I - Para o decretamento de uma providência cautelar não especificada, impõe-se que se verifique, essencialmente, a existência, muito provável, de um direito que se tem por ameaçado, emergente de decisão a proferir em acção constitutiva, já proposta ou a propor, e o fundado receio que alguém, antes ser proferida decisão de mérito, em acção pendente ou a propor, cause lesão grave e dificilmente reparável a tal direito.
II - Os procedimentos cautelares são meios, por essência, destinados a garantir a titularidade de um direito contra uma ameaça ou um risco que sobre ele paira e que é tão eminente que o seu acautelamento não pode aguardar a decisão de um moroso processo declarativo.
III - O juiz não está vinculado a conceder ou a recusar a medida solicitada, devendo decretar aquela que “concretamente for adequada a assegurar a efectividade do direito ameaçado”, desde que a matéria de facto alegada e provada permita tal convolação.
IV - No caso vertente, se estamos a afastar o registo de propriedade do veículo a favor do requerido e a repor o registo a favor do requerente aparenta estarmos já a tutelar em sede cautelar os efeitos da tutela definitiva.
V - Sucede que relativamente aos veículos automóveis a existência de um registo válido é condição para a pessoa poder usar o veículo, exibindo às autoridades, quando lhe for exigido, o documento único que deve trazer consigo quando circula com o veículo.
VI - Trata-se, portanto, não apenas de um documento que advém da titularidade do direito, mas também de um documento cuja posse é necessária à utilização prática do veículo.
VII - Assim, embora estejamos no domínio de um procedimento cautelar, impõe-se adoptar a providência necessária e adequada para evitar o dano decorrente da demora da tutela definitiva.
ECLI:PT:TRP:2025:2442/24.7T8PRD.P1
Acordam no Tribunal da Relação do Porto
1. Relatório
AA, divorciado, residente na Rua ..., ..., Oliveira de Azeméis, instaurou procedimento cautelar comum, com inversão de contencioso, contra BB, residente na Avenida ..., ..., ..., Paredes, onde concluiu pedindo que, sem audiência prévia do requerido, seja:
i)determinado o cancelamento do registo de propriedade da viatura da marca AUDI, modelo ..., com a matrícula ..-OE-.. a favor do requerido, por inexistir qualquer contrato que lhe dê causa;
ii) reconhecido que o titular do direito de propriedade, com exclusão de qualquer outrem, e beneficiário do registo a seu favor era o aqui requerente que viu tal direito ser inscrito na conservatória do registo automóvel pela AP: ... de 13/09/2017;
iii) determinado que quando o requerente o vendeu em 02/09/2024 a CC, residente na ..., Lote ..., Urbanização ..., ... Quarteira, vendeu uma viatura que era propriedade plena e exclusivamente sua, celebrou um contrato de compra e venda com aquela CC pelo qual ele quis vender e ela quis comprar aquela viatura pelo preço de 29.000,00€, que esta pagou e o requerente recebeu, tendo-lhe entregue de imediato a viatura, que desde aquela data está na sua posse legítima e que apresentou nessa mesma data a requisição de registo a seu favor, tendo este sido recusado pelo facto de o requerente não ser o titular inscrito naquela data;
iv) determinado o cancelamento do registo efetuado pela AP: ... de 18/06/2024 e ordenado a inscrição no registo automóvel da inscrição da propriedade da viatura da marca AUDI, modelo ..., com a matrícula ..-OE-.. cujo registo foi requerido pela AP: ... de 04/09/2024.
Alega, em síntese, que por intermédio da sua companheira colocou à venda no A... o veículo AUDI, modelo ..., com a matrícula ..-OE-.., pelo preço de € 29.000,00.
Mais alega, que foi acordada a venda do referido veículo com o interessado de nome DD, o qual transmitiu que, no dia combinado, seria o seu sócio, residente no norte do País, a levantar a viatura, tendo sido acordado a oficina “B...”, sita em Oliveira de Azeméis.
Acrescenta que no dia combinado, chegou ao local o requerido para proceder ao levantamento, pelo que foi contactado o DD para proceder à transferência da quantia de € 29.000,00 para o IBAN que já lhe havia sido indicado.
Enquanto aguardava pela transferência, o autor e o requerido dirigiram-se para a agência automobilística de Azeméis, para fazer a mudança da propriedade.
Alega que, no ínterim, foi enviado por DD um comprovativo de transferência que percebeu ser forjada, pelo que deu instruções à funcionária para não entregar a requisição do registo ao requerido, que a rasgou.
Mais alega que, perante o sucedido, tornou a colocar o veículo à venda, tendo-o vendido a CC, a qual se encontra na sua posse, sendo certo que quando tentou formalizar o registo da venda constatou que o mesmo não se encontrava registado em seu nome, mas no nome do requerido.
Alega, ainda, que sendo portador do DUC, o requerido pode pedir a sua apreensão a qualquer autoridade policial, pode vender a viatura a quem entender ou pode desmantelá-la, bem como participar criminalmente de si, o que a suceder levaria a ter de devolver a quantia de € 29.000,00 paga por CC.
Alega que, em 11/06/2024, viu anunciado o veículo em apreço, no C... do Facebook, por um anunciante denominado DD, o qual lhe explicou que estaria encarregado da sua venda e que, por isso, o veículo não estaria registado em seu nome, mas que o titular registado faria a venda nos termos acordados entre eles, ou seja, pelo preço de € 16.500,00, sendo € 11.000,00 pago em dinheiro e o restante mediante entrega da viatura Mini ... ..-TO-...
Alega, ainda, que lhe foi transmitido que deveria dirigir-se à “B...” no dia 14-06-2024, o que fez, acompanhado de EE.
Mais alega, que EE ficou no Banco 1... em Oliveira de Azeméis, a fim de depositar o preço assim que o negócio estivesse concluído na agência de documentação automóvel para onde requerente e requerido se dirigiram.
Acontece que, ali chegados, apesar de o registo estar efectuado e de terem sido dadas instruções ao EE para depositar o dinheiro, o certo é que este apenas conseguiu depositar € 10.000,00, estando em falta € 1.000,00.
Nesse seguimento, solicitou ao requerente para o transportar ao aludido banco, a fim de o requerido depositar os restantes € 1.000,00.
No entanto, como o requerente dizia não ter recebido qualquer montante, dirigiram-se novamente à agência, onde deu instruções à funcionária para rasgar o formulário, pois que a venda ficava sem efeito, o que fez.
Mais alega, que foi à GNR apresentar queixa e que, após, dado haver tirado uma fotografia ao formulário do pedido de registo, onde se encontravam as referências para pagamento, decidiu proceder ao pagamento, defendendo, por isso, ser o único e efectivo proprietário da viatura.
- O cancelamento do registo de propriedade que incide sobre a viatura da marca AUDI, modelo ..., com a matrícula ..-OE-.., a favor do requerido, que foi efetuado pela AP: ... de 18/06/2024; e
- A inscrição da propriedade no registo automóvel que foi requerido pela AP: ... de 04/09/2024.
Indeferindo a requerida inversão do contencioso.
I)O recorrente não se conforma com a decisão proferida na parte que decidiu:
“…- O cancelamento do registo de propriedade que incide sobre a viatura da marca AUDI, modelo ..., com a matrícula ..-OE-.., a favor do requerido, que foi efetuado pela AP: ... de 18/06/2024; e
- A inscrição da propriedade no registo automóvel que foi requerido pela AP: ... de 04/09/2024.”.
II) Não se trata apenas de o recorrente não concordar com a forma como, apesar de indiciariamente, a prova foi valorada, mas sim de a prova efectivamente produzida impor uma decisão diversa da que foi assumida pelo Meritíssimo Juiz.
III) O recorrente insurge-se desde logo com os factos dados como provados sob os pontos n.ºs 32 e 33 dos “Factos indiciariamente provados”.
