ARRESTO PREVENTIVO
MEDIDA DE GARANTIA PATRIMONIAL
Sumário

I- O arresto preventivo visa, como decorre do teor do artigo 228º do Código de Processo Penal (que remete para o artigo 227º nº1 do mesmo diploma legal), garantir o pagamento da pena pecuniária, das custas do processo ou qualquer dívida para com o Estado relacionada com o crime, a perda dos instrumentos, produtos ou vantagens de facto ilícito típico ou do pagamento do valor a estes correspondentes.
II- Trata-se de uma medida de garantia patrimonial que se mantém até que seja proferida decisão final absolutória ou equivalente (decisão de não pronúncia transitada) ou até à extinção das obrigações ou prestação de caução económica tal como previsto no artigo 227º nº5 e 228 ambos do Código de Processo Penal.
III- Há, assim, uma relação umbilical entre a medida e o processo em que é decretada visando a mesma acautelar a eficácia da decisão judicial condenatória que aí vier a ser proferida e a finalidade processual de realização da justiça que impende sobre o Estado através dos Tribunais.
IV- Assim, ao contrário do invocado, ao indeferir o requerimento do recorrente o que o despacho recorrido fez foi acautelar o interesse do Estado que subjaz à decisão do arresto preventivo decretado: o de assegurar a eficácia da decisão judicial condenatória que vier a ser proferida e a finalidade processual de realização da justiça que impende sobre o Estado através dos Tribunais.
V- Destarte, não se vislumbra qualquer conflito de dever, qualquer excesso ou desproporcionalidade ou desrespeito pela autoridade do caso julgado como invocado porque não cabe no âmbito da medida de garantia patrimonial assegurar interesse ou finalidade diversa daquela para que está legalmente prevista e foi concretamente decretada.

Texto Integral

Acordam, em conferência, os Juízes Desembargadores da 3ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa

1- RELATÓRIO:
No âmbito do Apenso A dos autos 324/14.0TELSB que correm os seus termos no Juiz 2 do Juízo Central Criminal de Lisboa, Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa foi, em 15 de outubro de 2024,proferido despacho que indeferiu requerimento de AA a solicitar autorização para venda de imóvel arrestado a fim de que o produto da venda pudesse reverter para o pagamento de coimas em que foi condenado em processos que correm os seus termos no Tribunal da Concorrência, Regulação e Supervisão.
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Inconformado com tal despacho dele recorreu AA extraindo da motivação as conclusões que a seguir se transcrevem:
1.ª O presente recurso é interlocutório, versa apenas matéria de Direito e tem por objeto o douto Despacho de 15.10.2024, proferido pela Mma. Juiz Presidente do Juiz 2 do Tribunal Central Criminal de Lisboa, que se pede que seja revogado, que indeferiu o requerimento, formulado pelo ora recorrente, de autorização para venda do imóvel que se encontra arrestado à ordem dos presentes autos acima melhor identificado (com a finalidade de evitar a dissipação do património necessário para assegurar a perda a favor do Estado do valor correspondente ao alegado benefício patrimonial auferido com a alegada prática dos crimes em apreciação nestes autos), para que o produto da venda desse imóvel fosse usado para proceder ao imediato pagamento do remanescente das coimas em que o arguido se encontra condenado por sentenças já transitadas em julgado, num valor superior a 3 milhões de euros.
2 O douto Despacho de que ora se recorre não autorizou a venda do referido imóvel por ter partido, com o devido respeito, do errado pressuposto de que a requerida autorização de venda acarretaria o risco de dissipação do património do arrestado e que, portanto, tal constituiria uma violação das finalidades que presidiram à constituição do referido arresto.
