Ups... Isto não correu muito bem. Por favor experimente outra vez.
SUSPENSÃO PROVISÓRIA DO PROCESSO
ACTO URGENTE
Sumário
1 - Terminada a investigação, o Ministério Público tem ao seu alcance um de cinco caminhos: (i) o arquivamento por ter-se concluído não haver crime, o arguido o não ter praticado ou o procedimento ser legalmente inadmissível (art. 277º, nº 1 do CPP); (ii) o arquivamento por falta de prova (art. 277º, nº 2); (iii) o arquivamento em caso de dispensa de pena (art. 280º); (iv) a suspensão provisória do processo (art. 281º); ou (v) a acusação (art. 283º). 2 – Qualquer desses caminhos perfila-se aquando do encerramento do inquérito, como decorre desde logo do regime aplicável a cada um deles e do capítulo do CPP em que se integram, justamente intitulado «do encerramento do inquérito». 3 - No caso de uma suspensão provisória do processo, do que se trata é pois de uma decisão que se debruça sobre uma investigação que está substantivamente finda. 4 – Pela sua própria designação literal e pelo seu regime legal, uma vez determinada a suspensão provisória do processo, e enquanto esta vigorar, o processo está naturalmente suspenso, não podendo então, por regra, produzir-se prova como se a investigação decorresse ainda. 5 – Durante a suspensão apenas podem praticar-se atos de produção de prova destinados a evitar danos irreparáveis. 6 – A prestação de declarações para memória futura requeridas antes da suspensão, mas que não chegou a ter lugar, pode integrar-se nesse quadro; para tanto importa, porém, que seja aduzida justificação autónoma, própria e excecional, que imponha o desvio objetivo em que se traduz a prática de diligências de prova em semelhante circunstancialismo. 7 – Essa justificação deve acrescentar algo às razões inicialmente invocadas para realização da diligência durante a marcha normal do inquérito, a menos que tais razões inicialmente invocadas consubstanciem já fundamento bastante para o efeito.
Texto Integral
Acordam, em conferência, na 9ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa:
1 – RELATÓRIO E FACTOS PROCESSUAIS RELEVANTES
No Juízo Local Criminal de ... foi proferido em ... de ... de 2024 despacho que indeferiu a tomada de declarações para memória futura à ofendida e a dois menores, filhos daquela e do arguido, despacho esse do qual o Ministério Público interpõe recurso.
O Ministério Público promovera a realização dessa diligência nos seguintes termos: «Nos termos do Ponto IV da Diretiva n.º 5/2019 da PGR, sempre que haja notícia da existência de crianças presentes num contexto de violência doméstica e independentemente daqueles serem ou não destinatárias de atos de violência doméstica, o Ministério Público requer obrigatoriamente a tomada de declarações para memória futura. Remeta os presentes autos, de imediato, à Mma. Juíza de Instrução Criminal, para apreciação e decisão do que ora se irá expor e requerer: Nos presentes autos investigam-se factos suscetíveis de integrar a prática, pelo arguido AA na pessoa de BB, de pelo menos, um crime de violência doméstica, previsto e punível pelo 152.º, n. 1, alínea a) e n.º 2, alínea a) do Código Penal. Atenta a natureza do crime em investigação, as relações familiares, considera-se que deve proceder-se à sua inquirição durante a fase de inquérito, de modo a que as declarações pelos mesmos prestadas possam ser tomadas em conta no julgamento, não sendo, nem os menores nem a vítima, sujeitos a semelhantes diligências, com as consequências negativas que para os mesmos poderão advir. Nestes termos, requer-se:
i. a tomada de declarações para memória futura de BB, CC nascida a ........2008, DD nascido a ...1....03 de acordo com o disposto nos artigos 271.º do Código de Processo Penal, artigo 33.º da Lei n.º 112/2009, de ... e artigo 28º, n. 1 e 2 da Lei n.º 93/99, de 14 de julho (Proteção de Testemunhas) e do artigo 67.ºA do CPP.
ii. Atenta a natureza dos factos, e nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 352.º, n.º 1, alínea a) e b), aplicável ex vi do artigo 33.º, n.5 da Lei n.º 112/2009, e do artigo 271.º, n.º 6 do Código de Processo Penal, seja determinado que a tomada de declarações para memória futura de BB, de CC e do menor DD seja tomada com afastamento do arguido da sala de audiências, de forma a assegurar, no decurso da sua inquirição, a obtenção de respostas livres, espontâneas e sinceras;
iii. seja determinada a presença de técnico de serviço social ou outra pessoa especialmente habilitada para o acompanhamento das testemunhas, se for caso disso, e proporcionar às testemunhas o apoio psicológico necessário por técnico especializado – artigo 27º da Lei n.º 93/99, de 14 de julho (Proteção de Testemunhas).
iv. BB, CC, DD devem ser inquiridos quanto aos fatos denunciados por BB, constantes de fls. 10, 42, 43, 72, 73, 75-78, e designadamente, se assistiram aos mesmos, se os ouviram, quando ocorreram, se visualizaram marcas no corpo da sua progenitora, se ouviram as expressões que eram ditas, quem estava presente, onde ocorreram, se alguma vez o arguido agrediu os menores e também à menor EE, qual o estado anímico de BB, e de todos os menores quando essas situações ocorreram, entre outras que se mostrarem úteis para a descoberta da verdade.»
