ABUSO DE CONFIANÇA CONTRA A SEGURANÇA SOCIAL
PRESCRIÇÃO DO PROCEDIMENTO CRIMINAL
RESPONSABILIDADE CRIMINAL
PESSOA COLECTIVA
PEDIDO CÍVEL
DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA
Sumário

I. No crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, p. e p. pelas disposições conjugadas dos art.ºs 107.º, n.º 1 e 105.º, n.ºs 1 e 7 da Lei n.º 15/2001, de 05 de Junho (RGIT), estando em causa a não entrega à Segurança Social, de valores não superiores a €50.000, relativos a contribuições deduzidas, por autoliquidação, pela entidade empregadora, do valor das remunerações devidas aos trabalhadores e membros dos órgãos sociais, nos termos dos art.ºs 42.º e 43.º, do Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial de Segurança Social (Lei 110/2009 de 16/09/2009), não dependendo de qualquer liquidação, é inaplicável o disposto nos nºs 2 e 3 do art.º 21º do RGIT.
II. O procedimento criminal extingue-se, por efeito de prescrição, decorridos que estejam cinco anos, nos termos do nº 1 do referido art.º 21.º, contados a partir do dia imediato ao termo do prazo legalmente estabelecido para a entrega, previsto no referido art.º 43.º do CRCSPSS, sem prejuízo das suspensões e interrupções previstas nos art.ºs 120 e 121.º, do CP.
III. A responsabilidade penal das pessoas colectivas e entidades equiparadas não depende da responsabilidade dos respectivos agentes, nos termos do n.º7 do art.º 11.º, do CP. e, nos casos em que, as decisões financeiras referentes ao pagamento de salários e de contribuições devidas à Segurança Social, sejam tomadas por membros do Conselho de Administração de Sociedade Gestora de Participações Sociais, SGPS, sendo, na prática, a SGPS quem gere, de facto, a sociedade arguida, sociedade agrupada, esta não perde a sua identidade jurídica-patrimonial e jurídico-organizativa, nem é excluída a sua responsabilidade penal, não se provando que, quem tomou as decisões, o tenha feito contra suas ordens expressas (n.º6 do art.º 11.º, do CP), sendo quem está obrigada a autoliquidar e deduzir, dos vencimentos dos seus trabalhadores, as contribuições por esta devidas à Segurança Social, surgindo assim perante a Segurança Social como o sujeito da relação tributária e como devedor contributivo substituto.
IV. Não ocorre o vicio de “contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão” nos termos da citada alínea b) do nº 2 do art.º 410º do Código de Processo Penal, quando os factos são imputados penalmente à pessoa colectiva, arguida, por terem sido praticados, pelos seus administradores junto do Conselho de Administração da SGPS, grupo de que faz parte a arguida e que, na pratica geria a arguida, em seu nome e no seu interesse.
V. Em processo penal, decorrente de crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, p. e p. no art.º 107º nº 1, do R.G.I.T., é admissível a dedução de pedido de indemnização civil, tendo por objecto o montante das contribuições legalmente devidas por trabalhadores e membros dos órgãos sociais das entidades empregadoras, que por estas tenha sido deduzido do valor das remunerações, e não tenha sido entregue, total ou parcialmente, às instituições de Segurança Social, de harmonia com o disposto no art.º 71.º, do C.P.P..
VI. Estando em causa, no pedido de indemnização civil, a efetivação da responsabilidade emergente da prática de um crime, praticado pela demandada, não é aplicável o disposto no art.º 17.º E, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE) (Processo Especial de Revitalização), pois não estamos perante um procedimento processual destinado à cobrança de uma dívida, que é a previsão deste dispositivo legal.
VII. A responsabilidade civil da sociedade directora estabelecida no art.º 501º C.Soc.Com., sendo uma responsabilidade objectiva, assente na redistribuição do risco da exploração empresarial no seio de grupos societários, respondendo a sociedade dominante pelas dívidas da sociedade dependente, independentemente da culpa que tenha no não cumprimento (art.º 84º do C.Soc.Com), é uma responsabilidade solidária conjuntamente com a sociedade subordina, não excluindo, por isso a responsabilidade civil desta.
VIII. Não é caso de convocação do instituto da desconsideração da personalidade jurídica da sociedade demandada para afastar a responsabilidade civil desta, porquanto, subjacente ao mesmo estão situações de abuso de direito ou de exercício inadmissível de posições jurídicas que prejudicam os credores, não se provando comportamento abusivo da SGPS, SA, susceptível de excluir a responsabilidade da demandada.

Texto Integral

Acordam, em conferência, os Juízes Desembargadores na 9ª Secção Criminal da Relação de Lisboa:

I – Relatório
1.
Foi proferida decisão instrutória, por remissão para o despacho de acusação, que pronunciou os arguidos AA, actualmente designada BB, com o NIPC ..., contribuinte da Segurança Social nº ... e sede na ..., representada pelo vogal do Conselho de Administração, CC, com TIR a fls. 1000, DD, casado, nascido a ........1955, titular do Cartão de Cidadão nº 04562413, filho de EE e de FF, natural da freguesia de ... e concelho de ..., consultor, residente na ... e, GG, casado, gestor, nascido a ........1969, titular do Cartão de Cidadão nº 8553188, filho de HH e de II, natural da freguesia de ... e concelho do ..., residente na ... – TIR fls. 734, para julgamento perante tribunal singular e pela prática em co-autoria e na forma continuada de um crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, agravado, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos arts.º 107º nº1 e 2, 105º n.º1, nº 4 alíneas a) e b) e nº5, e arts. 6º nº1 e 7º da Lei nº15/2001 (RGIT) e 30º nº2 do Código Penal.
2.
O Instituto de Segurança Social, IP, veio a fls. 795 e ss deduziu pedido de indemnização civil contra os arguidos peticionando que, na sua procedência, fossem os mesmos condenados a pagar-lhe a quantia de € 35.423,41, acrescida de juros calculados nos termos do artigo 3º do D- Lei 73/99.
3.
A fls. 863 e ss os arguidos apresentaram contestação, pugnado além do mais pela prescrição do procedimento criminal.
4.
Por despacho de fls. 937/939 foi julgada improcedente a invocação da prescrição do procedimento criminal, nos seguintes termos: (transcrição):
da prescrição do procedimento criminal
Vêm os arguidos defender a verificação da prescrição do presente procedimento contra-ordenacional com base na aplicação aos presentes autos no n.º 3 do artigo 21.º do RGIT, o qual implica que os valores de cuja não entrega à Segurança Social os arguidos estão acusados nos autos dependessem de liquidação para a fixação do seu respetivo valor.
Ora, notoriamente, não é esse o caso nos autos.
Com efeito, estamos perante valores que resultam desde logo liquidados pelo próprio obrigado à sua entrega (entidade patronal) nas declarações de remunerações que se encontra obrigado a enviar regularmente à Segurança Social acompanhadas do respetivo meio de pagamento do valor devido a título de cotizações para aquela entidade.
Não tem, por isso, aplicação nos autos o disposto no artigo 21.º, n.º 3, do RGIT, sendo aplicável o prazo de prescrição de 5 anos (cfr. artigo 21.º, n.º 1, do RGIT).
Assim sendo, o prazo de prescrição do presente procedimento criminal apenas se completa em 15.08.2026 (cfr. artigos 119.º, n.º 1, 120.º, n.º 1, alínea b), 121.º, n.ºs 1, alíneas a), b) e d), e 3, todos do Código Penal).
Termos em que, improcede a invocada prescrição do procedimento criminal.
5.
O arguido, não se conformando com o despacho veio dele apresentar recurso , extraindo da motivação as seguintes conclusões:
1. O objeto material do presente recurso é a decisão constante dos últimos 3 §§ da 2§ pág. e dos primeiros 3 §§ da 3ã pág. do despacho inscrito nos presentes autos sob a referência ... e o seu objeto jurídico é a questão - constitucionalmente fundada no princípio da segurança jurídica consagrado na base dos arts. 29, 35º, I6º, 185º, 205º, 295º e segs. e 2045 da Constituição da República - de saber da interpretação e da necessidade de aplicação do o art. 219 do "Regime Geral das Infracções Tributárias" (adiante, brevitotis causae, RGIT) ao caso dos autos.
2. É entendimento jurisprudencial e doutrinário seguro que o conceito de liquidação constante do citado art. 21º, nº 3, se identifica com o de determinação do valor da prestação devida.
3. Devendo por isso afirmar-se ter de haver lugar à redução a 4 anos do prazo de prescrição do procedimento criminal sempre que, como se verifica no caso dos autos, esse prazo tenha decorrido desde o momento da determinação do valor devido até ao momento da sua concreta interrupção relativamente a cada concreto Arguido.
6.
O recurso foi admitido pelo despacho seguinte:
Por legal e tempestivo, admito o recurso interposto pelo arguido para o Venerando Tribunal da Relação de Lisboa, o qual sobe nos próprios autos com o recurso interposto da decisão que puser termo à causa (artigos 399.º, 400.º, a contrario sensu, 401.º, n.º 1, alínea b), 406.º, n.º 1, 407.º, n.º 3, 408.º, a contrario sensu, 411.º, n.º 1, e 414.º, n.º 1, todos do Código de Processo Penal).
Notifique (cfr. artigo 411.º, n.º 6, do Código de Processo Penal).
7.
Em resposta ao recurso interposto pelo arguido o Ministério Público vem dizer que:
Conclusões:
1. Nos presentes autos o arguido foi acusado pela prática de um crime continuado de abuso de Confiança contra a Segurança Social agravado, previsto e punido pelas Disposições conjugadas dos artigos 107.º, nºs 1 e 2, e 105.º, n.ºs 1, 4, alíneas a) e b), e 5, da Lei n.º 15/2001, de 05 de junho (RGIT).
2. O recorrente veio invocar a prescrição do presente procedimento criminal.
3. Nos termos do previsto nos 107.º, nºs 1 e 2, e 105.º, n.ºs 1, 4, alíneas a) e b), e 5, da Lei n.º 15/2001, de 05 de junho (RGIT) a conduta imputada à arguida na acusação é punida com pena de prisão “de um a cinco anos e de multa de 240 a 1200 dias para as pessoas colectivas.”
4. Da conjugação do disposto no artigo 21.º, n.ºs 1 e 2 do RGIT, com o artigo 118.º, n.º 1, alínea b), do Código Penal, resulta que o prazo de prescrição do crime em apreço seria de 10 (dez) anos, uma vez que o prazo de prescrição deverá ser o previsto no Código Penal, superior ao previsto no art.º 21.º do RGIT.
5. No entanto, mesmo que assim se não considere, sempre o prazo de prescrição seria de 5 anos mercê do previsto no art.º 21.º do RGIT e não de 4 anos conforme sustentando pelo recorrente.
6. O recorrente alicerça a sua exposição na aplicação a estes autos do previsto no n.º 3 do art.º 21.º do Código Penal que dispõe que o prazo de prescrição do procedimento criminal é reduzido ao prazo de caducidade do direito à liquidação da prestação tributária quando a infração depender daquela liquidação.
7. Ora, o previsto no art.º 21.º, n.º 3 apenas se aplica a determinado tipo de impostos que carecem de prévia liquidação pela autoridade tributária.
8. As contribuições à Segurança Social são autoliquidadas no sentido de que é a entidade empregadora/contribuinte quem declara à Segurança Social que reteve o valor da contribuição sobre o salário do trabalhador, pelo que se encontram excluídas do âmbito da aplicação do n.º 3 do citado dispositivo legal.
9. O STA tem entendido que nas situações que têm caráter de autoliquidação não se aplica o regime de caducidade do direito à liquidação, uma vez em que o ato da entidade não pode ser formalmente definido como ato de liquidação, pois não está subordinado a qualquer procedimento próprio para liquidação de tributos.
10. Neste sentido veja-se o Ac. do TCA Sul datado de 15-04-21, proferido nos autos 98/17.2BEALM: “Nestas situações, que têm assim um carácter de autoliquidação, a jurisprudência desta secção vem entendendo que não será aplicável o regime previsto no art° 45° da Lei Geral Tributária, o que se justifica porque «o acto da entidade emitente do respectivo título executivo (certidão de dívida) não pode ser formalmente definido como acto de liquidação, desde logo porque não está subordinado a qualquer procedimento próprio para liquidação de tributos, nem é imposta por lei a notificação de qualquer acto antes da citação em processo de execução] fiscal» - cf., neste sentido, os já citados acórdãos da Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo de 14.06.2012, recurso 443/12, de 23 de Setembro de 2009, recurso n.° 436/09, e de - de 30 de Maio de 2012, recurso n.° 104/12, todos in www.dgsi.pt.”
11. No mesmo sentido o Ac. do TCA Sul proferido em 29-04-2021, nos autos 207/10.2BEPDL, o Ac. do STA datado de 26-02-2014 proferido nos autos 01481/13 e, do mesmo tribunal, o Ac. datado de 21-05-15 proferido nos autos 0766/13 todos in www.dgsi.pt.
12. Mais, caso se considere que o prazo de prescrição deste procedimento é de 5 anos verifica-se que o prazo prescricional do procedimento criminal ainda não decorreu.
13. A entrega à Segurança Social deveria ter ocorrido até ao dia 20 do mês seguinte a que as contribuições dizem respeito, assim a entrega deveria ter ocorrido em maio de 2016 .
14. O prazo prescricional ainda não decorreu uma vez que ocorreram causas de interrupção e suspensão do mesmo.
15. Efetivamente, ocorreram várias causas de interrupção do prazo prescricional, a saber: com a constituição de arguidos, com a notificação da acusação por cartas com prova de depósito e finalmente com a notificação da data que designa audiência de julgamento.
16. Aliás, a notificação da acusação iniciou também um prazo de 3 anos de suspensão do prazo prescricional, suspensão essa que ainda se encontra a decorrer.
17. Sendo que, de todas as vezes que ocorreu uma causa de interrupção, começou a contar um novo prazo e uma vez que, entre interrupções, não decorreram 5 anos entendemos que o presente procedimento criminal não se encontra prescrito.
18. A lei impõe um limite máximo para o procedimento criminal que é o prazo normal de prescrição acrescido de metade (n.º 3 do 121.º do Código Penal) ao qual são acrescentados os períodos de suspensão.
19. Assim, caso se entenda que o prazo de prescrição é de 5 anos, o prazo máximo será, no caso concreto dos autos, de 7 anos e 6 meses a que acrescem 3 anos de suspensão, ou seja, 10 anos e 6 meses.
20. Ora tendo-se o prazo prescricional do presente procedimento criminal iniciado em maio 8 de 2016 e tendo em conta o período máximo do mesmo prazo este terminará em novembro de 2026, desde que não ocorram novas causas de suspensão.
21. Forçoso é concluir que não decorreu ainda o prazo de prescrição do presente procedimento criminal.
22. Em conformidade com os argumentos acima elencados, entende-se não assistir razão ao recorrente, e pelos motivos supra-referidos, deverá ser negado provimento ao recurso e mantida a decisão recorrida.
Nestes termos, e com o douto suprimento desse Venerando Tribunal, negando provimento ao recurso e mantendo a decisão recorrida, Vªs. Exªs. farão, como sempre, a costumada JUSTIÇA.
8.
Realizado o julgamento foi proferida Sentença cujo Dispositivo se transcreve:
VII- DECISÃO:
Pelo exposto, decido:
A) Absolver os arguidos DD e GG da prática da prática de um crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, agravado, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos arts.º 107º nº1 e 2, 105º n.º1, nº 4 alíneas a) e b) e nº5, e arts. 6º nº1 e 7º da Lei nº15/2001 (RGIT) e 30º nº2 do Código Penal.
B) Absolver os arguidos DD e GG do pedido civil deduzido pelo Instituto da Segurança Social, IP.
C) Condenar a arguida BB, pela prática entre abril de 2015 a novembro de 2015 de um crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, dos arts.º 107º nº1, 105º n.º1 e 7º da Lei nº15/2001 (RGIT) na pena de 250 (duzentos e cinquenta) dias de multa, à taxa diária de € 10,00 (dez euros), no total de € 2.500,00 (dois mil e quinhentos euros).
D) Condenar a arguida BB, a pagar à demandante Instituto da Segurança Social, IP a quantia de €35.423,41 (trinta e cinco mil, quatrocentos e vinte e três euros e quarenta e um cêntimos), acrescida de juros à taxa legal de 4% , calculados desde a data do vencimento das quantia de quotizações e contribuições em falta, até pagamento.
E) Condenar a sociedade arguida no pagamento das custas criminais e civis que forem devidas, com taxa de justiça que se fixa em 3 UC´s.
Notifique e deposite, nos termos dos artigos 372.º, n.º 5 e 373.º, n.º 2, ambos do Código de Processo Penal.
Após trânsito em julgado: Remeta boletim ao registo criminal.
9.
Inconformada com a sentença, a arguida condenada veio interpor recurso, terminando a motivação com as seguintes conclusões (transcrição):
1ª) O presente recurso é interposto em nome da arguida pessoa coletiva e com a limitação indicada na alínea e) do nº 2 do art. 403º do Código de Processo Penal.
2ª) Não obstante essa limitação, há a considerar a necessidade de subida de recurso prévio já interposto e já admitido a .../.../2022 sob registo Citius ... e ao qual a sentença ora recorrida se refere logo na sua página 2 (último §).
3ª) A sentença ora recorrida (que tem a referência Citius ...) comete contradição insanável entre a fundamentação e a decisão, nos termos e para os efeitos do art. 410º, nº 2 e sua alínea b), 2ª parte.
4ª) E isto porque dá como provada (sob nº «6º», 1º § da sua página 4) a falta de autonomia da arguida para pagar à Segurança Social, falta de autonomia que adiante confirma na fundamentação (cf. as suas páginas 11 e 12, desde a linha 7 da página 11 até à linha 5 da página 12), mas vem a decidir condená-la como se bastasse uma qualquer presunção de mera imputação objetiva.
5ª) Também quanto à questão civil a sentença recorrida tem de ser substituída pela decretação da absolvição da pessoa coletiva arguida.
6ª) Está desta feita em causa quer o facto dado como provado pela sentença recorrida sob o nº «14º» (na sua página 6), racionalmente fundado no 2º § da página 12 também da sentença recorrida,
7ª) quer a não infirmação em julgamento tanto do teor da contestação civil (e a contestação encontra-se integrada nos autos desde .../.../2022 sob o registo Citius 32226304) como do teor das folhas adrede apresentadas no decurso do próprio julgamento (a .../.../2024 e sob o registo Citius 38467423).
8ª) Com todas estas bases – facto provado em audiência, desconsideração cível referida na fundamentação da sentença e não informação da contestação civil e da prova documental recebida em julgamento – , só pode haver lugar, igualmente, à justa absolvição civil da arguida.
Termos em que e termos por que se pede e espera a revogação da sentença recorrida na parte em que condenou a arguida pessoa coletiva e a sua substituição pela absolvição penal e civil da mesma.
Porque o que se Vos pede é: JUSTIÇA!
10.
O Ministério Público respondeu ao recurso, extraindo-se da motivação as seguintes conclusões (transcrição)
1. Nos presentes autos a atualmente designada BB foi condenada a pela prática de um crime continuado de abuso de confiança contra a Segurança Social agravado, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 107.º, nºs 1 e 2, e 105.º, n.ºs 1, 4, alíneas a) e b), e 5, da Lei n.º 15/2001, de 05 de junho (RGIT), numa pena de 250 (duzentos e cinquenta) dias de multa e na entrega ao ISS da quantia de €35.423,41 (trinta e cinco mil, quatrocentos e vinte e três euros e quarenta e um cêntimos).
2. A arguida vem recorrer desta decisão por entender que a mesma padece de contradição insanável entre a fundamentação e a decisão, nos termos e para os efeitos do art.º 410.º, n.º 2 do Código de Processo Penal.
3. Em sede de questão previa a recorrente reporta-se a recurso anteriormente por si interposto ao qual já respondemos, resposta que consta dos autos na ref.ª 33853748 para a qual remetemos e que aqui damos por integralmente reproduzida por economia processual.
4. Recorre ainda a arguida da decisão cível no entanto, uma vez que apenas compete ao Ministério Público formular o pedido de indemnização civil em representação do Estado e de outras pessoas e interesses cuja representação lhe seja atribuída por lei (art.º 76.º do Código Penal), não tendo o mesmo apresentado o PIC não nos pronunciaremos sobre o mesmo por não caber ao Ministério Público fazê-lo.
5. É insanável a contradição em que, de acordo com um raciocínio lógico, se deva concluir que a fundamentação devia levar à decisão oposta da consagrada na sentença ou quando a colisão dos fundamentos leva a que essa decisão não esteja suficientemente esclarecida.
6. Apenas a contradição que não possa ser ultrapassada com recurso à totalidade da decisão ou às regras da experiência pode ser considerada insanável (Ac. STJ de 17-01-96, Proc. nº 48655, in Simas Santos e Leal-Henriques, Código de Processo Penal Anotado, pág. 760).
7. Nestes autos não existe contradição insanável, mas divergência quanto à aplicação do direito.
8. Os motivos de facto e de direito dessa decisão são percetíveis, e no nosso entender, é válido e adequado o raciocínio do julgador. Este sustenta a sua decisão esclarecendo que a responsabilidade criminal da pessoa coletiva exige o nexo de imputação do facto a pessoa que nela exerça liderança ou um seu subordinado nas condições prescritas na lei (art.º 11º, nº 2 - a) e b) do Código Penal e 7.º do RGIT), mas não exige necessariamente a condenação do seu agente e a responsabilização da pessoa coletiva não é impedida quando não seja possível individualizar de entre os integrantes de um órgão colegial o agente do ato, desde que o ato seja praticado por um órgão ou pessoa com autoridade para tomar a referida decisão.
9. As ações ou omissões efetuadas no interesse da pessoa coletiva e na execução das decisões tomadas por quem (pessoa singular ou órgão plural) decide o destino da empresa, são efetuadas por pessoas singulares mas imputadas à sociedade sendo esta responsável penalmente pelas mesmas, mesmo que no âmbito de um concreto processo judicial não se logre imputar essas decisões às pessoas singulares coarguidas nesses autos, ou mesmo que, identificando-se a entidade que tomava as decisões (quando órgão plural) não se logre, nesses mesmos autos, apurar a concreta identificação da(s) pessoa(s) que a integrava no momento da tomada daquela decisão.
10. Apurou-se que as decisões financeiras referentes ao pagamento de salários e de impostos devidos à segurança Social eram tomadas pelo conselho de administração SGPS, a JJ, sendo, na prática, ele que geria a arguida.
11. Identificou quem tomou as tomava decisões na sociedade arguida e que os atos e omissões em causa foram execução de decisões da daquela entidade em prol da arguida.
12. Assim, os factos imputados são resultado das decisões de pessoas que geriam de facto a pessoa coletiva arguida pelo que esta tem de ser responsabilizada penalmente pela atuação.
13. Estando preenchidos os elementos do tipo de ilícito pelo qual vinha acusada a recorrente sempre teria, como foi, de ser condenada.
14. Decidir de outro modo seria permitir que as pessoas coletivas detidas por outras pessoas coletivas ou em que a tomada de decisão seja plural, não sejam responsabilizadas penalmente pelas suas atuações.
15. Em conformidade com os argumentos acima elencados, entende-se não assistir razão à recorrente, e pelos motivos supra-referidos, deverá ser negado provimento ao recurso e mantida a decisão recorrida.
Nestes termos, e com o douto suprimento desse Venerando Tribunal, negando provimento ao recurso e mantendo a decisão recorrida, Vªs. Exªs. farão, como sempre, a costumada JUSTIÇA.
11.
O recurso foi admitido pelo seguinte despacho:
Por estar em tempo, a recorrente ter legitimidade para o efeito e a sentença ser recorrível, admito o recurso interposto pela arguida BB para o Tribunal da Relação de Lisboa, a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito suspensivo, nos termos e para os efeitos do disposto nos arts. 399.º, 401.º n.º 1 alínea b), 406.º n.º 1, 407.º n.º 2 alínea a), 408.º n.º 1 alínea a) e 411.º, todos do Código de Processo Penal.
Notifique
12.
Nesta instância recursiva a Sra. Procuradora Geral adjunta formulou o seguinte parecer, em suma considerando que:
Do recurso instaurado a ........2022.
À altura estavam os arguidos arguidos AA DD, e GG pronunciados pela prática ela prática em co-autoria material e na forma continuada de um crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, agravado, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos arts.º 107º nº1 e 2, 105º n.º1, nº 4 alíneas a) e b) e nº5, e arts. 6º nº1 e 7º da Lei nº15/2001 (RGIT) e 30º nº2 do Código Penal.
Alegam os arguidos em sede de recurso que verifica o decurso do prazo prescricional de 4 anos, na medida em que o conceito de liquidação constante do artigo 21 n.º 3 do RGIT se identifica com o de determinação da prestação devida.
A tanto responde o Ministério publico em resposta que se acompanha concretamente na consideração de que o elemento do tipo criminal em causa se encontra preenchido mediante um comportamento de autoliquidação e não, como pretende a recorrente, através do momento da determinação do valor da prestação devida, sendo por tanto inaplicável o disposto no n.º 3 do artigo 21º da lei 15/2001 de 5 de junho.
Entendemos assim não merecer a decisão recorrida qualquer censura, não estando ainda quando da prolação da sentença decorrido o prazo de prescrição.
*
Por sentença proferida a ........2024 foi a arguida BB, condenada pela prática entre abril de 2015 a novembro de 2015 de um crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, dos arts.º 107º nº1, 105º n.º1 e 7º da Lei nº15/2001 (RGIT) na pena de 250 (duzentos e cinquenta) dias de multa, à taxa diária de € 10,00 (dez euros), no total de € 2.500,00 (dois mil e quinhentos euros).
Foi ainda condenada a pagar à demandante Instituto da Segurança Social, IP a quantia de €35.423,41 (trinta e cinco mil, quatrocentos e vinte e três euros e quarenta e um cêntimos), acrescida de juros à taxa legal de 4% , calculados desde a data do vencimento das quantia de quotizações e contribuições em falta, até pagamento.
Recorre a arguida BB da sentença entendendo que:
1. ocorre o vicio de “contradição insanável”, nos termos da citada alínea b) do nº 2 do art. 410º do Código de Processo Penal na medida em que, tendo-se dado como provado a falta de autonomia da arguida no que à sua gestão respeita, não poderia esta ser responsabilizada pela prática do ilícito;
2. Perante esta falta de autonomia igualmente não poderia à mesma ser imputado o comportamento omissivo, não estando assim verificado o elemento subjetivo do tipo.
A tanto respondeu o Ministério Publico em resposta que se acompanha e aderimos inteiramente, muito clara, objectiva, com irrepreensível análise e subsunção ao direito.
A tal, ainda nos permitimos referir: Escreve-se no facto 6º da sentença recorrida, “A sociedade arguida é uma das empresas do grupo detido pela JJ denominada JJ, onde eram tomadas as decisões financeiras das empresas do grupo, incluindo as referentes ao pagamento de salários e de impostos devidos à segurança Social.”
As sociedades gestoras de participações sociais, (SGPS), têm por único objecto contratual a gestão de participações sociais de outras sociedades, como forma indirecta de exercício de actividades económicas. (vide Decreto-Lei n.º 495/88, de 30 de dezembro)
A sociedade, cuja participação social é gerida, não perde a sua identidade jurídica, integrando-se antes numa relação de grupo. Tanto a sociedade arguida condenada é passível de imputação subjectiva que é esta entidade que está obrigada a autoliquidar e deduzir dos vencimentos dos seus trabalhadores as contribuições por estes devidas à segurança social, surgindo, assim, perante a segurança social como o sujeito da relação tributária, ainda que como devedor contributivo substituto.
Efectivamente, os montantes devidos à segurança social, são devidos pela sociedade condenada e não por outra, sendo a omissão da sua entrega imputada a esta e não a outra entidade, ainda que a gestão financeira da mesma passe por uma gestão de grupo.
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Foi cumprido o nº 2 do artigo 417º do Código de Processo Penal tendo respondido ao parecer a arguida/recorrente.
*
Não tendo sido requerida audiência e não sendo caso de renovação da prova, o processo foi à conferência, após os vistos legais, respeitando as formalidades legais (artigos 417º, 7 e 9, 418º, 1 e 419º, 1 e 3, c), todos, ainda do mesmo texto legal).
Nada obsta à prolacção de Acórdão.
II-Questões a decidir no recurso:
Constitui jurisprudência assente que o objecto do recurso, que circunscreve os poderes de cognição do tribunal de recurso, delimita-se pelas conclusões da motivação dos recorrentes (artigos 402.º, 403.º, 412.º e 417º do CPP), sem prejuízo dos poderes de conhecimento oficioso do tribunal ad quem quanto a vícios da decisão recorrida, a que se refere o artigo 410.º, n.º 2, do CPP, os quais devem resultar directamente do texto desta, por si só ou em conjugação com as regras da experiência comum, a nulidades não sanadas (n.º 3 do mesmo preceito), ou quanto a nulidades da sentença (artigo 379.º, n.º 2, do CPP).(cfr. artigos 410º, nº 3 e 119º, nº 1, do Código de Processo Penal; a este propósito v.g. ainda o Acórdão de Fixação de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça nº 7/95, de 19.10.1995, publicado no D.R. I-A Série, de 28.12.1995 e, entre muitos outros, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 25.06.1998, in B.M.J. nº 478, pág. 242, de 03.02.1999, in B.M.J. nº 484, pág. 271 e de 12.09.2007, proferido no processo nº 07P2583, acessível em www.dgsi.pt)
Na Doutrina, por todos, Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos Humanos, Volume II, 5.ª Edição atualizada, pág. 590, “As conclusões do recorrente delimitam o âmbito do poder de cognição do tribunal de recurso. Nelas o recorrente condensa os motivos da sua discordância com a decisão recorrida e com elas o recorrente fixa o objecto da discussão no tribunal de recurso… A delimitação do âmbito do recurso pelo recorrente não prejudica o dever de o tribunal conhecer oficiosamente das nulidades insanáveis que afetem o recorrente… não prejudica o dever de o tribunal conhecer oficiosamente dos vícios do artigo 410.º, n.º2 que afetem o recorrente…” e bem assim Simas Santos e Leal-Henriques, em “Recursos em Processo Penal”, Rei dos Livros, 7ª edição, pág. 71 a 82).
São as seguintes as questões a decidir:
-No recurso interlocutório:
1.ª Da aplicação do art.º 21º, nº 3 do RGIT, na afirmativa, se o prazo de prescrição do procedimento criminal é de 4 anos e já decorreu.
-No recurso da decisão final:
-da (in) verificação do vício de contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão (art.º 410.º, n.º2, do CPP).
-da (in)verificação dos pressupostos da responsabilidade civil.
***
III –Factos relevantes para a apreciação do recurso:
III.1 O Tribunal recorrido em sede de sentença deu como provados e não provados os seguintes factos:
A) Factos provados:

A sociedade AA, actualmente denominada BB, é uma pessoa colectiva com o nº ..., tem por objecto social a consultoria, assessoria e comercialização da prestação de serviços nas áreas de gestão, apoio institucional, educação, saúde, redes de apoio, macro economia, tecnologias e informação, tem a sua sede na Av. ... em ..., e está inscrita como contribuinte da Segurança Social com o nº....

No exercício da sua actividade e no período compreendido entre ... e ..., a sociedade arguida empregava vários trabalhadores a quem, nas respectivas retribuições mensais, efectuava as retenções das contribuições, por estes devidas, à Segurança Social.

O arguido DD, foi vice-presidente do Conselho de Administração da sociedade arguida desde ... de ... de 2010.

Para o triénio 2021/2023 KK foi nomeado presidente do Conselho de Administração da sociedade arguida, do qual também faz parte o arguido GG, como vogal.

No período em referência, a sociedade arguida pagou os respectivos vencimentos aos trabalhadores e aos membros dos órgãos estatutários, descontando dos mesmos as cotizações para a Segurança Social.

A sociedade arguida é uma das empresas do grupo detido pela JJ denominada JJ, onde eram tomadas as decisões financeiras das empresas do grupo, incluindo as referentes ao pagamento de salários e de impostos devidos à segurança Social.

Assim, nos períodos compreendidos entre Abril de 2015 a Novembro de 2015 a sociedade arguida através dos seus administradores junto da holding JJ, deduziu das remunerações pagas aos trabalhadores e aos membros dos órgãos estatutários as contribuições por estes legalmente devidas à Segurança Social, nos termos referidos supra, retendo-as, e não as entregando à Segurança Social nos prazos estipulados por lei, ou seja, até ao dia 15 do mês seguinte àquele a que respeitavam, nem nos 90 dias seguintes ao termo de tal prazo, apesar das folhas de remuneração dos trabalhadores e dos membros dos órgãos estatutários terem sido entregues na dita instituição.

