INCAPACIDADE POR ANOMALIA PSÍQUICA
REPRESENTAÇÃO
SUPRIMENTO
Sumário

I. Existe fundamento atendível suscetível de determinar o suprimento da autorização do beneficiário para a propositura da ação de maior acompanhado, quando há factos que demonstram que estão postos em perigo interesses patrimoniais do beneficiário.
II. Deve ser determinado o acompanhamento quando razões de saúde impossibilitam o beneficiário de exercer plena, pessoal e conscientemente os seus direitos ou de cumprir os seus deveres.
III. O Regime de Acompanhamento deve limitar-se -se ao mínimo necessário para que a autodeterminação e capacidades do beneficiário possam, dentro dos circunstancialismos, ser asseguradas;
IV. Na designação do acompanhante dever ser dada primazia à escolha feita pelo beneficiário, designadamente quando essa escolha é a mais adequada aos interesses do beneficiário.
(Sumário da Relatora)

Texto Integral

Sumário (…)

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Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora
1. Relatório:
(…), residente em (…), Tavira, intentou a presente ação especial de acompanhamento de maior relativamente ao seu pai (…), viúvo, aposentado, residente em Olhão.
Alegou para o efeito que:
- o seu pai, nascido em 10-05-1945, sofre de problemas de saúde ao nível da mobilidade e de perturbações de saúde mental, dependendo de terceira pessoa para as atividades da vida diária e para a sua sobrevivência, estando inabilitado para reger a sua pessoa e bens.
- o pai reside com a irmã da Requerente, (…), que é procuradora do beneficiário;
- Por influência desta, o beneficiário tem dissipado grande parte do património;
- A irmã adquiriu um prédio, tudo indica, com valores advenientes do património do beneficiário.
- Já há bastante tempo que não consegue falar com o pai, nem tem contacto com o mesmo, porque a irmã (…) impede qualquer contacto entre o beneficiário e a requerente.
A Requerente concluiu que é urgente e essencial salvaguardar o restante património do beneficiário, pelo que requer:
- O suprimento da autorização do Beneficiário.
- Aplicação ao beneficiário do Regime Jurídico de Maior Acompanhado:
- A sua nomeação para o exercício do cargo de acompanhante do beneficiário, por ser a filha mais velha;
- Que o conselho de família seja constituído pela filha (…) e pela neta (…).
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(…) contestou por impugnação. Alega que tem problemas motores nas pernas, mas está na plena posse das suas faculdades mentais, não tendo quaisquer limitações de saúde, deficiência ou comportamentos que o impeçam de exercer, pessoal e conscientemente, os seus direitos e deveres e de gerir a sua vida.
Conclui que não carece de qualquer acompanhamento ou tutor e, se alguma vez vier estar em situação de dele necessitar, declara que não quer a requerente, com quem não tem grandes ligações há muitos anos e com a qual tem tido conflitos e que quer a sua filha (…), com quem vive, que sempre o acompanhou e lhe presta todo o apoio e ajuda de que carece, nomeadamente no que respeita à alimentação, vestuário e limpeza, atos que não consegue executar, por causa dos problemas de locomoção.
Apresentou declaração médica, datada de 14-11-2023, onde se atesta que o requerido se encontra lúcido, orientado no tempo e espaço, em pleno uso das suas capacidades mentais.
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Após a produção da prova, foi proferida sentença que decidiu:
1. Decretar o acompanhamento de (…), viúvo, aposentado, portador do Cartão de Cidadão (…), válido até 05/11/2028, com o contribuinte fiscal n.º (…), residente em Rua da (…), Lote 17, 8700-072 Olhão.
2. Fixar, como residência do Beneficiário, a Rua da (…), Lote 17, 8700-072 Olhão.
3. Fixar as seguintes medidas de acompanhamento do beneficiário (artigo 145.º, n.º 2, alíneas b) e e), do Código Civil):
3.1. Representação especial para administração e gestão dos bens e património do Beneficiário:
3.1.1. Aquisição e alienação, de forma onerosa ou gratuita, bem como a dação em pagamento, de bens imóveis ou de quinhão hereditário;
3.1.2. Constituição de quaisquer ónus ou encargos sobre bens imóveis ou quinhão hereditário;
3.1.3. Convencionar a partilha extrajudicial de herança indivisa, pagando ou recebendo tornas;
3.1.4. Contrair quaisquer obrigações perante terceiros, incluindo empréstimos bancários, seja por que motivo for;
3.1.5. Aquisição ou alienação de veículos automóveis ou de outros móveis sujeitos a registo.
3.1.6. Administração geral de bens do Beneficiário.
3.1.7. Tratamento de assuntos burocráticos, designadamente em repartições ou entidades públicas (Serviços de Finanças, Segurança Social, Conservatórias ou outras) e entidades bancárias, e eventual auxílio da compreensão de documentos;
3.1.8. Encontrar-se com o Beneficiário no último domingo de cada mês para aferir das necessidades financeiras do mesmo, e comunicar a gestão efectuada do seu património.
3.1.9. Efectuar pagamentos de despesas do Beneficiário com alimentação e saúde;
3.2. Auxílio, supervisão e vigilância do quotidiano e estado de saúde do Beneficiário 3.2.1. A acompanhante deve privilegiar o bem-estar da acompanhada, com a diligência requerida a um bom pai de família, provendo pelo seu permanente acompanhamento pessoal nos actos do quotidiano, nomeadamente na alimentação, vestuário, cuidados de saúde e de higiene;
3.2.2. No seu tratamento clínico, nomeadamente marcação de consultas, transporte, comparência nas mesmas, aquisição de medicamentos, tratamentos e cumprimento das terapêuticas prescritas.
3.2.3. Concedesse autorização à Acompanhante para receber informação, por parte das instituições de saúde (Hospitais, Clínicas, Centro de Saúde, etc.) e médicos, sobre o estado de saúde do Beneficiário, bem como decidir sobre eventual tratamento médico e toma medicamentosa, sem prejuízo de o Beneficiário poder ser consultado (pela Acompanhante) nessa matéria.
3.2.4. Em situações de recaídas ou descompensação e ausência de crítica para a doença, deverá caber à Acompanhante avaliar e decidir sobre o tratamento mais adequado, em conformidade com o medicamente aconselhado, e, no limite, o internamento hospitalar, sem prejuízo de, se necessário, recorrer ao Tribunal para o efeito.
3.2.5. Efectuar o transporte do Beneficiário à residência da co-acompanhante Carla, para efeitos do cumprimento do disposto no ponto 3.
3.2.6. Comunicar via correio electrónico no último dia de cada mês à co-Acompanhante (…), com junção e envio dos respectivos comprovativos, todas as despesas necessárias tidas com o Beneficiário para suprimento de necessidades diárias (alimentação, medicamentos e medicamentosas, consultas médicas).
4. Declara-se, para efeito do disposto no artigo 147.º, n.º 1 e 2 do Código Civil, que a Beneficiário (…) é incapaz de testar, doar, casar, constituir união de facto, procriar, perfilhar, adotar, cuidar e educar filhos ou adotados.