Sobre esse requerimento foi então proferido o despacho recorrido, com o seguinte teor: «Declarações para memória futura. Promoveu o Ministério Público a tomada de declarações para memória futura da ofendida e de dois menores, filhos do arguido e da ofendida. Diz o artigo 271º do Código de Processo Penal, na parte para aqui relevante: “1 - Em caso de doença grave ou de deslocação para o estrangeiro de uma testemunha, que previsivelmente a impeça de ser ouvida em julgamento, bem como nos casos de vítima de crime de tráfico de órgãos humanos, tráfico de pessoas ou contra a liberdade e autodeterminação sexual, o juiz de instrução, a requerimento do Ministério Público, do arguido, do assistente ou das partes civis, pode proceder à sua inquirição no decurso do inquérito, a fim de que o depoimento possa, se necessário, ser tomado em conta no julgamento.” A par deste preceito, diz o artigo 33º da Lei 112/2009, de 16/09, que estabeleceu o regime jurídico aplicável à prevenção da violência doméstica, à protecção e à assistência das suas vítimas: “1 - O juiz, a requerimento da vítima ou do Ministério Público, pode proceder à inquirição daquela no decurso do inquérito, a fim de que o depoimento possa, se necessário, ser tomado em conta no julgamento. 2 - O Ministério Público, o arguido, o defensor e os advogados constituídos no processo são notificados da hora e do local da prestação do depoimento para que possam estar presentes, sendo obrigatória a comparência do Ministério Público e do defensor. 3 - A tomada de declarações é realizada em ambiente informal e reservado, com vista a garantir, nomeadamente, a espontaneidade e a sinceridade das respostas, devendo a vítima ser assistida no decurso do ato processual pelo técnico de apoio à vítima ou por outro profissional que lhe tenha vindo a prestar apoio psicológico ou psiquiátrico, previamente autorizados pelo tribunal. 4 - A inquirição é feita pelo juiz, podendo em seguida o Ministério Público, os advogados constituídos e o defensor, por esta ordem, formular perguntas adicionais. 5 - É correspondentemente aplicável o disposto nos artigos 352.º, 356.º, 363.º e 364.º do Código de Processo Penal. 6 - O disposto nos números anteriores é correspondentemente aplicável a declarações do assistente e das partes civis, de peritos e de consultores técnicos e acareações. 7 - A tomada de declarações nos termos dos números anteriores não prejudica a prestação de depoimento em audiência de julgamento, sempre que ela for possível e não puser em causa a saúde física ou psíquica de pessoa que o deva prestar.” Como se vê, a Lei nº 112/2009 prevê um regime formalmente autónomo para a prestação de declarações para memória futura das vítimas de violência doméstica, se bem que esse regime diste pouco do constante do art.º 271º do Código de Processo Penal. Paralelamente, o artigo 28º da Lei 93/99, de 14 de Julho, que aprovou o regime de protecção de testemunhas, diz: “1 - Durante o inquérito, o depoimento ou as declarações da testemunha especialmente vulnerável deverão ter lugar o mais brevemente possível após a ocorrência do crime. 2 - Sempre que possível, deverá ser evitada a repetição da audição da testemunha especialmente vulnerável durante o inquérito, podendo ainda ser requerido o registo nos termos do artigo 271.º do Código de Processo Penal.” Tal como com a Lei 112/2009, da parte final do n.º 2 do artigo 28º não resulta a criação de qualquer regime diverso em matéria de declarações para memória futura nem a existência de qualquer obrigatoriedade na sua tomada, antes pelo contrário. Num processo de estrutura acusatória a prova é toda ela produzida em audiência de julgamento. É isso que resulta do n.º 1 do artigo 355.º do Código de Processo Penal: “Não valem em julgamento, nomeadamente para o efeito de formação da convicção do tribunal, quaisquer provas que não tiverem sido produzidas ou examinadas em audiência.” A lei prevê, naturalmente, excepções, sendo uma delas a das declarações para memória futura, as quais podem ser colhidas ainda na fase de inquérito e segundo o formalismo constante do já mencionado artigo 271º do Código de Processo Penal (ou da Lei 112/2009), a fim de que tais declarações possam ser tomadas em conta no julgamento. Como excepcional que é, a recolha de declarações para memória futura pelo juiz de instrução tem de ser necessariamente provocada, devendo o Ministério Público apresentar as razões do pedido, a fim de que o juiz as possa acolher ou rejeitar. Claro está, se a lei as impuser como obrigatórias, como é a situação regulada no n.º 2 do artigo 271º, nada há que ponderar, devendo apenas verificar-se se a vítima é menor de idade e se em causa estão crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual. No caso dos autos, a promoção do Ministério Público é genérica e baseia-se tão-somente numa directiva da PGR, não apresentando motivos específicos do caso em investigação que justifiquem a postergação de princípios estruturantes do processo penal. É aqui totalmente convocável o entendimento do Tribunal da Relação de Lisboa, no seu acórdão de 11 de Fevereiro de 2020, Processo 689/19.7PCRGR-A.L1-5, pesquisável em www.dgsi.pt e assim sumariado: – Devem existir razões especiais para que se proceda à tomada de declarações para memória futura, razões que deverão ser analisadas no caso concreto, de acordo com os elementos constantes dos autos, nomeadamente a idade, saúde e proximidade física e ascendente do denunciado sobre a vítima, havendo de procurar-se um critério que permita determinar os casos em que ele deve ter lugar. – Esse critério há-de resultar de uma ponderação entre o interesse da vítima de não ser inquirida senão na medida do estritamente indispensável à consecução das finalidades do processo e o interesse da comunidade na descoberta da verdade e na realização da justiça. “Entendemos, assim, que a melhor interpretação do artigo 33º, nº 1, da Lei nº 112/2009, de 16/09, é de que devem existir razões especiais para que se proceda à tomada de declarações para memória futura, razões que deverão ser analisadas no caso concreto de acordo com os elementos constantes dos autos (nomeadamente a idade, saúde e proximidade física e ascendente do denunciado sobre a vítima). Na realidade, a ser procedente a pretensão do Ministério Público, a tomada de declarações para memória futura em situações de alegada violência doméstica era automática, o que não se concede, assente que a apreciação, como é evidente, deve ser realizada caso a caso.” Dos autos extrai-se que a ofendida já não coabita com o arguido desde pelo menos ... de ... de 2024 (cfr. fls. 76). Extrai-se ainda que, desde então, o arguido não mais a contactou (cfr. fls. 98). Em face disto, não se vislumbra qualquer fundada razão ao nível de protecção dos interesses da queixosa ou das testemunhas que justifique a sua inquirição judicial antecipada. Com efeito, não se vê que exista motivo para postergar o princípio da imediação e da concentração da prova que rege a audiência de discussão e julgamento, mesmo em nome da protecção do interesse da vítima e seus filhos. Como tal, não há razões justificativas que levem a abrir uma excepção ao princípio de que a prova deve ser produzida em julgamento. Nessa medida, indefiro a promovida inquirição para memória futura.»