As cotizações retidas e não entregues atingiram o valor global de € 35.423,41 (trinta e cinco mil, quatrocentos e vinte e três euros e quarenta e um cêntimo) nos seguintes termos:
MAPA COM A IDENTIFICAÇÃO DAS COTIZAÇÕES EM FALTA
(…)

A sociedade arguida, foi notificada na pessoa do seu legal representante, DD, em 05.11.2020 para proceder ao pagamento da dívida referente às contribuições retidas, e juros, no prazo de 30 dias, não o fazendo, nem nesse prazo, nem até á presente data.
10º
A sociedade actuou, através dos seus agentes, da forma descrita, em todas as ocasiões do mesmo modo, por via e em execução de uma única resolução, facilitada pela circunstância de os serviços de fiscalização da segurança social não terem imediatamente surpreendido a sua conduta.
11º
Sabia que era sua obrigação entregar à Segurança Social as contribuições, a esta, devidas, e que haviam sido previamente deduzidas das remunerações dos trabalhadores e dos membros dos órgãos estatutários da sociedade arguida.
12º
A Segurança Social sofreu efectivo prejuízo no valor de €35.423,41 (trinta e cinco mil, quatrocentos e vinte e três euros e quarenta e um cêntimo) uma vez que a sociedade arguida e os seus administradores fizeram seus os montantes que retiveram, e que bem sabiam não lhes pertencerem, mas sim àquela.
13º
Agiu a sociedade arguida, através dos seus agentes, de forma deliberada, livre e conscientemente, bem sabendo serem as suas condutas proibidas e punidas por lei.
14º
No processo especial de revitalização nº 4446/21.2... do Juízo de Comercio de ... em que é requerente a sociedade arguida foi aprovada o plano especial de recuperação em ........2021, no qual se incluiu a demandante, encontrando-se a ser cumprido os pagamentos mensais acordados, num total de 150 prestações à Segurança Social para uma dívida global de € 1.153.813,38 – cfr. fls. 870 a 929 apresentados com a contestação.
15º
A sociedade arguida e GG não registam antecedentes criminais.
16º
O arguido DD já foi condenado nos seguintes processos:
Proc. 683/12.9... por acórdão transitado em julgado em ........2019, pela prática em ........2011 de um crime de abuso de confiança fiscal na forma continuada do artigo 105º, nº 1e 7º do RGIT na pena de 4 anos de prisão suspensa na sua execução pelo mesmo período com a condição de pagamento da prestação tributária em dívida e demais acréscimos legais.
Proc. 210/12.8..., por acórdão transitado em julgado em ........2019, pela prática em ... de um crime de abuso de confiança fiscal na forma continuada, do artigo 105º, nºs 1, 4 e 5 do RGIT, na pena de 2 anos de prisão suspensa na sua execução pelo mesmo período com a condição de pagamento ao Estado da quantia total de € 26.476,81.
17º
Das condições pessoais do arguido DD e do respectivo percurso de vida, provou-se que:
À data factos encontrava-se a viver com o cônjuge e o filho mais novo, portador de necessidades especiais, encontrando-se a filha mais velha em ... a estudar. No presente, o casal mantém a residência na mesma morada, tendo o agregado familiar sofrido alterações na sequência do recente falecimento do filho.
O falecimento do filho, ocorrido de forma inesperada em ..., pese embora os seus problemas de saúde, ao que foi possível apurar, abalou profundamente a família, situação agudizada por um acidente de viação sofrido pelo cônjuge, que ora necessita de assistência, e a tomada de conhecimento que a filha padece de doença do foro genético, degenerativo. Nesse contexto, e na sequência da depressão sofrida há cerca de dois anos, mantém acompanhamento psicológico e psiquiátrico, assim como a família, reforçado na sequência da perda do filho, encontrando-se medicado com antidepressivos.
Acresce ainda o apoio que o arguido e o cônjuge têm vindo a prestar às irmãs desta, que se deslocam periodicamente a ... para tratamentos do foro oncológico, permanecendo na residência do casal.
Relativamente à família de origem, DD indica manter um relacionamento de proximidade com os dois irmãos mais novos, cujos vínculos afetivos foram fomentados na dinâmica relacional nuclear pela figura materna, e na transmissão de princípios e valores por parte dos ascendentes, nomeadamente a veiculação da honestidade, o espírito de sacrifício e o investimento profissional.
O agregado reside num apartamento arrendado desde ..., pelo qual despendem o montante de 1500 euros a título de renda mensal. Segundo o arguido, mantém uma relação cordial com a vizinhança.
Concluiu a licenciatura em engenharia civil aos 23 anos de idade, tendo a trajetória escolar/universitária sido marcada pela constância. Mais tarde, já no contexto de inserção profissional, viria a concluir o mestrado em gestão.
Embora afastado dos negócios, mantém a retribuição mensal como quadro da empresa ..., no montante de 5855,46 euros, empresa essa que, tal como a BB, faz parte do grupo JJ.
É com os referidos montantes auferidos por DD que o agregado faz face às despesas.
18º
O arguido LL aufere rendimentos mensais na ordem dos cinco mil euros e reside com a mulher e uma filha de 19 anos de idade, estimando suportar despesas mensais no valor de três mil euros.
B) Factos não Provados:
Não ficou demonstrada a restante matéria da acusação que aqui se dá como reproduzida e bem assim a que se mostra em contradição com a factualidade dada como provada.
Assim, com relevo para a discussão, não se provou, designadamente que:
Nos exercícios de ..., ..., ... e ..., os arguidos foram os administradores efetivos da sociedade arguida, sendo, deste modo, os responsáveis pela entrega à Segurança Social das contribuições que lhes eram legalmente devidas, resultantes de contribuições deduzidas das remunerações dos trabalhadores e dos membros dos órgãos estatutários da sociedade arguida.
A partir do mês de ... os arguidos DD e GG, na qualidade de efectivos administradores da sociedade arguida, decidiram que, sempre que lhes fosse conveniente, não cumpririam as obrigações de entregar à Segurança Social os montantes resultantes de contribuições deduzidas das remunerações dos trabalhadores e dos membros dos órgãos estatutários da sociedade arguida.
III.2 O Tribunal recorrido procedeu à Motivação da decisão de facto da seguinte forma:
(…)
III.3 O Tribunal recorrido procedeu à fundamentação de direito da seguinte forma:
Dispõe o artigo 107, n.° 1, RGIT: «As entidades empregadoras que, tendo deduzido do valor das remunerações devidas aos trabalhadores e membros dos órgãos sociais o montante das contribuições por estes legalmente devidas, não o entreguem, total ou parcialmente, às instituições de segurança social, são punidas com as penas previstas nos n.ºs 1 a 5 do artigo 105.°»; e o n.° 2, que é aplicável o disposto nos n.ºs 4 e 7 do artigo 105.
No caso da sociedade arguida, como empregadora estava obrigada a entregar à Segurança Social as contribuições mensais do dia ... seguinte àquele a que dizem respeito as remunerações – cfr. artigos 42º e 43º do Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial de Segurança Social (Lei 110/2009).
E o artigo 105, n.° 1 (já na redacção conferida pela Lei n.° 64-A/2008, de 31 de Dezembro), estatui que «quem não entregar à administração tributária, total ou parcialmente, prestação tributária (de valor superior a € 7500), deduzida nos termos da lei e que estava legalmente obrigado a entregar, é punido com pena de prisão até três anos ou multa até 360 dias». Mas sobre a não aplicação daquele limite quantitativo aos créditos da Segurança Social se segue aqui a jurisprudência fixada no Acórdão do STJ n.° 8/2010, publicado no Diário da República, lª Série, n.° 186, de ... de ... de 2010, cujos fundamentos se dão por reproduzidos.
Nos termos do nº 5 do mesmo artigo quando a entrega não efectuada for superior a (euro) 50000, a pena é a de prisão de um a cinco anos e de multa de 240 a 1200 dias para as pessoas colectivas.
Na situação dos autos é manifesto que a quantia apurada e penalmente relevante e punível não atinge limiar da referida agravação, como a acusação sustentava.
O bem jurídico protegido pela cominação do abuso de confiança contra a Segurança Social será o do recebimento das deduções do montante das contribuições por quem de direito (as instituições de segurança social).
O artigo 105, n.° 4, RGIT estabelece mais que os factos descritos nos números anteriores só serão puníveis se tiverem decorrido mais de 90 dias sobre o termo do prazo legal de entrega da prestação e, ainda, que exista uma notificação a possibilitar o pagamento da prestação em falta no prazo de 30 dias, cfr. alíneas a) e b, o que no caso vertente foi observado e demonstrado.
Na conformação do tipo objectivo de ilícito parece também ser fundamental, desde logo, a conduta de «apropriação» da contribuição deduzida que o agente está por lei obrigado a entregar à segurança social. Sobre a ideia de «apropriação» escreve o Professor Figueiredo Dias, no Comentário Conimbricense do Código Penal, tomo II, pág. 103, a propósito do crime de abuso de confiança, previsto no artigo 205 do Código Penal: «a apropriação traduz-se sempre, no contexto do abuso de confiança, precisamente na inversão do título de posse ou detenção (...); o agente, que recebera a coisa ati alieno, passa em momento posterior a comportar-se relativamente a ela (...) uti dominus; é exactamente nesta realidade objectiva que se traduz a "inversão do título de posse ou detenção" e é nela que se traduz e se consuma a apropriação".»
Se apontarmos as considerações tecidas para o tipo específico do crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, parecerá pertinente a ideia, expressa por CF Alberto da Costa Dias, a propósito do crime de «apropriação indébita» previsto no direito penal fiscal brasileiro, e segundo a qual «a apropriação indébita tem como antecedente lógico a posse ou a detenção», pois que «a apropriação sucede à posse ou à detenção (...)». O agente «cessa de possuir alieno nomine e faz entrar a coisa no seu património, ou dispõe dela como o dono, isto é, com o propósito de não a restituir, ou de não lhe dar o destino a que estava obrigado, ou sabendo que não mais poderia fazê-lo» («A apropriação indébita em matéria tributária», in Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano 6, fascículo 3.°, págs. 446 e 447).
Do ponto de vista do tipo subjectivo de ilícito avulta a necessária atitude dolosa do animus rem sibi habendi (com a correspectiva ciência, pelo agente, de que carece de motivo lícito para a recusa de restituição ou entrega a quem de direito), e ainda que só na modalidade de dolo eventual.
Por outro lado, nos termos do artigo 7.°, n.ºs. 1 e 3, RGIT, as pessoas colectivas, sociedades, ainda que irregularmente constituídas, e outras entidades fiscalmente equiparadas são responsáveis pelas infracções previstas na presente lei quando cometidas pelos seus órgãos ou representantes, em seu nome e no interesse colectivo; tal responsabilidade criminal não exclui a responsabilidade individual dos respectivos agentes.
Consagrou-se, por esta via, uma excepção ao princípio da individualidade da responsabilidade criminal ínsito no artigo 11º do Código Penal, ficcionando-se que a pessoa colectiva é capaz de vontade. A qual tem especial relevância sobretudo na criminalidade económica ou vulgarmente conhecida por «criminalidade de colarinho branco», onde o legislador «cedo se deu conta da ineficácia de qualquer política de repressão ou prevenção criminal que não atinja directamente as organizações burocráticas e impessoais que, entretanto, se converteram nos principais operadores do mundo dos negócios. Não se estranhará, por isso, se a criminalidade económica (...) aparecer como o campo privilegiado da punição das pessoas colectivas» (Costa Andrade, «O novo código penal e a moderna criminologia», Jornadas de Direito Criminal, pág. 218).
Feito este pequeno excurso sobre o ilícito sujeito, conclui-se que a sociedade arguida preencheu com a sua conduta o ilícito de abuso de confiança contra a segurança social mas na forma simples do artigo 105º, nº 1 do RGIT, preenchida que se mostra por igual a condição objectiva de punibilidade prevista no artigo 105, n.° 4, alínea b) do RGIT (cf. a respeito e por todos o Acórdão Uniformizador de Jurisprudência n.° 6/2008, de 15 de Maio de 2008, publicado no Diário da República, 1. "Série, de 15 de Maio de 2008).
Com efeito, da factualidade provada resulta que a sociedade arguida, apesar de ter descontado nos vencimentos dos seus trabalhadores, não procedeu à entrega aos serviços da Segurança Social das quantias relativas a quotizações a esta devidas.
É certo que a responsabilidade criminal da pessoa colectiva exige sempre o nexo de imputação do facto a um agente da pessoa colectiva, que será aquele que nela exerce liderança ou um seu subordinado nas condições prescritas na lei (art. 11º, nº 2 - a) e b) do Código Penal).
Mas essa responsabilidade criminal (da pessoa colectiva) não exige necessariamente a responsabilização (condenação) do seu agente. Assim sucederá, por exemplo, quando esse agente entretanto faleceu ou quando o procedimento criminal quanto a ele se extinguiu por qualquer outra razão. Basta que seja factualmente possível estabelecer e demonstrar o nexo de imputação do facto à pessoa física, independentemente de posterior condenação desta.
Assim sucederá, também, nos casos em que não é possível determinar qual, de entre vários, é o agente responsável pelos factos integrantes do crime; por outras palavras, quando se sabe que a responsabilidade cabe a um dos administradores da sociedade, mas não é possível precisar a qual deles. Nestes casos, verificados os restantes pressupostos da imputação (crime cometido em seu nome e no seu interesse), a pessoa colectiva pode ser responsabilizada independentemente da condenação ou absolvição dos seus agentes.
Como refere Germano Marques da Silva, “importa considerar os casos em que o tribunal pode comprovar que o acto foi praticado por um órgão, representante ou pessoa com autoridade para exercer o controlo, sem o que não poderia ter ocorrido nos termos concretos em que foram realizados, mas não seja possível individualizar de entre aqueles quem foi o agente do acto. Cremos que esta dificuldade não impede a responsabilização da pessoa colectiva, desde que seja possível decidir que o acto só podia ter sido praticado em razão da actuação, mediata ou imediata, por acção ou por omissão culposas de um órgão, representante ou pessoa com autoridade para exercer o controlo. É o que pensamos ser o sentido útil da parte final do nº 7 do art. 11º” (Responsabilidade Penal das Pessoas Colectivas – alterações ao Código Penal, Rev. Cej nº 8, p. 87).
E a tal não obstaria a dissolução da sociedade por insolvência, pois “no caso de extinção da pessoa colectiva ou entidade equiparada, o respectivo património responde pelas multas e indemnizações em que for condenada” (art. 127º, nº2 do Código Penal).
Em suma, a lei exclui a imputação dos factos à pessoa colectiva quando não for viável imputá-los a quem nela ocupe posição de liderança. Mas é possível que essa imputação se faça relativamente a quem ocupe posição de liderança mesmo que não seja possível apurar concretamente a qual de entre os vários líderes.
Assim acontece no caso dos autos em que não foi possível imputar aos arguidos DD e LL as decisões responsabilizantes da sociedade relativas às questões financeiras e de matéria fiscal junto da Segurança Social, impondo-se por isso a sua absolvição.
A empresa arguida, entre abril de 2015 a novembro de 2015, foi deduzindo nas remunerações dos empregados as importâncias que lhe eram imputadas a título de contribuições para a segurança social, mas não entregou as contribuições devidas num total de € 35.423,41,
Tais retribuições foram integralmente declaradas à Segurança Social, e, apesar disso, não foram entregues nos respectivos serviços no mês seguinte àqueles a que respeitavam, nem o pagamento foi regularizado nos 90 dias seguintes à data da sua possível liquidação, nem sequer quando, posteriormente, foi notificada para, em 30 dias, proceder ao seu pagamento, acrescidos da coima e juros legais, apesar da obrigação de os entregar à Segurança Social, por a esta serem devidos a título de contribuição, sabendo a arguida que não lhe pertenciam e que deviam ser entregues a esta, e que procedia de forma livre, consciente e voluntária, bem sabendo que a descrita conduta era e é proibida e criminalmente punida.
Refira-se que o crime de abuso de confiança contra a Segurança Social tem como pressuposto objectivo a apropriação total ou parcial da prestação social, que foi previamente deduzida pelo agente nos termos da lei, e que ele está obrigado a entregar ao credor tributário, daí advindo um prejuízo para o património do Estado, não sendo, por isso, necessário para o preenchimento do elemento objectivo do tipo que o agente retire um proveito directo (pessoal ou não) das quantias retidas e não entregues. Com efeito, a actual redacção do preceito relativo ao abuso de confiança contra a segurança social (artigo 107 da Lei n.° 15/2001, de 5 de Junho, RGIT, que revogou o Decreto-Lei n.° 20-A/90, de 15 de Janeiro, RJIFNA), ao contrário da exigência típica formulada pelo artigo 27-B do RJIFNA, no sentido de se exigir que o agente se apropriasse do montante das contribuições legalmente devidas por parte dos trabalhadores, prescinde da comprovação de tal elemento, bastando-se para a sua consumação com a não entrega da prestação tributária deduzida nos termos da lei.
Não é assim necessário demonstrar que o agente, para si ou para a sociedade arguida integrassem nos respectivos patrimónios as quantias retidas, existindo prejuízo para o Estado e consequente apropriação para efeitos do preceito em análise desde que as quantias devidas foram retidas a trabalhadores ou gerentes, e não entregues à Segurança Social, o que sucedeu no caso dos autos.
Acresce que, suposto se perspective o comportamento em apreço num quadro de dificuldades económicas e financeiras vividas pela empresa, a sua conduta não pode ser subsumível a uma qualquer causa de exclusão da culpa ou da ilicitude, designadamente a um estado de necessidade desculpante ou a um conflito de deveres, respectivamente. Na verdade, o dever (jurídico) decorrente do pagamento pontual das obrigações à segurança social, privilegiando-se o interesse da colectividade, do Estado, não pode ceder, naturalmente, em função do interesse do trabalhador numa relação, embora não somente, laboral singular. Se assim não fosse, em breve ruiria todo o sistema assistencial do Estado, por alimentado justamente pelas contribuições de todos os trabalhadores activos, e aliás já em ruptura ou pelo menos em dificuldades graves por estas circunstâncias e não só.
Finalmente, e quanto ao resultado lesivo do património fiscal, também é indubitável a sua verificação, pois, como se viu, o Estado - Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social, viu-se desembolsado na quantia mencionada, acrescida de juros.
Conclui-se pois ter a sociedade arguida cometido, em autoria material um crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, nos termos do disposto nos artigos 105º, nº 1, 107º, nº 1 e 7.° RGIT.