5. Designar como acompanhantes:
5.1. (…), casada, empresária, portadora do cartão de cidadão n.º (…), válido até 26/11/2029, contribuinte fiscal n.º (…), residente em (…) – Caixa Postal (…), (…), a quem competirá exercer as funções elencadas no 3.1, 3.1.1 a 3.1.9. do decisório (exercício das funções de administração de bens/gestão patrimonial do Beneficiário);
5.2. (…), residente em Rua da (…), Lote 17, 8700-072 Olhão, a quem competirá exercer as funções elencadas no 3.2, 3.2.1 a 3.2.6. do decisório (exercício das funções de auxílio, supervisão e vigilância do quotidiano e estado de saúde do Beneficiário);
6. Fixar a data de conveniência de decretamento das medidas de acompanhamento, pelo menos, desde o ano de 25 de Março de 2023.
7. Dispensar a constituição do Conselho de Família.
8. Fixar em dois anos o prazo de revisão periódica da presente decisão.
9. A acompanhante (…) prestará contas das suas funções ao Tribunal, nos termos do artigo 151.º, n.º 2, do Código Civil.
10. Dar publicidade à presente decisão mediante a afixação de edital à porta do Tribunal.
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Inconformado com esta sentença, interpôs o Beneficiário o presente recurso, o qual motivou, apresentando as seguintes conclusões:
1) A matéria de facto dos pontos 31) e 32) dos factos provados mostra-se mal julgada.
2) A prova produzida, designadamente a testemunhal gravada nos ficheiros áudio-Diligencia_1011-23.3T8OLH_2024-07-03_10-33-37 e áudio Diligencia_1011- 23.3T8OLH_2024-07-09_09-59-22, transcrita acima, bem como as conclusões dos relatórios periciais de 25-03-2024 e de 30-07-2024 impõem que a referida matéria seja dada como não provada.
3) No que à saúde do apelante diz respeito apenas deverá ser dado como provado o constante das conclusões dos relatórios periciais produzidos nos autos.
4) O apelante não está impedido de dar ou não dar autorização para a interposição de uma ação por terceiro para obtenção de seu estatuto de maior acompanhado.
5) O beneficiário conferiu mandato notarial à sua filha Vera Lúcia, nos termos do artigo 156.º Código Civil para, prevenindo uma eventual necessidade de acompanhamento, proceder à gestão de todos os seus interesses, representá-lo em quaisquer atos da sua vida pessoal e patrimonial e o tribunal não fez cessar os efeitos de tal procuração.
6) O apelante declarou perante o tribunal, repetidamente, que em caso de necessidade de acompanhante pretendia que o cargo fosse desempenhado pela sua filha (…) e que não queria que fosse desempenhada pela sua filha (…).
7) Nenhuns elementos existem que permitam presumir que o mandante pretende revogar a referida procuração.
8) A nomeação do acompanhante deve respeitar a vontade do acompanhado (artigo 156.º do Código Civil)
9) A nomeação da acompanhante (…) violou a vontade do beneficiário.
10) A nomeação da filha (…) para acompanhante do apelante contraria e esvazia a procuração por ele conferida à filha (…), cujos efeitos não foram feitos cessar.
11) Não se justificam as medidas adotadas na sentença relativas à administração do património do beneficiário, mas apenas a nomeação de um acompanhante para o auxiliar nessa gestão.
12) A filha do beneficiário (…) não deve ser nomeada acompanhante do beneficiário.
13) Foram violadas as disposições conjugadas dos artigos 141.º, 143.º, n.º 1, 145.º, n.º 1 e 156.º do Código Civil)
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(…), apresentou contra-alegações, com as seguintes conclusões:
1) Não existe qualquer erro de julgamento da matéria de facto dada como provada e não provada.
2) Os factos dados como provados e não provados reproduzem fielmente a prova que foi produzida.
3) A alteração da matéria de facto dada como provada ou não provada só deverá ser alterada por Tribunal de recurso quando após a audição da prova gravada em conjugação com a restante prova produzida se conclua com a segurança devida que a decisão deverá ser diversa daquela que foi proferida em 1ª Instância.
4) O que manifestamente não é o caso dos presentes autos.
5) Porquanto da conjugação da globalidade de toda a prova que foi produzida em julgamento, a decisão proferida pelo Tribunal a quo não enferma de qualquer erro de julgamento.
6) Em face da matéria de facto considerada provada e não provada a decisão de Direito não poderia ser outra que não seja a que decretou as competentes medidas de acompanhamento do recorrente, pelo que a mesma não merece qualquer censura.
7) O Tribunal a quo aplicou corretamente as disposições legais relativamente à matéria de facto que foi provada e não provada não existindo qualquer erro de interpretação das normas de Direito aplicadas.
8) Não merecendo por isso, a sentença ora em recurso qualquer censura.
9) Devendo por isso a sentença ora em recurso ser mantida nos precisos termos em que foi proferida.
10) E o recurso interposto ser considerado totalmente improcedente, e em consequência ser confirmada a decisão proferida pelo Tribunal a quo.
11) Nestes termos, e nos demais de direito, deve o presente recurso, ser julgado totalmente improcedente, mantendo-se na integra a decisão recorrida, com todas as consequências legais, fazendo-se assim a costumada JUSTIÇA.
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O objeto do recurso, salvo questões de conhecimento oficioso, é delimitado pelas conclusões dos recorrentes, como resulta dos artigos 608.º, n.º 2, 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1, do Código de Processo Civil. Assim, considerando o teor das conclusões apresentadas, importa apreciar:
i. Da alteração da matéria de facto;
ii. Do suprimento da autorização do beneficiário;
iii. Da necessidade de acompanhamento e medida desse acompanhamento;
iv. Quem deve ser nomeado acompanhante;
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2. Fundamentação
2.1. Factos dados como provados (relevantes para a decisão da causa):
1. (…) nasceu em 10.05.1945, é viúvo, e é natural de (…), (…).
2. É filho de (…) e (…).
3. (…) nasceu em 23.11.1971, é casada, e é filha do Beneficiário e de (…).
4. (…) nasceu em 11.12.1979, é solteira, e é filha do Beneficiário e de (…).
5. Desde o falecimento de (…), em 04.09.1998, até 03.04.2019, o Beneficiário residiu no prédio urbano Lote (…), sito em (…), Quarteira, Loulé, descrito na Conservatória do Registo Predial de Loulé sob o n.º (…) e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo matricial (…).
6. Em 25.03.2023 o Beneficiário deu entrada nas Urgências da Unidade Local de Saúde do Algarve – Faro, apresentado quadro de tosse não produtiva, fadiga e anorexia com 2 dias de evolução, e com agravamento clínico, com dificuldade respiratória e alteração de estado de consciência de novo.
7. O Beneficiário permaneceu no internamento de Doenças Infecciosas durante 12 dias, com o diagnóstico de pneumonia por SARS-CoV-2 com sobreinfecção bacteriana e complicada por insuficiência respiratória hipoxemiante, onde apresentou evolução intra-hospitalar positiva.