Deste despacho recorreu então o Ministério Público, figurando na sua peça as seguintes conclusões: «
A. O presente recurso é interposto do despacho de ........2024 proferido pelo Meritíssimo Juiz de Direito que indeferiu as declarações para memória futura promovidas pelo Ministério Público;
B. O Tribunal a quo ancorou-se no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 11.02.2020, proferido no processo 689/19.7PCRGR A-Ll-5, segundo o qual “a promoção do Ministério Público é vaga” e que “não apresenta motivos específicos do caso em investigação que justifiquem a postergação de princípios estruturantes do processo penal.”, “devem de existir razões especiais para que se proceda à tomada de declarações para memória futura”.
C. Concluiu que, “não vislumbra fundada razão ao nível da proteção dos interesses da queixosa ou das testemunhas que justifique a sua inquirição judicial antecipada e não vê motivos para postergar o princípio da imediação e da concentração da prova que rege a audiência de discussão e julgamento, mesmo em nome da proteção do interesse da vítima e dos seus filhos.”
D. Nos presentes autos investigam-se factos suscetíveis de integrar a prática, pelo arguido AA na pessoa de BB, de pelo menos, um crime de violência doméstica, previsto e punível pelo 152.°, n. 1, alínea a) e n.° 2, alínea a)do Código Penal que este integra o conceito de criminalidade violenta [artigo 1.° alínea j) do Código de Processo Penal]
E. Foi atribuído o estatuto de vítima especialmente vulnerável a BB passando esta a gozar de todos os direitos atribuídos às vítimas nos termos da Lei 130/2015 de 04 de setembro.
F. O Ministério Público por despacho de ........2024 promoveu a tomada de declarações para memória futura da vítima BB, de CC nascida a ........2008, DD nascido a ...1....03 (à data dos fatos menor de 14 anos), por entender, considerando a natureza do crime em investigação, as relações familiares, dever proceder-se à sua inquirição durante a fase de inquérito, de modo a que as declarações prestadas pudessem ser tomadas em conta no julgamento, não sendo, nem o menor, nem a vítima, sujeitos a semelhantes diligências, com as consequências negativas que para os mesmos poderão advir.
G. Nos termos do disposto no artigo 53.° do Código de Processo Penal é ao Ministério Público que compete dirigir o inquérito e segundo o art. 267° do Código de Processo Penal, inserido no capítulo II sob epígrafe Dos atos do inquérito, o Ministério Público pratica os atos e assegura os meios de prova necessários à realização das finalidades referidas no n.° 1 do art.° 262.°, nos termos e com as restrições constantes dos artigos seguintes.
H. Por outro lado, da leitura das leis supra mencionadas e dos artigos que transcrevemos retira-se que, a maior preocupação do legislador foi a de garantir a segurança da vítima, a favor de quem foi atribuído o estatuto de vítima, atendendo à sua condição de especial fragilidade, que o seu depoimento fosse livre de pressões, genuíno, prevendo como forma de alcançar esse mesmo desiderato que o mesmo deva ser colhido o mais próximo possível da data dos fatos, por forma a preservar a memória dos mesmos, e permitir uma descrição detalhada e fiel à verdade.
I. Aqui chegados, só uma conclusão podemos retirar a de que, onde a lei não distingue não deve, pois, o intérprete distinguir, e assim, a interpretação feita pelo Tribunal da Lei 112/2009, de 16 de setembro e da Lei 130/2015 de 04 de setembro, não está de acordo com o que o legislador tinha em mente.
J. Salvo o devido respeito que, aliás, é muito, não aceitamos tal interpretação, que nos parece alheada da realidade legislativa mormente da Lei n° 112/2009 e da Lei n.° 130/2015 e da jurisprudência mais recente.
K. O tribunal não pode fazer tábua rasa das aludidas leis.
L. Em nenhuma das leis supramencionadas vislumbramos menção à exigência da verificação do tal requisito especial e da necessidade da sua apresentação per parte do Ministério Público na promoção de declarações para memória futura de uma vítima, como mencionado no despacho de que se recorre e do qual o Tribunal fez depender o deferimento das declarações para memória futura.
M. E mesmo que o Tribunal considerasse que a promoção do Ministério Público eraparca e que deveria de esclarecer melhor os motivos para a tomada das declarações para memória futura - com o que não concordamos, note-se! - deveria, quando muito, ter convidado o Ministério Público a fazê-lo e não, como fez, rejeitar liminarmente o promovido.
N. Os requisitos enumerados pelo Tribunal designadamente, o facto de a vítima já não coabitar com o agressor e de este não a ter contactado poderão, se o entender, ser considerados para efeitos de priorização no agendamento das diligências, mas não para rejeitar a promoção para tomada de declarações para memória futura.
O. Desde logo, o facto de a vítima já não residir com o agressor, não o impede de a contactar e procurar influenciá-la no sentido de alterar o seu depoimento e ou “desistir” do procedimento, o que vale para o argumento de que o agressor não voltou a contactar a vítima. O facto de não a ter voltado a contactar não invalida que a contacte, o que pode fazer das mais diversas formas.
P. É contrário a lei - artigo 20.°, n.° 3, 22.° e 33.° da Lei 112/2009 e art.° 15° e 2^.° da Lei 130/2015 e artigo 53,°, 267.° do Código de Processo Penal — o argumento utilizado pelo Tribunal no despacho de que se recorre segundo o qual “não se vislumbra qualquer fundada razão ao nível da proteção dos interesses da queixosa ou das testemunhas que justifique a sua inquirição judicial antecipada (...) postergar o princípio da imediação e da concentração da prova (…) mesmo em nome da proteção do interesse da vítima e seus filhos.
Q. O entendimento do Tribunal vai também contra a Convenção do Conselho da Europa para a Prevenção e o Combate à Violência contra as Mulheres e a Violência Doméstica, vulgo Convenção de Istambul (aprovada pela Resolução da Assembleia da República n.° 4/2013,14 de dezembro de 2012), nomeadamente, o seu artigo 18.°, 56.°, n.° 1 alínea a) e d).
R. O tribunal interpretou erradamente, e por isso violou, os artigos 16° n° 2, 20º, n.° 3, 22.° e 33° n° 1 da Lei n° 112/2009 de 16 de setembro, artigos 15.°, 24.° da Lei n.° 130/2015, de 4 de Setembro, os artigos arts. 1o n°s 1 e 3 e 2o al. a), 26° n°s 1 e 2, 28° n° 1 da Lei n.° 93/99, e os arts. 53° n° 2 al. b), 67o-A n° 1 al. b) e n.° 3, 127°, 263° n° 1, 267,° e 271° do Código de Processo Penal, o artigo 8º da Constituição da República Portuguesa, e a Convenção de Istambul.