Considerando o período temporal abrangido pela infracção (num total de oito meses), apesar da homogeneidade da conduta não se demonstrando factores externos ao agente facilitadores do crime e capazes de diminuir a culpa do agente a tanto não bastando a falta de resposta imediata do Estado e dos seus agentes na boa cobrança dos impostos, não se conclui pela verificação de um crime continuado, mas por uma única resolução criminosa.
Com efeito, citando-se o Ac. da Relação do Porto de 28.06.2023, in www.dgsi.pt:
A verificação dos pressupostos da relação de continuidade, nos termos do disposto no art.30º, nº2, do Código Penal, entre as diferentes condutas omissivas no período total considerado, não opera ope legis, nem se basta com a sucessão temporal das condutas ilícitas. É necessário provar factualidade susceptível de integrar os requisitos exigíveis para afirmar a continuação criminosa. v. g, dificuldades económicas graves e prolongadas que põem em causa a continuação da atividade empresarial.
A falta ou demora de controlo por parte da administração tributária sobre a actividade do devedor fiscal (o retentor), quando esta lhe confiou uma obrigação fiscal própria e autónoma, por determinação legal, de entregar ao Estado os montantes retidos, não pode ser vista como especialmente facilitadora do seu incumprimento.
Feito o enquadramento jurídico-legal, proceda-se à escolha da pena, bem como à determinação da respectiva medida concreta.
O artigo 3.°, al. a), RGIT dispõe que, quanto aos crimes previstos nesse diploma, são aplicadas subsidiariamente as disposições do Código Penal, que por sua vez estabelece, no artigo 70º, que, se ao crime forem aplicáveis em alternativa pena privativa e pena não privativa da liberdade, o tribunal dá preferência à segunda, sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição: a protecção dos bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade (cf. artigo 40 CP). Isto é, o tribunal só deve negar a aplicação da pena alternativa quando a pena de prisão se mostre necessária ou de todo mais conveniente à luz da prevenção especial de reintegração.
Nos termos do artigo 105, n.° 1, RGIT, o ilícito em apreço é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa até 360 dias; por sua vez, o artigo 12, n.° 1, deste diploma, estabelece que o limite mínimo da pena de multa é de 10 dias; e o n.° 3 eleva os limites da pena de multa para o dobro sempre que aplicada a pessoa colectiva, sociedade ou entidade fiscalmente equiparada.
São pois as seguintes as penas previstas para o crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, quando a entrega não efectuada for igual ou inferior a € 50 000: prisão até 3 anos ou multa de 10 a 360 dias para as pessoas singulares, e pena de multa de 20 até 720 dias para as pessoas colectivas.
Enfim, o quantitativo diário da multa oscilar entre os limites de € 1 e € 500 ou de € 5 e € 5000, tratando-se de pessoas singulares ou de pessoas colectivas, respectivamente: artigo 15º, n.°1, RGIT.
As exigências de prevenção geral em crimes fiscais e parafiscais são elevadíssimas, pela sua recorrência em Portugal e a sua repercussão no estado financeiro do país e em particular da Segurança Social.
Mas não assim as exigências de prevenção especial, dada a ausência de antecedentes criminais da arguida.
Para determinar a pena em concreto, procede-se a duas operações distintas: determina-se o número de dias e fixa-se o quantitativo diário. A determinação dos dias efectua-se em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, apresentando-se a culpa, não como fundamento, mas como limite da pena, não havendo todavia pena sem culpa: artigos 40, 47, n.° 1, e 71, n.° 1, CP. Para o efeito, ponderam-se as agravantes e as atenuantes gerais que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor do agente ou contra ele: artigo 71, n.° 2, CP; e na fixação da taxa diária da multa tem-se em conta a situação económica e financeira e encargos dos arguidos, cf. artigo 47, n.° 2, CP, bem como, se possível, o proveito alcançado com os factos, cf. artigo 13 RGIT.
Vistos os factos o período e incumprimento e valor em dívida bem como a situação da empresa, em processo de revitalização e a cumprir as suas dívidas perante os credores, como junto da Segurança Social mostra-se ajustado fixar a multa em 250 dias de multa, à taxa diária de € 10,00 (dez euros), no total de € 2.500,00 (dois mil e quinhentos euros).
IV- Pedido civil:
Em face da ausência de responsabilidade penal a assacar aos arguidos em nome e em representação da BB nenhuma responsabilidade civil lhes poderá ser imputada pelo que o pedido civil quanto aos mesmos terá de improceder.
Em 7 de Janeiro de 2013 foi publicado no Diário da República, I-Série, o Acórdão de Fixação de Jurisprudência nº 1/2013, datado de 15 de Novembro de 2012, que firmou o seguinte entendimento:
«Em processo penal decorrente de crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, p. e p. no artº 107º nº 1, do R.G.I.T., é admissível, de harmonia com o artº 71.º, do C.P.P., a dedução de pedido de indemnização civil tendo por objecto o montante das contribuições legalmente devidas por trabalhadores e membros dos órgãos sociais das entidades empregadoras, que por estas tenha sido deduzido do valor das remunerações, e não tenha sido entregue, total ou parcialmente, às instituições de segurança social.»
Ainda que esteja a correr termos uma execução (…) o I.S.S., I.P. mantém o interesse em agir em sede de pedido de indemnização civil num processo por crime de abuso de confiança.
A causa de pedir subjacente ao titulo no processo executivo é o incumprimento da obrigação legal de entregar as prestações devidas à segurança social, enquanto que a causa de pedir subjacente ao pedido de indemnização civil é a responsabilidade civil emergente da prática do crime de abuso de confiança em relação à segurança social.
Não se pode dizer que o demandante ISS, IP pretende usar o processo declarativo para definir um direito que já se encontrava estabelecido em termos idênticos num título com manifesta força executiva, como o que está presente nas execuções (…).
Como se sustenta nos Acórdãos do STJ de 11/12/2008 e de 29/10/2009 a indemnização pedida nos processos crime por abuso de confiança contra a segurança social não se destina a liquidar uma obrigação tributária para com a segurança social, sendo antes fixada segundo critérios da lei civil, apesar de os factos geradores da obrigação de indemnizar e da obrigação tributária poderem ser parcialmente coincidentes, não podendo naturalmente ser confundidos os seus fins e regimes.»
A responsabilidade civil que decorre da causa petendi do enxerto cível decorre da prática de factos ilícitos tipificados na lei como crime.
Nestes termos, conforme sublinhado na fundamentação do Acórdão de Fixação de Jurisprudência nº 1/2013, o que está em causa nestes autos é apenas uma indemnização decorrente de responsabilidade civil por factos ilícitos – e não, por incumprimentos de deveres tributários stricto sensu -.
Como resulta do disposto no artigo 129º do Código Penal, o pagamento a que o demandado cível pode ser condenado em processo penal é sempre uma indemnização, que se funda na prática de um facto ilícito. ( Citando o teor da fundamentação do Assento 7/99 do STJ (in Diário da República, Iª Série-A, de 3 de Agosto de 1999), o art. 129º do Código Penal “remete para o art. 483º do Cod. Civil tratando da regulação da indemnização de perdas e danos emergentes do crime”. “A indemnização civil por perdas e danos que interessa ao direito penal só pode consistir na indemnização de perdas e danos emergentes do crime, excluindo-se portanto e claramente, a indemnização que resulte da responsabilidade contratual”.)
Daqui resultam excluídas outras fontes das obrigações, como é o caso, por exemplo, das relações tributárias.
Algo que não briga com o plano de pagamentos e respectiva ordem acordada em sede de PER, que vincula também a Segurança Social.
Dito isto, compreender-se-á que a indemnização peticionada nos presentes autos não se destina a liquidar uma obrigação tributária para a Segurança Social (para a qual a lei estabelece mecanismos próprios), devendo, antes, ser fixada segundo os critérios da lei civil.
Por conseguinte, sobre a indemnização a apurar incidem juros moratórios, nos termos gerais (artigo 806º, 1 e 2 do Código Civil) – e não, conforme peticionado, de acordo com o artigo 3.°, n.° 1 do DL 73/99 de 16.3. -, não havendo ainda lugar à aplicação dos encargos adicionais próprios dos incumprimentos tributários, por serem inaplicáveis às indemnizações fixadas de acordo com a lei civil.
Nos termos do disposto no art. 129º do Código Penal, “A indemnização de perdas e danos emergentes de crime é regulada pela lei civil.”
Por isso, importa começar por identificar a norma jurídica basilar aplicável à situação «sub judice», sendo todos os preceitos indicados sem menção da sua proveniência referentes ao Código Civil:
Art. 483º
"1. Aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação."
Nos termos do artigo 563º do Código Civil, a obrigação de indemnização só existe em relação aos danos que o lesado provavelmente não teria sofrido, se não fosse a lesão.
Para que se verifique a responsabilidade extracontratual, exige‑se, pois, a verificação dos seguintes requisitos (Ao nível da doutrina, veja‑se, entre outros, o Professor Antunes Varela, «in» Das Obrigações em Geral, 2ª edição, a págs. 350 e seguintes e o Professor Mota Pinto, «in» Teoria Geral do Direito Civil, 3ª edição, a páginas 115.)
1º Um facto ilícito;
2º A culpa do agente;
3º A existência de prejuízo;
4º Um nexo de causalidade entre a conduta ilícita e culposa e o prejuízo.
Quis o legislador, consagrar, no art. 483º, 1, do Código Civil a chamada teoria da causalidade adequada, nos termos de cuja formulação negativa (a ensinada por Ennecerus-Lehmann e que Antunes Varela considera a mais criteriosa (Ibidem, a págs. 756.): «o facto que actuou como condição do dano só deixará de ser considerado como causa adequada se, dada a sua natureza geral, se mostrar de todo em todo indiferente para a verificação do dano, tendo-o provocado só por virtude das circunstâncias excepcionais, anormais, extraordinárias ou anómalas, que intercederam no caso concreto».
Sendo a ilicitude, na sua essência, negação pelo homem, de valores, interesses ou bens jurídicos (isto é, tutelados pelo direito) e tendo os demandados violado os bens jurídicos protegidos pela incriminação da sua conduta – , os demandados incorreram na prática de atos ilícitos, por se terem apropriado de importâncias que foram por si descontadas para serem entregues ao demandante, nos termos da Lei.
No tocante à culpa, esta é apreciada, na falta de outro critério legal, pela diligência de um bom pai de família, em face das circunstâncias de cada caso, «ex vi» do art. 487º, 2 do Código Civil.
Agir com culpa significa actuar em termos de a conduta do agente merecer a reprovação ou censura do direito: o lesante pela sua capacidade e em face das circunstâncias concretas da situação devia ter agido de outro modo.
É claro que a culpa do autor material de um facto ilícito pressupõe a sua imputabilidade, isto é, que ele seja uma pessoa dotada de discernimento ou capacidade natural para prever os efeitos ou consequências dos seus atos e para avaliar ou valorar estes, bem como da liberdade de se autodeterminar em função das valorações feitas.
Dito isto, resulta clara a culpa da sociedade demandada na prática dos abusos de confiança praticados em relação à Segurança Social -, ao ter decidido, através dos seus agentes e consumado a apropriação ilícita dos dinheiros destinados ao demandante.
Os prejuízos patrimoniais (diretamente emergentes do ilícito cometido de forma culposa), para o demandante, atingiram o montante global de € 35.423,41 (trinta e cinco mil, quatrocentos e vinte e três euros e quarenta e um cêntimos)
Dos juros de mora
Os juros moratórios são devidos, a partir da data de cada uma das omissões de pagamento que integram a prática criminosa (factos ilícitos) subjacente, por força do disposto nos artigos 805º, nº 2º, c) e 806º, nºs 1 e 2, ambos do Código Civil, tendo os juros de mora natureza civil.(…)
III.4- Em 26-11-2019 ocorreu a constituição de arguido de ZZ (fls. 558 e 559) e a 05-11-2020 foram constituídos arguidos a BB e GG (fls. 731 e 735).
Por cartas enviadas em 06/01/2021, com prova de depósito depositadas a 11-01-2021 BB e GG e 08-07-2021 (arguido ZZ) foram os arguidos notificados da acusação.
Os arguidos foram notificados da audiência de julgamento por cartas com prova de depósito depositadas a 14-03-2022, momento em que ocorreu nova interrupção no prazo prescricional.
Os arguidos foram notificados da sentença em 23/05/2024, na data em que ocorreu a leitura da mesma.
IV-Fundamentos do recurso e respectiva aprecisão:
• Do Recurso interlocutório:
-da aplicação do art.º 21.º, n.º 3 do RGIT, na afirmativa, se o prazo de prescrição é de de 4 anos e já decorreu.
Vem a arguida AAA... ...S.A recorrer do despacho que julgou não verificada a prescrição do procedimento criminal em virtude da não aplicação ao caso dos autos do disposto no n.º3, do art.º 21.º, do RGIT, como defende a arguida e que implicaria a verificação da prescrição do procedimento criminal.
Em vista do recurso interlocutório é este o contexto processual.
No despacho recorrido foi decidido que:
“Vêm os arguidos defender a verificação da prescrição do presente procedimento contra-ordenacional com base na aplicação aos presentes autos no n.º 3 do artigo 21.º do RGIT, o qual implica que os valores de cuja não entrega à Segurança Social os arguidos estão acusados nos autos dependessem de liquidação para a fixação do seu respetivo valor.
Ora, notoriamente, não é esse o caso nos autos.
Com efeito, estamos perante valores que resultam desde logo liquidados pelo próprio obrigado à sua entrega (entidade patronal) nas declarações de remunerações que se encontra obrigado a enviar regularmente à Segurança Social acompanhadas do respetivo meio de pagamento do valor devido a título de cotizações para aquela entidade.
Não tem, por isso, aplicação nos autos o disposto no artigo 21.º, n.º 3, do RGIT, sendo aplicável o prazo de prescrição de 5 anos (cfr. artigo 21.º, n.º 1, do RGIT).
Assim sendo, o prazo de prescrição do presente procedimento criminal apenas se completa em 15.08.2026 (cfr. artigos 119.º, n.º 1, 120.º, n.º 1, alínea b), 121.º, n.ºs 1, alíneas a), b) e d), e 3, todos do Código Penal).
Porém, veio a arguida recorrer alegando em síntese:
É entendimento jurisprudencial e doutrinário seguro que o conceito de liquidação constante do citado art. 21º, nº 3, se identifica com o de determinação do valor da prestação devida.
Devendo por isso afirmar-se ter de haver lugar à redução a 4 anos do prazo de prescrição do procedimento criminal sempre que, como se verifica no caso dos autos, esse prazo tenha decorrido desde o momento da determinação do valor devido até ao momento da sua concreta interrupção relativamente a cada concreto Arguido.
Em resposta o Ministério Público, defende a posição de que:
Nos termos do previsto nos 107.º, nºs 1 e 2, e 105.º, n.ºs 1, 4, alíneas a) e b), e 5, da Lei n.º 15/2001, de 05 de junho (RGIT) a conduta imputada à arguida na acusação é punida com pena de prisão “de um a cinco anos e de multa de 240 a 1200 dias para as pessoas colectivas.”
Da conjugação do disposto no artigo 21.º, n.ºs 1 e 2 do RGIT, com o artigo 118.º, n.º 1, alínea b), do Código Penal, resulta que o prazo de prescrição do crime em apreço seria de 10 (dez) anos, uma vez que o prazo de prescrição deverá ser o previsto no Código Penal, superior ao previsto no art.º 21.º do RGIT.
No entanto, mesmo que assim se não considere, sempre o prazo de prescrição seria de 5 anos mercê do previsto no art.º 21.º do RGIT e não de 4 anos conforme sustentando pelo recorrente.
Ora, o previsto no art.º 21.º, n.º 3 apenas se aplica a determinado tipo de impostos que carecem de prévia liquidação pela autoridade tributária.
As contribuições à Segurança Social são autoliquidadas no sentido de que é a entidade empregadora/contribuinte quem declara à Segurança Social que reteve o valor da contribuição sobre o salário do trabalhador, pelo que se encontram excluídas do âmbito da aplicação do n.º 3 do citado dispositivo legal.
O STA tem entendido que nas situações que têm caráter de autoliquidação não se aplica o regime de caducidade do direito à liquidação
Efetivamente, ocorreram várias causas de interrupção do prazo prescricional, a saber: com a constituição de arguidos, com a notificação da acusação por cartas com prova de depósito e finalmente com a notificação da data que designa audiência de julgamento.
Aliás, a notificação da acusação iniciou também um prazo de 3 anos de suspensão do prazo prescricional, suspensão essa que ainda se encontra a decorrer.
. Sendo que, de todas as vezes que ocorreu uma causa de interrupção, começou a contar um novo prazo e uma vez que, entre interrupções, não decorreram 5 anos entendemos que o presente procedimento criminal não se encontra prescrito.
A lei impõe um limite máximo para o procedimento criminal que é o prazo normal de prescrição acrescido de metade (n.º 3 do 121.º do Código Penal) ao qual são acrescentados os períodos de suspensão.
Assim, caso se entenda que o prazo de prescrição é de 5 anos, o prazo máximo será, no caso concreto dos autos, de 7 anos e 6 meses a que acrescem 3 anos de suspensão, ou seja, 10 anos e 6 meses.
Ora tendo-se o prazo prescricional do presente procedimento criminal iniciado em maio 8 de 2016 e tendo em conta o período máximo do mesmo prazo este terminará em novembro de 2026, desde que não ocorram novas causas de suspensão.
Forçoso é concluir que não decorreu ainda o prazo de prescrição do presente procedimento criminal.
Vejamos:
Nos presentes autos a arguida foi acusada pela prática de um crime continuado de abuso de Confiança contra a Segurança Social agravado, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 107.º, nºs 1 e 2, e 105.º, n.ºs 1, 4, alíneas a) e b), e 5, da Lei n.º 15/2001, de 05 de junho (RGIT).
Nos termos do previsto nos 107.º, nºs 1 e 2, e 105.º, n.ºs 1, 4, alíneas a) e b), e 5, da Lei n.º 15/2001, de 05 de junho (RGIT) a conduta imputada à arguida na acusação é punida com pena de prisão “de um a cinco anos e de multa de 240 a 1200 dias para as pessoas colectivas.”
Realizado o julgamento veio a arguida a ser condenada pela prática entre abril de 2015 a novembro de 2015 de um crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, dos arts.º 107º nº1, 105º n.º1 e 7º da Lei nº15/2001 (RGIT) na pena de 250 (duzentos e cinquenta) dias de multa, à taxa diária de € 10,00 (dez euros), no total de € 2.500,00 (dois mil e quinhentos euros).
Dispõe o art.º 107.º do RGIT que: (Abuso de confiança contra a segurança social):
1 — As entidades empregadoras que, tendo deduzido do valor das remunerações devidas a trabalhadores e membros dos órgãos sociais o montante das contribuições por estes legalmente devidas, não o entreguem, total ou parcialmente, às instituições de segurança social, são punidas com as penas previstas nos n.ºs 1 e 5 do artigo 105.º
2 — É aplicável o disposto nos n.ºs 4 e 7 do artigo 105.º
Mais, dispõe o artigo 105º do CP, com a epígrafe Abuso de confiança, que:
“1- Quem não entregar à administração tributária, total ou parcialmente, prestação tributária de valor superior a €7.500, deduzida nos termos da lei e quando estava legalmente obrigado a entregar é punido com pena de prisão até três anos ou multa até 360 dias.

