IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
REQUISITOS
ÓNUS DO RECORRENTE
Sumário

O incumprimento de qualquer dos ónus previstos no artigo 640.º do CPC determina a rejeição do recurso na parte em que o mesmo visa a impugnação da decisão sobre a matéria de facto.

Texto Integral

Processo n.º 24498/24.2YIPRT.E1

Autora/recorrida: (…) – Comércio de Máquinas e Ferramentas, Unipessoal, Lda..

Ré/recorrente: (…), Lda..

Pedido:

Condenação da ré no pagamento da quantia de € 6.006,21, acrescida de juros de mora no montante de € 124,38, de € 40,00 a título de outras quantias e de taxa de justiça paga no montante de € 102,00.

Sentença recorrida:

Condenou a ré a pagar, à autora, a quantia de € 6.006,21 a título de capital, acrescida dos respectivos juros de mora vencidos e vincendos até efectivo e integral pagamento, contados desde a data do vencimento de cada uma das facturas, contabilizados à taxa de juro comercial sucessivamente em vigor nos termos do disposto no § 3.º do artigo 102.º do Código Comercial e do Decreto-Lei n.º 62/2013, de 10 de Maio;

Absolveu a ré do mais peticionado.

Conclusões do recurso:

I. A circunstância factual colocada em crise pela recorrente diz mais respeito à execução do serviço solicitado à recorrida, do que à existência de montante em dívida a esta, o qual não se cifrando nos valores peticionados, nunca foi negado pela recorrente.

II. Foi celebrado entre as partes em litígio um contrato de prestação de serviços, na modalidade de contrato de empreitada, arrogando-se a recorrida no direito de se fazer pagar pelo serviço prestado na execução da reparação mecânica, designadamente, de uma empilhadora Manitou, a que se refere o ponto 11 dos factos provados, e cujos serviços são discriminados Factura n.º (…), com data de emissão a 22.12.2023, com o valor de total de € 5.714,31, que logrou provar.

III. Não sendo negado o eventual pagamento de algum dos montantes discriminados nesta fatura, bem como noutras faturas, apresentadas, a verdade é que a recorrente não pode concordar com o juízo valorativo do tribunal a quo, conduziu a uma apreciação crítica dos factos de forma positiva para a decisão de facto, sem relevar a circunstância que a máquina continuava com a mesma avaria.

IV. Daí que a recorrente tenha colocado em dúvida a substituição e a reparação executada pela recorrida que não mereceu acolhimento pelo tribunal “a quo”, nem tão-pouco foi considerada para que dela retirasse qualquer consequência jurídica para a decisão final.

V. No contexto processual, impendia sobre a aqui apelante o ónus da prova de carrear factos para a discussão do litígio que demonstrassem a posição invocada contrariando a posição da recorrida.

VI. O que sendo difícil por se tratar de invocar um facto negativo, o mesmo só poderia ser conseguido através de documentos que só a recorrida poderia facultar, nomeadamente, faturas de aquisição do material aplicado na máquina e discriminado e nota de encomenda do respetivo material.

VII. A recorrente para demonstrar aquele facto negativo apenas o poderia fazer com recurso aos elementos probatórios requeridos, enquanto factos positivos demonstrativos do seu propósito.

VIII. A dificuldade na demonstração, porque dependente da colaboração da recorrida não pode ter a mesma exigência na valoração da matéria de facto provada, aquando da formação da convicção do julgador.

IX. O tribunal a quo, perante a dificuldade que impedia sobre a recorrente de ter acesso a documentação da exclusiva posse da recorrida, deveria ter valorada, a favor da recorrente.

X. Do facto de a recorrida não ter apresentado os documentos probatórios solicitados, não foi retirada qualquer valoração com consequência para a decisão da causa.

XI. Mais ainda quando justificou o retardamento da reparação com o facto de não ter sido atempadamente provida pelos fornecedores, deveria ter sido valorado de forma relevante a favor da recorrente. O que não foi, de forma alguma.

XII. Saliente-se que um dos argumentos de não juntar comprovativos de aquisição das peças aplicadas é que precisamente tem em stock porque adquire em quantidade.