S. Defendemos que o Tribunal, interpretando corretamente as normas mencionadas, deveria de ter proferido um despacho que deferindo o promovido pelo Ministério Público, designasse data para a tomada de declarações da vítima BB e seus filhos, quiçá, também eles vítimas, permitindo à vitima ser inquirida por um juiz, em data próxima (o mais próxima possível) da prática dos factos, em ambiente informal, permitindo em idênticos moldes a inquirição de CC e do menor DD, por ser um direito da vítima e das testemunhas, por ser um dever do Ministério Público no cumprimento das suas funções de direção do inquérito, evitando múltiplas inquirições da vítima e das testemunhas pelo órgão de polícia criminal e/ou pelo Ministério Público, uma delas menor, contribuindo desta forma para a vitimização secundária, algo que o legislador pretendeu evitar.
T. Acresce que não podia o Tribunal proferir juízos acerca da pertinência do momento para a tomada de declarações para memória futura, porquanto tal juízo cabe ao Ministério Público que definiu a estratégia da sua investigação, os atos pertinentes, úteis e necessários para a descoberta da verdade em cada momento e por outro lado, está obrigado ao cumprimento da Diretiva n.° 5/2019 da Procuradoria Geral da República, nos termos do seu Estatuto e da Constituição.
U. Ao decidir como decidiu, o Tribunal não concedeu à vítima e às testemunhas sobretudo a menor, a proteção a que estava obrigado e denegou-lhe um direito, o que lhe é vedado por lei.
V. Da mesma forma o Tribunal ignorou o carácter excecional da Lei 112/2009, de 16 de setembro, face ao artigo 271° do Código de Processo Penal, prevalecendo o artigo 33.° e demais desta lei em detrimento do artigo 271° do Código de Processo Penal.
W. A este respeito e com idêntico entendimento existem vários Acórdãos que subscrevemos, entre eles, o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 02.07.2024, proferido no processo n.° 1028/23.8CBRG-B.G1, o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 21.05.2024, proferido no processo n.° 1/21.7PBBRGX31; o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 19.11.2024, proferido no processo n° 591/24.0T9FTMA.-E1, o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 18.04.2024, proferido no processo n.° 589/23.6GCMTJ-A.L1-9, o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 25.05.2023, proferido no processo 108/23.4PXLSB A.L1.9, o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 23.03.2023, proferido no processo n.º 894/22.9SXLSB-A.L1-9; o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 20.01.2021, proferido no processo n.° 377/20TPALSB-A.L1-3; o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 24.03.2021, proferido no processo n.° 132/20.9PHVNG-C.P1; o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 10.01.2024, proferido no processo n.º 260/23.9GAPNI-A.C 1;
X. Deste modo, estando em investigação no inquérito dos presentes autos, factos que poderão consubstanciar a prática pelo arguido de um crime de violência doméstica, p.p. pelo artigo 152° do Código Penal e considerando ainda que BB é por isso, uma vítima especialmente vulnerável, - art° 67°-A n° 1 do C.P.P e por força do nº 3 do mesmo preceito legal, conjugado com o art° 1º j) do C.P.P., 22°, 33.° da Lei 112/2009 e 130/2015, a regra será a de admitir a tomada de declarações da vítima e suas testemunhas, sobretudo o seu filho menor, por ser um direito legal e uma forma de proteger a vítima da chamada vitimização secundária e uma forma de proteger a frescura e isenção dos seus depoimentos, livre de pressões, tal como pretendido pelo legislador. Termos em que deverá ser concedido provimento ao recurso, revogando-se a decisão proferida e substituindo-a por outra que defira as declarações para memória futura.»
O recurso foi admitido com subida imediata, em separado e efeito meramente devolutivo.
Chegados os autos a esta Relação, a Sra. Procuradora-Geral Adjunta emitiu douto parecer, pugnando pela procedência do recurso.
Sublinha em tal parecer, por um lado, que a lei não exige a indicação de justificação para a realização das declarações para memória futura; e por outro lado que a excecionalidade do regime não afasta a possibilidade de a vítima e as testemunhas serem ouvidas em audiência, como expressamente previsto pelo art. 33º, nº 7 da Lei nº 112/2009, de 16/09.
Por despacho de ... de ... de 2025, o aqui Relator, constatando a existência nos autos de Inquérito de Arguido já constituído, mas sem Defensor, determinou o cumprimento do art. 417º, nº 2 do Código de Processo Penal, com prévia constituição ou nomeação de Defensor/a.
Não tendo o Arguido constituído Mandatário/a no prazo que lhe foi assinalado, foi-lhe nomeado oficiosamente um Defensor, na pessoa do qual se deu então cumprimento ao citado art. 417º, nº 2, não tendo surgido qualquer resposta.
Entretanto, a Digna Magistrada do Ministério Público proferiu nos autos de inquérito o seguinte despacho no dia ... de ... de 2025: «Suspensão Provisória do Processo No decurso do inquérito foram realizadas as pertinentes e necessárias diligências de investigação, entendendo o Ministério Público que existem indícios suficientes de que o arguido: AA, filho de FF e de GG, natural de ..., nascido a ...-...-1990, casado, produtor de queijo, residente no ..., titular do Cartão de Cidadão n.º 13966299, doravante, AA Porquanto:
1. O arguido AA e BB casaram no dia ...-...-2012.
2. O arguido AA e BB vivem na residência, sita no ....
3. Do relacionamento amoroso entre o arguido AA e BB nasceu: CC, nascida em ...-...-2008, DD, nascido em ...-...-2010 e EE, nascida em ...-...-2017.
4. Desde o dia ...-...-2024, desde que BB começou a trabalhar nas ..., o arguido AA começou a sentir ciúmes daquela se relacionar com terceiros.
5. No dia ...-...-2024, em hora concretamente não apurada, no interior da residência, o arguido AA iniciou uma discussão com BB, sendo que durante a discussão o arguido apertou os pulsos à vítima.
6. Ainda durante aquela discussão, o arguido AA disse a BB: “vais perder o trabalho, vou fazer por isso”, “és um esquentamento”, “tu não prestas”, “és uma puta”.