IV) Ao contrário da fundamentação da decisão sobre a matéria de facto relativamente aos pontos 32 e 33 dos “Factos indiciariamente provados”, temos que:
- A testemunha FF não afirmou a factualidade de 32 e 33 por referência à eventual CC;
- Dos documentos referidos na fundamentação em causa (fls. 35 e 36 e 71, 73 e 74) não se retira tal factualidade vertida em tais pontos;
- Inexistem dos autos quaisquer elementos probatórios, que demonstrem tal factualidade por referência à eventual CC;
- Inexiste qualquer documento que, sequer, indicie qualquer intervenção da eventual CC na factualidade em causa nos autos;
- Inexiste qualquer comprovativo de pagamento, registo de transferência de dinheiro ou valores, declaração de entrega de dinheiro ou quitação, que refira o requerente ou a eventual CC;
- Nada consta dos autos relativamente a qualquer eventual termo de entrega do ... a quem quer que seja. Nem sequer uma declaração assinada pela eventual CC (ou seja, por quem fosse) que sugira que a viatura em causa não se encontra na posse e detenção do requerente, quanto mais que foi entregue à CC.
V) Tal factualidade constante de 32 e 33 dos “Factos indiciariamente provados” foi devidamente impugnada pelo requerido na oposição por si deduzida (desde logo nos art. 41.º, 42.º e 56.º da oposição por si apresentada nos autos).
VI) Mesmo tratando-se de um procedimento cautelar, e atenta a natureza indiciária da prova a produzir, não deve ser dado como provado a matéria constante de 32 e 33 dos “Factos indiciariamente provados”
(“32. No dia 02 de setembro de 2024, o requerente acordou com CC a venda da viatura AUDI ... com a matrícula ..-OE-.., pelo preço de 29.000,00€ (vinte e nove mil euros).
33. Quantia que o requerente recebeu, tendo entregue o veículo automóvel a CC.”).
VII) Deve ser dado como indiciariamente provado a matéria constante de 12.º da oposição deduzida pelo recorrente na parte que refere que “Uma vez na residência do requerente, o requerido confirmou algumas informações sobre a viatura e sobre o negócio celebrado, negócio esse conformado pelo requerente nos termos transmitidos pelo DD ao requerido.”.
VIII) O depoimento prestado em audiência pela testemunha EE, no dia 18/02/2025, e as declarações de parte prestadas em audiência pelo recorrente BB, no dia 20/01/2025, que foram reputadas como credíveis, referem tal factualidade como tendo efectivamente sucedido. Devendo assim, tal factualidade ser dada como provada.
IX) Pois trata-se de factualidade alegada pelo requerido, que se verificou ter ocorrido e é relevante para a boa decisão da causa.
X) A providência cautelar decretada ordena, para além do mais, “-A inscrição da propriedade no registo automóvel que foi requerido pela AP: ... de 04/09/2024.”
XI) Sendo que conforme consta expressamente da informação prestada nos autos em 23/12/2024, pela Conservatória do Registo Automóvel do Porto, a AP ... de 04/09/2024 refere-se à inscrição da propriedade da viatura Audi ... a favor de uma alegada CC.
XII) Sucede que a CC, cuja inscrição da propriedade a favor da mesma foi ordenada na decisão recorrida, não é nem nunca foi parte nos presentes autos.
XIII) Ao ter sido decretada a providência cautelar em causa, ordenando-se “- A inscrição da propriedade no registo automóvel que foi requerido pela AP: ... de 04/09/2024.”, foi violado o Princípio do Dispositivo previsto no art. 3.º do Código de Processo Civil (CPC). Pois de acordo com tal normativo, o tribunal não pode resolver o conflito de interesses que a acção pressupõe sem que a resolução lhe seja pedida por uma das partes.
XIV) A decisão recorrida ordena a inscrição da propriedade da viatura em causa nos autos a favor de um terceiro que não se encontra, nem alguma vez se encontrou, nos autos – a alegada CC. Nem por qualquer forma formulou qualquer pedido nos autos.
XV) Em clara violação do Princípio do Dispositivo e do Princípio do Contraditório, previstos no art. 3.º do CPC. Pois nunca poderia ter sido ordenada “A inscrição da propriedade no registo automóvel que foi requerido pela AP: ... de 04/09/2024”, por a beneficiária de tal decisão não o ter requerido nos autos, nem ter esta sido ouvida ou manifestado qualquer vontade a tal respeito.
XVI) Tal pedido deveria ter sido indeferido, por inadmissível, por ser violador dos Princípios do Dispositivo e do Contraditório, previstos no art. 3.º do CPC.
XVII) Igualmente, nos termos do previsto no art. 30.º n.º 1 do CPC, a legitimidade processual passiva do requerente, estaria necessariamente circunscrita ao interesse directo do mesmo em requerer o cancelamento do registo de propriedade do ... efectuado a favor do requerido, por forma a que o mesmo voltasse a figurar como proprietário registado de tal viatura.
XVIII) Nunca para exercer um alegado direito de um terceiro, ou formular um pedido em nome deste - neste caso da alegada CC.
XIX) Verifica-se assim a violação do art. 30.º do CPC, no que respeita ao pedido formulado pelo requerente que culminou com que fosse ordenada “- A inscrição da propriedade no registo automóvel que foi requerido pela AP: ... de 04/09/2024.”, atenta a ilegitimidade processual activa do requerente para tal.
XX) Tal pedido deveria ter sido indeferido, por o requerente carecer em absoluto de legitimidade processual activa para tal.
XXI) Uma vez que inexiste qualquer prova que permita dar como provado os factos descritos nos pontos n.º 32 e 33 dos “Factos indiciariamente provados”, entendemos ter sido violado o previsto no art. 342.º do Código Civil (CC), que impõe a quem invoca um direito o ónus de fazer prova dos factos constitutivos do direito alegado.
Importando assim, no caso concreto, declarar a violação de tal normativo e dar tal factualidade como não provada atenta a ausência de prova a tal respeito.
XXII) Ainda que se entenda que a prova produzida relativamente à factualidade referida em 32 e 33 dos “Factos indiciariamente provados” seria suscetível de causar alguma dúvida no que concerne à ocorrência de tal factualidade, nos termos do previsto do artigo 414.º do Código de Processo Civil (CPC), tal dúvida sempre teria de ser resolvida contra a parte a quem aproveitaria. Ou seja, contra o requerente.
Caso em que a solução seria sempre a mesma - dar a factualidade em causa como não provada. O que se deve declarar.
XXIII) Ao não ter dado como indiciariamente provado que “Uma vez na residência do
requerente, o requerido confirmou algumas informações sobre a viatura e sobre o negócio celebrado, negócio esse conformado pelo requerente nos termos transmitidos pelo DD ao requerido”, nos termos supra referidos em 7.º a 9.º das presentes conclusões, foram violados os art. 342.º do Código Civil (CC) conjugado com o previsto no art. 413.º do CPC, porquanto a prova produzida nos autos cumpriu integralmente tais imposições no sentido de ser dada tal matéria como provada. Tendo igualmente sido violado o previsto no art. 607.º n.º 5 do CPC, na medida que a valoração das provas produzidas nos autos (depoimento da testemunha EE e declarações de parte do requerido) não obedeceram a critérios de prudência. Devendo tê-lo sido e, por conseguinte, dada tal factualidade como provada.
XXIV) Na decisão recorrida, foi entendido, de acordo com a prova indiciariamente produzida, que não existiu qualquer contrato entre requerente e requerido – mormente o contrato em causa nos autos.
XXV) Tal, salvo o devido respeito, não se afigura correcto. Pois, uma coisa é não ter existido qualquer contrato, outra bem diferente é a eventualidade de terem existido eventuais vicissitudes nas declarações de vontade proferidas pelas partes - o que não foi alegado nos autos, nem o requerido/recorrente concebe tal.