XIII. Ora, algumas das peças aplicadas são específicas daquela máquina e de valor elevado, desconhecendo-se se as mesmas foram aplicadas em estado novo, ou simplesmente lavadas as velhas existentes e entregue a máquina como se equipada de peças novas estivesse, não sendo verosímil que tais peças existissem em stock na oficina da Autora.

XIV. Tal dúvida só poderia ficar devidamente dissipada mediante a apresentação de comprovativo de aquisição das peças aplicadas, sob pena de subversão completa do princípio do ónus da prova.

XV. À Ré é impossível demonstrar um facto negativo, neste caso, a deficiente reparação, sem ser pela impugnação do facto positivo alegado pela Autora, dando a conhecer os factos demonstrados de que a máquina ficou a verter óleo, e solicitando à Autora que demonstre de forma específica o facto positivo que alega para cobrança do serviço efetuado, juntando os documentos necessários e imperativos para a legitimidade, nomeadamente, da venda de peças no giro comercial.

XVI. Note-se que, a decidir como decidiu o tribunal, havendo uma recusa por parte da Autora em juntar as faturas de aquisição das peças aplicadas, ao aceitar como legítima a aplicação de tais peças, está o tribunal porventura a legitimar uma venda sem se assegurar do trato sucessivo de aquisições, uma vez que, nas peças específicas não referiu a Autora que foram reparadas mas sim substituídas.

XVII. Poderão assim ser peças com proveniência ilícita ou nem sequer terem sido substituídas e isso o tribunal não pode assegurar, tendo valorado apenas o facto de o Autor e as suas testemunhas terem confirmado que efetuaram o serviço.

XVIII. Ora, face a esta recusa de demonstrar tais aquisições – o que não alteraria o facto de a máquina não ter ficado a funcionar corretamente, note-se – a Ré ficou impedida de demonstrar que efetivamente era expectável, por via disso, que a reparação não correspondesse ao solicitado assim como ao valor cobrado, até porque como referiu o sócio gerente da Autora não era visível sem desmontar a máquina, qual a avaria que a mesma tinha quando a recebeu, nem tão pouco se conseguia, depois de pronta, observar que serviço tinha sido efetuado, pois tudo se encontrava dentro da lança.

XIX. De resto, foi referido que a máquina foi entregue limpa e parafinada dando aspeto de ter sido devidamente reparada.

XX. Entende assim a recorrente que a valoração da prova foi desproporcional ao nível de facilidade com que as partes poderiam obtê-la. A Ré para um facto negativo – a não reparação em conformidade e de acordo com o tempo despendido para a mesma – e o Autor com a prática de um serviço e colocação de peças que teria que ter adquirido.

XXI. Deveria o Tribunal ter valorado em mais proporção ao que foi a prova apresentada pela Ré e, uma vez solicitada por esta a respetiva apresentação pela Autora sua detentora, ter tido uma exigência maior com a apresentação da prova da Autora que em primeira linha era quem tinha o ónus de provar a existência do serviço e da correspetiva dívida de forma coerente.

XXII. A evidente dificuldade de prova de facto negativo deverá ter, por força do princípio constitucional da proporcionalidade, como corolário, uma menor exigência probatória por parte do Juiz, dando relevo a provas menos relevantes e convincentes que as que seriam exigíveis se tal dificuldade não existisse, aplicando a máxima latina «iis quae difficilioris sunt probationis leviores probationes admittuntur».

XXIII. Violou assim o tribunal a quo o disposto no artigo 607.º n.º 5, do CPC. ao não considerar a fragilidade que se impõe na prova de que foram colocadas peças na máquina da Ré quando a respetiva aquisição pelo fornecedor não foi demonstrada com evidências documentais como é exigido no giro comercial legal.

Nestes termos e nos demais de Direito e com o sempre Mui Douto suprimento de V. Exas, deve a sentença do tribunal a quo ser alterada, em conformidade com as alegações acima expendidas, dando provimento ao presente recurso, e, em consequência, ser revogada a douta sentença recorrida, e substituída por outra que julgue a ação totalmente improcedente por não provada relativamente à Fatura n.º (…).

Factos julgados provados pelo tribunal a quo:

1. A requerente é uma sociedade comercial que tem por objecto social a compra e venda de máquinas e ferramentas para indústria; compra e venda de lubrificantes; reparação de máquinas industriais, eléctricas e hidráulicas; reparação de tractores, equipamentos, aluguer de máquinas e equipamentos.