2- Para efeitos do número anterior, considera-se também prestação tributária a que foi deduzida por conta daquela, bem como aquela que, tendo sido recebida, haja obrigação legal de a liquidar, nos casos em que a lei o preveja.
3- É aplicável o disposto no número anterior ainda que a prestação deduzida tenha natureza parafiscal e desde que possa ser entregue autonomamente.
4-Os factos descritos nos números anteriores só são puníveis se:
a) Tiverem decorrido mais de 90 dias sobre o termo do prazo legal para a entrega da prestação;
b) A prestação comunicada à administração através da correspondente declaração não for paga, acrescida dos juros respectivos e do valor da coima aplicável, no prazo de 3 dias após a notificação para o efeito.
5- Nos casos previstos nos números anteriores, quando a entrega não efectuada for superior a €50.000, a pena é a de prisão de um ano a cinco anos e de multa de 240 a 1200 dias para as pessoas colectivas.
6- Revogado.
7- Para os efeitos do disposto nos números anteriores, os valores a considerar são os que, nos termos da legislação aplicável, devam constar de cada declaração a apresentar à administração tributária.”
E, dispõe o artigo 21º do RGIT, com a epígrafe Prescrição, interrupção e suspensão do procedimento criminal, que:
“1- O procedimento criminal por crime tributário extingue-se, por efeito de prescrição, logo que sobre a sua prática sejam decorridos cinco anos.
2- O disposto no número anterior não prejudica os prazos de prescrição estabelecidos no Código Penal quando o limite máximo de prisão for igual ou superior a cinco anos.
3- O prazo de prescrição do procedimento criminal é reduzido ao prazo de caducidade do direito à liquidação da prestação tributária quando a infração depender daquela liquidação.
4- O prazo de prescrição interrompe-se e suspende-se nos termos estabelecidos no Código Penal, mas a suspensão da prescrição verifica-se também por efeito da suspensão do processo, os termos previstos no nº2 do artigo 42º e no artigo 47º.”(destaques nosso)
As contribuições à Segurança Social são autoliquidadas no sentido de que é a entidade empregadora/contribuinte quem declara à Segurança Social que reteve o valor da contribuição sobre o salário do trabalhador, pelo que se encontram excluídas do âmbito da aplicação do n.º 3 do citado dispositivo legal.
Está em causa nos autos o não cumprimento pela sociedade arguida, enquanto entidade empregadora, das obrigações previstas nos art.ºs 42.º e 43.º do Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial de Segurança Social (Lei 110/2009 de 2009-09-16).
Os art.ºs 42.º e 43.º, estão inseridos na PARTE II - Regimes contributivos do sistema previdencial, TÍTULO I - Regime geral dos trabalhadores por conta de outrem, CAPÍTULO I - Disposições gerais, SECÇÃO III - Relação jurídica contributiva, SUBSECÇÃO I - Obrigações dos contribuintes.
Estabelece o art.º 42.º - Responsabilidade pelo cumprimento da obrigação contributiva o seguinte:
1 - As entidades contribuintes são responsáveis pelo pagamento das contribuições e das quotizações dos trabalhadores ao seu serviço.
2 - As entidades contribuintes descontam nas remunerações dos trabalhadores ao seu serviço o valor das quotizações por estes devidas e remetem-no, juntamente com o da sua própria contribuição, à instituição de segurança social competente.
3 - Sem prejuízo do disposto no Regime Geral das Infracções Tributárias, a violação do disposto nos n.ºs 1 e 2 constitui contra-ordenação leve quando seja cumprida nos 30 dias subsequentes ao termo do prazo e constitui contra-ordenação grave nas demais situações.
Mais dispõe o art.º 43.º que: Pagamento das contribuições e das quotizações:
O pagamento das contribuições e das quotizações é mensal e é efectuado do dia 10 até ao dia 20 do mês seguinte àquele a que as contribuições e as quotizações dizem respeito.
Como decorre dos factos provados, a arguida/recorrente não cumpriu a obrigação prevista nestas duas disposições legais, que constituem a regra de que as contribuições para a Segurança Social resultam da apresentação das declarações de remunerações pelo contribuinte, a quem compete também proceder à liquidação dos montantes a entregar, aplicando as percentagens legais às remunerações, numa figura próxima da autoliquidação.
Não é de aplicar ao abuso de confiança à segurança social o n.º3, do art.º 21.º, porquanto a infracção não depende de liquidação, pois compete à entidade empregadora a sua autoliquidação, descontando nas remunerações dos trabalhadores ao seu serviço, o valor das quotizações por estes devidas e remetendo-as, juntamente com o da sua própria contribuição, à instituição de segurança social competente.
Tal como referido pelo Ministério Público, o STA tem entendido que nas situações que têm carácter de autoliquidação não se aplica o regime de caducidade do direito à liquidação, uma vez em que o acto da entidade não pode ser formalmente definido como acto de liquidação, pois não está subordinado a qualquer procedimento próprio para liquidação de tributos, não sendo de aplicar o art.º 45.º, da Lei Geral Tributária, ao contrário das situações de liquidação oficiosa a que se reporta o art.º 33.º do Decreto-lei nº 8-B/2002, em que a liquidação resulta da iniciativa da Segurança Social em suprimento das obrigações dos contribuintes. (Cfr. Ac. do TCA Sul datado de 15-04-21, proferido nos autos 98/17.2BEALM, JOSÉ GOMES CORREIA acórdãos da Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo de 14.06.2012, recurso 443/12, de 23 de Setembro de 2009, recurso n.° 436/09, e de - de 30 de Maio de 2012, recurso n.° 104/12, o Ac. do TCA Sul proferido em 29-04-2021, nos autos 207/10.2BEPDL, o Ac. do STA datado de 26-02-2014 proferido nos autos 01481/13 e, do mesmo tribunal, o Ac. do TCA Sul datado de 21-05-15 proferido nos autos 0766/13 todos in www.dgsi.pt.).
No sentido da não aplicação do art.º 21.º, n.º3, vai o recente acórdão do TRL proferido a 21-03-2024 no processo 265/18.1IDSTB.L1-9, ainda que atinente a IVA, mas que o raciocínio jurídico terá que ser o mesmo:
I - No crime de abuso de confiança fiscal, p. e p. pelo artigo 105º, nº1, do RGIT, estando em causa a não entrega de valores relativos a IVA, apurados e recebidos pelo sujeito passivo e não superiores a €50.000, não dependendo de qualquer liquidação, é inaplicável o disposto nos nºs 2 e 3 do artigo 21º do RGIT, pelo que o procedimento criminal se extingue, por efeito de prescrição, decorridos que sejam cinco anos, nos termos do nº 1 do referido preceito legal.
II - “…independentemente da verificação da condição objectiva de punibilidade prevista na alínea a) do número 4 do artigo 105º do RGIT, (…) a consumação do crime dá-se quando, com absoluta independência da ocorrência ou não do aludido elemento condicionante, o agente preenche, com a sua conduta omissiva e contrária à lei, os elementos do respectivo tipo legal. Momento a partir do qual, verificando-se o fim da realização ilícita, típica e culposa, se inicia a contagem do prazo de prescrição do procedimento criminal.”
III - A causa de suspensão do prazo de prescrição prevista no artigo 7.º, n.ºs 3 e 4, da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de Março, é aplicável aos processos a correr termos por factos cometidos antes do início da respetiva vigência.” Decorrendo da tipicidade da actuação a aplicação do disposto no artigo 21º n.º 1º , 2º e 4º do RGIT.
Também, no mesmo sentido, o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 26/02/2014 processo 64/06.3IDVIS.C1 relatora ALCINA DA COSTA RIBEIRO, cujo sumário se transcreve:
“I - O IVA - como outros impostos -, abrange prestações tributárias dependentes de liquidação, a efectuar de acordo com os trâmites do Capítulo V do CIVA, que contém as regras e a forma de cálculo do tributo a pagar.
II - Porém, a “infracção dependente da liquidação”, referida no n.º 3 do artigo 21.º do RGIT, pressupõe que o atinente elemento constitutivo provenha do apuramento do valor do imposto; ou seja, o tipo de infracção só se verifica depois de determinado o valor da prestação tributária, através do acto da liquidação.
III - A perfectibilização do crime de abuso de confiança fiscal, por não entrega de valores relativos a IVA, apurados e recebidos pelo sujeito passivo, não depende de qualquer acto de liquidação que a administração fiscal haja de fazer.
IV - Não sendo de aplicar ao referido circunstancialismo a norma acima indicada, em consonância com o que dispõe o artigo 21.º, n.º 1, do RGIT, é de cinco anos o prazo de prescrição do procedimento criminal relativo àquele crime.
Em suma, o previsto no art.º 21.º, n.º 3 do RGIT apenas se aplica a determinado tipo de impostos que carecem de prévia liquidação pela autoridade tributária. Ora as contribuições à Segurança Social são autoliquidadas no sentido de que é a entidade empregadora/contribuinte quem declara à Segurança Social que reteve o valor da contribuição sobre o salário do trabalhador, pelo que se encontram tais impostos excluídos do âmbito da aplicação do n.º 3 do citado dispositivo legal.
Ao caso, aplica-se o art. 21º, nº 1, do RGIT, a prescrição criminal ocorre decorrido que sejam 5 anos sobre a prática do facto, sem prejuízo das suspensões e interrupções legais.
Quanto ao início do prazo, reza o art.º 119.º, do CP que:
1 - O prazo de prescrição do procedimento criminal corre desde o dia em que o facto se tiver consumado.
2 - O prazo de prescrição só corre:
a) Nos crimes permanentes, desde o dia em que cessar a consumação;
b) Nos crimes continuados e nos crimes habituais, desde o dia da prática do último acto;
c) Nos crimes não consumados, desde o dia do último acto de execução.
Dispõe o art.º 120.º - Suspensão da prescrição
1 - A prescrição do procedimento criminal suspende-se, para além dos casos especialmente previstos na lei, durante o tempo em que:
a)O procedimento criminal não puder legalmente iniciar-se ou continuar por falta de autorização legal ou de sentença a proferir por tribunal não penal, ou por efeito da devolução de uma questão prejudicial a juízo não penal;
b)O procedimento criminal estiver pendente a partir da notificação da acusação ou, não tendo esta sido deduzida, a partir da notificação da decisão instrutória que pronunciar o arguido ou do requerimento para aplicação de sanção em processo sumaríssimo;
c)Vigorar a declaração de contumácia;
d)A sentença não puder ser notificada ao arguido julgado na ausência; ou
e)A sentença condenatória, após notificação ao arguido, não transitar em julgado;
f)O delinquente cumprir no estrangeiro pena ou medida de segurança privativas da liberdade.
2 - No caso previsto na alínea b) do número anterior a suspensão não pode ultrapassar três anos.

3 - No caso previsto na alínea c) do n.º 1 a suspensão não pode ultrapassar o prazo normal de prescrição.
4 - No caso previsto na alínea e) do n.º 1 a suspensão não pode ultrapassar 5 anos, elevando-se para 10 anos no caso de ter sido declarada a excecional complexidade do processo.
5 - Os prazos a que alude o número anterior são elevados para o dobro se tiver havido recurso para o Tribunal Constitucional.
6 - A prescrição volta a correr a partir do dia em que cessar a causa da suspensão.
Mais estatui o art.º 121.º, Interrupção da prescrição que:
1 - A prescrição do procedimento criminal interrompe-se:
a) Com a constituição de arguido;
b) Com a notificação da acusação ou, não tendo esta sido deduzida, com a notificação da decisão instrutória que pronunciar o arguido ou com a notificação do requerimento para aplicação da sanção em processo sumaríssimo;
c) Com a declaração de contumácia;
d) Com a notificação do despacho que designa dia para audiência na ausência do arguido.
2- Depois de cada interrupção começa a correr novo prazo de prescrição.
3 - Sem prejuízo do disposto no n.º 5 do artigo 118.º, a prescrição do procedimento criminal tem sempre lugar quando, desde o seu início e ressalvado o tempo de suspensão, tiver decorrido o prazo normal de prescrição acrescido de metade. Quando, por força de disposição especial, o prazo de prescrição for inferior a dois anos o limite máximo da prescrição corresponde ao dobro desse prazo.