8. À data de alta hospitalar, em 06.04.2023, o doente apresentava-se vígil, orientado na pessoa e espaço, com discurso parco e lentificado, apirético, eupneico em repouso, com necessidade de ajuda de terceiros para transferências e deambulação.
9. O Beneficiário iniciou, durante o internamento, plano de reabilitação motora e funcional, de acordo com protocolo do Serviço de Fisiatria, tendo ainda realizado exercícios de baixa intensidade na posição de sentado (mobilidade global e treino de controlo de tronco).
10. Em 22.04.2023 o Beneficiário deu entrada nas Urgências da Unidade Local de Saúde do Algarve – Faro, apresentado “desvio da comissura labial, diminuição da força e dificuldade na deglutição”, tendo-lhe sido dada alta hospitalar no próprio dia.
11. Desde Junho de 2023 o Beneficiário reside com a filha (…) e com o namorado da mesma, (…), na Rua da (…), lote n.º 17 , 8700-072 Olhão.
12. O beneficiário detém o 5º ano de escolaridade.
13. Aufere uma pensão mensal a título de reforma no valor de aproximadamente 640,00 euros.
14. É possuidor do diagnóstico de Défice Cognitivo Ligeiro a Moderado, desde Março de 2023.
15. Apresenta linguagem articulada e fluente, se bem que não mantida e eventualmente intermitente.
16. Está orientado na pessoa e no local, mas parcialmente orientado no tempo.
17. Apresenta boa compreensão do que lhe é solicitado, sendo que aquando proposta maior complexidade ao nível da compreensão, esta se torna de alguma forma deficitária.
18. É capaz de cumprir ordens simples e de mediana complexidade e que requeiram pensamento abstrato.
19. Faz cálculos simples, mas não complexos.
20. Conhece o dinheiro e tem noção do seu valor em pequenos e médios montantes, mas não em grandes montantes.
21. Apresenta noção diminuída da real proporção ou valor de bens ou serviços.
22. Reconhece familiares e amigos.
23. Vive dependente de terceiros para a realização das tarefas básicas do dia-a-dia.
24. Apresenta incapacidade de deambulação, deslocando-se em cadeira de rodas.
25. Apresenta ainda incontinência de esfíncteres.
26. Não confeciona a sua alimentação.
27. Alimenta-se sozinho.
28. Precisa de ajuda para a toma de medicação, bem como para realização da higiene pessoal.
29. Não se desloca ao médico sozinho.
30. Apresenta dificuldades na sua gestão financeira e patrimonial, apresentando noção diminuída da real proporção do valor de bens ou serviços, o que condiciona a gestão financeira e patrimonial do mesmo.
31. Não consegue tratar de qualquer assunto burocrático que lhe diga respeito, como por exemplo movimentar contas bancárias ou efetuar pagamentos, levantamentos e depósitos.
32. É incapaz, de forma irreversível, de gerir de forma específica e minimamente adequada aspetos jurídicos, bancários, de património.
33. É também incapaz para perfilhar e adotar.
34. Do Relatório de Perícia Psiquiátrica Médico-Legal do Gabinete Médico Legal e Forense do Sotavento Algarvio, datado de 30 de Junho de 2024, feito à pessoa do Beneficiário, consta, além do mais, que (…) O examinado é possuidor do diagnóstico de Défice Cognitivo Ligeiro a Moderado. (…) O quadro clínico é moderado, permanente e irreversível. A afetação de que padece o examinado, influencia o desempenho biopsicossocial do mesmo e condiciona a sua capacidade de autogestão da vida quotidiana. Sendo que a afetação supracitada também determina que o examinado se encontre numa situação irreversivelmente vulnerável sendo por exemplo um alvo fácil para que alguém se aproveite do seu estado e condição para daí retirar proveitos económicos ou de outra natureza. Estamos assim, como já referido perante uma pessoa em posição de especial vulnerabilidade e dependência à ação de terceiros (…). A afetação acima descrita, incapacita o Requerido para governar os seus bens, mas não para escolher quem deverão ser os seus acompanhantes. O Requerido beneficiaria da nomeação de acompanhantes que o auxiliem na sua gestão financeira e patrimonial. Dada a influência da afetação supracitada no desempenho biopsicossocial do Requerido, a mesma determina que o Requerido seja um alvo fácil para que alguém se aproveite do seu estado e condição para daí retirar proveitos económicos ou de outra natureza, assim sendo, e salvo melhor opinião, pensamos que o Requerido não se encontra capacitado para exercer direitos pessoais como casar; constituir união de facto; procriar; perfilhar; adotar; cuidar e educar filhos ou adotados; testar. Sendo que se encontra capacitado para escolher profissão; deslocar-se autonomamente no país ou estrangeiro; fixar domicílio e residência; estabelecer relações com quem entender; estabelecer testamento vital ou decidir sobre os tratamentos de que deva beneficiar (…)”.
35. Do Relatório de Perícia Psiquiátrica Médico-Legal do Gabinete Médico Legal e Forense do Sotavento Algarvio, datado de 05 de Agosto de 2024, feito à pessoa (…), consta, que “(…) A examinanda apresentou traços de personalidade normativos. (…) A examinanda parece apresentar aptidão para ter a seu cargo terceira, nomeadamente o seu progenitor (…)”.
36. Do Relatório de Perícia Psiquiátrica Médico-Legal do Gabinete Médico Legal e Forense do Sotavento Algarvio, datado de 12 de Agosto de 2024, feito à pessoa (…), consta que “(…) A examinanda apresentou traços de personalidade normativos. (…) A examinanda parece apresentar aptidão para ter a seu cargo terceira, nomeadamente o seu progenitor (…)”.
37. (…) manifestou vontade de ser acompanhante do Beneficiário, mesmo que seja partilhando tais funções com (…).
38. (…) manifestou vontade de ser acompanhante do Beneficiário.
39. O Beneficiário manifestou pretender que a sua filha (…) exerça as funções de acompanhante.
Com relevância, mais se apurou que,
40. Até Janeiro de 2023, o Beneficiário geria pessoal e diretamente o seu estabelecimento comercial de snack bar, padaria e pastelaria, denominado “(…)”, sito na Av. (…), freguesia da (…), concelho de Olhão, determinando o que comprava, o que se vendia, os preços praticados e distribuía as tarefas a efectuar por si e pelos seus colaboradores.
41. Após (…) ter sido conhecedora do descrito em 6) a 10), tentou contactar o Beneficiário, contudo, o telemóvel do mesmo não se encontrava ligado.
42. Em 06 de Maio de 2023, (…) contactou a Guarda Nacional Republicana, por não conseguir falar com o Beneficiário, afirmando que o telemóvel do mesmo estava desligado há vários dias e não conseguia obter informações do mesmo.