3.ª Todavia, o douto Despacho de que ora se recorre não teve em conta, sob o ponto de vista dos interesses patrimoniais do Estado:
a. que a autorização requerida nunca implicaria o levantamento do arresto (nem tal foi requerido), havendo apenas, num primeiro momento, a substituição do imóvel pelo produto da sua venda, que continuaria arrestado à ordem dos presentes autos;
b. que, num segundo momento, apenas através de ordem judicial emanada do Tribunal a quo poderia ser movimentado o referido valor resultante da venda do imóvel arrestado, pelo que o Tribunal a continuaria a ter total controlo sobre a referida quantia;
c. que o destino a dar, através da referida ordem judicial, ao produto da venda do imóvel apenas poderia ser aquele que constasse da autorização deferida, ou seja, o imediato pagamento do remanescente das referidas coimas com a imediata entrada na Tesouraria Geral do Estado de um valor superior a 3 milhões de euros;
d. pelo que não haveria o mínimo risco de dissipação do património arrestado;
e. que, nos termos da autorização requerida, o destino a dar ao produto da venda do imóvel corresponde sempre e só a interesses do Estado e nunca a interesses privados do arguido ora recorrente;
f. que o interesse público da imediata entrada na Tesouraria Geral do Estado de um valor de mais de 3 milhões de euros, que já são definitiva e imediatamente devidos em obediência a sentenças já transitadas em julgado, deve prevalecer sobre o interesse público de manter intocado o património do arguido para que este património continue a constituir uma garantia à espera que o eventual direito do Estado, que é neste momento um direito litigioso e de montante incerto, deixe de ser litigioso, o que só sucederá quando houver uma decisão final, que tanto poderá ser condenatória como absolutória, transitada em julgado, o que previsivelmente não acontecerá antes que estejam decorridos vários anos;
g. que, do ponto de vista do interesse patrimonial do Estado, é irrelevante se o património do arguido ora recorrente vai ser entregue ao Estado no âmbito de um processo ou no âmbito de outro processo, mas não é irrelevante saber se essa entrega ao Estado vai ocorrer imediatamente e de forma absolutamente certa, ou se apenas poderá vir a ocorrer daqui a largos anos e não passa neste momento de uma mera possibilidade.
4.ª Assim, longe de permitir qualquer eventual dissipação de património, aquilo que a autorização de venda requerida viabiliza é, sim, a do recebimento pelo Estado de uma receita que é já certa e exigível num valor muitíssimo relevante (de mais de 3 milhões de euros), em cumprimento de um dever que é imediatamente imposto por sentenças judiciais transitadas em julgado.
5.ª Enquanto que a manutenção do arresto preventivo do imóvel em causa, sem mais, não só vai necessariamente retardar em vários anos o recebimento pelo Estado de qualquer valor - pois, com realismo, não haverá uma decisão final, absolutória ou condenatória, proferida nos presentes autos e já transitada em julgado, antes de estarem volvidos vários anos -, como tão só salvaguarda uma receita que é incerta porque litigiosa, e portanto que é ainda meramente eventual e de montante também ele incerto.
6.ª No conflito entre um dever que é já certo e está imposto por sentença transitada em julgado e um dever que é meramente eventual e incerto, o exercício do poder judicial pautado por critérios de proporcionalidade e proibição do excesso na prossecução do prevalecente interesse objetivo patrimonial do Estado, não pode deixar de dar prevalência à viabilização do cumprimento do dever imposto por sentenças já transitadas em julgado.
7.ª O Tribunal a quo, ao indeferir a pretensão do ora recorrente, violou os princípios de proporcionalidade e proibição do excesso e também de prossecução do interesse público, pelos quais se devem pautar as decisões judiciais e que sempre deveriam ter conduzido o Tribunal a quo a reconhecer a prevalência do objetivo interesse público na receção imediata de uma importante receita pelo Estado, em cumprimento de um dever já imposto por sentenças transitadas em julgado, sobre a inalterabilidade de bens arrestados para garantia da satisfação futura de um direito que é neste momento litigioso e meramente eventual.
8.ª Foi assim violado pela decisão recorrida o art.º 18º nº 2 da Constituição que consagra o princípio da proporcionalidade e da proibição do excesso.
9.ª No requerimento do arguido, indeferido pelo douto Despacho recorrido, é também a autoridade do caso julgado que está em causa, pois o que o arguido requereu foi que se lhe permita o respeito e cumprimento por sentenças judiciais, de mérito, condenatórias em contraordenações muito graves e respetivas coimas de valor enorme, já transitadas em julgado, pois não existe outra forma de o arguido acabar de as cumprir.