A entrega à Segurança Social pela sociedade arguida deveria ter ocorrido até ao dia 20 do mês seguinte a que as contribuições dizem respeito, o que não ocorreu.
Atenta a natureza omissiva do ilícito este consuma-se no momento em que o agente devia ter actuado e não actuou ( cfr. Artigo 5º n.º 1 do RGIT).
Como refere o Ac do TRL de 20-03-2012 proferido no processo 5209/04.5TDLSB.L1-5 relatora FILOMENA CLEMENTE LIMA:
Iº Actuando os arguidos em representação da sociedade arguida, retendo e não entregando à Segurança Social as importâncias descontadas às remunerações dos respectivos trabalhadores e dos membros dos órgãos sociais, no período de cerca de dois anos, agindo sempre de idêntico modo, com as suas actuações facilitadas pela inércia dos serviços da Segurança Social e pelo intuito de manter a empresa em actividade, devido às dificuldades económicas que atravessava, estão preenchidos os pressupostos da continuação criminosa;
IIº O crime de abuso de confiança contra a segurança social, sendo um crime omissivo puro, consuma-se com a não entrega dolosa, no tempo devido, à segurança social, das contribuições deduzidas pela entidade empregadora dos salários dos seus trabalhadores e corpos sociais, iniciando-se o prazo de prescrição no termo do prazo legal da entrega da prestação;
IIIº O prazo de 90 dias previsto no nº4 do art.105, do RGIT, sendo uma condição objectiva de punibilidade que não impede que possa ser exercida a acção penal, em nada interfere no decurso do prazo de prescrição do procedimento criminal;
IVº A apropriação típica do crime de abuso de confiança em relação à Segurança Social, ocorre quando a entidade empregadora deduz uma quantia da remuneração de um seu trabalhador, ou órgão social, com a finalidade de a entregar à Segurança Social e não a entrega, invertendo título da posse dessa quantia, passando a dispor da mesma como se fosse sua, afectando-a a outra finalidade;
Vº A motivação ou finalidade do agente e a consequente afectação que fez das quantias de que se apropriou são irrelevantes, pode até prosseguir o mais elevado dos fins, o que não releva para a questão de saber se houve ou não abuso de confiança;
No Ac Acórdão STJ de Uniformização de Jurisprudência n.º 2/2015 in Diário da República n.º 35/2015, Série I de 2015-02-19 foi acolhido o mesmo entendimento:
No crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, previsto e punido pelos artigos 107.º, número 1, e 105.º, números 1 e 5, do Regime Geral das Infracções Tributárias (RGIT), o prazo de prescrição do procedimento criminal começa a contar-se no dia imediato ao termo do prazo legalmente estabelecido para a entrega das prestações contributivas devidas, conforme dispõe o artigo 5.º, número 2, do mesmo diploma.”
A problemática em apreciação neste citado acórdão prendia-se efectivamente com o início da contagem do prazo de prescrição do procedimento criminal, pelo crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, o que, por sua vez, tem directamente a ver com a determinação do tempus delecti commissi, face à previsão da alínea a) do número 4 do artigo 105º do RGIT, porquanto enquanto certa corrente jurisprudencial e bem assim doutrinal considerava que o mencionado prazo devia começar a contar-se a partir do dia imediato ao termo do prazo legalmente estabelecido para a entrega, às instituições de Segurança Social, das prestações contributivas deduzidas por retenção na fonte, outra corrente entendia que a contagem de tal prazo prescricional só se iniciava depois de decorridos 90 dias sobre o termo daquele prazo estabelecido para a entrega das prestações contributivas.
Considerando que na decisão recorrida foi entendido que no caso se tratou de uma única resolução criminosa, o prazo de prescrição conta-se a partir do dia imediato ao termo do prazo legalmente estabelecido para a entrega relativa a Novembro de 2015 (20.º dia do mês seguinte).
Adianta-se desde já que considerando que o prazo de prescrição é de 5 anos e não 4 como defende a arguida (face à não aplicação do n.º3 do art.º 21.º) o prazo prescricional ainda não decorreu uma vez que ocorreram causas de interrupção e suspensão do mesmo.
Efetivamente, ocorreram várias causas de interrupção do prazo prescricional: com a constituição de arguidos, com a notificação da acusação por cartas com prova de depósito, e finalmente com a notificação da data que designa audiência de julgamento.
A notificação da acusação iniciou também um prazo de 3 anos de suspensão do prazo prescricional, suspensão essa que ainda se encontra a decorrer (art.º 120.º, n.º3, do CP).
Sendo que, de todas as vezes que ocorreu uma causa de interrupção, começou a contar um novo prazo (n.º2, do art.º 121.º, do CP).
A lei impõe um limite máximo para o procedimento criminal que é o prazo normal de prescrição acrescido de metade (n.º 3 do 121.º do Código Penal) ao qual são acrescentados os períodos de suspensão.
De facto, nos termos do art.º 21.º do RGIT: “4 - O prazo de prescrição interrompe-se e suspende-se nos termos estabelecidos no Código Penal […].”
A prestação à Segurança Social deveria ter sido entregue até ao dia 20 do mês seguinte a que as contribuições dizem respeito, sendo que o crime passou a ser punível 90 dias após esse prazo (art.º 105.º do RGIT), conforme referido a fls. 1546 da sentença recorrida, condição de punibilidade cujo prazo não interfere com a contagem do prazo de prescrição como fixado no referido AUJ.
Vemos que a 05-11-2020 foi constituída arguida a BB
Assim, nessa data ocorreu a interrupção do prazo de prescrição começando a correr novo prazo.
Por cartas com prova de depósito depositadas a 11-01-2021 foi a arguida notificada da acusação, momento em que não só ocorreu nova interrupção do prazo como se iniciou um prazo de 3 anos de suspensão do prazo prescricional n.º2 do art.º 120.º, do CP.
Os arguidos foram notificados da audiência de julgamento por cartas com prova de depósito, depositadas a 14-03-2022, momento em que ocorreu nova interrupção no prazo prescricional.
Sendo que todas as vezes que ocorreu uma causa de interrupção começou a contar um novo prazo e uma vez que entre interrupções não decorreram 5 anos.
A a lei impõe um limite máximo para o procedimento criminal que é o prazo normal de prescrição acrescido de metade (n.º 3 do 121.º do Código Penal). Assim, quando o prazo de prescrição é de 5 anos o prazo máximo será de 7 anos e 6 meses.
Todavia, a esse prazo sempre são acrescentados os períodos de suspensão (121.º, n.º 3 do Código Penal), neste caso, decorrentes da notificação da acusação e da sentença, sendo certo que os três anos de suspensão decorrentes da aplicação do previsto no n.º 1 da alínea b) e no n.º 2 do art.º 120.º do Código Penal e dos 5 anos, decorrentes da aplicação do n.º4 do mesmo art.º não decorreram.
Em conformidade, há que considerar o prazo de prescrição do procedimento criminal ainda não decorreu.
Improcede, assim, o recurso interlocutório.
• Do recurso da sentença:
-da (in) verificação do vício de contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão (art.º 410.º, n.º2, do CPP);
Alega a arguida recorrente que:
-A sentença comete contradição insanável entre a fundamentação e a decisão, nos termos e para os efeitos do art. 410º, nº 2 e sua alínea b), 2ª parte.
- E isto porque dá como provada (sob nº «6º», 1º § da sua página 4) a falta de autonomia da arguida para pagar à Segurança Social, falta de autonomia que adiante confirma na fundamentação (cf. as suas páginas 11 e 12, desde a linha 7 da página 11 até à linha 5 da página 12), mas vem a decidir condená-la como se bastasse uma qualquer presunção de mera imputação objetiva.
Em resposta o Ministério Público vem dizer que:
-Para que se verifique uma contradição insanável da fundamentação, é necessário que se afirme e negue ao mesmo tempo uma mesma coisa ou que se deem como provadas duas proposições contraditórias que, tendo o mesmo sujeito e o mesmo objeto, não podem ser simultaneamente verdadeiras e falsas (Simas Santos e Leal-Henriques, Código de Processo Penal Anotado, 2ª Ed., Rei dos Livros 2000, pág. 739).
- Só é insanável a contradição em que, de acordo com um raciocínio lógico, a fundamentação devia levar à decisão oposta da consagrada na sentença ou quando a colisão dos fundamentos leva a que essa decisão não esteja suficientemente esclarecida. Apenas a contradição que não possa ser ultrapassada com recurso à totalidade da decisão ou às regras da experiência pode ser considerada insanável (Ac. STJ de 17-01-96, Proc. nº 48655, in Simas Santos e Leal-Henriques, Código de Processo Penal Anotado, pág. 760). Ora lida toda a sentença resulta claro não estarmos perante o referido vício.
-Não existe contradição insanável, o que existe é uma divergência quanto à aplicação do direito. Efetivamente lida toda a decisão verificamos não haver contradição. Mais, os motivos de facto e direito dessa decisão são percetíveis, consentâneos uns com os outros e com as regras da experiência e a prova produzida nos autos bem como no nosso entender é correto, adequado e válido, o raciocínio do julgador.
Em suma, a lei exclui a imputação dos factos à pessoa colectiva quando não for viável imputá-los a quem nela ocupe posição de liderança. Mas é possível que essa imputação se faça relativamente a quem ocupe posição de liderança mesmo que não seja possível apurar concretamente a qual de entre os vários líderes.
Efetivamente nenhuma pessoa coletiva atua por si, a sua atuação depende de pessoas singulares que tomem decisões e que executem essas mesmas decisões, no entanto, tal não exime da sua responsabilidade a pessoa coletiva.
Assim, mesmo se a M.ma Juíza, apreciada a prova produzida em audiência e junta aos autos, considerou que esta não permitia imputar às pessoas singulares acusadas nestes autos a atuação descrita na acusação, a responsabilidade da pessoa coletiva encontra-se devidamente estabelecida pelo que, no nosso entender, teria, como foi, de ser condenada pelos factos constantes da acusação pública os quais preenchem o ilícito em causa.
Decidir de outro modo seria permitir que as pessoas coletivas detidas por outras pessoa coletivas ou em que a tomada de decisão seja plural, não sejam responsabilizadas penalmente pelas suas atuações, nomeadamente quanto às suas responsabilidades para com o Estado, e premiar um modelo de gestão no qual a confusão de recursos e órgãos entre empresas de um grupo é cultivada tornando o processo de tomada de decisões de difícil apreensão e difusa a responsabilidade pela tomada de decisões. Em conformidade, por tudo o exposto entendemos não assistir razão à recorrente devendo a decisão recorrida ser mantida nos precisos termos.
Apreciemos,
Nos termos do art.º 410.º, do CPP (Fundamentos do recurso)
1 - Sempre que a lei não restringir a cognição do tribunal ou os respectivos poderes, o recurso pode ter como fundamento quaisquer questões de que pudesse conhecer a decisão recorrida.
2 - Mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum:
a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;
b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão;
c) Erro notório na apreciação da prova.