43. No dia 25 de Julho de 2023, (…) e (…), ambos militares da G.N.R., deslocaram-se à residência do Beneficiário, sito em Rua da (…), lote n.º 17, 8700-072 Olhão, tendo lavrado “Cota”, onde consta, além do mais que “(…) o ofendido encontrava-se numa cama articulada, tendo junto de si, um telemóvel, uma garrafa pequena com água, o comando da televisão, e o comando do ar condicionado. Questionado o ofendido e sem a presença da denunciada no local, se este era bem tratado ou não, o ofendido dizia que era muito bem tratado e que se não fosse a sua filha (…) quem cuidaria dele. O ofendido ao ser questionado se sabia onde se encontrava, o mesmo mostrou-se um pouco perdido no tempo e no espaço, dizendo que estava na sua casa em (…). Questionado sobre a sua filha (…), o mesmo referiu que a mesma encontrava-se na Austrália e que já não a via há muito tempo (…)”.
44. Encontram-se registados em nome do Beneficiário os seguintes imóveis:
44.1. Prédio urbano, sito na Av. (…), Edifício (…), na freguesia de (…), concelho de Loulé, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo (…), daquela freguesia, e descrito da Conservatória do Registo Predial de Loulé sob o n.º (…);
44.2. Prédio rústico, sito no (…), na freguesia e concelho de (…), inscrito na matriz predial rústica sob o artigo (…), daquela freguesia, e descrito da Conservatória do Registo Predial de (…) sob o n.º (…);
44.3. Prédio rústico, sito no (…), na freguesia de (…), concelho de Loulé, matriz predial rústica sob o artigo (…), daquela freguesia.
45. Entre 14.10.2021 e 06.06.2024 encontrava-se registado em nome do Beneficiário o veículo automóvel de matrícula (…), da marca Mercedes - Benz, modelo 251.
46. Em nome do Beneficiário ainda se encontrava registada a propriedade de uma embarcação de recreio com o conjunto de identificação (…) “(…)” desde 24 de junho de 1988 até data não concretamente apurada.
47. O Beneficiário foi citado para a presente acção em 09.11.2023.
48. A embarcação identificada em 46) foi objecto de contrato de compra e venda após o descrito em 47).
49. Após o descrito em 47), a propriedade do veículo identificado em 45) foi objecto de contrato de compra e venda, sendo compradora a empresa (…) – Representação Permanente, contribuinte n.º (…).
50. A actividade que o Beneficiário desempenhava como empresário em nome individual desde 2013 foi cessada perante a Autoridade Tributária em 31.12.2023, por ordem dada por (…) a (…), contabilista do Beneficiário, que entregou os documentos relativos a tal cessação perante a Autoridade tributária, utilizando o nome de utilizador e password do Beneficiário.
51. Em 11.11.2023 ocorreu a transmissão do estabelecimento denominado “(…)”, sito na Av. (…), freguesia da (…), concelho de Olhão, que o Beneficiário explorava em nome próprio, para a filha deste (…).
52. Tendo aquando o descrito em 51) também ocorrido a transmissão da posição jurídica do empregador nos contratos de trabalho dos respetivos trabalhadores.
53. Em 05 de Janeiro de 2024, perante a Notária (…), o Beneficiário subscreveu documento intitulado “Procuração”, onde consta, além do mais, que
“(…) Pelo outorgante foi dito que prevenindo uma eventual necessidade de acompanhamento constitui, nos termos e para os efeitos do artigo 156.º do Código Civil, sua procuradora, a filha (…), solteira, maior, natural da freguesia e concelho de (…), (…), a qual fica encarregada da gestão dos seus interesse sem tal caso, com poderes de representação, nos seguintes casos: Representar o mandante em quaisquer atos da sua vida pessoal junto de qualquer repartição pública; prometer comprar ou comprar quaisquer bens móveis ou imóveis, prometer vender ou vender bens do mandante, móveis ou imóveis, permutar, com ou sem eficácia real ou hipotecar quaisquer prédios, rústicos ou urbanos, pelos preços e nas condições havidas por adequadas pela mandatária, podendo pagar ou receber os preços, dar deles quitação, fazer declarações fiscais e praticar outros actos relativos a tais prédios, podendo ainda fazer aditamentos a estes contratos; Dar ou tomar de arrendamento quaisquer prédios, de qualquer natureza, no todo ou em parte, pelos prazos, rendas e condições que entender convenientes, pagar ou receber rendas, passar ou enviar recibos, renovar, prorrogar, ou fazer cessar os respectivos contratos; A mandatária poderá ainda assinar quaisquer contratos de permuta ou empreitada, negociando os preços e condições necessárias aos respectivos contratos; constituir em propriedade horizontal quaisquer prédio urbano, podendo requer para o efeito o documento emitido pela respectiva câmara municipal comprovativo de que as fracções autónomas satisfazem os requisitos legais, outorgar a respectiva escritura de propriedade horizontal, requerer o respectivo registo e participar no Serviço de Finanças o modelo 1 do IMI para fracção autónoma de prédio em regime de propriedade horizontal; aceitar doações puras, onerosas ou condicionais, com ou sem encargos; Representar o mandante perante quaisquer serviços públicos ou privados, nomeadamente Conservatórias do Registo Predial ou Automóvel, Serviços de Finanças, Câmaras Municipais, Cartórios Notariais, Instituto de Segurança Social, Hospitais, Centros de Saúde, Unidades de Convalescença, Unidades de Média Duração e Reabilitação, Unidades de Longa Duração e Manutenção, Unidades de Cuidados Paliativos e Lares, podendo assinar e tomar todas as posições achadas por convenientes pelo mandante; Requerer quaisquer actos de registos predial, civil e automóvel provisórios e definitivos nomeadamente apresentando e assinando requerimentos, apresentações a registo, rectificações, cancelamentos, podendo fazer declarações complementares, se necessário for; Pagar impostos ou contribuições, reclamar dos indevidos ou excessivos e receber títulos de anulação e suas respectivas importâncias; fazer acordos de pagamento; Receber quaisquer importâncias em dinheiro, valores ou rendimentos, certos ou eventuais, vencidos ou vincendos, que pertençam ou venham a pertencer à mandante, por qualquer via ou título, passando recibos e dando quitação; constituir, movimentar e encerrar contas de depósito à ordem ou a prazo ou de qualquer natureza, em qualquer Banco ou instituição bancária, incluindo a Caixa Económica (…), o (…) Banco e o Banco (…), SA, podendo assinar cheques e requisição dos mesmos, requerer ou anular quaisquer cartões quer a crédito quer a débito, solicitar saldos e extractos de contas, ordenar pagamentos por carta ou qualquer outro meio, receber juros, praticar quaisquer actos bancários necessários e em benefício do mandante; Celebrar ou rescindir contratos de fornecimento de energia eléctrica, água, gás, telefone ou telemóvel, internet, estacionamento para residentes junto da entidade competente que a mandatária considere adequados; Poderes para junto dos CTT levantar quaisquer cartas ou encomendas enviadas sob registo, podendo para o efeito assinar tudo o que se mostrar necessário e indispensável ao aludido fim; Representar o mandante em Assembleias de Condóminos, podendo aí tomar as