10.ª E o douto Despacho recorrido decidiu no sentido da obstaculização ao integral cumprimento de tais sentenças de mérito condenatórias em contraordenações muito graves e coimas de valor enorme, já transitadas em julgado.
11.ª A autoridade de caso julgado das sentenças condenatórias em causa respeita a decisões que julgaram o mérito dessas causas e aplicaram sanções punitivas com fins de prevenção geral, enquanto a autoridade de caso julgado do despacho que determinou o arresto respeita a decisão em incidente processual cautelar, com fins de garantia patrimonial, pelo que, no confronto entre estas duas autoridades de caso julgado, prevalece, sem dúvida, o respeito pela primeira em detrimento da segunda, por ser manifesta a prevalência dos valores em causa na primeira sobre os valores em causa na segunda.
12.ª As pretensões dos ditos lesados (em favor de quem começou por ser decretado o arresto de todos os bens do arguido ora recorrente, depois alterada por Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa) já foram em parte satisfeitas pelo Estado, através do acordo que com estes foi celebrado e que é de conhecimento público e notório que existe e lhes mitigou os danos e, noutra vertente, por douta decisão do Tribunal a quo, tais lesados foram remetidos para os meios civis, já não sendo atualmente intervenientes processuais, nem estando atualmente os seus interesses em causa nestes autos.
13.ª Se for permitido que o arguido pague ao Estado o remanescente do valor pelo que foi condenado, não ficará nem com o imóvel nem com o produto da sua venda e, então, obviamente, não lhe restará nada para "ficar compensado" pelos atos em causa, até porque mais nada tem além do que está arrestado, razão pela qual a revogação do indeferimento do requerimento do arguido, para vender a sua casa e com o produto da venda pagar o remanescente das coimas que lhe foram impostas por sentenças transitadas em julgado, até prossegue, em termos práticos, a mesma finalidade que é prosseguida pela perda a favor do Estado de bens produto dos crimes: "que o crime não compense".
14.ª Os pretensos crimes que "deixariam de compensar" através da perda a favor do Estado de pretensas vantagens deles emergentes, a considerar-se que foram praticados, emergem fundamentalmente dos mesmos factos de que emergem as contraordenações muito graves cujas coimas o arguido pretende pagar na totalidade (numa situação tecnicamente de concurso ideal entre crimes e contraordenações).
15Portanto, materialmente, através da viabilização do pagamento total das coimas em causa, em que o arguido foi condenado, está já a impedir- se que "compensem" os factos da vida real que foram praticados pelo arguido ora recorrente (que juridicamente consubstanciam a prática de contraordenações, como está já definitivamente decidido por sentenças transitadas em julgado e está em discussão nestes autos se também consubstanciam, ou não, crimes).
16.ª O douto Despacho recorrido violou o art.º 205º nº 2 da Constituição e o art.º 24º nº 2 da LOSJ (Lei nº 62/2013 de 26 de agosto), na medida em que não respeitou a autoridade de caso julgado das sentenças que condenaram o arguido, com trânsito em julgado, nas coimas cujo remanescente, de valor ainda muito elevado, de mais de 3 milhões de euros, ele pretende pagar pela única maneira possível, que é a venda do imóvel que se requereu que fosse autorizada e que foi indeferida.
17.ª Por todo o exposto, quer porque assim o determina a prevalência dos objetivos interesses patrimoniais do Estado, quer porque assim o determinam os valores jurídicos em causa, maxime a autoridade de caso julgado das sentenças judiciais transitadas em julgado - que impuseram coimas enormes ao arguido que este só tem possibilidade de cumprir vendendo a sua casa e aplicando o produto dessa venda no pagamento de tais coimas, no valor de mais de 3 milhões de euros -, deve ser revogado o douto Despacho recorrido que deve ser substituído por decisão que autorize a venda do imóvel arrestado, nos termos requeridos em 3.10.2024.
Termina pugnando pela revogação do despacho e sua substituição por outro que autorize a venda requerida.