XXVI) O artigo 874.º do CC define o contrato de compra e venda como sendo “o contrato pelo qual se transmite a propriedade de uma coisa ou outro direito, mediante um preço.” E o artigo 883.º do CC prevê expressamente a possibilidade de as partes não terem determinado o preço, nem convencionarem o modo de ele ser determinado.
XXVII) O que equivale a afirmar que mesmo que o preço não tivesse sido expressamente determinado pelas partes, ainda assim estaríamos perante um contrato de compra e venda no caso concreto.
XXVIII) No documento junto aos autos pelo próprio requerente como doc. 3 (declaração de venda relativo à compra e venda celebrada entre requerente e requerido), e bem assim junto aos autos em 23/12/2024 pela Conservatória do Registo Automóvel do Porto (declaração de venda relativo à compra e venda celebrada entre requerente e requerido), é expressamente declarado que:
“O contraente indicado como sujeito passivo (vendedor) declara que em 14-06-2024 efectivamente celebrou nessa qualidade o contrato nele especificado e por isso confirma-o sem quaisquer restrições.”. Constando igualmente de tal documento que foi declarado que: “O pedido foi requerido com Aprovação pelo Sujeito Passivo.”
XXIX) Em momento algum no seu requerimento inicial o requerente alega qualquer vício da formação da vontade relativamente ao contrato de compra e venda celebrado com o requerido.
XXX) Na decisão recorrida foi efectuada uma incorrecta interpretação do teor do art. 874.º por referência à factualidade e prova produzida nos autos. Devendo a decisão recorrida ter reconhecido e afirmado a celebração de um contrato de compra e venda entre requerente e requerido, relativamente ao Audi ... em causa, e assim ter reconhecido o direito de propriedade do requerido, registado, sobre a viatura em causa, em detrimento do direito alegado pelo requerente.
XXXI) Foi violado o previsto no art. 362.º do CPC, por não ter sido constatada a celebração do contrato de compra e venda em causa entre requerente e requerido, e consequentemente afirmado, ainda que indiciariamente, o direito de propriedade do requerido sobre a viatura em causa, e por conseguinte, negado a existência do direito de propriedade invocado pelo requerente sobre aquela viatura. Devendo assim, desde logo o procedimento cautelar ser indeferido, por ausência de requisitos legais.
XXXII) Foi violado o previsto no art. 362.º do CPC, por não se verificar qualquer fundado receio de que outrem cause lesão grave e de difícil reparação ao alegado direito (que se não aceita) do requerente. Devendo, igualmente por tal razão, o procedimento cautelar ser indeferido, por ausência de requisitos legais.
XXXIII) Foi violado o previsto no art. 362.º do CPC, por não ter sido constatado que o prejuízo decorrente do decretamento da providência não seja consideravelmente superior ao dano que através dela se pretende acautelar. Verificando-se exactamente o oposto - o prejuízo decorrente do decretamento da providência será consideravelmente superior ao dano que através dela se pretende acautelar - alegado dano esse que se entende inexistir no caso concreto. Devendo desde logo o procedimento cautelar ser indeferido, por ausência de requisitos legais.
XXXIV) Devendo assim, face a todo o exposto o presente recurso interposto relativamente à matéria de facto e de direito da decisão proferida, ser julgado integralmente procedente por provado e fundado e assim ser a decisão proferida revogada na parte recorrida.
2.1 Factos provados
O Tribunal a quo deu como indiciariamente provados os seguintes factos:
1. Pela Ap. ... de 13/09/2017, a propriedade do veículo de matrícula ..-OE-.. encontrava-se inscrita a favor do aqui requerente AA.
2. Em data não concretamente apurada, mas anterior a 14-06-2024, FF, companheira do requerente e com o seu conhecimento, promoveu a venda do veículo supra mencionado, de marca Audi, modelo ..., com a matrícula ..-OE-.. na plataforma da internet designada A..., pelo preço anunciado de venda de 29.000,00 € (vinte e nove mil euros).
3. Nesse seguimento, FF foi contactada por uma pessoa que se identificou como DD, que se mostrou interessado na aquisição do veículo.
4. Tendo aquele DD informado FF que a viatura seria paga por si, mas que seria para um seu sócio, a quem aquele o iria dar como forma de pagamento.
5. Pelo que, seria o sócio do DD quem iria ver e buscar a viatura e a quem, verificado que fosse o pagamento, deveria a mesma ser entregue.
6. FF advertiu o DD que só entregaria o veículo caso fizesse uma transferência imediata, tendo fornecido ao mesmo o IBAN ....
7. Assim acordado com o referido DD, FF indicou-lhe como local onde o referido sócio se deveria dirigir como sendo a “B...”, sita em Oliveira de Azeméis.
8. Por sua vez, em data não concretamente apurada, mas anterior a 14-06-2024, o requerido BB, viu um anúncio relativo ao veículo da marca AUDI, modelo ..., com a matrícula ..-OE-.., pelo valor de 16.500,00€ (dezasseis mil e quinhentos euros), por um anunciante designado por DD.
9. O DD transmitiu ao requerido que o veículo não estaria em seu nome por uma questão relacionada com partilhas da sua esposa, mas que o titular registado concordava com a venda.
10. O requerido acordou então com o DD adquirir a mencionada viatura, pelo referido valor de 16.500,00€, sendo que 11.000,00€ (onze mil euros) seriam pagos em dinheiro e o restante seria considerado através da retoma de um veículo de marca mini modelo ....
11. O DD forneceu ao requerido o IBAN para o qual este deveria depositar a parte do preço supra referida, retratado a fls. 59-v e transmitiu ao requerido que o mesmo deveria deslocar-se no dia 14/06/2024 no período da manhã a Oliveira de Azeméis, mais concretamente à oficina “B...”.
12. No dia 14/06/2024, o aqui requerido, acompanhado de EE, deslocou-se à “B...” a fim de buscar a viatura AUDI modelo ..., com a matrícula ..-OE-...
13. Nesse seguimento, requerente, requerido, EE e FF (esta última no seu próprio veículo) dirigiram-se à residência do requerente, onde o veículo estava na garagem, tendo o requerido analisado o mesmo.
14. A viatura em que o requerido se fazia transportar ficou logo estacionada junto da casa do requerente e deslocaram-se à agência em causa, no ....
15. Tendo deixado, no caminho, o EE na agência do Banco 1... de Oliveira de Azeméis.
16. Por forma a que o mesmo efectuasse o depósito em numerário na conta indicada pelo DD, após instruções do requerido nesse sentido, que iriam ser dadas após a apresentação do pedido de registo em causa.
17. Já na agência automobilística de Azeméis, requerente e requerido forneceram os elementos identificativos necessários para que a funcionária preenchesse o formulário retratado a fls. 62 dos autos, o que esta fez, tendo enviado à solicitadora GG, a fim de esta solicitadora levar a cabo o procedimento de registo automóvel online.
18. Tendo sido dito ao requerido que só lhe seria entregue tal formulário quando o dinheiro estivesse na conta do requerente.
19. O requerido pediu para tirar uma fotografia ao formulário, a fim de ir tratando do seguro de responsabilidade civil inerente ao veículo, ao que o requerente e funcionária da agência acederam.
20. Após ser informado do referido em 15., o requerido deu ordem para que EE depositasse o dinheiro no IBAN fornecido pelo DD.
21. Acto contínuo, EE depositou o valor total de 10.000,00€ para o IBAN fornecido pelo DD.
22. Tendo, a dada altura, transmitido ao requerido que não poderia depositar mais euros na aludida conta, pois o sistema não o permitia.
23. O requerido deslocou-se então à referida agência, e depositou 1.000,00€ para o IBAN fornecido pelo DD.
24. O requerente ia vendo no seu telemóvel se o dinheiro entrava na sua conta, o que nunca aconteceu.
25. Como o dinheiro não entrou na conta, o requerente transmitiu à funcionária da Agência que a venda ficava sem efeito, tendo a mesma rasgado à frente do requerente e requerido o formulário do registo.