2. A requerida dedica-se à produção e comercialização de estrume e manutenção de exploração de bovinos, na região de (…), em Santarém.

3. Em 18.03.2023, a requerida deslocou-se à oficina da requerente e solicitou-lhe a reparação de uma avaria situada na parte hidráulica da lança do empilhador telescópico, de marca Manitou, modelo MT 928 4, que consistia no derrame de óleo da lança.

4. A requerente procedeu à reparação da avaria comunicada, procedendo à substituição de tubos; válvulas; ponteiras, filtros de óleo; filtros de ar, revisão do motor, EGR; óleo de travões, identificados na respectiva factura.

5. Nos seguintes à entrega daquela máquina para reparação, em dias não apurados, a requerida solicitou ainda à requerente que procedesse à substituição do espelho completo da cabine e ao arranjo do banco da sobredita máquina.

6. O que aquela fez, tendo substituído o espelho e estofado o banco.

7. A requerente, sem que lhe tivesse sido solicitado pela requerida, procedeu à colocação do tampão do combustível.

8. Em 09 de Dezembro de 2023, a requerente comunicou à requerida que tinha reparado o empilhador referido em 3, que esta levou das instalações a circular.

9. Durante o período de tempo em que o empilhador esteve nas instalações da requerente para reparação, entre Março de Dezembro de 2023, a requerida dirigiu-se por diversas vezes às instalações da requerente, sendo que, n'algumas delas, questionava-a sobre o arranjo da máquina e o tempo que faltaria para terminar a reparação.

10. Entre Março e Dezembro de 2023, a requerente prestou ainda outros serviços de mecânica à requerida, nos seguintes termos:

10.1 No camião: reparação da válvula bascular e retentor;

10.2 No veículo de marca Mitsubishi: reparação ao nível das relas e rutol anticongelante.

11. Por conta dos serviços prestados, a requerente emitiu as seguintes facturas:

11.1 Factura n.º (…), com data de emissão a 22.12.2023, com o valor de total de € 5.714,31 [cinco mil e setecentos e quatorze euros e trinta e um cêntimos], referente à intervenção mecânica ocorrida máquina de marca Manitou;

11.2 Factura n.º (…), com data de emissão em 26.09.2023 e vencimento na mesma data, com o valor total de € 84,72 [oitenta e quatro euros e setenta e dois cêntimos], referente à intervenção mecânica ocorrida no camião, com o montante total de

11.3 Factura n.º (…), com data de emissão em 22.11.2023 e vencimento na mesma data, com o valor de € 207,18 [duzentos e sete euros e dezoito cêntimos], referente à intervenção mecânica do veículo de marca Mitsubishi.

12. As facturas enunciadas no ponto 11 foram remetidas à requerida e por nesta recebidas.

13. A ré não procedeu ao pagamento das quantias referidas no ponto 11.

14. Só com a ajuda dos vizinhos é que a requerida conseguiu suprir a falta da máquina Manitou na sua actividade comercial.

Factos julgados não provados pelo tribunal a quo:

a) Que a requerente tenha informado a requerida que para a reparação da máquina de marca Manitou seriam necessários apenas 3 dias.

b) Que a requerente tenha informado a requerida que o valor da reparação da máquina de Marca Manitou se situaria entre os € 1.500,00 e os € 2.000,00.

c) Com a demorada na reparação da máquina Manitou, que a requerida tenha ficado sem alternativa para poder continuar a exercer a sua actividade comercial.


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A recorrente considera que os pontos 4 a 7, 10 e 11 do enunciado da matéria de facto provada «mereciam outra resposta do tribunal recorrido». Impugna, pois, a decisão proferida pelo tribunal a quo sobre a matéria de facto provada. Suscita-se a questão de saber se cumpriu os ónus previstos no artigo 640.º do CPC.

O n.º 1 deste artigo estabelece que, quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, o recorrente deve obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:

a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;

b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;

c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.

A alínea a) do n.º 2 do mesmo artigo estabelece que, no caso previsto na alínea b) do n.º 1, quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respectiva parte, indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes.