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Admitido o recurso o Ministério Público do tribunal recorrido apresentou a sua resposta com as conclusões que a seguir se transcrevem:
1. O Arguido recorre da douta decisão que indeferiu o seu pedido de autorização para venda de um imóvel, de sua propriedade, que se mostra arestado nestes autos,
2. Alegando que o produto da venda se destinava (pagas as despesas inerentes), a ser afetado ao cumprimento da coima em que foi condenado.
3. Entende o Arguido que o douto despacho não perspetivou e acautelou, dos vários pontos de vista, os interesses patrimoniais do Estado.
4. Considera o Ministério Púbico que a questão, colocada sob essa perspetiva, é enviesada.
5. O Arguido foi condenado no âmbito do Processo n.º74/19.0YUSTR, pela prática de várias contra-ordenações, em processo que lhe foi movido pelo Banco de Portugal.
6. O que significa que, embora existia uma confirmação da coima através de sentença transitada em julgado, por força do recurso que o Arguido interpôs dessa decisão da autoridade administrativa, a condenação não perdeu a sua natureza contra-ordenacional.
7. A responsabilidade pelo pagamento da coima é do Arguido e é na sua esfera jurídica que se repercute esta obrigação.
8. Logo, não pode o Arguido socorrer-se de um bem arrestado para fazer este pagamento, porque não tem disponibilidade jurídica sobre o mesmo.
9. Não se trata de acautelar o património para que o Arguido não o dissipe e utilize o produto da venda para outros fins.
10. Ainda que este dinheiro sirva para pagar a contra-ordenação, o benefício é do Arguido, que assim se vê desonerado desta responsabilidade,
11.O que não se confunde com o cumprimento de sentença, como alegado.
12.O destino do produto da venda não corresponde à satisfação de interesses do Estado, porque o Estado não é responsável pelo pagamento da coima.
13. E usando este dinheiro para proceder a tal pagamento, quem fica desonerado é o Arguido, que vê assim extinta a sua responsabilidade contra-ordenacional,
14. O que evidentemente se traduz num benefício pessoal.
15. Não existe aqui nenhum conflito de deveres, como pretende sugerir o Arguido, entre a sentença já transitada em julgado e cuja coima tem de ser paga, e o arresto decretado nos presentes autos.
16. São deveres que têm natureza jurídica distinta e não se confundem entre si,
17.Estando vedada a Arguido a possibilidade de ser ele a decidir de que modo afeta o seu património.
18. No mais, e contrariamente ao alegado, não só os lesados não foram ressarcidos na sua totalidade, como nem sequer beneficiaram todos do acordo celebrado,
19. A que acresce que os bens aqui arrestados ainda se mantêm acautelados na defesa dos seus interesses, como concluiu essa Veneranda Relação no Acórdão que manteve despacho que ordenou a remessa dos pedidos de indemnização civil para os meios comuns.
20. O douto despacho recorrido acautela escrupulosamente os direitos de todos os envolvidos, sendo proporcional e prosseguindo o interesse público.
Termina pugnando pelo não provimento do recurso com a consequente manutenção do despacho recorrido.
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Remetidos os autos a este Tribunal da Relação, o Exmo. Procurador Geral-Adjunto emitiu parecer, no sentido de não ser concedido provimento ao recurso, acompanhando na íntegra a posição assumida pelo Ministério Público da 1ª Instância.
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Uma vez que o parecer apenas sufraga a supracitada resposta não houve (nem tinha de haver) cumprimento do disposto no artigo 417.º n.º 2 do Código Processo Penal.
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Efetuado o exame preliminar e colhidos os vistos legais, foram os autos submetidos à conferência.
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Nada obsta ao conhecimento do mérito do recurso cumprindo, assim, apreciar e decidir.
2- FUNDAMENTAÇÃO:
2.1- DO OBJETO DO RECURSO:
É consabido, em face do preceituado nos artigos 402º, 403º e 412º nº 1 todos do Código de Processo Penal, que o objeto e o limite de um recurso penal são definidos pelas conclusões que o recorrente extrai da respetiva motivação, devendo, assim, a análise a realizar pelo Tribunal ad quem circunscrever-se às questões aí suscitadas –, sem prejuízo das que importe conhecer, oficiosamente por serem obstativas da apreciação do seu mérito, nomeadamente, nulidades insanáveis que devem ser oficiosamente declaradas em qualquer fase e previstas no Código de Processo Penal, vícios previstos nos artigos 379º e 410º nº2 ambos do referido diploma legal e mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito.1
Destarte e com a ressalva das questões adjetivas referidas são só as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas conclusões, da respetiva motivação, que o tribunal ad quem tem de apreciar2.