7. No dia ...-...-2024, pelas 21:00h, após o arguido AA ter ido buscar a vítima ao local de trabalho da mesma (...), ao saírem do veículo automóvel, já junto à residência de ambos, o arguido AA perguntou a BB se esta tinha outra pessoa, enquanto, com recurso aos seus dedos, apertou a face da vítima.
8. Naquele momento e na sequência de BB se ter libertado do arguido, a mesma caminhou em direção ao supermercado Continente, sito em ..., ocasião em que o arguido AA a seguiu, fazendo-se transportar no seu veículo automóvel.
9. Após, quando a alcançou, o arguido AA saiu do veículo automóvel e desferiu uma pancada na cabeça de BB.
10. Em seguida, o arguido AA desferiu uma chapada na face direita de BB, tendo provocado uma pequena escoriação no lábio e ligeiro hematoma na face direita.
11. Em consequência direta e necessária da conduta do arguido AA, BB ficou uma equimose na região mentoniana e bucal (mucosa interna da boca), bem como uma equimose no pulso direito e ainda uma equimose da face interna do braço esquerdo, sendo que a ofendida não necessitou de tratamento hospitalar e, sendo que tais lesões determinaram um período de 7 dias de doença, com afetação da capacidade de trabalho geral pelo período de 2 dias e com afetação da capacidade de trabalho profissional pelo período de 2 dias.
12. No dia ...-...-2024, no período da manhã, no momento em que BB se encontrava na ... a apresentar a queixa que deu origem ao presente inquérito, o arguido AA contactou telefonicamente BB e enviou 56 mensagens à mesma.
13. Ainda naquela circunstância de tempo e lugar, o arguido AA deslocou-se duas vezes até ao exterior da ....
14. Em consequência direta e necessária da conduta do arguido AA, BB sentiu-se triste, inquieta e humilhada.
15. O arguido AA, fazendo uso da sua superioridade física e da sua predominância autoritária e intransigente, sendo conhecedor da condição de cônjuge de BB e, por vezes, querendo atuar no interior da residência de ambos, agiu de modo reiterado, querendo adotar as condutas supra descritas, bem sabendo que estas eram idóneas e adequadas a ofender a saúde física e psicológica de BB, bem como a provocar-lhe mal-estar psicológico e provocar-lhe sentimentos de humilhação e medo, querendo ainda ofender a honra e a consideração BB, o que logrou alcançar.
16. O arguido AA agiu de forma livre, voluntária e consciente, nos atos supra descritos, bem sabendo que tais condutas não lhe eram permitidas por lei e eram punidas penalmente. Pelo exposto, o arguido AA praticou, como autor material e na forma consumada, um crime de violência doméstica agravado, previsto e punido pelo artigo 152.º n.º 1 a), n.º 2 a), n.º 4 e n.º 5 do Código Penal. Prova: Testemunhal: BB, melhor identificada a fls. 75; HH, melhor identificado a fls. 79; II, melhor identificada a fls. 86. Perícia: Relatório pericial, fls. 126 a 127. Documental: Auto de denúncia, fls. 37 a 42 verso; Fotogramas, fls. 71 a 74; Assento de nascimento de BB, fls. 95 a 95 verso; Assento de nascimento do arguido, fls. 91 a 91 verso; Assento de nascimento de EE, fls. 92 a 92 verso; Assento de nascimento de CC, fls. 93 a 93 verso; Assento de nascimento de DD, fls. 94 a 94 verso. * “O artigo 281.º do Código Processo Penal, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 78/87, de 17 de Fevereiro, na redação conferida pela Lei n.º 48/2007, de29 de Agosto, prevê uma forma consensual de resolução do conflito criminal, que se traduz na possibilidade de o Ministério Público, oficiosamente ou a requerimento do arguido ou do assistente, determinar, com a concordância do juiz de instrução, a suspensão do processo, mediante a imposição ao arguido de injunções e regras de conduta, sempre que se verificarem determinados pressupostos”, in ponto I da Circular da PGR n.º 2/08 de 01/02/2008. Tais pressupostos, nos termos do disposto do n.º 1 do artigo 281.º do Código Processo Penal são: “a) Concordância do arguido e do assistente; b) Ausência de condenação anterior por crime da mesma natureza; c) Ausência de aplicação anterior de suspensão provisória do processo por crime da mesma natureza; d) Não haver lugar a medida de segurança de internamento; e) Ausência de um grau de culpa elevado; f) Ser de prever que o cumprimento das injunções e regras de conduta responda suficientemente às exigências de prevenção que no caso se façam sentir.” A suspensão provisória do processo assenta na intenção político-criminal de tratar a pequena e média criminalidade segundo soluções de consenso, contribuindo para uma racional utilização dos meios disponíveis no sistema de justiça penal, reconhecendo e clarificando o conflito com maior eficácia e celeridade, neste sentido veja-se o preâmbulo da republicação da Diretiva da PGR n.º 1/2014, de 15/01/2014. A aplicação da suspensão provisória do processo visa acautelar as necessidades de prevenção geral e especial que in casu se façam sentir, quando estas possam ser satisfeitas pelo cumprimento por parte do arguido de injunções e regras de conduta. Nos termos do artigo 281.º n.º 2 do Código de Processo Penal, “são oponíveis ao arguido, cumulativa ou separadamente, as seguintes injunções e regras de conduta: a) Indemnizar o lesado; b) Dar ao lesado satisfação moral adequada; c) Entregar ao Estado ou a instituições provadas de solidariedade social certa quantia ou efetuar prestação de serviço de interesse público; d) Residir em determinado lugar; e) Frequentar certos programas ou atividades; f) Não exercer determinadas profissões; g) Não frequentar certos meios ou lugares; h) Não residir em certos lugares ou regiões; i) Não acompanhar, alojar ou receber certas pessoas; j) Não frequentar certas associações ou participar em determinadas reuniões; l) Não ter em seu poder determinados objetos capazes de facilitar a prática de outro crime; m) Qualquer outro comportamento especialmente exigido pelo caso”. No caso em apreço, analisados os elementos constantes nos autos resulta estarem reunidas as condições de aplicação do instituto de suspensão provisória do processo previsto no artigo 281.º do Código Processo Penal. Foram obtidos indícios suficientes da prática de um crime de violência doméstica agravado, previsto e punido pelo artigo 152.º n.º 1 b), n.º 2 a), n.º 4 e n.