3 - O recurso pode ainda ter como fundamento, mesmo que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, a inobservância de requisito cominado sob pena de nulidade que não deva considerar-se sanada.
Analisando, os fundamentos do recurso de revista alargada (impugnação restrita) da matéria de facto a fim de concluir se ocorre algum dos vícios, aliás de conhecimento oficioso (Cfr. Jurisprudência uniformizadora: Ac. Do STJ n.º 7/95 de 19/10/95, in DR de 28/12/1995), previstos no n.º2 do art.º 410.º, do CPP, em especial a alegada “contradição insanável entre a fundamentação e a decisão fundamentação” na apreciação da prova, diremos que em comum aos três vícios aí previstos, o vício que inquina a sentença ou o acórdão em crise tem que resultar do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugadamente com as regras da experiência comum (parte final do n.º2 do referido art.º). Quer isto significar que não é possível o apelo a elementos estranhos à decisão, como por exemplo quaisquer dados existentes nos autos, mesmo que provenientes do próprio julgamento, só sendo de ter em conta os vícios intrínsecos da própria decisão, considerada como peça autónoma – cfr. Maia Gonçalves, “Código de Processo Penal Anotado”, Almedina, 16ª ed., pág. 871.
A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada (vício a que alude a alínea a), do nº 2, do artigo 410º, do Código de Processo Penal), vício endógeno da sentença, com assento exclusivamente na matéria de facto considerada provada (não releva a não provada) ocorrerá, como ensina Simas Santos e Leal-Henriques, em “Recursos em Processo Penal”, Rei dos Livros, 7ª edição, pág. 71 a 82). quando exista “lacuna no apuramento da matéria de facto indispensável para a decisão de direito, isto é, quando se chega à conclusão de que com os factos dados como provados não era possível atingir-se a decisão de direito a que se chegou, havendo assim um hiato nessa matéria que é preciso preencher… só se poderá falar em tal vício quando a matéria de facto provada é insuficiente para fundamentar a solução de direito e quando o tribunal deixou de investigar toda a matéria de facto com interesse para a decisão final.”
Em suma, se as premissas da sentença, no que toca à matéria de facto, são suficientes para alcançar a conclusão condenatória que se alcançou, então não há insuficiência para a decisão da matéria de facto provada; se os factos reportados na sentença como provados, não constituem um acervo factual de elementos, inclusivamente de ordem típica, que consubstanciem o necessário e suficiente para se chegar à conclusão condenatória a que se chegou, então há insuficiência para a decisão da matéria de facto considerada provada. (cf. Fernando Gama Lobo, Código de Processo Penal Anotado, 4.ª edição, Almedina, pág. 954.)
A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão (vício a que alude a alínea b), do nº 2, do artigo 410º, do Código de Processo Penal), consiste na “incompatibilidade, não ultrapassável através da própria decisão recorrida, entre os factos provados, entre estes e os não provados ou entre a fundamentação probatória e a decisão.
Ou seja: há contradição insanável da fundamentação quando, fazendo um raciocínio lógico, for de concluir que a fundamentação leva precisamente a uma decisão contrária àquela que foi tomada ou quando, de harmonia com o mesmo raciocínio, se concluir que a decisão não é esclarecedora, face à colisão entre os fundamentos invocados; há contradição entre os fundamentos e a decisão quando haja oposição entre o que ficou provado e o que é referido como fundamento da decisão tomada; e há contradição entre os factos quando os provados e os não provados se contradigam entre si ou por forma a excluírem-se mutuamente.” – cfr. Simas Santos e Leal-Henriques, em “Recursos em Processo Penal”, Rei dos Livros, 7ª edição, pág. 71 a 82).
O vício da “contradição insanável da fundamentação só existe quando numa análise global, se possa concluir que em termos lógicos e racionais, a decisão não fica suficientemente esclarecida, dada a colisão entre os vários fundamentos invocados, enquanto o vício da “contradição insanável entre a fundamentação e a decisão” só existirá, quando, perante a mesma análise global e de acordo com o mesmo tipo de raciocínio, seja de concluir que a fundamentação em análise justifica um decisão precisamente oposta ou no mínimo não concordante com a tomada. (cfr. Fernando Gama Lobo, Código de Processo Penal Anotado, 4.ª edição, Almedina, pág. 954.)
O erro notório na apreciação da prova (vício a que alude a alínea c), do nº 2, do artigo 410º, do Código de Processo Penal), constituiu uma “falha grosseira e ostensiva na análise da prova, perceptível pelo cidadão comum, denunciadora de que se deram provados factos inconciliáveis entre si, isto é, que o que se teve como provado ou não provado está em desconformidade com o que realmente se provou ou não provou, seja, que foram provados factos incompatíveis entre si ou as conclusões são ilógicas ou inaceitáveis ou que se retirou de um facto dado como provado uma conclusão logicamente inaceitável. Ou, dito de outro modo, há tal erro quando um homem médio, perante o que consta do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com o senso comum, facilmente se dá conta de que o tribunal violou as regras da experiência ou se baseou em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios ou se desrespeitaram regras sobre o valor da prova vinculada ou das leges artis.” – cfr. Simas Santos e Leal-Henriques, ob. e loc. citados.
Um tal vício de erro notório na apreciação da prova não se verifica quando a discordância resulta da forma como o tribunal apreciou a prova produzida. O simples facto de a versão do recorrente sobre a matéria de facto não coincidir com a versão acolhida pelo tribunal e expressa na decisão recorrida não conduz ao aludido vício.
Veja-se o Ac. STJ datado de 09/05/2024 no processo 54/22.9PEBRR.S1 relator Jorge Gonçalves:
“Verifica-se o vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, previsto no artigo 410.º, n.º 2, alínea a), quando a matéria de facto provada seja insuficiente para fundamentar a decisão de direito e quando o tribunal, podendo fazê-lo, não investigou toda a matéria de facto relevante, acarretando a normal consequência de uma decisão de direito viciada por falta de suficiente base factual, ou seja, os factos dados como provados não permitem, por insuficiência, a aplicação do direito ao caso que foi submetido à apreciação do julgador. Dito de outra forma, este vício ocorre quando a matéria de facto provada não basta para fundamentar a solução de direito e quando não foi investigada toda a matéria de facto contida no objeto do processo e com relevo para a decisão, cujo apuramento conduziria à solução legal.
Quanto à contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão, vício previsto no artigo 410.º, n.º 2, alínea b), consiste na incompatibilidade, insuscetível de ser ultrapassada através da própria decisão recorrida, entre os factos provados, entre estes e os não provados ou entre a fundamentação e a decisão. Ocorrerá, por exemplo, quando um mesmo facto com interesse para a decisão da causa seja julgado como provado e não provado, ou quando se considerem como provados factos incompatíveis entre si, de modo a que apenas um deles pode persistir, ou quando for de concluir que a fundamentação da convicção conduz a uma decisão sobre a matéria de facto provada e não provada contrária àquela que foi tomada – e assim é porque, como já se disse, todos os vícios elencados no artigo 410.º, n.º 2, do C.P.P., reportam-se à decisão de facto e consubstanciam anomalias decisórias, ao nível da elaboração da sentença, circunscritas à matéria de facto.
Finalmente, o vício do erro notório na apreciação da prova, a que se reporta a alínea c) do n.º2 do artigo 410.º, verifica-se quando um homem médio, perante o teor da decisão recorrida, por si só ou conjugada com o senso comum, facilmente se apercebe de que o tribunal, na análise da prova, violou as regras da experiência ou de que efetuou uma apreciação manifestamente incorreta, desadequada, baseada em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios, verificando-se, igualmente, este vício quando se violam as regras sobre prova vinculada ou das leges artis. O requisito da notoriedade afere-se, como se referiu, pela circunstância de não passar o erro despercebido ao cidadão comum, ao homem médio - ou, talvez melhor dito (se partirmos de um critério menos restritivo, na senda do entendimento do Conselheiro José de Sousa Brito, na declaração de voto no Acórdão n.º 322/93, in www.tribunalconstitucional.pt, ou do entendimento do acórdão do STJ, de 30.01.2002, Proc. n.º 3264/01 - 3.ª Secção, sumariado em SASTJ), ao juiz “normal”, dotado da cultura e experiência que são supostas existir em quem exerce a função de julgar, desde que seja segura a verificação da sua existência -, devido à sua forma grosseira, ostensiva ou evidente, consistindo, basicamente, em decidir-se contra o que se provou ou não provou ou dar-se como provado o que não pode ter acontecido.”
Os três vício, consubstanciam, em suma, vícios de lógica jurídica ao nível da matéria de facto [constituem vícios da decisão relativa à matéria de facto e não do julgamento], verificando-se quando o tribunal valoriza a prova contra as regras da experiência comum ou contra critérios legalmente fixados, aferindo-se o requisito da notoriedade pela circunstância de não passar o erro despercebido ao cidadão comum ou, talvez melhor dito, ao juiz “normal”, ao juiz dotado da cultura e experiência que deve existir em quem exerce a função de julgar, devido à sua forma grosseira, ostensiva ou evidente (cf. Prof. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, Verbo, 2ª Ed., 341).
Ora, vista a decisão recorrida, vemos que o Tribunal recorrido deu como provados os seguintes factos:
No período em referência, a sociedade arguida pagou os respectivos vencimentos aos trabalhadores e aos membros dos órgãos estatutários, descontando dos mesmos as cotizações para a Segurança Social.
A sociedade arguida é uma das empresas do grupo detido pela JJ denominada JJ, onde eram tomadas as decisões financeiras das empresas do grupo, incluindo as referentes ao pagamento de salários e de impostos devidos à segurança Social.
Assim, nos períodos compreendidos entre Abril de 2015 a Novembro de 2015 a sociedade arguida através dos seus administradores junto da holding JJ, deduziu das remunerações pagas aos trabalhadores e aos membros dos órgãos estatutários as contribuições por estes legalmente devidas à Segurança Social, nos termos referidos supra, retendo-as, e não as entregando à Segurança Social nos prazos estipulados por lei, ou seja, até ao dia 15 do mês seguinte àquele a que respeitavam, nem nos 90 dias seguintes ao termo de tal prazo, apesar das folhas de remuneração dos trabalhadores e dos membros dos órgãos estatutários terem sido entregues na dita instituição.
As cotizações retidas e não entregues atingiram o valor global de € 35.423,41 (trinta e cinco mil, quatrocentos e vinte e três euros e quarenta e um cêntimo) nos seguintes termos:
13ºAgiu a sociedade arguida, através dos seus agentes, de forma deliberada, livre e conscientemente, bem sabendo serem as suas condutas proibidas e punidas por lei.
Com relevo para a discussão, deu como não provados que:
Nos exercícios de 2013, 2014, 2015 e 2016, os arguidos foram os administradores efetivos da sociedade arguida, sendo, deste modo, os responsáveis pela entrega à Segurança Social das contribuições que lhes eram legalmente devidas, resultantes de contribuições deduzidas das remunerações dos trabalhadores e dos membros dos órgãos estatutários da sociedade arguida.
A partir do mês de Junho de 2013 os arguidos DD e GG, na qualidade de efectivos administradores da sociedade arguida, decidiram que, sempre que lhes fosse conveniente, não cumpririam as obrigações de entregar à Segurança Social os montantes resultantes de contribuições deduzidas das remunerações dos trabalhadores e dos membros dos órgãos estatutários da sociedade arguida.
Em função desses factos o tribunal recorrido condenou a arguida sociedade, porém, absolveu as pessoas singulares DD e GG.
Dispõe o artigo 6.º, do Regime Geral das Infracções Tributárias (RGIT):
1 - Quem agir voluntariamente como titular de um órgão, membro ou representante de uma pessoa colectiva, sociedade, ainda que irregularmente constituída, ou de mera associação de facto, ou ainda em representação legal ou voluntária de outrem, será punido mesmo quando o tipo legal de crime exija:
a) Determinados elementos pessoais e estes só se verifiquem na pessoa do representado;
b) Que o agente pratique o facto no seu próprio interesse e o representante actue no interesse do representado.
2 - O disposto no número anterior vale ainda que seja ineficaz o acto jurídico fonte dos respectivos poderes.
Por seu turno, o artigo 7.º do mesmo diploma acrescenta:
1 - As pessoas colectivas, sociedades, ainda que irregularmente constituídas, e outras entidades fiscalmente equiparadas são responsáveis pelas infracções previstas na presente lei quando cometidas pelos seus órgãos ou representantes, em seu nome e no interesse colectivo.
(…)
3 - A responsabilidade criminal das entidades referidas no n.º 1 não exclui a responsabilidade individual dos respectivos agentes.
Efectivamente, no que toca à responsabilidade criminal das pessoas colectivas, exige-se a verificação de um pressuposto formal e de dois pressupostos materiais:
• O pressuposto formal de imputação do facto à pessoa colectiva consiste em o facto ter de ser cometido por um órgão ou representante da mesma pessoa;
• Por seu turno, os pressupostos materiais da imputação do facto à pessoa colectiva remetem para a exigência de que o facto tenha sido praticado em nome e no interesse dessa pessoa.
O facto é praticado em nome da pessoa colectiva se o agente (que constitui o pressuposto formal da imputação) actuar formalmente no exercício das suas funções, no âmbito da sua competência. O acto tem assim de ser funcional, isto é, o respectivo contexto tem de revelar que se está perante um acto da pessoa colectiva, praticado por causa dela.
Por seu turno, o facto é praticado no interesse da pessoa colectiva se tal acto tiver em vista a organização, o funcionamento ou a realização dos fins da pessoa colectiva, no quadro do seu objecto social, ainda que não resulte desse acto qualquer proveito financeiro ou dano para a pessoa colectiva ou ainda que o acto em causa seja meramente instrumental. Por outras palavras, o acto tem de visar desenvolver a actividade da sociedade, prosseguindo os seus fins sociais. Por outro lado, este interesse «deve ser reconhecido objectivamente, não bastando uma mera valoração putativa por parte do agente» Cfr. GERMANO MARQUES DA SILVA, ” (Responsabilidade Penal das Pessoas Colectivas – alterações ao Código Penal, Rev. Cej nº 8, p. 108).
Acresce que, para a responsabilidade penal das pessoas colectivas exige-se ainda culpa própria da pessoa colectiva.
Existirá culpa própria da pessoa colectiva se a infracção resultar de decisão que prossiga o interesse colectivo e que emane de um dos seus órgãos ou representantes, actuando funcionalmente. Assim, a vontade juridicamente relevante da pessoa colectiva é só aquela que se dirige à realização do seu objecto, não sendo por isso imputados à pessoa colectiva os actos praticados fora desse mesmo objecto.
Ademais, a circunstância de as pessoas singulares, agentes do facto, terem praticado um crime é condição necessária (mas não suficiente) da responsabilidade das pessoas colectivas. Ou seja, a culpa do agente físico é condição necessária para a imputação subjectiva do facto ilícito à pessoa colectiva.
No entanto, para a imputação subjectiva do facto ilícito à pessoa colectiva, exige-se,
(i) além da culpa do agente físico,
(ii) que o crime do órgão ou representante tenha sido praticado em nome e no interesse da pessoa colectiva.
Porém, para que a pessoa colectiva seja condenada não se exige que os órgãos ou representantes sejam efectivamente condenados. Por este motivo é que, em caso de morte do titular do órgão ou do representante, a responsabilidade da pessoa colectiva não se extingue, devendo o processo prosseguir para decidir sobre se o facto lhe era objectiva e subjectivamente imputável.
Importa ainda sublinhar que a vontade das pessoas físicas titulares dos órgãos ou representantes da pessoa colectiva não corresponde necessariamente à vontade de prosseguir o interesse colectivo, donde se infere que é possível os agentes físicos serem penalmente responsáveis sem que a pessoa colectiva também o seja.
No entanto, se a vontade das pessoas físicas titulares dos órgãos corresponder à vontade de prosseguir o interesse colectivo, haverá culpa da pessoa física e culpa da pessoa colectiva.
A responsabilidade das pessoas colectivas não depende da responsabilidade individual dos respectivos agentes (cfr. artigo 11.º, n.º 7, do Código Penal).
Efectivamente dispõe este dispositivo legal que:
7 - A responsabilidade das pessoas colectivas e entidades equiparadas não exclui a responsabilidade individual dos respectivos agentes nem depende da responsabilização destes.
Deste modo, se se comprovar que o facto foi praticado por um órgão ou representante da pessoa colectiva, sem que tenha sido possível individualizar quem foi o agente do facto de entre os titulares dos órgãos ou representantes da pessoa colectiva, haverá, ainda assim, responsabilização da pessoa colectiva se se concluir que o facto apenas poderia ter sido praticado em razão da actuação, mediata ou imediata, por acção ou por omissão culposas, de um órgão ou representante Cfr. GERMANO MARQUES DA SILVA, ibidem, pag. 113.
Assim, na medida em que a lei exige uma actuação voluntária, não há lugar a uma responsabilidade funcional-objectiva, decorrente da mera titularidade da posição de representante. Neste sentido, a posição de representante não é suficiente para gerar responsabilização penal, na medida em que sempre será necessário que o mesmo actue voluntariamente. Por outras palavras, para que haja responsabilidade penal do representante (pessoa singular) da pessoa colectiva, é necessário demonstrar que essa pessoa singular, para além da gerência de direito, exerce também a gerência de facto da sociedade (Cf. Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 22-02-2023, Proc. n.º 25/19.2IDFUN.L1-5 in www.dgsi.pt.)
Como refere Germano Marques da Silva, “importa considerar os casos em que o tribunal pode comprovar que o acto foi praticado por um órgão, representante ou pessoa com autoridade para exercer o controlo, sem o que não poderia ter ocorrido nos termos concretos em que foram realizados, mas não seja possível individualizar de entre aqueles quem foi o agente do acto.
Cremos que esta dificuldade não impede a responsabilização da pessoa colectiva, desde que seja possível decidir que o acto só podia ter sido praticado em razão da actuação, mediata ou imediata, por acção ou por omissão culposas de um órgão, representante ou pessoa com autoridade para exercer o controlo. É o que pensamos ser o sentido útil da parte final do nº 7 do art. 11º” (Responsabilidade Penal das Pessoas Colectivas – alterações ao Código Penal, Rev. Cej nº 8, p. 87).
Retornando ao caso dos autos, ficou provado que:
“6º
A sociedade arguida é uma das empresas do grupo detido pela JJdenominada JJ, onde eram tomadas as decisões financeiras das empresas do grupo, incluindo as referentes ao pagamento de salários e de impostos devidos à segurança Social.