A este respeito, e no mesmo sentido, ensina Germano Marques da Silva3, “Daí que, se o recorrente não retoma nas conclusões as questões que desenvolveu no corpo da motivação (porque se esqueceu ou porque pretendeu restringir o objeto do recurso), o Tribunal Superior só conhecerá das que constam das conclusões”.
Assim à luz do que o recorrente invoca no seu recurso o que se impõe apreciar e decidir é:
- se o despacho recorrido violou os princípios de proporcionalidade e proibição do excesso e de prossecução do interesse público e a autoridade do caso julgado.
2.2- APRECIAÇÃO DO MÉRITO DO RECURSO:
A tramitação processual relevante é a seguinte:
1- Foi decretado o arresto do bem imóvel, da propriedade de AA e da sua mulher: habitação no ... andar, correspondente à fração...do prédio urbano sito na ..., inscrito na matriz sob o art.º ... e descrita na Conservatória do Registo Predial de ... sob o ...da freguesia de ....
2. Em ........2024 AA dirigiu a tais autos um requerimento acompanhado de documentos comprovativos solicitando autorização para venda do referido imóvel alegando, em síntese, que:
Foi condenado, em diversos processos contraordenacionais, ao pagamento de avultadíssimas coimas:
- no processo que, sob o n.º 182/16..., correu termos no Tribunal Judicial da Comarca de Santarém, Tribunal da Concorrência, Regulação e Supervisão, Juiz 1, o arguido foi condenado ao pagamento de uma coima no valor de €350.000,00, que pagou em prestações mensais, entre os dias ........2021, pagamento esse sempre efetuado de forma pontual e integral.
- no processo que, sob o n.º 178/20..., correu termos no Tribunal Judicial da Comarca de Santarém, Tribunal da Concorrência, Regulação e Supervisão, Juiz 2, o arguido foi condenado ao pagamento de uma coima no valor de €180.000,00, que pagou em prestações mensais, entre os dias ........2022 e ........2024 pagamento esse sempre efetuado de forma pontual e integral.
- no processo que, sob o n.º 293/21..., correu termos no Tribunal Judicial da Comarca de Santarém, Tribunal da Concorrência, Regulação e Supervisão, Juiz 3, o arguido foi condenado ao pagamento de uma coima no valor de €300.000,00, tendo sido deferido o pagamento dessa coima em 24 prestações mensais, com inicio em ........2024, sendo as doze primeiras no montante de €2.000,00 cada e as 13a a 24a no montante de €23.000,00 cada, estando o arguido a cumprir pontual e integralmente tal plano prestacional, pelo que já pagou o montante de €18.000,00.
- no processo que, sob o n.º 249/17..., correu termos no Tribunal Judicial da Comarca de Santarém, Tribunal da Concorrência, Regulação e Supervisão, Juiz 1, o arguido foi condenado ao pagamento de uma coima no valor de €100.000,00, que está a pagar em prestações mensais, a decorrerem entre os dias ........2022 e ........2024, pelo que já pagou, de forma pontual e integral, o montante de €95.833,40.
- no processo que, sob o n.º 74/19…, correu termos no Tribunal Judicial da Comarca de Santarém, Tribunal da Concorrência, Regulação e Supervisão, Juiz 1, o arguido foi condenado ao pagamento de uma coima no avultadíssimo valor de €3.500.000,00, que está a pagar em prestações mensais, que se iniciaram em ........2022, tendo o plano de pagamentos sido definido da seguinte forma: 1a a 5a Prestações - € 5.000,00 cada; 6a a 16a Prestações - €19.500,00 cada; 17a a 23a Prestações - €27.000,00 cada; e 24a Prestação - valor remanescente de €3.071.500,00, que se vence em ........2024). No âmbito deste processo, o arguido já pagou, de forma pontual e integral, o montante de €401.500,00.