º 5 do Código Penal, praticado pelo arguido AA. O referido crime é punido com pena prisão de dois a cinco anos. Apurou-se ainda através da consulta do Registo Criminal e da Base de Dados de Suspensão Provisória do Processo, que o arguido AA não foi condenado anteriormente pela prática de crimes, fls. 90 verso, bem como não foi beneficiário da suspensão provisoria do processo por crime da mesma natureza, fls. 96 a 96 verso, ao abrigo do disposto nos artigos 4.º n.º 3 ex vi 1.º n.º 2 e 5.º b) do Decreto-Lei n.º 299/99, de 04 de Agosto, que regulamenta a base de dados da PGR sobre a suspensão provisória e, em cumprimento do disposto no ponto 2 B) do capítulo IV da Circular n.º 2/08 de 01-02-2008 e dos artigos 2.º n.º 1; 8.º n.º 1 e n.º 2 b) e 9.º da Lei n.º 37/2015, que estabelece o regime da identificação criminal. Procederam-se as necessárias diligências investigatórias e à recolha de prova que, não só incidiram sobre a existência dos crimes; a determinação dos seus agentes; e a respetiva responsabilidade criminal, assim como recaíram sobre as consequências dos crimes; os prejuízos provocados; a motivação dos agentes e a sua situação socioeconómica. Resultou, então, que o arguido AA tem 35 anos. O arguido AA é …, auferindo mensalmente 867,41€. Mais se apurou que o arguido AA reside atualmente com a esposa, vítima dos autos, e os três filhos de ambos. A esposa do arguido aufere o salário mínimo regional. O arguido AA é proprietário de um veículo automóvel. O arguido AA paga mensalmente a quantia de 300,00€ a título de renda de casa. O arguido AA paga mensalmente a quantia de 300,00€ a título de prestação associada a um crédito bancário que contraiu para aquisição do veículo automóvel. O arguido AA paga mensalmente a quantia de 100,00€ a título de prestação associada a um crédito com um cartão bancário. O arguido AA paga mensalmente a quantia de 200,00€ a título de despesas domésticas e 500,00€ a título de despesas relacionadas com a alimentação. O arguido AA estudou até ao 9.º ano. Aquando do seu interrogatório, o arguido AA esclareceu que adotou condutas irrefletidas e que está arrependido das mesmas, fls. 84 a 85. Conclui-se que o arguido AA está socialmente inserido. Não há lugar à aplicação de medida de segurança de internamento. O arguido AA não se opôs à utilização do instituto da suspensão provisória do processo, fls. 174 a 176. Nos presentes autos não existem assistentes constituídos. A vítima BB foi esclarecida acerca da Suspensão Provisória do Processo e da sua tramitação, requerendo a sua aplicação, fls. 75 a 78. Aqui chegados, analisados os elementos probatórios e a informação recolhida no decurso do inquérito, conclui-se pela viabilidade da aplicação da suspensão provisória do processo, pois entende-se que o cumprimento das injunções propostas respondem às exigências de prevenção que no caso se fazem sentir, sendo estas adequadas à natureza dos factos; proporcionais à intensidade da conduta criminosa e seus efeitos; e suficientes face às exigências do caso concreto. Tais injunções consideram-se ainda eficazes no âmbito da responsabilização do arguido AA, pois presume-se que a sua aceitação e cumprimento, terá maior suscetibilidade de influenciar positivamente a adoção de uma conduta conforme ao direito, quando comparada com a eventual sujeição do arguido a julgamento. Estão, então, reunidos todos os pressupostos que permitem não submeter o arguido AA a julgamento e suspender provisoriamente o processo quantos aos factos que lhes são imputáveis, de acordo com o disposto do artigo 281.º n.º 1 e n.º 7 do Código de Processo Penal. * Nestes termos, ao abrigo do disposto no artigo 281.º n.º 2 c) e e) do Código de Processo Penal, o Ministério Público considera adequada e suficiente: Quanto ao arguido AA, a suspensão provisória do processo pelo período de 12 (doze), durante o qual o arguido deverá cumprir as seguintes injunções até ao termo do prazo determinado para o seu cumprimento: - Entregar a quantia monetária de 200,00 euros à UMAR, devendo juntar aos autos comprovativo da entrega, sendo que se admite que proceda à mesma de forma faseada ou única; - Frequentar os programas e as sessões de acompanhamento prestadas pela DGRSP, no sentido de ser sensibilizado para a ilicitude do crime em causa. * Apresente os autos ao Mmo. Juiz de Instrução Criminal para apreciação nos termos do artigo 281.º n.º 1 do Código de Processo Penal. *** Em caso de concordância do Mmo. Juiz de Instrução Criminal, cumpra o seguinte despacho: Atenta a concordância do Mmo. Juiz de Instrução Criminal, determino a prorrogação da Suspensão Provisória do Processo, nos termos e com os fundamentos do despacho supra. Notifique, com cópia dos mencionados despachos, o arguido AA, a vítima e a DGRSP de que o processo se encontra provisoriamente suspenso, tendo sido prorrogado pelo período de 12 (doze) meses, com as seguintes obrigações/regras/injunções: 1)- Entregar a quantia monetária de 200,00 euros à UMAR, devendo juntar aos autos comprovativo da entrega, sendo que se admite que proceda à mesma de forma faseada ou única; 2)- Frequentar os programas e as sessões de acompanhamento prestadas pela DGRSP, no sentido de ser sensibilizado para a ilicitude do crime em causa. 3)- Com advertência de que caso não cumpra as injunções impostas e cometa crimes da mesma natureza e pelos quais venha a ser condenado, os presentes autos prosseguirão para julgamento. * Findo o prazo da suspensão provisória do processo:
1. Requisite e junte aos autos Certificado de Registo Criminal atualizado do arguido AA; e
2. Averigue e junte aos autos informação acerca da existência de processos pendentes relativamente ao arguido AA, a correr termos neste DIAP e no Juízo de Competência Genérica da Praia da Vitória. Após, conclua. * Vindo o comprovativo da notificação do arguido, conclua, com vista à inseri na base de dados da suspensão provisória do processo, a informação respeitante ao despacho supra, de acordo com os artigos 2.º n.º 2, 4.º n.º 2 e 5.º b) do Decreto-Lei n.º 299/99, de 4 de agosto e, cumprindo o ponto 2 da circular da PGR n.º 2/08, de 01/02/2018. * Sem comunicação hierárquica, ao abrigo do ponto 2. do Despacho da Coordenação da Procuradoria da República da Comarca dos Açores n.º 24/2020, que dispensa a comunicação da utilização do instituto da suspensão provisória do processo.»