posições que achar conveniente sobre todos os assuntos que constam na ordem de trabalhos; poderes para comparecer em Assembleias Gerais de sociedades, participar nelas, votar, tomar as atitudes que considerar mais adequadas sobre todos os assuntos que constem na ordem de trabalhos; Proceder, com os demais interessados ou co-herdeiros, a partilhas, judiciais ou extrajudiciais, pagar ou receber tornas, dar e aceitar quitação, receber citações e notificações, bem como representar o mandante em conferências de interessados, e ai tomar as atitudes julgadas mais adequadas efectuar licitações proceder à partilha podendo para o efeito participar na composição e adjudicação de quinhões, intervir em sorteios, efectuar pagamentos ou recebimentos e dar deles quitação, e, em geral, praticar, no âmbito do dito processo todos os actos que se mostrem necessários ou adequados à prossecução dos interesses do mandante. Preencher e assinar quaisquer outros documentos que se mostrem necessários aos fins acima referidos, bem como praticar quaisquer actos que se mostrem indispensáveis, necessários ou acessórios daqueles; Participar o óbito, no Serviço de Finanças respectivo, em que o mesmo seja cabeça de casal ou herdeiro, obtendo o respectivo Cartão de Herança Indivisa, participar e assinar o Imposto de selo; participar qualquer escritura de doação, no Serviço de Finanças respectivo, em que o mesmo seja doador ou donatário, podendo receber a notificação para o pagamento do imposto devido e efectuar o seu pagamento; Receber citações ou notificações constituir advogado, com os mais amplos poderes em direito permitidos em qualquer juízo, instância ou tribunal; acordar, concordar, transigir, desistir, em qualquer acção judicial em que seja parte; administrar estabelecimentos comerciais do mandante, cobrando todos os créditos aí gerados, pagando todas as suas dívidas, incluindo dívidas fiscais e ou de outra natureza, podendo negociar essas dividas, fazer acordos de pagamento, preencher e assinar quaisquer outros documentos que se mostrem necessários aos fins acima referidos assinando todos os actos necessários a esses acordos, celebrando ou fazendo cessar contratos de trabalho e praticando, dum modo geral todos os actos necessários à boa exploração dos estabelecimentos; (…)”.
54. Em 01.07.2024 o Beneficiário tinha 112 processos de cobrança coerciva a correr termos na Autoridade tributária, tendo o mais antigo sido instaurado em 24.06.2019, totalizando todos os processos o valor em dívida 51.808,41 euros.
55. Desde o descrito em 10) o Beneficiário permaneceu acamado até à presente data.
56. Desde Janeiro de 2023, quem gere pessoal exclusiva e directamente o estabelecimento comercial de snack bar, padaria e pastelaria, denominado “(…)” é (...).
57. O Beneficiário apenas fala com pessoas do trato da filha (…).
58. A filha (…) presta, a pedido do Beneficiário, por si ou através de terceiras pessoas que contrata para o efeito, apoio e ajuda ao Beneficiário, nomeadamente no que respeita à alimentação, vestuário e limpeza, em actos que ele não consiga executar.
59. (…) e (…) não falam entre si, encontrando-se desavindas, há, pelo menos, dez anos.
60. Aquando audição do Beneficiário, em 26.06.2024, o mesmo afirmou ser proprietário do estabelecimento comercial “(…)”, na (…), afirmando que a filha (…) apenas gere o mesmo sob suas orientações.
61. O descrito em 50) a 52) dos factos provados ocorreu sem conhecimento e à revelia do Beneficiário, e sem que este tivesse recebido qualquer contrapartida monetária.
62. O dinheiro resultante da venda referida em descrita em 49) foi usado parcialmente por (…) para fazer face a despesas com o estabelecimento comercial “(…)”, após o ocorrido em 47).
*
2.2. Factos dados como não provados;
1. (…) tivesse impedido qualquer contacto entre o Beneficiário e a filha (…).
2. O Beneficiário se encontrasse orientado no tempo.
3. O Beneficiário se encontrasse no pleno uso das suas capacidades de foro mental.
4. (…) visitasse o Beneficiário uma vez por ano.


2.3. Da alteração da matéria de facto:
O recorrente/beneficiário impugnou os factos 31 e 32 dados como provados na sentença, por entender que os mesmos deveriam ser considerados como não provados ou quanto muito que deveria ser dado como provado apenas o que consta do relatório pericial, ou seja, “Que o apelante tem, ainda, capacidade crítica, dentro das suas limitações motoras, para governar a sua posse e bens, mas carece de apoio na sua gestão financeira e patrimonial”.
Vejamos:
É o seguinte o teor dos factos referidos factos:
Facto 31
“Não consegue tratar de qualquer assunto burocrático que lhe diga respeito, como por exemplo movimentar contas bancárias ou efetuar pagamentos, levantamentos e depósitos”.
Facto 32
“É incapaz, de forma irreversível, de gerir de forma específica e minimamente adequada aspectos jurídicos, bancários, de património”.
Na resposta à matéria de facto o Tribunal explicou que para considerar demonstrados estes factos analisou toda a prova produzida e concretamente os Relatórios periciais juntos aos autos, conjugados com as declarações do Beneficiário, que o Tribunal circunstanciou e analisou detalhadamente.
Concretamente quanto ao facto 31) a recorrente entende que das declarações do requerido extrai-se que se encontra situado no tempo e no espaço, tem consciência da sua situação e consegue determinar-se, apesar do ligeiro deficit cognitivo que a perícia refere e de modo nenhum se conclui que não consiga tratar de qualquer assunto burocrático que lhe diga respeito. Por outro lado, da perícia resulta que o apelante carece de apoio na sua gestão financeira e patrimonial, o que é muito diferente do que foi considerado provado.
Relativamente ao facto 32) o recorrente considera dever extrair-se dos relatórios periciais, declarações do apelante e da testemunha (…) que o facto deveria ser dado como não provado.
As declarações do beneficiário não confirmam estas conclusões, designadamente quando conjugadas com os relatórios periciais e os depoimentos da requerente e das testemunhas.
Com efeito, embora do trecho transcrito pelo recorrente resulte que o requerido logrou identificar o dia em que se encontrava, o facto é que errou no ano (conforme resulta da gravação) e na sessão anterior (que ouvimos), ocorrida a 3 de julho de 2024, não conseguiu identificar nem dia, nem o mês em que estava. Disse que que se encontrava em março, no dia 21. É certo que tal é suscetível de ter sucedido em virtude do nervosismo compreensível face à natureza do processo em causa e à circunstância de se encontrar num Tribunal, porém, facto é que ambos os relatórios periciais confirmaram esta incapacidade do requerido em orientar-se no tempo.
Por outro lado, embora o beneficiário tenha mostrado alguma consciência da situação em que se encontrava e sobretudo tristeza pela desavença em causa e pelo afastamento da filha e das netas, mostrou incapacidade de compreender totalmente o valor dos bens, as dívidas que tem, e as repercussões dos negócios e das decisões a tomar relativamente ao seu património.