Todos os planos de pagamento prestacionais foram e estão a ser cumpridos escrupulosamente pelo arguido.
No cumprimento das condenações de que foi alvo, o arguido tem ainda de pagar, a título de coimas, o montante global de €3.384.666,60.
Em particular, o arguido não tem meios financeiros para proceder ao pagamento do montante de €3.071.500,00, que se vence, em ........2024.
Todavia, é-lhe manifestamente impossível proceder ao pagamento das coimas remanescentes, se não for possível vender o imóvel sito na ....
Com efeito, o imóvel sito na ..., terá um valor de mercado de cerca de €4.000.000,00, pelo que o produto dessa venda permitiria ao arguido pagar o remanescente das coimas que ainda é devido.
O arguido apenas poderá proceder ao pagamento deste valor se lhe for permitido vender o imóvel correspondente à fração ... do prédio urbano sito na ..., inscrito na matriz sob o art.º ... e descrita na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º... da freguesia de ....
Razão pela qual o arguido vem requerer que o Tribunal autorize a venda do imóvel acima descrito, para que o produto da venda permita o pagamento do remanescente da coima no montante de €3.071.500,00, bem como das despesas da venda do imóvel, maxime a comissão que venha a ser paga à mediadora imobiliária e os impostos (designadamente mais valias) que sejam devidos, canalizando-se o valor que remanesça para os demais processos contraordenacionais, em particular para o processo n.º293/21...
3- Na sequência de tal requerimento o Ministério Público pronunciou-se nos seguintes termos:
Pese embora se compreenda, e se louve, os motivos que presidem ao requerido pelo AA, o arresto dos bens foi decretado à ordem dos presentes autos.
É certo que o arresto visa evitar a dissipação do património necessário para assegurar o confisco do valor correspondente ao benefício patrimonial auferido com a prática do crime. Mas os bens do Arguido respondem também, e desde logo, na medida do que for necessário à condenação pela prática dos crimes em que este vier a ser condenado nos presentes autos.
Daí que, em nosso entender, não faça sentido, que os bens aqui arrestados sejam agora vendidos para pagar dívidas, ainda que as mesmas se reportem a condenações contra-ordenacionais.
Termos em que o Ministério Público se opõe ao requerido, promovendo-se que seja indeferido.
4- Em 15 de outubro de 2024 foi proferido o despacho recorrido que tem, ao que nos interessa o seguinte teor:
O arguido AA, apresentou requerimento com a refª 40601252, de .../.../2024 solicitando autorização para venda de imóvel arrestado a fim de que o produto da venda possa reverter para o pagamento de coimas em que foi condenado e que se vencem no dia .../.../2024.
O Ministério Público pronunciou-se pugnando pelo indeferimento de tal pretensão.
Desde já se adianta que se concorda com a posição do Ministério Público.
Não nos podemos esquecer que o arresto preventivo foi criado com o propósito de se efetivar o "confisco" do património de arguidos que tivessem praticado crimes com vista ao aumento do seu património e obtenção de lucros, crimes esses de difícil investigação, como sejam o branqueamento de capitais e a corrupção ativa e passiva.
No caso, e como bem refere a Digna Procuradora do Ministério Público, o arresto visou evitar a dissipação do património necessário para assegurar o confisco do valor correspondente ao benefício patrimonial auferido com a alegada prática do crime em causa nestes autos e não noutros. Assim sendo, o imóvel arrestado visou evitar que o mesmo fosse alienado, com a consequente dissipação de património, razão pela qual não se poderá autorizar a venda do mesmo para fazer face a outras coimas que não se prendem com o crime em causa nestes autos, indeferindo-se, pois, o solicitado.
Notifique.
Delineada a tramitação processual relevante apreciemos, pois, as questões suscitadas pelo recorrente no âmbito deste recurso.
Insurge-se o mesmo relativamente ao despacho recorrido por considerar que este ao indeferir a autorização para venda do imóvel arrestado cujo produto da venda visava o pagamento de coimas devidas ao Estado, no âmbito de processos de contraordenação em que foi condenado no Tribunal de Concorrência, Regulação e Supervisão, violou os princípios de proporcionalidade e proibição do excesso e de prossecução do interesse público e a autoridade do caso julgado.