26. Perante tal situação, o requerido indignou-se.
27. Na sequência de tal, o requerido deslocou-se de imediato à Guarda Nacional Republicana de Oliveira de Azeméis, onde apresentou, de seguida, queixa crime pelos factos supra descritos.
28. Que deu origem ao inquérito que corre termos no DIAP de Oliveira de Azeméis sob o n.º 347/24.0GBOAZ.
29. Em momento posterior a ter apresentado a respectiva queixa, o requerido, munido da foto da apresentação do pedido de registo (conforme referido em 19.), em 18-06-2024, pelas 12:19, efectuou o pagamento do emolumento do registo.
30. A viatura encontra-se, desde então, registada em nome do requerido, pela AP: ... de 18/06/2024.
31. O requerido liquidou em 31 de outubro de 2024 a quantia devida a título de IUC daquela viatura, no valor de Euros 813,91 (oitocentos e treze euros e noventa e um cêntimos).
32. No dia 02 de setembro de 2024, o requerente acordou com CC a venda da viatura AUDI ... com a matrícula ..-OE-.., pelo preço de 29.000,00€ (vinte e nove mil euros).
33. Quantia que o requerente recebeu, tendo entregue o veículo automóvel a CC.
34. Foi requerido o registo da compra e venda referida em 28., tendo o registo sido recusado, com fundamento na violação do princípio do trato sucessivo.
35. O registo estabelecido com a AP: ... de 18/06/2024 impede que o requerente registe a propriedade em nome de CC.
O Tribunal a quo deu como não indiciariamente provados os seguintes factos:
a) O requerente teme que o requerido solicite a qualquer entidade policial a apreensão do veículo, alegando que a viatura lhe foi furtada.
b) O requerente teme que o requerido venda a viatura a quem entender.
c) O requerente teme que o requerido faça da viatura o que muito bem entender, nomeadamente, desmantelá-la para vender peças e componentes que são tão procurados no mercado.
d) O requerente teme que o requerido participe criminalmente do requerente e, bem assim, instaure uma ação cível contra o requerente.
O Tribunal a quo fundamentou a sua convicção nos seguintes termos:
“A factualidade indiciariamente assente foi assim considerada tendo em conta a conjugação da prova produzida e que, no essencial, corroborou as versões, quer do requerente, quer do requerido.
Na verdade, naquilo que é essencial em face da causa de pedir e da providência concretamente requerida, as versões do requerente e do requerido não são excludentes.
Assim, para dar como indiciariamente provado o facto 1., o tribunal considerou o doc. de fls. 37 e 71 a 73-v., devidamente conjugados. Pois, se a Ap... de 18-06-2024 resultou do pedido n.º ... (72 e 73), só poderá concluir-se que, pela Ap. Anterior (fls. 37) o titular naquele pedido inscrito era o que se encontrava averbado como proprietário.
Os factos 2. a 7. foram indiciariamente considerados assentes na medida em que resultaram do depoimento da testemunha FF, com conhecimento directo e relevantes de tal factualidade, devidamente corroborada pelos documentos de fls. 15 a 32.
Por sua vez, os factos 8. a 11. resultaram indiciariamente assentes atentas as declarações de parte prestadas pelo requerido, que, de forma aparentemente segura e tranquila, os transmitiu, sendo os mesmos do seu conhecimento directo. Na medida em que se encontravam também corroboradas pelos documentos de fls. 50-v a 56-v.
Por sua vez, os factos 12. a 15. resultaram indiciariamente assentes porquanto corroborados por todos os intervenientes directos envolvidos e ouvidos em julgamento (requerente, requerido, FF e EE) - todos, com conhecimento directo, afirmaram tais factos como tendo ocorrido.
O facto 16. decorreu não só do depoimento de EE e das declarações de parte do requerido, mas foi igualmente corroborado pelos talões de depósitos de notas, de fls. 60 a 61 (os quais se atenderam, por a sua veracidade não ter sido impugnada pelo requerente).
O facto 17. resultou indiciariamente provado pelo depoimento da testemunha HH, funcionária da referida agência que preencheu o formulário e o enviou à Solicitadora, que prestou um depoimento escorreito, descomprometido e, por isso, absolutamente credível.
Também assim, o facto 18. e 19. decorreram do depoimento prestado pela proprietária da referida Agência que os sabia por deles ter conhecimento directo e cujo depoimento pareceu credível ao tribunal, tanto mais que a mesma reconheceu também o facto 25. e depôs de forma objectiva, serena e segura.
O facto 20. extraiu-se das declarações do requerido, estando tal facto corroborado pelos factos seguintes (21 a 23, devidamente documentados nos autos, sendo que os documentos não foram impugnados pela parte contrária).
Assim, os factos 21. a 23. extraíram-se talões de depósitos de notas, de fls. 60 a 61 (os quais se atenderam, como já se disse, por a sua veracidade não ter sido impugnada pelo requerente) e bem assim do depoimento de EE e declarações de parte do requerido.
A factualidade vertida em 24. a 26. decorreu, também, de forma pacifica da prova produzida, tendo sido asseverados por todas as partes/testemunhas ouvidas.
A certidão de fls. 48 a 62-v. permitiu dar como indiciariamente assente os factos 27. a 28.
Por sua vez, o facto 29. decorreu das declarações de parte do requerido bem como do documento de fls. 72.
O facto 30. decorre do documento de fls. 37 e 71 e o facto 31. do documento de fls. 63 e 63-v, não impugnados.
A factualidade assente em 32. e 33. extraiu-se do depoimento da testemunha FF, que a afirmou sem margem para dúvidas, bem como dos documentos de fls. 35 e 36, 73 e 74, corroborados pela informação de fls. 71, emanada pela conservatória competente. Tais documentos são inequívocos no sentido da prova dos factos 32 e 33 e, bem assim, do facto 34.
A factualidade referida em 35. decorre do facto 34.
Além disso, como já se referiu em sede liminar, a propósito da dispensa de audiência prévia do requerido, porque haveria o requerido, depois de ser conhecedor do presente processo, de solicitar a sua apreensão à autoridade policial, alegando um furto (sabendo naturalmente que a prestação de falsas declarações constitui a prática de crime)? Ou porque haveria o requerido de vender o veículo, sendo que nem está na sua posse? O que nos leva a questionar, quem o compraria sem o ver? O alegado “perigo” de o desmantelar, então, é inverosímil, já que o mesmo, segundo alega, está na posse de uma terceira pessoa.
Pelo que, se deram como não provados os factos a) a d).”
Das conclusões formuladas pelo recorrente as quais delimitam o objecto do recurso, tem-se que as questões a resolver no âmbito do presente recurso prendem-se com saber:
- Da impugnação da matéria de facto;
- Da verificação dos pressupostos para decretamento das providências.
4.1 Da impugnação da matéria de facto
O apelante, em sede recursiva, defende que deve ser dada como não provada a matéria constante dos pontos 32 e 33 dos “Factos indiciariamente provados”.
Consta dos referidos pontos que:
“32. No dia 02 de setembro de 2024, o requerente acordou com CC a venda da viatura AUDI ... com a matrícula ..-OE-.., pelo preço de € 29.000,00 (vinte e nove mil euros).
33. Quantia que o requerente recebeu, tendo entregue o veículo automóvel a CC.”.
Defende, ainda, que deve ser dado como indiciariamente provado a matéria constante do artigo 12.º da oposição na parte em que refere “Uma vez na residência do requerente, o requerido confirmou algumas informações sobre a viatura e sobre o negócio celebrado, negócio esse conformado pelo requerente nos termos transmitidos pelo DD ao requerido.”.
Vejamos, então.