Remetidos os autos de Inquérito ao Sr. Juiz, pelo mesmo foi proferido no dia ... de ... de 2025 o seguinte despacho: «Por se mostrarem reunidos os pressupostos legais concordo com a suspensão provisória do processo nos exactos termos propostos pelo MP.»
Na sequência desse despacho, os autos de Inquérito regressaram aos Serviços do Ministério Público no dia ... de ... de 2025.
Perante esse desenvolvimento processual, o aqui Relator proferiu neste Apenso de recurso o seguinte despacho: «Compulsados os autos na perspetiva de efetuar o seu exame liminar e preparar um projeto de acórdão a submeter à Conferência, constato, por pesquisa eletrónica do processo, que este foi objeto de suspensão provisória, ao abrigo do preceituado pelo art. 281º do Código de Processo Penal. Tal resulta do despacho da Sra. Procuradora da República proferido a ... de ... de 2025, pelo qual se afirma, na sua parte final, que uma tal suspensão se considerará já determinada caso o Sr. Juiz de Instrução venha a manifestar a sua concordância, o que este entretanto fez a ... de ... de 2025. Vale o exposto por questionar da repercussão dessa nova realidade jurídico-processual sobre a presente instância recursal: seja porque o Inquérito em si mesmo, pela lógica exposta, está já suspenso; seja porque, em caso de incumprimento das injunções e/ou regras de conduta aplicadas e de revogação da dita suspensão, daí decorrerá a previsível dedução de acusação com os elementos já coligidos. Dito isto, vão os autos à Sra. Procuradora-Geral Adjunta, a fim de dizer o que se lhe oferecer sobre a atualidade e/ou pertinência de ser proferida decisão de mérito no recurso interposto.»
A Sra. Procuradora-Geral Adjunta lavrou então a seguinte promoção: «Tendo contactado a magistrada titular do inquérito sobre a pertinência do conhecimento do recurso, face à decisão de suspensão provisória do processo, entretanto, proferida, a mesma informou que mantém interesse na apreciação do recurso, de modo a melhor acautelar a produção da prova, caso o processo venha a prosseguir para julgamento. Assim sendo, o Ministério Público pretende que o processo prossiga para decisão da questão suscitada, o que se promove.»
Os autos foram aos vistos e seguiram para a conferência.
*
2 – FUNDAMENTAÇÃO
2.1 Questões a apreciar
É hoje pacífico, a partir do preceituado pelo n.º 1 do art.º 412.º do Código de Processo Penal, que são as conclusões apresentadas pelo recorrente que definem e delimitam o âmbito do recurso e, consequentemente, os poderes de cognição do Tribunal de 2ª Instância, sem prejuízo do dever de apreciar as questões de conhecimento oficioso.
A esta luz, a problemática central suscitada no recurso é a de saber se devia ou não o Sr. Juiz ter deferido a pelo Ministério Público promovida prestação de declarações para memória futura.
A título prévio, porém, levanta-se uma outra questão, que é a de saber se pode ser apreciado o recurso interposto em face do estado em que se encontram os autos de Inquérito dos quais aquele emerge.
2.2 Conhecimento da questão prévia
Os autos de Inquérito encontram-se suspensos provisoriamente, ao abrigo do disposto no art. 281º do Código de Processo Penal (todas as normas doravante citadas sem indicação do diploma a que se referem deverão ser reportadas ao Código de Processo Penal).
O problema é este: na vigência de uma tal suspensão provisória do processo, pode ter lugar a prestação de declarações para memória futura?
Andemos um pouco atrás.
Terminado o inquérito, ou melhor, terminada a investigação, o Ministério Público tem ao seu alcance um de cinco caminhos (José de Souto Moura, “Inquérito e instrução”, Jornadas de Direito Processual Penal, O Novo Código de Processo Penal, Almedina, 1993, pgs. 113 a 115): (i) o arquivamento por ter-se concluído não haver crime, o arguido o não ter praticado ou o procedimento ser legalmente inadmissível (art. 277º, nº 1); (ii) o arquivamento por falta de prova (art. 277º, nº 2); (iii) o arquivamento em caso de dispensa de pena (art. 280º); (iv) a suspensão provisória do processo (art. 281º); ou (v) a acusação (art. 283º).
Insista-se que cada um destes caminhos perfila-se diante do Ministério Público aquando do encerramento do inquérito, como decorre desde logo do regime aplicável a cada um deles e do capítulo do Código de Processo Penal em que se integram, justamente intitulado «do encerramento do inquérito». Isto é, mesmo no caso de uma suspensão provisória do processo, do que se trata é de uma decisão que se debruça sobre uma investigação que está substantivamente finda (João Conde Correia, Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, tomo III, 2ª edição, Almedina, 2022, pgs. 1061 e 1183).
No contexto do encerramento do inquérito, a suspensão provisória do processo tem naturalmente as suas especificidades. Importa a esse propósito destacar que, uma vez determinada uma tal suspensão, o processo fica, perdoe-se-nos o pleonasmo, suspenso, como bem se vê:
- pela designação literal do instituto (suspensão provisória doprocesso),
- pela circunstância de o legislador ter cuidado de estabelecer, no art. 282º, nº 2, que o prazo de prescrição do procedimento criminal não corre no decurso do prazo da suspensão, como ainda e por fim
- pela dinâmica ulterior que se acha prevista e resulta do art. 282º, nºs 3 e 4, de acordo com a qual o processo prosseguirá (apenas) se o arguido (a) não cumprir as injunções e regras de conduta ou (b) se, durante o período da suspensão, cometer crime da mesma natureza pelo qual venha a ser condenado.