O imóvel cuja venda o recorrente pretende ver autorizada foi alvo de arresto preventivo no âmbito dos autos a que este recurso corre em separado.
O arresto preventivo visa, como decorre do teor do artigo 228º do Código de Processo Penal (que remete para o artigo 227º nº 1 do mesmo diploma legal), garantir o pagamento da pena pecuniária, das custas do processo ou qualquer dívida para com o Estado relacionada com o crime, a perda dos instrumentos, produtos ou vantagens de facto ilícito típico ou do pagamento do valor a estes correspondentes.
Trata-se de uma medida de garantia patrimonial que se mantém até que seja proferida decisão final absolutória ou equivalente (decisão de não pronúncia transitada) ou até à extinção das obrigações ou prestação de caução económica tal como previsto no artigo 227º nº5 e 228 ambos do Código de Processo Penal.4
Por ser uma medida de garantia patrimonial a mesma gera, naturalmente com os limites com que é decretado uma indisponibilidade para o arrestado relativamente ao património visado pelo arresto. Destarte, não obstante, se manter como proprietário o visado deixa enquanto vigorar tal medida de exercer o respetivo ius utenti, fruendi et abutendi, ou seja, o direito de usar, fruir e dispor.
Sendo uma medida decretada num processo crime reporta-se a esse processo garantindo a execução da decisão final que venha a aí ser proferida e que condene o visado no pagamento de uma pena pecuniária, no pagamento de custas processuais, no valor correspondente aos instrumentos, aos produtos e às vantagens do crime que venham a ser declaradas perdidas a favor do Estado e a garantir o pagamento de indemnizações civis derivadas de crime devidas.
Há, assim, uma relação umbilical entre a medida e o processo em que é decretada visando a mesma acautelar a eficácia da decisão judicial condenatória que aí vier a ser proferida e a finalidade processual de realização da justiça que impende sobre o Estado através dos Tribunais.
Estando em causa uma medida de garantia patrimonial a mesma está sujeita aos princípios da legalidade e da necessidade consagrados nos artigos 191º nº1 e 193º nº1 do Código de Processo Penal e, por isso, o âmbito de aplicação do arresto preventivo está legalmente previsto visando estritamente a garantia do previsto no artigo 227º do Código de Processo Penal nos termos já enunciados supra.
O que o recorrente pretende através deste recurso é a revogação do despacho que indeferiu a autorização de venda de um imóvel alvo de arresto preventivo para que o produto da mesma seja afeto ao pagamento de coimas devidas no âmbito de outros processos que têm natureza contraordenacional e que correm os seus termos no Tribunal de Concorrência, Regulação e Supervisão.
Refere o recorrente que tal indeferimento desconsiderou a satisfação do melhor interesse patrimonial do Estado, pois, vai retardar excessiva e desproporcionadamente o recebimento pelo Estado de qualquer valor e a autoridade do caso julgado, ou seja, o respeito que devem merecer a todas as entidades públicas e privadas as decisões condenatórias transitadas em julgado e, que no conflito entre um dever que é já certo e definitivo e está imposto por sentença transitada em julgado e um dever que é meramente eventual e incerto, o exercício do poder judicial pautado por critérios de proporcionalidade e proibição do excesso, bem como de prossecução do prevalecente interesse patrimonial do Estado, não podia deixar de dar prevalência ao cumprimento do dever imposto por decisões já transitadas em julgado.
Em conformidade com tal argumentação conclui o recorrente pela violação dos artigos 18º nº2 e 205º ambos da Constituição da República Portuguesa.
Ora, tal argumentação parte de premissas legalmente inexistentes que se traduzem quer na possibilidade do valor de bem arrestado num processo crime poder ser afeto a outro processo e, neste caso de natureza contraordenacional, quer na possibilidade do recorrente poder dispor de tal valor arrestado para pagamento de uma obrigação pecuniária que não deriva da prática de um crime, obrigação essa, que apenas sobre o mesmo impende.
