoto (Relator)
Maria João Sousa e Faro (1ª Adjunta)
Filipe César Osório (2º Adjunto)