Assim sendo, a prova destes factos resulta, conforme explicou o Tribunal a quo, da análise do depoimento como um todo, conjugado com a demais prova designadamente pericial. Ora, no que se refere às perícias realizadas:
- na primeira, realizada em março de 2024, concluiu-se que “apesar do défice cognitivo ligeiro, tem o juízo crítico preservado, com capacidade para se autodeterminar (….) o quadro clínico tende a evoluir para um processo demencial, com incapacidade gradual para gerir a sua pessoas e bens”.
- na segunda realizada em 30 de julho de 2024, referiu-se que:
· Está orientado na pessoa e no local, mas parcialmente orientado no tempo;
· Apresenta boa compreensão do que lhe é solicitado, sendo que aquando proposto maior complexidade ao nível da compreensão, esta se torna, de alguma forma deficitária.
· Apresenta dificuldades na sua gestão financeira e patrimonial. Carece de apoio na sua gestão financeira e patrimonial.
· É possuidor de diagnóstico de défice cognitivo ligeiro a moderado;
· Esta afetação incapacita o requerido para governar os seus bens, mas não para escolher quem deverão ser os seus acompanhantes. O requerido beneficiaria da nomeação de acompanhantes que o auxiliem na sua gestão financeira e patrimonial.
Do exposto resulta que nem as invocadas declarações do requerido, nem os relatórios periciais, nem tão pouco o depoimento da testemunha … (que apesar de tratar da higiene do requerido e por isso estar diariamente com o mesmo não é determinante para aferir dos factos em causa), comprometem a decisão do tribunal quanto aos factos impugnados. Com efeito, o melindre e a delicadeza da situação importaram que o Tribunal avaliasse todos os pormenores nos e dos depoimentos e ponderasse e conjugasse todos as provas produzidas, o que o tribunal fez, quanto a nós, de forma correta.
Por todo o exposto, improcede a impugnação da matéria de facto, nos termos requeridos.
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Mantendo-se a decisão quanto à matéria de facto, importa apreciar as questões de direito suscitadas:
2.4. Do suprimento de autorização
Entende o recorrente que “não deu qualquer autorização à requerente sua filha (…) nem se verifica fundamento atendível para o suprimento de tal autorização, uma vez que não está demente, nem incapaz, mas apenas tem um ligeiro deficit cognitivo, tendo, ainda, capacidade crítica para governar a sua pessoa e bens”.
Cumpre apreciar e decidir:
Atento o disposto no n.º 2 do artigo 141.º do Código Civil, que tem como epígrafe (“legitimidade”) não tendo o requerente do pedido de acompanhamento de maior autorização do beneficiário para o efeito, como sucede no caso concreto, poderá o tribunal suprir essa autorização, em duas situações:
· Quando, em face das circunstâncias, o beneficiário não possa livre e conscientemente dar essa autorização;
· Quando o Tribunal considerar existir um fundamento atendível.
Estas duas situações não são cumulativas, mas sim alternativas. Por conseguinte, basta a verificação de uma das situações para que o Tribunal decida suprir a autorização do beneficiário para a propositura da ação.
O Tribunal a quo afastou e bem a existência de uma impossibilidade do beneficiário em dar essa autorização, referindo que “é patente que o beneficiário podia livre e conscientemente autorizar a filha requerente a instaurar a presente ação o que não fez. Não se verifica, por isso, o primeiro requisito previsto para o suprimento de autorização do beneficiário”.
Decidiu, porém, o Tribunal existir um fundamento atendível. Com efeito, considerou o Tribunal a quo, na sentença, que, atendendo aos factos 19), 20) 21) e 30) a 34) “existia perigo de, perante a recusa de autorização, virem a ser postos em perigo interesses patrimoniais do Requerido, designadamente ao nível da gestão dos seus rendimentos e património, pelo que decidiu existir um fundamento atendível e suprir a autorização do Beneficiário para a propositura da ação.”
No acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 02-07-2020, proferido no processo n.º 18153/18.0T8LSB-B.L1-6, publicado in www.dgsi.pt, citado na sentença, decidiu-se que “existindo dúvida fundada quanto à verificação de um perigo para a livre e esclarecida administração e disposição do seu património por parte da Requerida, em resultado de doença, bem andou o Tribunal a quo em considerar, como considerou, suprir a autorização da mesma para os efeitos do n.º 2 do artigo 141.º do Código Civil, na redacção actual”.
Considerando esta jurisprudência com que se concorda e os factos referidos pelo Tribunal - factos 19), 20) 21) e 30) a 34) designadamente que o “requerido é uma pessoa em posição de especial vulnerabilidade e dependência à ação de terceiros” e a “incapacidade de gerir de forma específica e adequada aspetos jurídicos, bancários, de património” podemos concluir que bem andou o tribunal a quo, ao decidir como decidiu, que no caso existe um fundamento atendível para “suprir a autorização do beneficiário para a propositura da ação”.
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2.5. Da necessidade do acompanhamento:
O recorrente entende que não se justificam as medidas adotadas na sentença relativas à administração do património do beneficiário, devendo apenas ser nomeado um acompanhante para o auxiliar nessa gestão.
A decisão desta questão encontrava-se dependente da procedência da impugnação da decisão da matéria de facto fixada, como aliás reconhece o recorrente.
Ora, mantendo-se os referidos factos 31 e 32, que foram dados como provados, fica necessariamente prejudicada a propugnada alteração das medidas adotadas no ponto 3 do n.º VII (Decisão) da sentença recorrida. Vejamos:
Nos termos do artigo 140.º, n.º 1, do Código Civil, “O acompanhamento do maior visa assegurar o seu bem-estar, a sua recuperação, o pleno exercício de todos os seus direitos e o cumprimento dos seus deveres, salvo as exceções legais ou determinadas por sentença”, e rege-se pelo princípio da necessidade, consagrado no artigo 145.º, n.º 1, do Código Civil que impõe que o acompanhamento se limite ao mínimo necessário para que a autodeterminação e capacidades do beneficiário possam, dentro dos circunstancialismos, ser asseguradas;
No caso concreto, tendo sido dado como provado os factos 14 a 39, designadamente os factos 30 a 32, ou seja, que o beneficiário conhece o dinheiro e tem noção do seu valor em pequenos e médios montantes, mas não em grandes montantes, que “Não consegue tratar de qualquer assunto burocrático que lhe diga respeito, como por exemplo movimentar contas bancárias ou efetuar pagamentos, levantamentos e depósitos.” E “É incapaz, de forma irreversível, de gerir de forma específica e minimamente adequada aspectos jurídicos, bancários, de património”. dúvidas não restam de que para assegurar o pleno exercício dos direitos do beneficiário impunha-se ao Tribunal, como o fez, decretar o acompanhamento do requerido, fixando as medidas de acompanhamento elencadas no ponto 3 da decisão.
Conforme se refere na sentença “o caso em apreço não configura, de todo, um dos referidos casos mais gravosos de absoluta inaptidão para a tomada de decisão que demandasse a necessidade uma medida de acompanhamento de representação geral.