No caso vertente, mostram-se minimamente cumpridos os requisitos da impugnação da decisão sobre a matéria de facto previstos no artigo 640.º, do Código de Processo Civil, nada obstando, por isso, a que se conheça da mesma.
Entende-se actualmente, de uma forma que se vinha já generalizando nos tribunais superiores, hoje largamente acolhida no artigo 662.º do Código de Processo Civil, que no seu julgamento, a Relação, enquanto tribunal de instância, usa do princípio da livre apreciação da prova com a mesma amplitude de poderes que tem a 1ª instância (artigo 655.º do anterior Código de Processo Civil e artigo 607.º, n.º 5, do actual Código de Processo Civil), em ordem ao controlo efectivo da decisão recorrida, devendo sindicar a formação da convicção do juiz, ou seja, o processo lógico da decisão, recorrendo com a mesma amplitude de poderes às regras de experiência e da lógica jurídica na análise das provas, como garantia efectiva de um segundo grau de jurisdição em matéria de facto; porém, sem prejuízo do reconhecimento da vantagem em que se encontra o julgador na 1ª instância em razão da imediação da prova e da observação de sinais diversos e comportamentos que só a imagem fornece.
Como refere A. Abrantes Geraldes, in Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2013, Almedina, págs. 224 e 225, “a Relação deve alterar a decisão da matéria de facto sempre que, no seu juízo autónomo, os elementos de prova que se mostrem acessíveis determinem uma solução diversa, designadamente em resultado da reponderação dos documentos, depoimentos e relatórios periciais, complementados ou não pelas regras de experiência”.
Importa, pois, por regra, reexaminar as provas indicadas pelo recorrente e, se necessário, outras provas, máxime as referenciadas na fundamentação da decisão em matéria de facto e que, deste modo, serviram para formar a convicção do Julgador, em ordem a manter ou a alterar a referida materialidade, exercendo-se um controlo efectivo dessa decisão e evitando, na medida do possível, a anulação do julgamento, antes corrigindo, por substituição, a decisão em matéria de facto.
Tendo presentes os elementos probatórios e demais motivação, vejamos então se, na parte colocada em crise, a referida análise crítica corresponde à realidade dos factos ou se a matéria em questão merece, e em que medida, a alteração pretendida pelo apelante.
Insurge-se o Apelante contra a referida decisão por entender que o Tribunal a quo valorou erradamente a prova oferecida nos segmentos fácticos respeitantes aos pontos 32 e 33 da matéria de facto provada.
Entendemos, porém, que a Senhora Juiz a quo fundamentou devidamente a sua decisão à luz da prova oferecida, invocando sempre, com ponderação, as regras da experiência comum e o juízo lógico-dedutivo.
Com efeito, a convicção expressa pelo tribunal a quo tem razoável suporte naquilo que a gravação das provas e os demais elementos dos autos lhe revela.
Isto porque salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente.
Contudo, a livre apreciação da prova, não se confunde, de modo algum com apreciação arbitrária da prova, nem com a mera impressão gerada no espírito do julgador pelos diversos meios de prova; a prova livre tem como pressupostos valorativos a obediência a critérios de experiência comum e da lógica do homem médio suposto pela ordem jurídica. Dentro destes pressupostos se deve, portanto, colocar o julgador ao apreciar livremente a prova.
A livre apreciação da prova tem de se traduzir numa valoração racional e crítica, de acordo com as regras comuns da lógica, da razão, das máximas da experiência e dos conhecimentos científicos, que permita objectivar a apreciação, requisito necessário para uma real motivação da decisão: com a exigência de objectivação da livre convicção poderia pensar-se nada restar já à liberdade do julgador, mas não é assim: a convicção do julgador há-de ser sempre uma convicção pessoal, mas há-de ser sempre uma convicção objectivável e motivável, portanto capaz de impor-se aos outros em termos de racionalidade e perceptibilidade.
Não esqueçamos, ainda, que a formação da convicção do juiz não pode resultar de partículas probatórias, mas tem necessariamente de provir da análise global do conjunto de toda a prova produzida.
A actividade dos Juízes, como julgadores, não pode ser a de meros espectadores, receptores de depoimentos. A sua actividade judicatória há-de ter, necessariamente, um sentido crítico. Para se considerarem provados factos não basta que as testemunhas chamadas a depor se pronunciem sobre as questões num determinado sentido, para que o Juiz necessariamente aceite esse sentido ou essa versão. Os Juízes têm necessariamente de fazer uma análise crítica e integrada dos depoimentos com os documentos e outros meios de prova que lhes sejam oferecidos.
No caso vertente, ouvida a gravação dos depoimentos prestados não podemos deixar de acompanhar a Sr.ª Juiz a quo na análise crítica que fez da prova, salientando o cuidado tido com a condução da audiência.
Assim, as declarações prestadas por AA, bem como o depoimento prestado por FF são exaustivos e pormenorizados, ressaltando, ainda, das declarações prestadas pelo requerente o seu agastamento com toda a situação.
Não ignoramos, é certo, que são partes interessadas, no entanto, não podemos deixar de os valorar, atento o seu carácter pormenorizado, para fins de apreciação sumária da prova, em conjugação com a demais prova produzida.
Destarte, a factualidade assente em 32 e 33 extrai-se do depoimento da testemunha FF, que a afirmou, bem como dos documentos de fls. 35 e 36, 73 e 74, corroborados pela informação de fls. 71, emanada pela conservatória competente.
Ora, sem prejuízo de nos procedimentos cautelares se exigir um grau de prova meramente indiciário para efeitos de aferição da matéria de facto, tal não exclui que é sobre o Requerente que recai o ónus da prova, mesmo que meramente indiciária, dos factos constitutivos do(s) seu(s) alegado(s) direito(s).
No entanto, num procedimento cautelar, o tribunal não exige uma prova completa e detalhada como em um processo principal. A prova sumária é suficiente para justificar a concessão da medida de urgência. Isso significa que o requerente deve apresentar elementos que, com certa segurança, demonstrem que o seu direito existe e está ameaçado, justificando a necessidade de protecção imediata.
Ora, os factos dados como indiciariamente provados sob os nºs 32 e 33 emergem do depoimento prestado por FF e, como advém dos autos, foi esta que, por ter mais tempo, promoveu a venda daquele veículo ... que era propriedade do seu Companheiro/marido.
De resto, foi o requerido, aqui recorrente, que requereu as declarações de parte do requerente, aqui recorrido, que admitiu tais factos, ou seja:
- que no dia 02 de Setembro de 2024, o requerente acordou com CC a venda da viatura AUDI ..., com a matrícula ..-OE-.., pelo preço de € 29.000,00;
- quantia que o requerente recebeu, tendo entregue o veículo automóvel a CC;
- e que tendo requerido o registo, tal como se havia comprometido fazer com a compradora, foi requerido o registo desta compra e venda que foi recusado, com fundamento na violação do princípio do trato sucessivo.
Além disso, esclareceu porque foi violado o princípio do trato sucessivo.
Assim, elucidou que o requerido, aqui recorrente, tirou uma fotografia ao formulário de requisição do registo, do qual constavam os elementos necessários para contratar o seguro de responsabilidade civil da viatura, facto que lhe foi permitido quer pelo requerente, ora recorrido, quer pela dona da agência automobilística, onde o fez, tendo-o realizado com o objectivo confessado de ir tratando do seguro de responsabilidade civil inerente ao veículo, enquanto o requerente/recorrido aguardava a transferência anunciada.
Destarte, abusivamente, usou a fotografia da requisição do registo para proceder à inscrição da propriedade do referido veículo em seu nome.
Ora, a fotografia da requisição de registo que tirou com o fim de “ir tratando do seguro”, continha a entidade, referência e valor a pagar caso o registo fosse, efectivamente, para celebrar, o que não era o caso, tanto mais que, por força do que atrás se referiu a requisição do registo foi destruída (rasgada e posta no lixo) pela dona da agência automobilística, por instruções do requerente/recorrido e na presença do requerido/recorrente.