A recorrente indicou os pontos da matéria de facto que, no seu entendimento, foram incorrectamente julgados, no corpo das alegações, mas não nas conclusões, como o n.º 1 do artigo 639.º do CPC impõe ao estabelecer que «o recorrente deve apresentar a sua alegação, na qual conclui, de forma sintética, pela indicação dos fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão». No que concerne aos concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida, e à decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas, nem isso a recorrente fez. Nem sequer no corpo das alegações a recorrente indicou que concretos meios de prova impunham decisão diversa sobre os pontos impugnados e qual deveria ser o sentido dessa decisão.

Quer no corpo das alegações, quer nas conclusões, a recorrente pouco mais fez que criticar genericamente o critério de decisão da matéria de facto adoptado pelo tribunal a quo. Nesta linha, a recorrente afirma que «não pode concordar com o juízo valorativo do tribunal a quo», que o tribunal a quo não cuidou de contrabalançar a prova apresentada com a ausência de evidências de aquisição do material aplicado por parte da recorrida, que o cumprimento, por si, do ónus da prova era «difícil por se tratar de um facto negativo», que «decorreu de todos os depoimentos tomados em audiência de julgamento que não era possível visualizar as peças aplicadas sem desmontar a lança pois as mesmas encontravam-se no seu interior», que a «exigência probatória de demonstrar que as peças não tinham sido substituídas pela recorrida na execução do serviço de reparação não podia ter a mesma exigência na valoração da matéria de facto provada, aquando da formação da convicção do julgador», que o tribunal a quo, «perante a dificuldade que impedia sobre a recorrente de ter acesso a documentação da exclusiva posse da recorrida, deveria ter valorado, a favor da recorrente», que «do facto de a recorrida não ter apresentado os documentos probatórios solicitados, não foi retirada qualquer valoração com consequência para a decisão da causa», que «a valoração da prova foi desproporcional ao nível de facilidade com que as partes poderiam obtê-la», que «deveria o Tribunal ter valorado em mais proporção ao que foi a prova apresentada pela R. e, uma vez solicitada por esta a respetiva apresentação pela A. sua detentora, ter tido uma exigência maior com a apresentação da prova da A. que em primeira linha era quem tinha o ónus de provar a existência do serviço e da correspetiva dívida de forma coerente», e que «a evidente dificuldade de prova de facto negativo deverá ter, por força do princípio constitucional da proporcionalidade, como corolário, uma menor exigência probatória por parte do Juiz, dando relevo a provas menos relevantes e convincentes que as que seriam exigíveis se tal dificuldade não existisse, aplicando a máxima latina “iis quae difficilioris sunt probationis leviores probationes admittuntur”», concluindo que o tribunal a quo violou «o disposto no artigo 607.º, n.º 5, do CPC ao não considerar a fragilidade que se impõe na prova de que foram colocadas peças na máquina da R. quando a respetiva aquisição pelo fornecedor não foi demonstrada com evidências documentais como é exigido no giro comercial legal».

Mesmo quando a crítica que dirigiu à decisão do tribunal a quo sobre a matéria de facto foi menos genérica, a recorrente limitou-se a produzir afirmações sem qualquer referência a concretos pontos daquela matéria e a concretos meios de prova. É o caso do que consta dos n.ºs 14 a 21 do corpo das alegações.

O incumprimento de qualquer dos ónus previstos no artigo 640.º do CPC determina a rejeição do recurso na parte em que o mesmo visa a impugnação da decisão sobre a matéria de facto. A recorrente incumpriu todos eles, como acabamos de ver. Impõe-se, por isso, a referida rejeição, mantendo-se, assim, a decisão do tribunal a quo sobre a matéria de facto.

A recorrente estrutura o recurso no pressuposto da alteração da decisão sobre a matéria de facto. Não se verificando esse pressuposto, pelas razões que anteriormente referimos, impõe-se, logicamente, a improcedência do recurso.


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Dispositivo:

Delibera-se, pelo exposto, julgar o recurso improcedente, confirmando-se a sentença recorrida.

Custas a cargo da recorrente.

Notifique.


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09.04.2025

Vítor Sequinho dos Santos (relator)

Mário João Canelas Brás (1.º adjunto)

José Manuel Costa Galo Tomé de Carvalho (2.º adjunto)