Contudo, figura-se imprescindível para a proteção, quer pessoal quer patrimonialmente, que não se mantenha sozinho a pôr e dispor do seu património, saldos bancários existentes em contas a prazo (ou de poupança) de que seja co-titular, assim como na celebração de negócios que impliquem o seu endividamento, como seja contrair empréstimos junto de financeiras, bem como determinar o auxilio, supervisão diária do mesmo, atenta a deficitária e irreversível condição de saúde de que padece”.
Note-se que, no caso concreto, o beneficiário é proprietário de três bens imóveis , tem dívidas à autoridade tributária, sendo a mais antiga de 2019, dívidas estas que atualmente atingem valores superiores a cinquenta mil euros e que aufere uma pensão no valor de € 640,00, pelo que importa que o seu património seja gerido, de uma forma capaz, de modo a garantir quem tem meios para garantir a sua sobrevivência com qualidade de vida e sem necessidade de ajudas financeiras de terceiros.
Assim, as limitações de que padece o beneficiário, que a nível físico, quer a nível de gestão do património não são suscetíveis de serem colmatadas apenas através dos deveres de cooperação e assistência que impendem sobre as filhas.
Face a todo o exposto e considerando o princípio do mínimo necessário consagrado no artigo 145.º, n.º 1, do CC, que impõe a proporcionalidade entre a medida adotada e a situação apurada, bem andou o Tribunal em decretar o acompanhamento do requerido e em fixar as medidas de acompanhamento que especificou, designadamente:
- Representação especial para administração e gestão dos bens e património do Beneficiário com vista a impedir o esbanjamento irrefletido do património, nos termos do disposto pelo artigo 145.º, n.º 2, alínea c), do Código Civil.
- Auxílio, supervisão e vigilância do quotidiano e estado de saúde do Beneficiário, nos termos das alíneas b) e c) do n.º 2 do artigo 145.º do Código Civil.
No que se refere à necessidade das concretas medidas, oportunamente nos pronunciaremos.
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2.6. Das acompanhantes nomeadas:
Insurge-se também o recorrente/beneficiário quanto ao facto de ter sido nomeada pelo Tribunal como sua acompanhante, para exercer as funções de gestão e administração da sua vida patrimonial, a filha mais velha (…).
Diz o recorrente que:
· A sua vontade expressa era a de que a filha (…) fosse a única acompanhante, se e quando ele disse carecesse;
· Por isso expressou tal vontade em instrumento notarial;
· Declarou que não pretende ser acompanhado pela sua filha (…) que não vê há anos;
· Não há necessidade de duas acompanhantes já que o seu património resume-se a três prédios (um urbano e dois rústicos);
· Caso seja necessário sempre se poderá designar um conselho de família do qual faça parte a sua filha (…).
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O Tribunal a quo fundamentou assim a decisão da nomeação das acompanhantes:
“Para exercer o cargo de acompanhante, o Beneficiário escolheu a sua filha (…), pessoa que consigo reside, e que tem acompanhado sempre o Beneficiário.
Contudo, e atenta a factualidade dada como provada relativa às disposições patrimoniais do património do Beneficiário, sopesando aqui o facto de após citação para contestar a presente ação. terem ocorrido uma série de disposições patrimoniais injustificadas (factos constantes dos pontos 45) a 52) dos factos provados), sendo de extrema gravidade o facto de o Beneficiário não ser conhecedor de que já não é proprietário do estabelecimento comercial “(…)”, e a transmissão de tal estabelecimento para a cuidadora (…) ter ocorrido imediatamente após citação para contestar a presente ação, sem qualquer facto que a justificasse, e sem qualquer contrapartida monetária, e ainda o facto descrito no ponto 62) dos factos provados, levam o tribunal a formar uma séria convicção de que esta não é pessoa idónea para gerir o património do Beneficiário, atenta a gravidade dos factos aqui dados como provados.
Contudo, e quanto à prestação de cuidados diários ao Beneficiário, não foi feita prova de que a (…) não presta os cuidados necessários ao mesmo, manifestando ainda o Beneficiário o propósito de permanecer a residir com a mesma, não podendo o tribunal não atender a tal pedido.
Assim, teremos a acompanhante (…) a exercer as funções de gestão e administração da vida patrimonial do Beneficiário e a filha (…) a viver com o Acompanhado e a administrar o seu dia a dia”.
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A questão que assim se coloca é a de saber se o Tribunal se deve sobrepor à vontade expressa do beneficiário e nomear outra pessoa que não a escolhida pelo mesmo para o cargo, se considerar que a pessoa escolhida não é pessoa idónea.
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Vejamos:
Os critérios legais que devem presidir à escolha do acompanhante estão previstos no artigo 143.º do Código Civil, o qual no n.º 1 consagra que “O acompanhante maior e no pleno exercício dos seus direitos é escolhido pelo acompanhado ou pelo seu representante legal, sendo designado judicialmente.”. Nos termos do n.º 2, na falta de escolha, o acompanhamento é deferido “à pessoa cuja designação melhor salvaguarda o interesse imperioso do beneficiário”, elencando-se no próprio artigo exemplificativamente as pessoas que devem ser designadas.
Finalmente, o n.º 3 prevê a possibilidade, como sucedeu no caso concreto, de poderem ser designados vários acompanhantes com diferentes funções, determinando que sejam especificadas as atribuições de cada um.
Destas normas resulta que o princípio que norteia a nomeação do acompanhante é o Princípio do Primado da vontade do beneficiário (princípio inscrito nesta norma e corroborado no artigo 900.º, n.º 3, do CPC), pelo que o tribunal deve respeitar a escolha do beneficiário, só lhe sendo deferido essa escolha quando o beneficiário não a faz.
Como se refere no acórdão do STJ de de 10-03-2022, Revista n.º 2076/16.0T8CSC.L2.S1 Texto integral disponível em www.dgsi.pt,
(…) não só a dignidade da pessoa humana implica que se respeite a sua vontade como uma pessoa da confiança do acompanhado é, por regra, aquela que está em melhores condições para promover o seu bem-estar emocional e assegurar-lhe, na medida do possível, a sua vida autónoma e independente”.
Porém, este princípio não é absoluto.
Como se explica no citado acórdão:
III - Só não será de respeitar a escolha do acompanhado se as suas faculdades mentais não lhe permitirem fazer uma tal avaliação, isto é, se não tiver capacidade para compreender e avaliar a realidade que o cerca, ou se a pessoa por ele escolhida não se revelar idónea para o exercício do cargo”.
Também in O acompanhamento do maior acompanhado”, chrome-extension://efaidnbmnnnibpcajpcglclefindmkaj/https://www.cpidoso.pt/wp-content/uploads/2024/04/O-acompanhante-do-maior-acompanhado.pdf (Revista Digital de Proteção ao Idoso, abril de 2024) a Sra. Desembargadora Maria Amália Santos defende que: “a escolha do acompanhante feita pelo acompanhado não deverá ser respeitada pelo tribunal - equivalendo mesmo a uma falta de escolha -, se a mesma não se mostrar livre, consciente e esclarecida. Equivalente ainda a uma falta de escolha (e a uma manifestação de vontade mal formada), deverá ser também a falta de idoneidade para o cargo da pessoa escolhida pelo beneficiário”.