Assim, contrariamente à boa fé, o requerido/recorrente utilizou a fotografia para, aproveitando a entidade, referência e valor, geradas automaticamente com a requisição do registo, efectuar o pagamento que conduziu à inscrição da propriedade do veículo em seu nome.
Além disso, resultou indiciariamente assente que a 02/09/2024, o requerente recorrido vendeu a viatura, AUDI ..., à CC, que pagou por ela o preço, tendo o requerente/recorrido entregue a viatura e requerido o registo de propriedade em seu nome, como resulta do documento junto com requerimento inicial sob o nº 6.
Já relativamente ao facto que o Apelante pretende aditar (artigo 12.º da oposição) afigura-se-nos não constituir um facto essencial à boa decisão da causa, sendo, ainda, certo que não se provou com o cariz que o impugnante lhe pretende conferir.
Afigura-se-nos, por isso, à luz da globalidade da prova produzida conjugada com as regras da lógica e da experiência comum que não merece crítica as respostas à matéria de facto provada nos segmentos impugnados, improcedendo, por isso, a impugnação apresentada.
Resulta, ainda, como questão a apreciar, saber se, face aos factos indiciariamente provados, se pode concluir pela existência dos requisitos para decretar as providências ordenadas.
Na decisão recorrida entendeu-se estarem verificados tais requisitos.
Deste entendimento dissente o recorrente.
Vejamos, então.
Preceitua o n.º 1, do artigo 362.º do Código de Processo Civil que “sempre que alguém mostre fundado receio de que outrem cause lesão grave e dificilmente reparável ao seu direito pode requerer a providência concretamente adequada a assegurar a efectividade deste”.
Por seu turno, o artigo 368.º prescreve que a providência é decretada quando houver “probabilidade séria da existência do direito e se mostre suficientemente fundado o receio da sua lesão” (n.º 1), podendo o tribunal, no entanto, recusar a sua decretação “quando o prejuízo dela resultante para o requerido exceda consideravelmente o dano que com ela o requerente pretende evitar” (n.º 2 do mesmo normativo)
Como diz Abílio Neto[1], “decretamento de uma providência cautelar não especificada depende da concorrência dos seguintes requisitos: (a) que muito provavelmente exista o direito tido por ameaçado - objecto de acção declarativa -, ou que venha a emergir de decisão a proferir em acção constitutiva, já proposta ou a propor; (b) que haja fundado receio de que outrem antes de proferida decisão de mérito, ou porque a acção não está sequer proposta ou porque ainda se encontra pendente, cause lesão grave e dificilmente reparável a tal direito; (c) que ao caso não convenha nenhuma das providências tipificadas nos arts. 393.º a 427.º do CPC; (d) que a providência requerida seja adequada a remover o periculum in mora concretamente verificado e a assegurar a efectividade do direito ameaçado; (e) que o prejuízo resultante da providência não exceda o dano que com ela se quis evitar”.
Como se sabe a providência cautelar não especificada visa a tutela provisória de um direito ameaçado, sendo instrumental de um processo principal instaurado ou a instaurar - cf. artigo 364.º do Código de Processo Civil.
Afirma Alberto dos Reis[2], que “A providência cautelar surge como antecipação e preparação duma providência ulterior: prepara o terreno e abre caminho para uma providência final. A providência cautelar, nota Calamendrei, não é um fim, mas um meio; não se propõe dar realização directa e imediata ao direito substancial, mas tomar medidas que assegurem a eficácia duma providência subsequente, esta destinada à actuação do direito material. Portanto, a providência cautelar é posta ao serviço duma outra providência, que há-de definir, em termos definitivos, a relação jurídica litigiosa. Este nexo entre a providência cautelar e a providência final pode exprimir-se assim: aquela tem carácter provisório, esta tem carácter definitivo”.
No que diz respeito à apreciação do requisito da titularidade do direito, a lei contenta-se com a emissão de um juízo de probabilidade ou verosimilhança, exigindo, todavia, que tal probabilidade seja justa e séria[3].
Já no que concerne ao segundo requisito atrás referido, o do fundado receio de lesão grave e de difícil reparação, pressupõe a providência que aquele que a solicita se encontre perante meras ameaças. Se a lesão já está consumada, a providência não tem razão de ser, por falta de função útil, porque não há que evitar ou acautelar um prejuízo se este já se produziu, a não ser que a violação cometida seja o prelúdio de outras violações, que se mantenham actuais[4].
Por outro lado, a violação receada não será qualquer uma, mas aquela que "modificando o estado actual, possa frustrar ou dificultar muito a efectividade do direito de uma parte. Para justificar o fundado receio de lesão grave e de difícil reparação não basta um acto qualquer, mas sim aquele que é capaz de exercer uma dificuldade notável, importante para o exercício do direito[5]".
Ou seja, não basta, para o deferimento da providência, que se conclua pela possibilidade de o requerente poder vir a sofrer um qualquer dano. Tal dano tem de revestir uma gravidade assinalável, ser penoso e importante de tal forma que a sua reparação posterior seja inviável ou mesmo meramente difícil.
Este último requisito há-de aferir-se já não através de um juízo de mera probabilidade (como o da verificação da aparência do direito) mas sim através de um juízo de realidade ou de certeza.
Em suma, o que está em causa, em última análise, é obviar-se ao "periculum in mora".
Ou seja, a providência cautelar, porque não constitui um meio para se criarem ou definirem direitos, não deve ser encarada como uma antecipação da decisão final a proferir na acção principal e da qual depende, apenas se justificando para se acautelar o direito invocado no sentido de evitar, durante a pendência da acção principal, a produção de danos graves e dificilmente reparáveis.
Sabido é, que estamos no âmbito de procedimento cautelar, em termos de composição provisória do litígio, indiciada como necessária para assegurar a utilidade da decisão, para que se obtenha a efectiva tutela jurisdicional, garantindo o efeito útil da acção.
Assim sendo, e não visando resolver questões de fundo, mas antes acautelar os efeitos práticos da acção proposta ou a propor, basta um juízo de verosimilhança, afirmando-se a suficiência de uma prova sumária, assente num grau de probabilidade razoável, e não uma convicção que se poderá designar de plena, a concretizar em sede de acção, aquando do conhecimento do próprio litígio.
Ou seja, para o decretamento de uma providência cautelar não especificada, nos termos do artigo 381.º, do Código de Processo Civil, impõe-se que se verifique, essencialmente, a existência, muito provável, de um direito que se tem por ameaçado, emergente de decisão a proferir em acção constitutiva, já proposta ou a propor, e o fundado receio que alguém, antes ser proferida decisão de mérito, em acção pendente ou a propor, cause lesão grave e dificilmente reparável a tal direito.
Também não é despiciendo que a providência requerida seja adequada a remover o periculum in mora, ou seja o prejuízo da demora inevitável do processo, no caso concreto evidenciado, assegurando consequentemente a efectividade do direito que está a ser posto em causa ou ameaçado, para além do prejuízo decorrente do decretamento da providência não dever exceder o dano que com a mesma se pretende evitar.
Precisando um pouco mais, diga-se que a imposição de uma medida ou providência cautelar pressupõe a existência, embora analisada em termos sumários, de um direito na esfera jurídica do requerente, no momento exacto em que formula a sua pretensão em juízo, pese embora a medida cautelar não perca a sua natureza instrumental relativamente à acção, reafirmando-se também quanto ao receio de lesão grave e dificilmente reparável, a inexigibilidade de um juízo de certeza, bastando um de verosimilhança, ou probabilidade séria.