O que o recorrente pretende infringe, desde logo, o princípio da legalidade, posto que se traduziria na afetação de um bem/valor arrestado para fim não previsto no regime legal e na decisão que determinou o seu arresto.
Por outro lado, pressupõe a reposição de um direito de que o mesmo está privado pelo arresto decretado, o direito de exercer sobre o mesmo a sua propriedade plena, vendendo e afetando o produto da venda ao pagamento de coimas que sobre o mesmo impendem libertando-se, assim, de tal obrigação.
O recorrente alega que o despacho recorrido desconsiderou a satisfação do melhor interesse patrimonial do Estado e a autoridade do caso julgado porém, olvida que o interesse patrimonial do Estado quando se trata de uma medida de garantia patrimonial não é um interesse geral mas sim um interesse reportado ao processo concreto e ao que aí se pretende acautelar.
Assim, ao contrário do invocado, ao indeferir o requerimento do recorrente o que o despacho recorrido fez foi acautelar o interesse do Estado que subjaz à decisão do arresto preventivo decretado, o de assegurar a eficácia da decisão judicial condenatória que vier a ser proferida e a finalidade processual de realização da justiça que impende sobre o Estado através dos Tribunais.
Destarte, não se vislumbra qualquer conflito de dever, qualquer excesso ou desproporcionalidade ou desrespeito pela autoridade do caso julgado como invocado porque não cabe no âmbito da medida de garantia patrimonial assegurar interesse ou finalidade diversa daquela para que está legalmente prevista e foi concretamente decretada.
Por outro lado, não cabe aqui, também, apreciar se o que foi arrestado já não terá eventualmente de garantir o pagamento de indemnizações decorrentes da prática de crime aos lesados, posto, que não só os pressupostos de tal medida não são objeto deste recurso como está em causa uma medida cautelar que visa acautelar com os limites já aqui enunciados uma decisão que, ainda, está por proferir e que tem a sua eficácia e alcance por reporte ao teor concreto de tal decisão como decorre da lei.
A alegada impossibilidade de o recorrente continuar a cumprir as coimas em que foi condenado nos processos contraordenacionais que correm os seus termos no Tribunal de Concorrência, Regulação e Supervisão é questão a ser equacionada, nos mesmos, e não no âmbito do arresto decretado, pelos motivos já aduzidos, inexistindo razões que no plano processual penal ou no plano constitucional imponham a revogação do despacho recorrido.
Assim, e por não nos merecer qualquer censura entende-se ser de manter na íntegra o despacho recorrido improcedendo a pretensão recursiva do recorrente.
3- DECISÓRIO:
Nestes termos e, em face do exposto, acordam os Juízes Desembargadores desta 3ª Secção em não conceder provimento ao recurso interposto por AA mantendo, consequentemente, na íntegra o despacho recorrido.
Custas da responsabilidade do arguido recorrente, fixando-se em 3 UC a taxa de justiça (art.º 513º do Código de Processo Penal e 8º nº9 do Regulamento das Custas Processuais e Tabela III anexa a este último).
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Nos termos do disposto no artigo 94º, nº 2, do Código do Processo Penal exara-se que o presente Acórdão foi pela 1ª signatária elaborado em processador de texto informático, tendo sido integralmente revisto pelos signatários e sendo as suas assinaturas bem como a data certificadas supra.
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Tribunal da Relação de Lisboa, 30 de abril de 2025
Ana Rita Loja
Hermengarda do Valle-Frias
João Bártolo
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1. vide Acórdão do Plenário das Secções do Supremo Tribunal de Justiça de 19/10/1995, D.R. I–A Série, de 28/12/1995.
2. – Artigos 403º, 412º e 417º do Código de Processo Penal e, entre outros, Acórdãos do S.T.J. de 29/01/2015 proferido no processo 91/14.7YFLSB.S1 e de 30/06/2016 proferido no processo 370/13.0PEVFX.L1. S1.
3. Curso de Processo Penal, Vol. III, 2ª edição, 2000, fls. 335
4. Vide neste sentido Ac. do Tribunal da Relação de Lisboa de 23.10.18 proferido no processo 324/14.0TELSB-BW.L1-5