De facto, como decorre do artigo 146.º do Código Civil, a finalidade do acompanhamento do maior é garantir e promover o seu bem-estar e a sua recuperação, por conseguinte, a escolha do acompanhante e o exercício da sua função, deve nortear-se sempre pela salvaguarda do interesse imperioso do acompanhado e do seu bem-estar e recuperação. Ora, se a pessoa que o Beneficiário escolheu para o cargo tiver dado mostras de não se orientar pelo supremo interesse do acompanhado e/ou não ser pessoa idónea para o cargo, justifica-se que o Tribunal não respeite a escolha do beneficiário.
No caso concreto, como referido, foi precisamente este fundamento, da falta de idoneidade da filha escolhida pelo beneficiário para ser sua representante, que levou o Tribunal a afastar-se da indicação efetuada pelo beneficiário.
De facto, ficou demonstrado que, já após a citação do beneficiário, para a ação e quando já se encontrava a viver na dependência da filha (…):
- O Estabelecimento comercial que o beneficiário explorava desde 2013, em nome próprio, foi transmitido para a filha (…), sem o conhecimento e à revelia do beneficiário e sem que este tivesse recebido qualquer contrapartida monetária (factos 50 a 52 e 61 dos factos provados);
- O beneficiário vendeu uma embarcação de recreio de que era proprietário (facto 46) e 48)).
- O beneficiário vendeu o veículo automóvel, de marca Mercedez – Benz, modelo 251 de que era proprietário e o dinheiro resultante desta venda foi usado parcialmente por (…) para fazer face a despesas com o estabelecimento que esta explora (45), 49) e 62) dos factos provados).
- Em 01-07-2024, o beneficiário tinha 112 processos de cobrança coerciva a correr termos na Autoridade Tributária, tendo o mais antigo sido instaurado em 24-06-2019, totalizando todos os processos o valor em dívida de 51.808,41 euros.
O Tribunal a quo considerou que se tratavam de factos muito graves e que abalam a idoneidade da referida (…) para preservar o património do progenitor motivo pelo qual entendeu dever ser afastada a vontade do beneficiário.
Porém, não é evidente que assim seja. Com efeito, a referida (…) tem uma procuração outorgada pelo progenitor e estão em causa atos de gestão de bens e do património que o Requerido não tinha condições para gerir. A transmissão do estabelecimento ao manter os postos de trabalho até é suscetível de resolver problemas com futuros créditos salariais difíceis de satisfazer ou com outros débitos relacionados com o giro comercial, incluindo as dívidas fiscais pretéritas ou futuras.
Quanto à venda do veículo automóvel e do barco de recreio não se alegou, nem ficou provado, que estas vendas fossem atos inapropriados. Com efeito, tratam-se de bens que se desgastam com o tempo e que já não podiam ser usados pelo beneficiário atenta a sua situação de saúde, pelo que a sua venda quanto mais rápida, mais benéfica. Por outro lado, não se demonstrou que os valores em causa fossem de tal monta que não estivessem em causa montantes necessários para cobrir as despesas do dia-a-dia com o beneficiário. Ou que tivessem sido gastos superfluamente. Com efeito e conforme se provou o beneficiário tem uma pensão de apenas € 640,00.
Em suma, os factos provados não revelam um comportamento inadequado da filha do beneficiário que imponham que se afaste a vontade do beneficiário, vontade esta manifestada quer na contestação, quer em sede julgamento, quer na procuração, quer na resposta ao recurso, facto que aliás foi dado como provado.
Conforme se decidiu no acórdão do STJ de 10-03-2022, proferido no Processo n.º 2076/16.0T8CSC.L2.S1, publicado in www.dgsi.pt “Na designação do acompanhante, a lei atribui preferência à escolha feita pelo próprio acompanhado/beneficiário, pois não só a dignidade da pessoa humana implica que se respeite a sua vontade como uma pessoa da confiança do acompanhado é, por regra, aquela que está em melhores condições para promover o seu bem-estar emocional e assegurar-lhe, na medida do possível, a sua vida autónoma e independente.”
Acresce que a cisão efetuada no acompanhamento não se mostra prático e suscetível de salvaguardar o interesse do acompanhado. De facto, quem cuida no dia a dia de uma pessoa tem que dispor de dinheiro para fazer face às despesas diárias do beneficiário e não ficar dependente que outrem (com quem, aliás, conforme resulta dos factos provados está desavinda há cerca de 10 anos) aprecie se essas despesas são adequadas para posteriormente entregar dinheiro que pertence ao beneficiário.
Por outro lado, a cisão determinada pelo Tribunal a quo afasta o beneficiário das decisões, dificultando, em vez de estimular, que o mesmo mantenha a noção que ainda tem do dinheiro e do seu valor em pequenos e médios montantes.
Em suma, a fim de respeitar a vontade do beneficiário e porque se mostra mais adequado ao interesse do beneficiário, a filha (…), para além de auxiliar, supervisionar e vigiar o quotidiano e estado de saúde do beneficiário, deverá também administrar e gerir os bens e o património do beneficiário. Porém, para além dos atos de alienação dependerem necessariamente de autorização judicial, nos ternos do artigo 145.º, n.º 3, do CPC, deve ser nomeado um conselho de família com vista a vigiar a atividade da acompanhante.
O próprio beneficiário, em sede de recurso admite que o Conselho de Família seja constituído pela requerente.
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Considerando que o dever do acompanhante prestar contas ao acompanhado e ao tribunal, resulta da lei (cfr. o disposto no artigo 151.º, n.º 2, do CPC), mostra-se desnecessário que conste da parte da decisória da sentença, pelo que se eliminará o ponto 9 da decisão.
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Das custas:
Atento o disposto no artigo 4.º, n.º 2, alínea h), do Regulamento das Custas Processuais, o presente processo de Acompanhamento de Maior está isento de custas.
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3. Decisão:
Pelo exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar parcialmente procedente a apelação, revogar o ponto 5, 7 e 9 do decisório da sentença e, em sua substituição:
5. Designar como acompanhante (…), residente em Rua (…), Lote 17, 8700-072 Olhão, a quem competirá exercer as funções elencadas no ponto 3.
7. Determinar a constituição do Conselho de Família, sendo a 1ª vogal a requerente, (…) e devendo o Tribunal a quo proceder à nomeação do 2º vogal, se necessário for, recolhendo as informações tidas por convenientes para a nomeação.
No mais, confirma-se a sentença recorrida.
Sem custas (artigo 4.º, n.º 2, alínea h), do RCP).
*
Évora, 9 de abril de 2025
Susana Ferrão da Costa Cabral (Relatora)
Maria Adelaide Domingos (1ª Adjunta)
Ana Pessoa (2ª Adjunta)
(documento com assinaturas eletrónicas)