Em ambos os casos, importa que o juízo a fazer assente numa realidade, ainda que sumariamente evidenciada, e não em considerações sem uma base factual que as suporte, devendo verificar-se, no que concerne ao justo receio, a ocorrência de prejuízos reais e certos, em termos de uma prudente avaliação de tal realidade, e não uma apreciação ou juízos de cariz meramente subjectivo, emocionalmente determinados.
Reportando-nos ao caso vertente, temos que perante a prova indiciariamente produzida, não temos dúvidas pela verificação do requisito da probabilidade séria da existência do direito, ou fumus boni iuris.
Com efeito, o artigo 874.º do Código Civil define a compra e venda como “o contrato pelo qual se transmite a propriedade de uma coisa, ou outro direito, mediante um preço.”
Por sua vez, conforme bem refere o Tribunal a quo, um contrato é, estruturalmente, um encontro de duas ou mais declarações de vontade, voluntário e vinculativo.
Ora, conforme decorre da matéria indiciariamente assente, no caso vertente nunca se chegou a formar um contrato entre o Requerente, aqui Apelado, e o Requerido, aqui Apelante.
Na verdade, ambos negociaram os termos do acordo com um “DD”, tendo emitido declarações de vontades distintas e não consentâneas (o Apelado queria vender por € 29.000,00 e o Apelante queria comprar por € 16.500,00).
Ou seja, nunca o Apelado quis ou aceitou vender por € 16.500,00, nem o Apelante quis ou aceitou comprar por € 29.000,00.
Donde, formando-se o contrato quando há a exteriorização de duas declarações de vontades convergentes, neste caso, temos que concluir que não as há.
A questão essencial é, pois, prévia à da produção de efeitos do contrato de compra e venda (e na qual as partes enquadraram a questão jurídica nas suas alegações).
Diga-se, ainda, que as “declarações” que serviram para instruir o registo não colocam em causa a referida conclusão, pois, de acordo com os factos dados como indiciariamente assentes, a vontade real não era a vontade declarada (v.g. artigo 247.º do Código Civil).
Donde, em face do que fica dito, e porque o registo automóvel não tem efeitos constitutivos, mas meramente declarativos, destinando-se apenas a dar publicidade ao acto registado, conclui-se que não se mostra indiciariamente provado que o requerido seja o proprietário do veículo.
Na realidade, o registo automóvel, à semelhança do que é regra no registo predial (artigo 1º do Código do Registo Predial), não tem efeito constitutivo (como acontece com a hipoteca, p. ex.) ou transmissivo. Tem como efeito primordial conceder ao facto registado uma forma de publicidade organizada, independentemente de qualquer efeito jurídico específico. É o que se chama de efeito declarativo ou enunciativo.
Assim, resulta da factualidade indiciariamente provada que logrou o Apelado provar a probabilidade séria da existência do seu direito.
Também, assim, cremos, quanto ao periculum in mora.
De facto, no caso vertente, a lesão grave e de difícil reparação nem sequer é uma mera ameaça, já se concretizou e reside no facto de o Apelante ter registado um bem que não é seu em seu nome, prejudicando o Apelado, desde logo, porque se vê impedido de o utilizar e registar a venda que do referido bem efectuou a favor de CC.
Daí que, apesar da lesão do direito do Requerente já ter ocorrido, essa mesma lesão ainda se mantém em curso (pois que só terminará quando o requerido não beneficiar da titularidade do registo de propriedade) e pode agravar-se com o tempo, razão pela qual se entende, em sintonia como Tribunal a quo, estar verificado o receio de que a lesão ao direito do requerente se agrave enquanto não for decidida a acção principal.
Por fim, o prejuízo decorrente do decretamento da providência não é consideravelmente superior ao dano que através dela se pretende acautelar.
Além disso, a resolução decretada pela sentença recorrida foi pedida pelo Requerente/Recorrido e o Requerido/Recorrente foi chamado e deduziu oposição.
Ora, quando à oportunidade de dedução da defesa resulta do disposto no artigo 573.º do Código de Processo Civil que:
“1 - Toda a defesa deve ser deduzida na contestação, excetuados os incidentes que a lei mande deduzir em separado.
2 - Depois da contestação só podem ser deduzidas as exceções, incidentes e meios de defesa que sejam supervenientes, ou que a lei expressamente admita passado esse momento, ou de que se deva conhecer oficiosamente.”
Ou seja, depois da contestação só podem ser deduzidas as excepções, incidentes e meios de defesa que sejam supervenientes. Além disso, as alegações de recurso não servem para suscitar questões novas.
Ora, o recorrido alegou e provou indiciariamente que vendeu o veículo à CC, que esta lhe pagou o preço acordado, que lhe entregou a viatura e que, após foi requerida a transferência de propriedade no registo tal como lhe competia porque a tanto se havia obrigado.
Assim, mostra-se indiciariamente provado que o recorrido transmitiu a propriedade do veículo à CC, mediante contrato verbal, entregou-lho e recebeu o preço.
É certo que a referida CC não é parte material no procedimento cautelar, mas tal facto não constitui fundamento para não considerar o Requerente parte legítima para requerer o procedimento, atenta a sua qualidade, nem retira ao referido terceiro a faculdade de interpor recurso, caso entenda ter sido afectada por alguma providência decretada.
Com efeito, uma especificidade da tramitação dos recursos consiste na possibilidade de um terceiro, que não é parte material na causa, interpor, ele mesmo, o recurso. Como esse terceiro não foi parte na causa, a sua legitimidade ad recursum só pode ser aferida segundo um critério material: esse terceiro há-de ser alguém que seja directa e efectivamente prejudicado com a decisão, alguém que seja afectado, pela decisão que pretende impugnar, nos seus direitos e interesses (artigo 631º, nº 2 do Código de Processo Civil).
Assim, não se vislumbra qualquer fundamento para a alegada ilegitimidade invocada, nem para a circunstância de ter sido decretada uma providência que contende com os direitos de um terceiro, que não é parte material na providência, mas que não os afecta, antes os define e efectiva.
Além disso, o tribunal na altura em que profere a decisão, não está, sequer, vinculado à concessão da medida cautelar individualizada pelo requerente, tendo liberdade para integrar na decisão a medida que entender mais adequada a tutelar a situação e determinar aquilo que melhor favoreça a conservação do direito do requerente ou a antecipação dos efeitos que através da acção definitiva se procuram atingir.
A atipicidade expressamente ressalvada na letra do artigo 362.º, n.º 1, conjugada com a norma do artigo 376.º, n.º 3, confere ao juiz maior liberdade de adaptação da medida cautelar adequada à situação de facto carecida de tal tipo de tutela provisória, de modo que, diversamente do que está previsto para as acções com cariz definitivo (artigo 609.º), o juiz não está vinculado a conceder ou a recusar a medida solicitada, devendo decretar aquela que “concretamente for adequada a assegurar a efectividade do direito ameaçado”, desde que a matéria de facto alegada e provada permita tal convolação. Desta forma, a liberdade de adequação da providência cautelar está limitada à relação jurídica invocada e representada pelo conjunto dos factos alegados pelas partes nos articulados, pelos factos essenciais que resultem da instrução e discussão e cujo aproveitamento seja requerido, por serem complementares ou concretizadores de outros alegados, e ainda pelos factos instrumentais também derivados da instrução e discussão da causa e oficiosamente recolhidos pelo juiz para fundar a sua decisão.
O referido preceito abriu, sem dúvida, uma brecha no princípio do dispositivo, sendo que o disposto no artigo 376.º, n.º 3 do Código de Processo Civil não pode ter um alcance tão redutor que apenas consinta a correcção da forma procedimental ou a emenda de eventual erro na qualificação jurídica apresentada pelo requerente concedendo ao juiz a liberdade para decretar a providência que melhor satisfaça os interesses em causa dentro dos limites acima assinalados[6].