Assim, nos períodos compreendidos entre Abril de 2015 a Novembro de 2015 a sociedade arguida através dos seus administradores junto da holding JJ, deduziu das remunerações pagas aos trabalhadores e aos membros dos órgãos estatutários as contribuições por estes legalmente devidas à Segurança Social, nos termos referidos supra, retendo-as, e não as entregando à Segurança Social nos prazos estipulados por lei, ou seja, até ao dia 15 do mês seguinte àquele a que respeitavam, nem nos 90 dias seguintes ao termo de tal prazo, apesar das folhas de remuneração dos trabalhadores e dos membros dos órgãos estatutários terem sido entregues na dita instituição.”
Apurou-se assim que as decisões financeiras referentes ao pagamento de salários e de impostos devidos à segurança Social eram tomadas pelo conselho de administração da JJ, a JJ, sendo, na prática, ela que geria a arguida.
Identificou quem tomava decisões na sociedade arguida e que os actos e omissões em causa foram execução de decisões daquela entidade em prol da arguida.
A JJ, sociedades gestoras de participações sociais, (JJ), têm por único objecto contratual a gestão de participações sociais de outras sociedades, como forma indirecta de exercício de actividades económicas.
Efectivamente dispõe o art.º 1.º do Decreto-Lei n.º 495/88, de 30 de dezembro (Sociedades gestoras de participações sociais)
1 - As sociedades gestoras de participações sociais, adiante designadas abreviadamente por SGPS, têm por único objecto contratual a gestão de participações sociais de outras sociedades, como forma indirecta de exercício de actividades económicas.
A sociedade arguida, cuja participação social é gerida, não perde a sua identidade jurídica, integrando-se antes numa relação de grupo. Nem é excluída a sua responsabilidade penal, sendo esta que está obrigada a autoliquidar e deduzir dos vencimentos dos seus trabalhadores as contribuições por esta devidas à segurança social, surgindo, assim, perante a segurança social como o sujeito da relação tributária, ainda que como devedor contributivo substituto.
Nestes sentido, o Acórdão da Relação de Lisboa de 06/09/2018 processo 530/14.0T2SNT-A.L1-2 relatora Ondina Carmo Alves, disponível no sítio www.dgsi.pt cujo sumário, em parte se transcreve:
1. As sociedades SGPS enquadram-se na figura geral das sociedades holding, sendo sociedades constituídas com o objectivo de intervir na gestão e controlo das sociedades participadas, exercendo os direitos sociais inerentes às respectivas participações, recebendo os respectivos lucros ou dividendos, bem como os rendimentos resultantes de eventuais alienações dessas participações sociais.
2. Na holding funciona também o princípio da separação. As sociedades agrupadas conservam em pleno a sua personalidade jurídica individual, mantendo a respectiva autonomia jurídico-patrimonial e jurídico-organizativa.
Tal como referido no Douto parecer do Ministério Público neste Tribunal de recurso:
“A sociedade arguida é uma das empresas do grupo detido pela JJ denominada JJ, onde eram tomadas as decisões financeiras das empresas do grupo, incluindo as referentes ao pagamento de salários e de impostos devidos à segurança Social.”
As sociedades gestoras de participações sociais, (SGPS), têm por único objecto contratual a gestão de participações sociais de outras sociedades, como forma indirecta de exercício de actividades económicas. (vide Decreto-Lei n.º 495/88, de 30 de dezembro)
A sociedade, cuja participação social é gerida, não perde a sua identidade jurídica, integrando-se antes numa relação de grupo. Tanto a sociedade arguida condenada é passível de imputação subjectiva que é esta entidade que está obrigada a autoliquidar e deduzir dos vencimentos dos seus trabalhadores as contribuições por estes devidas à segurança social, surgindo, assim, perante a segurança social como o sujeito da relação tributária, ainda que como devedor contributivo substituto.
Efectivamente, os montantes devidos à segurança social, são devidos pela sociedade condenada e não por outra, sendo a omissão da sua entrega imputada a esta e não a outra entidade, ainda que a gestão financeira da mesma passe por uma gestão de grupo.”
Assim, os factos imputados são resultado das decisões de pessoas que geriam de facto a pessoa coletiva arguida pelo que esta tem de ser responsabilizada penalmente pela sua actuação.
Ademais, não se provou que, quem tomou as decisões, o tenha sido contra ordens ou instruções expressas de quem de direito (n.º6 do art.º 11.º, do CP).
Estando, assim, preenchidos os elementos do tipo de ilícito pelo qual vinha acusada a recorrente sempre teria, como foi, de ser condenada.
Assim o decidiu o Tribunal recorrido e que não merece censura, conforme resulta do seguinte excerto:
“Do ponto de vista do tipo subjectivo de ilícito avulta a necessária atitude dolosa do animus rem sibi habendi (com a correspectiva ciência, pelo agente, de que carece de motivo lícito para a recusa de restituição ou entrega a quem de direito), e ainda que só na modalidade de dolo eventual.
Por outro lado, nos termos do artigo 7.°, n.ºs. 1 e 3, RGIT, as pessoas colectivas, sociedades, ainda que irregularmente constituídas, e outras entidades fiscalmente equiparadas são responsáveis pelas infracções previstas na presente lei quando cometidas pelos seus órgãos ou representantes, em seu nome e no interesse colectivo; tal responsabilidade criminal não exclui a responsabilidade individual dos respectivos agentes.
Consagrou-se, por esta via, uma excepção ao princípio da individualidade da responsabilidade criminal ínsito no artigo 11º do Código Penal, ficcionando-se que a pessoa colectiva é capaz de vontade. A qual tem especial relevância sobretudo na criminalidade económica ou vulgarmente conhecida por «criminalidade de colarinho branco», onde o legislador «cedo se deu conta da ineficácia de qualquer política de repressão ou prevenção criminal que não atinja directamente as organizações burocráticas e impessoais que, entretanto, se converteram nos principais operadores do mundo dos negócios. Não se estranhará, por isso, se a criminalidade económica (...) aparecer como o campo privilegiado da punição das pessoas colectivas» (Costa Andrade, «O novo código penal e a moderna criminologia», Jornadas de Direito Criminal, pág. 218).
Feito este pequeno excurso sobre o ilícito sujeito, conclui-se que a sociedade arguida preencheu com a sua conduta o ilícito de abuso de confiança contra a segurança social mas na forma simples do artigo 105º, nº 1 do RGIT, preenchida que se mostra por igual a condição objectiva de punibilidade prevista no artigo 105, n.° 4, alínea b) do RGIT (cf. a respeito e por todos o Acórdão Uniformizador de Jurisprudência n.° 6/2008, de 15 de Maio de 2008, publicado no Diário da República, 1. "Série, de 15 de Maio de 2008).
Com efeito, da factualidade provada resulta que a sociedade arguida, apesar de ter descontado nos vencimentos dos seus trabalhadores, não procedeu à entrega aos serviços da Segurança Social das quantias relativas a quotizações a esta devidas.
É certo que a responsabilidade criminal da pessoa colectiva exige sempre o nexo de imputação do facto a um agente da pessoa colectiva, que será aquele que nela exerce liderança ou um seu subordinado nas condições prescritas na lei (art. 11º, nº 2 - a) e b) do Código Penal).
Mas essa responsabilidade criminal (da pessoa colectiva) não exige necessariamente a responsabilização (condenação) do seu agente… Basta que seja factualmente possível estabelecer e demonstrar o nexo de imputação do facto à pessoa física, independentemente de posterior condenação desta.
Assim sucederá, também, nos casos em que não é possível determinar qual, de entre vários, é o agente responsável pelos factos integrantes do crime; por outras palavras, quando se sabe que a responsabilidade cabe a um dos administradores da sociedade, mas não é possível precisar a qual deles. Nestes casos, verificados os restantes pressupostos da imputação (crime cometido em seu nome e no seu interesse), a pessoa colectiva pode ser responsabilizada independentemente da condenação ou absolvição dos seus agentes.
Assim acontece no caso dos autos em que não foi possível imputar aos arguidos DD e LL as decisões responsabilizantes da sociedade relativas às questões financeiras e de matéria fiscal junto da Segurança Social, impondo-se por isso a sua absolvição.”
Haverá assim, que improceder este segmento do recurso da sentença.
-Da (in) verificação dos pressupostos da responsabilidade civil:
Alega ainda a arguida que:
“5ª) Também quanto à questão civil a sentença recorrida tem de ser substituída pela decretação da absolvição da pessoa coletiva arguida.
6ª) Está desta feita em causa quer o facto dado como provado pela sentença recorrida sob o nº «14º» (na sua página 6), racionalmente fundado no 2º § da página 12 também da sentença recorrida,
7ª) quer a não infirmação em julgamento tanto do teor da contestação civil (e a contestação encontra-se integrada nos autos desde 7/04/2022 sob o registo Citius 32226304) como do teor das folhas adrede apresentadas no decurso do próprio julgamento (a 14/02/2024 e sob o registo Citius 38467423).
8ª) Com todas estas bases – facto provado em audiência, desconsideração cível referida na fundamentação da sentença e não informação da contestação civil e da prova documental recebida em julgamento – , só pode haver lugar, igualmente, à justa absolvição civil da arguida.
Termos em que e termos por que se pede e espera a revogação da sentença recorrida na parte em que condenou a arguida pessoa coletiva e a sua substituição pela absolvição penal e civil da mesma.
Vejamos:
Nos termos do disposto no artigo 40.º, do Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial de Segurança Social, as entidades patronais estão obrigadas a entregar à Segurança Social a cujo âmbito pertençam as folhas das remunerações pagas no mês anterior, obrigação que foi cumprida pelos arguidos. Estão também obrigadas a reter, sobre os salários dos trabalhadores e membros de órgãos estatutários, as contribuições devidas para a Segurança Social, entregando-as a esta última do dia 10 até ao dia 20 do mês seguinte àquele a que as contribuições e as quotizações dizem respeito (artigo 43.º, do Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial de Segurança, o qual entrou em vigor em 1 de Janeiro de 2011).
O Instituto da Segurança Social, I.P. deduziu pedido de indemnização civil contra os arguidos, com fundamento nos factos vertidos na acusação, peticionando a condenação daqueles no pagamento da quantia de, acrescida de juros de mora já vencidos e vincendos até efectivo e integral pagamento.
Em 7 de Janeiro de 2013 foi publicado no Diário da República, I-Série, o Acórdão de Fixação de Jurisprudência nº 1/2013, datado de 15 de Novembro de 2012, que firmou o seguinte entendimento:
«Em processo penal decorrente de crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, p. e p. no artº 107º nº 1, do R.G.I.T., é admissível, de harmonia com o artº 71.º, do C.P.P., a dedução de pedido de indemnização civil tendo por objecto o montante das contribuições legalmente devidas por trabalhadores e membros dos órgãos sociais das entidades empregadoras, que por estas tenha sido deduzido do valor das remunerações, e não tenha sido entregue, total ou parcialmente, às instituições de segurança social.»
Determina o artigo 129.º, do Código Penal, que “A indemnização de perdas e danos emergentes de crime é regulada pela lei civil.”.
Impõe-se, por conseguinte, a apreciação dos pressupostos da responsabilidade civil extracontratual, previstos no artigo 483.º, n.º 1, do Código Civil. Estatui aquele normativo que “Aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação.”
No caso dos autos existe um facto voluntário por quem geria de facto a sociedade requerida, que se traduziu na omissão de entrega à Segurança Social das quantias deduzidas nas remunerações dos trabalhadores relativas às contribuições àquela devidas.
Tal facto é ilícito, porquanto a arguida estava obrigada a proceder à retenção, sobre os vencimentos dos trabalhadores, das contribuições devidas para a Segurança Social e à entrega dessas quantias nesta entidade, não as tendo, porém, entregue no prazo legalmente fixado para o efeito.
Esta conduta é também culposa uma vez que a conduta em questão é merecedora de um juízo de reprovação e censurabilidade por parte da nossa ordem jurídica.
A sociedade arguida, podia e devia ter agido de outro modo, evitando a prática da conduta, não o tendo porém feito, agindo com dolo directo. Também se verificou um dano, entendendo-se este como a perda ou diminuição de bens, direitos ou interesses protegidos pelo Direito.
No caso dos autos, o demandante sofreu um prejuízo patrimonial que ascende ao montante peticionado- artigos 562.º e 564.º, do Código Civil.
Existe, finalmente, nexo de causalidade, aplicando-se, nesta sede, a teoria da causalidade adequada entre os factos e o dano- cfr. artigo 563.º do Código Civil. Com efeito, foi a conduta da arguida que determinou o dano patrimonial do demandante.
É certo que ficou provado no ponto 14. que:
No processo especial de revitalização nº 4446/21.2... do Juízo de Comercio de ... em que é requerente a sociedade arguida foi aprovada o plano especial de recuperação em ........2021, no qual se incluiu a demandante, encontrando-se a ser cumprido os pagamentos mensais acordados, num total de 150 prestações à Segurança Social para uma dívida global de € 1.153.813,38 – cfr. fls. 870 a 929 apresentados com a contestação.
É também certo que o n.º 1 do art.º 17.º-E do CIRE estatui que:
1 - A decisão a que se refere o n.º 5 do artigo 17.º-C obsta à instauração de quaisquer ações executivas contra a empresa para cobrança de créditos durante um período máximo de quatro meses, e suspende quanto à empresa, durante o mesmo período, as ações em curso com idêntica finalidade.
Porém, não se aplica ao pedido cível emergente da prática de crime o disposto no art.º 17.º E, do CIRE.
Neste sentido veja-se o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 30/10/2019 proc. 518/15.0T9OAZ-A.P1 relatora Paula Natércia Rocha
I. O que releva no âmbito do Processo Especial de Revitalização (PER) e vincula os credores são os créditos existentes à data e não quaisquer eventuais créditos futuros.
II. Ainda que o crédito de indemnização por responsabilidade civil nasça quando se verifica o evento determinante da obrigação de indemnizar (artigos 483º e 562º do Cód. Civil), a verdade é que no PER, de acordo com a interpretação conjugada dos artigos 17.º C e 17.º D, decorre que apenas estão em causa dívidas vencidas, no máximo, até ao termo do prazo de reclamação de créditos.
III.
Estando em causa no pedido de indemnização civil a efetivação da responsabilidade emergente da prática de um crime praticado pelo demandado não é aplicável o disposto no art.º 17.º E, do CIRE, pois não estamos perante um procedimento processual destinado à cobrança de uma dívida que é a previsão do n.º 1 do art.º 17º E, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE).
 Parece também a demandada pretender dizer que, considerando os factos provados 6.º e 7.º estaríamos perante uma exclusão da responsabilidade da arguida e/ou desconsideração da personalidade jurídica da sociedade demandada, sendo a responsabilidade civil pelo pagamento da quantia em causa da sociedade gestora de Participações Sociais (JJ,.
No caso das sociedades em relação de domínio total aplicam-se, por remissão legal, designadamente, os artigos 501º a 504º do C.Soc.Com., sendo que a situação da responsabilidade da sociedade totalmente dominante pelas dívidas da sociedade subordinada, está prevista no artigo 501º, situação que se encontra salvaguardada pelo artigo 11º, nº 1 do mencionado diploma (DL nº 495/88 de 30 de Dezembro).
Preceitua, com efeito, o artigo 501º do CSC. sob a epígrafe “Responsabilidade para com os credores da sociedade subordinada”:
1. A sociedade directora é responsável pelas obrigações da sociedade subordinada, constituídas antes ou depois da celebração do contrato de subordinação, até ao termo deste.
2. A responsabilidade da sociedade directora não pode ser exigida antes de decorridos 30 dias sobre a constituição em mora da sociedade subordinada.
3. Não pode mover-se execução contra a sociedade directora com base em título exequível contra a sociedade subordinada.
E, dispõe o artigo 504º sob a epígrafe “Deveres e responsabilidades”:
1. Os membros do órgão de administração da sociedade directora devem adoptar, relativamente ao grupo, a diligência exigida por lei quanto à administração da sua própria sociedade.
2. Os membros do órgão de administração da sociedade directora são responsáveis também para com a sociedade subordinada, nos termos dos artigos 72º a 77º desta lei, com as necessárias adaptações; a acção de responsabilidade pode ser proposta por qualquer sócio ou accionista livre da sociedade subordinada, em nome desta.
3. Os membros do órgão de administração da sociedade subordinada não são responsáveis pelos actos ou omissões praticados na execução de instruções lícitas recebidas.
A responsabilidade da sociedade directora estabelecida no aludido artigo 501º C.Soc.Com., é uma responsabilidade objectiva, assente na redistribuição do risco da exploração empresarial no seio de grupos societários, respondendo a sociedade dominante pelas dívidas da sociedade dependente, independentemente da culpa que tenha no não cumprimento (art. 84º do C.Soc.Com), sendo, porém uma responsabilidade solidária conjuntamente com a sociedade subordina, não excluindo, por isso a responsabilidade, desta.
Assim, por esta via, ainda que a JJ denominada JJ, pudesse ser responsabilizada, tal não exclui a responsabilidade da aqui demandada.
Igualmente não podemos considerar verificada uma desconsideração da personalidade jurídica por via da qual podia ter-se por excluída a responsabilidade da sociedade demandada.
Este instituto foi arquitectado como forma de evitar que, sob a capa da personalidade jurídica colectiva, se prossigam interesses individuais em detrimento de terceiros, defraudando o escopo institucional e, em última análise, a respectiva intencionalidade normativa.(Cf. Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, I, Parte Geral, Tomo III, Almedina, Coimbra, 2004, pp. 627-649)
A desconsideração consiste, na verdade, numa correcção das consequências jurídicas da imputação à sociedade, segundo as regras gerais, de certos actos que, pelo seu carácter abusivo ou pela sua finalidade extra-societária, se entende que, excepcionalmente, devem obrigar outras pessoas (ou outros patrimónios) (Neste sentido, PEDRO CORDEIRO, in “A Desconsideração da Personalidade Jurídica das Sociedades Comerciais”, 3ª ed. Univ. Lusíada Editora, 2008, a págs. 109.).
A Doutrina (Cf. MENEZES CORDEIRO, in “Teoria Geral do Direito Civil”, 1º Vol., Lisboa, 1986/87, a págs. 364 e segs.) tem autonomizado as condutas societárias reprováveis que podem conduzir à aplicação do instituto da desconsideração da personalidade, avultando :
1. a confusão ou promiscuidade entre as esferas jurídicas de duas ou mais pessoas, normalmente entre a sociedade e os seus sócios (ainda que não tenha de ser obrigatoriamente assim);
2. a subcapitalização da sociedade, por insuficiência de recursos patrimoniais necessários para concretizar o objecto social e prosseguir a sua actividade;
3. e as relações de domínio grupal.
O recurso a esse instituto é possível quando ocorram situações de responsabilidade civil assentes em princípios gerais ou em normas de protecção, nomeadamente dos credores, ou em situações de abuso de direito (art.º 334.º, do CC) e não exista outro fundamento legal que invalide a conduta do sócio ou da sociedade que se pretende atacar, ou seja, a desconsideração tem carácter subsidiário.
O CSC prevê possível o recurso ao instituto da desconsideração da personalidade jurídica, que tem natureza subsidiária, para os casos de sociedades controladas por outra ou outras, ou ainda no artigo 78º, para os casos de tutela do crédito por inobservância culposa das disposições legais ou contratuais dos administradores-gerentes, ou, finalmente, nos artigos 84º e 270º-F, para os casos de mistura de patrimónios nas sociedades por quotas unipessoais.
Assim, no caso de ineficácia de todos estes mecanismos de tutela dos credores sociais, poderá haver necessidade de recorrer à aplicação da técnica da desconsideração da personalidade jurídica que obedece a rigorosos pressupostos, nomeadamente ao nível do abuso do direito, (CF.PEDRO CORDEIRO, A desconsideração da personalidade jurídica nas sociedades comerciais, in Novas perspectivas do direito comercial, Faculdade de direito da universidade clássica de Lisboa, Centro de estudos judiciários, Livraria almedina, Coimbra, 1988.)
Sucede que em todos os casos nos quais se convoca o instituto da desconsideração da personalidade jurídica estão subjacentes situações de abuso de direito ou de exercício inadmissível de posições jurídicas que prejudicam os credores, o que não é o caso dos autos, pois que o acolhimento de tal figura prejudicaria o Instituto de Segurança Social e não o beneficiaria, além do mais, não estão provados factos dos quais se infira um comportamento abusivo da JJdenominada JJ, susceptível de excluir a responsabilidade da aqui demandada.
Neste sentido, e por todos, veja-se o Acórdão da Relação de Lisboa de 06/09/2018 processo 530/14.0T2SNT-A.L1-2 relatora Ondina Carmo Alves:
1. As sociedades SGPS enquadram-se na figura geral das sociedades holding, sendo sociedades constituídas com o objectivo de intervir na gestão e controlo das sociedades participadas, exercendo os direitos sociais inerentes às respectivas participações, recebendo os respectivos lucros ou dividendos, bem como os rendimentos resultantes de eventuais alienações dessas participações sociais.
2. Na holding funciona também o princípio da separação. As sociedades agrupadas conservam em pleno a sua personalidade jurídica individual, mantendo a respectiva autonomia jurídico-patrimonial e jurídico-organizativa.
3. Por virtude dos riscos derivados das relações de domínio para as sociedades dependentes, seus sócios minoritários e credores, o Código das Sociedades Comerciais estabeleceu uma disciplina típica – artigos 486º a 508º-G - destinada a regulamentar a actuação das sociedades em relação de domínio.
4. A responsabilidade da sociedade totalmente dominante pelas dívidas da sociedade subordinada, é uma responsabilidade objectiva e está prevista no artigo 501º do CSC, situação que se encontra salvaguardada pelo artigo 11º, nº 1 do Decreto-Lei nº 495/88 de 30 de Dezembro que regulamenta a constituição e funcionamento das sociedades SGPS.
5. A desconsideração da personalidade jurídica (ou levantamento da personalidade colectiva) é um instituto que foi arquitectado como forma de evitar que, sob a capa da personalidade jurídica colectiva, se prossigam interesses individuais em detrimento de terceiros, defraudando o escopo institucional e, em última análise, a respectiva intencionalidade normativa.
6. É possível o recurso ao instituto da desconsideração da personalidade jurídica, que tem natureza subsidiária, quando o efeito que se pretende alcançar não seja possível obter através da aplicação de normas jurídicas especificamente formuladas pelo legislador e consagradas no CSC, mormente nos artigos 78º, 84º, 270º-F, 501º a 504º.
7. No caso de ineficácia dos mecanismos de tutela dos credores sociais consignados na lei, poderá haver necessidade de recorrer à aplicação do instituto da desconsideração da personalidade jurídica, o qual surgiu precisamente para corrigir abusos da pessoa colectiva, e que apenas poderá ser aplicado a título excepcional e para o caso concreto.
8. Não obstante a diversa sistematização e nomen iuris dados ao aludido instituto o mesmo é chamado a resolver situações concretas em grupos de casos em que está em causa a tutela dos credores perante comportamentos abusivos e ilegítimos e que se poderão sintetizar nas seguintes situações mais frequentes: a) subcapitalização da sociedade e descapitalização provocada; b) confusão das esferas jurídicas / mistura de patrimónios /Domínio qualificado de uma sociedade sobre a outra ou outras.
9. Não é possível o recurso ao instituto da desconsideração da personalidade jurídica para se considerar que a personalidade coletiva foi usada, de modo ilícito ou abusivo para prejudicar terceiros, se não estiverem claramente identificados os actos danosos contrários a normas ou princípios gerais, incluindo a ética dos negócios, e as respectivas consequências no património”.
Em suma, nenhuma censura nos merece, assim, a douta sentença recorrida, na parte relativa ao pedido de indemnização civil.
Improcede, pois, também nesta parte, o recurso interposto.
V - Dispositivo
Pelo exposto, acordam os Juízes que integram a 9ª secção deste Tribunal da Relação de Lisboa em negar provimento ao recurso interlocutório e ao recurso da sentença interpostos pela arguida AA, confirmando o despacho interlocutório e a sentença recorridos.
***
Custas a cargo da recorrente, do recurso interlocutório, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC (três unidades de conta).
Custas a cargo do recorrente, do recurso a final, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC nos termos dos art.ºs 513º n. º1 e 514.º, do Código de Processo Penal, 8º/9.º do Regulamento das Custas Processuais (DL n.º 34/2008, de 26 de fevereiro) e Tabela III anexa a este último diploma.
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Notifique.
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Lisboa, 08/05/2025
(Texto elaborado pela relatora e revisto, integralmente, pelos seus signatários)
Maria de Fátima R. Marques Bessa
Eduardo Sousa Paiva
Ivo Nelson Caires B. Rosa