Ademais, do princípio do contraditório resulta que cada uma das partes deve poder exercer uma influência efectiva no desenvolvimento do processo, devendo ter a possibilidade, não só de apresentar as razões de facto e de direito que sustentam a sua posição antes do tribunal decidir questões que lhe digam respeito, mas também de deduzir as suas razões, oferecer as suas provas, controlar as provas do adversário e tomar posição sobre o resultado de uma e de outras.
Ora, os factos foram alegados e as providências requeridas no requerimento inicial e o requerido teve oportunidade de deduzir oposição, não sendo esta a sede para suscitar questões novas. Ou seja, os recursos são meios a usar para obter a reapreciação de uma decisão, mas não para obter decisões de questões novas, isto é, de questões que não tenham sido suscitadas pelas partes perante o tribunal recorrido.
Estamos, no entanto, no domínio estrito das providências cautelares e das "decisões provisórias" uma vez que foi indeferida a inversão do contencioso, não sendo despiciendo que a providência requerida seja adequada a remover o periculum in mora, ou seja, o prejuízo da demora inevitável do processo, no caso concreto evidenciado.
Sobre a epígrafe, “relação entre o procedimento cautelar e a ação principal”, dispõem os nºs 1, 2, 3 e 4 do artigo 364.º do Código de Processo Civil que:
“1.Exceto se for decretada a inversão do contencioso, o procedimento cautelar é dependência de uma causa que tenha por fundamento o direito acautelado e pode ser instaurado como preliminar ou como incidente de ação declarativa ou executiva.
2. Requerido antes de proposta a ação, é o procedimento apensado aos autos desta, logo que a ação seja instaurada e se a ação vier a correr noutro tribunal, para aí é remetido o apenso, ficando o juiz da ação com exclusiva competência para os termos subsequentes à remessa.
3. Requerido no decurso da ação, deve o procedimento ser instaurado no tribunal onde esta corre e processado por apenso, a não ser que a ação esteja pendente de recurso; neste caso a apensação só se faz quando o procedimento estiver findo ou quando os autos da ação principal baixem à 1.ª instância.
4. Nem o julgamento da matéria de facto, nem a decisão final proferida no procedimento cautelar, têm qualquer influência no julgamento da ação principal.
(…).”.
Resulta, assim, de tal normativo a consagração legal das características da instrumentalidade e da dependência do procedimento cautelar relativamente à acção principal.
Os procedimentos cautelares surgem, assim, para servir o fim das respectivas acções principais.
Significa, pois, tal que as providências cautelares estão necessariamente dependentes de uma acção pendente ou a instaurar posteriormente, acautelando ou antecipando provisoriamente os efeitos da providência definitiva, na pressuposição de que será favorável ao requerente a decisão a proferir na respectiva acção principal.
Os efeitos de qualquer providência estão, assim, dependentes do resultado que for ou vier a ser conseguido na acção definitiva e caducam se essa acção não for instaurada, se a mesma for julgada improcedente ou ainda se o direito que se pretende tutelar se extinguir (cfr. artigo 373º, alíneas c) e e) do Código de Processo Civil).
Resulta, assim, de tal que a instauração de um procedimento cautelar pressupõe que a tutela do direito que nele provisoriamente o requerente reclama possa previsivelmente vir a ser confirmado pela tal acção principal de que depende. Ou seja, não se poderá, assim, prosseguir na providência cautelar um objectivo que depois não possa ser alcançado e confirmado na respectiva acção principal definitiva.
De resto, a instrumentalidade é o principal traço característico da tutela cautelar, existindo tal tutela em função dos processos em que se discute o fundo das causas e em ordem a assegurar a utilidade das sentenças a proferir no âmbito desses processos. Exige-se que com o decretamento da providência cautelar não se crie uma situação fáctica definitiva e irreversível, pelo que, as providências cautelares deverão ser provisórias não apenas no plano normativo, mas também no plano dos factos, de forma a não causar danos irreversíveis e irreparáveis caso a sentença final conclua pela inexistência do direito alegado pelo requerente.
Destarte, os procedimentos cautelares são meios, por essência, destinados a garantir a titularidade de um direito contra uma ameaça ou um risco que sobre ele paira e que é tão eminente que o seu acautelamento não pode aguardar a decisão de um moroso processo declarativo.
Além disso, não é viável, nem admissível, por contrariar a finalidade própria das providências cautelares, a instauração de um procedimento cautelar com o qual não se visa, apenas, dar utilidade ou eficácia à decisão a proferir na acção principal, mas antes obter uma decisão definitiva do litígio, alcançando um efeito que é, precisamente, aquele que se pretende na acção principal.
No caso em apreço, a referida questão assume relevância atenta a forma como se mostram configuradas as providências cautelares requeridas, certamente também motivado por ter sido requerido a inversão do contencioso.
Conforme atrás referimos, o procedimento cautelar apenas visa evitar os prejuízos decorrentes da demora da concessão da tutela definitiva do direito, não visa antecipar os efeitos do reconhecimento definitivo do direito.
Assim, se estamos a afastar o registo de propriedade a favor do requerido e a repor o registo a favor do autor (e o registo a favor da pessoa a quem este já vendeu o veículo) aparenta estarmos já a tutelar em sede cautelar os efeitos da tutela definitiva (do direito de propriedade do requerente).
Sucede que relativamente aos veículos automóveis a existência de um registo válido é condição para a pessoa poder usar o veículo, exibindo às autoridades, quando lhe for exigido, o documento único que deve trazer consigo quando circula com o veículo.
Trata-se, portanto, não apenas de um documento que advém da titularidade do direito, mas também de um documento cuja posse é necessária à utilização prática do veículo, justificando-se, por isso, determinar, provisoriamente, “O cancelamento do registo de propriedade que incide sobre a viatura da marca AUDI, modelo ..., com a matrícula ..-OE-.., a favor do requerido, que foi efetuado pela AP: ... de 18/06/2024.”.
De resto, afigura-se-nos que embora estejamos no domínio de um procedimento cautelar, para evitar o dano decorrente da demora da tutela definitiva (leia-se o dano da impossibilidade da utilização do veículo que sumariamente se apura pertencer ao requerente) é possível ordenar um procedimento cautelar de cancelamento no registo automóvel (do titular actualmente inscrito).
Porém, seguindo esta mesma linha de raciocínio parece-nos, no entanto, que a decisão recorrida não pode ser confirmada no segmento em que determina a inscrição do registo a favor da pessoa a quem a requerente transmitiu a propriedade do veículo.
Com efeito, o cancelamento da inscrição a favor do aqui requerido é meramente o resultado da providência cautelar aqui decretada, pelo que não se trata de uma inscrição definitiva, com base numa decisão judicial definitiva.
Assim, a Conservadora não pode considerar que já existe uma decisão definitiva a afastar a titularidade do direito do requerido e, por isso, não poderá inscrever no registo de uma aquisição posterior que pressupõe esse afastamento definitivo.
E se a Conservadora não pode, entendemos que, também, não pode o tribunal, desvirtuando as regras da inscrição no registo, pressupondo que é definitivo o que não é.
Por isso, impõe-se a revogação da decisão no segmento em que determina “A inscrição da propriedade no registo automóvel que foi requerido pela AP: ... de 04/09/2024” a favor da aquirente CC, confirmando a decisão no demais, designadamente, no segmento em que determina, provisoriamente, “O cancelamento do registo de propriedade que incide sobre a viatura da marca AUDI, modelo ..., com a matrícula ..-OE-.., a favor do requerido, que foi efetuado pela AP: ... de 18/06/2024.”
Impõe-se, por isso, o provimento parcial do recurso de apelação.
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Nos termos supra expostos, acorda-se neste Tribunal da Relação do Porto em julgar parcialmente provido o recurso de apelação, revogando a decisão recorrida no segmento em que determinou “A inscrição da propriedade no registo automóvel que foi requerido pela AP: ... de 04/09/2024”, confirmando-a no demais.
Porto, 08 de Maio de 2025