Assim é que, não se verificando qualquer destes eventos, o Ministério Público arquiva o processo; cometendo o arguido crime da mesma natureza pelo qual venha a ser condenado ou verificando-se o incumprimento das injunções e regras de conduta (não interessando agora debater se há ou não espaço, neste segmento, para a valoração da culpa do arguido no incumprimento), o Ministério Público determina o prosseguimento do processo, deduzindo a acusação (Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 4ª edição atualizada, Universidade Católica Editora, 2011, pg. 767/768; Fernando Torrão, A relevância político-criminal da suspensão provisória do processo, Almedina, 2000, pgs. 230-232).
Vale já o que vimos de dizer que, havendo os autos que prosseguir, não ocorre uma reabertura da investigação – o processo avança com a acusação (João Conde Correia, ob. cit., pg. 1061).
Dito isto, estando nós em plena vigência da suspensão provisória do inquérito determinada pelo Ministério Público, há que ter presente duas coisas: uma, que a investigação está já finda; outra, que os autos estão suspensos.
Pergunte-se então: poderá neste momento produzir-se alguma prova?
Pela ordem normal das coisas, a resposta é negativa. Não se vê, na verdade, que sentido faria o Ministério Público, por um lado, considerar encerrada a investigação e determinar a efetiva suspensão provisória do processo e, por outro lado, continuar a realizar ou a promover a realização de diligências de prova, como se a investigação não tivesse sido concluída e o processo não estivesse suspenso. Não pode ser.
Aliás, a própria natureza da suspensão provisória do processo não se compatibiliza facilmente com uma solução que admita a produção de prova que passe, nomeadamente, por fazer a(s) vítima(s) direta(s) ou indireta(s) reviver(em) o(s) crime(s) que se considera indiciado ter(em) sofrido ou presenciado (mais, a sua audição nos autos, nestas circunstâncias, para além de inevitavelmente custosa para os próprios, bem poderia vir a revelar-se inútil, caso entretanto o processo venha a ser arquivado, como pode acontecer).
Não ignoremos ainda que a suspensão provisória do processo constitui uma solução construída numa base de desejável consenso entre arguido e vítima (como aliás ocorreu no caso concreto), e está voltada para a conciliação possível entre eles (Manuel da Costa Andrade, “Consenso e oportunidade”, Jornadas…, pg. 348), numa lógica que de algum modo se aproxima até da justiça restaurativa (João Conde Correia, ob. cit., pg. 1138). Nada disso é congruente com o chamar a(s) vítima(s) a prestar(em) declarações, no que rapidamente poderia ler-se como um reacender do conflito que a suspensão provisória visou apaziguar.
Dito isto, não podemos ser insensíveis à possibilidade de haver situações em que se torne na verdade imperativo encetar alguma aquisição probatória nesta fase em que o processo se encontra provisoriamente suspenso. Trata-se porém de algo que apenas pode admitir-se a título excecional. Como e em que termos? Vejamos.
O processo está suspenso, ainda que provisoriamente. Suspenso o processo, que atos podem ser praticados?
O Código de Processo Penal não contém um preceito que expressamente defina os atos que podem ser praticados durante a suspensão provisória do processo; o que de mais próximo temos aí disponível e a que podemos recorrer por analogia, à luz do art. 4º, é o que está previsto no art. 7º, nº 3, para os casos de suspensão por «questão prejudicial» - aí se prescreve, recorde-se, que «a suspensão não pode, porém, prejudicar a realização de diligências urgentes de prova». Solução idêntica encontra-se no art. 35º, nº 3, que estatui que a denúncia ou o requerimento de um conflito positivo ou negativo de competência entre dois ou mais tribunais «não prejudicam a realização dos atos processuais urgentes».
Estando os autos suspensos, admite, portanto, o legislador, nas circunstâncias indicadas, que possa perfilar-se a necessidade de realizar uma «diligência urgente de prova», no caso do art. 7º, nº 3, ou um «ato processual urgente», no caso do art. 35º, nº 3.
Questão que pode colocar-se é a de saber, no contexto de que cuidamos, o que vem a ser uma «diligência urgente de prova» ou um «ato processual urgente».
Estamos diante conceitos relativamente abertos, cuja densificação pode ser conseguida por apelo a um outro lugar do Código de Processo Penal, a saber, o que autoriza o Juiz que preside ou presidirá à audiência de julgamento, oficiosamente ou a requerimento, a antecipar atos ou prova ou ordenar uns ou outra sem aguardar pelo momento que para tanto e em geral seria o adequado. Referimo-nos ao art. 320º, nº 1, no qual se lê: «(…) atos urgentes ou cuja demora possa acarretar perigo para a aquisição ou a conservação da prova, ou para a descoberta da verdade, nomeadamente à tomada de declarações nos casos e às pessoas referidas nos artigos 271º e 294º».
Bem se compreende, em suma, que haja quem sustente que se exija a presença de uma situação em que a não prática urgente do ato implique a inutilização, a adulteração, a ocultação, a deturpação, o condicionamento da prova ou quaisquer vicissitudes impeditivas, limitativas ou condicionadoras da obtenção da prova ou da sua manutenção, ou a descoberta da verdade (Tiago Caiado Milheiro, Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, tomo IV, Almedina, 2022, pg. 169).
Neste sentido, estamos em crer que se trata de um regime que, em termos prático-jurídicos, vem em larga medida a coincidir com o previsto no art. 275º, nº 1 do Código de Processo Civil, que em última análise haveria de aplicar por via do art. 4º do Código de Processo Penal: «enquanto durar a suspensão só podem praticar-se validamente os atos urgentes destinados a evitar dano irreparável».
A partir do momento em que o Ministério Público determina a suspensão provisória do processo, a prestação de declarações para memória futura podia então ter lugar, sim, mas para tanto exigir-se-ia uma justificação autónoma, própria e excecional, que impusesse o desvio objetivo em que se traduz a prática de diligências de prova em semelhante circunstancialismo; uma justificação que no fundo e em via de princípio acrescentasse algo às razões inicialmente invocadas para realização da diligência durante a marcha normal do inquérito, a menos que tais razões inicialmente invocadas consubstanciassem já fundamento bastante para o efeito.
Nada disso se vendo aqui, as diligências em apreço nunca poderiam, nestas circunstâncias, ser realizadas neste momento.
Em suma e pelas razões expostas, ocorre constatar que há uma circunstância - a nova realidade processual despoletada pela suspensão provisória - que no fundo obsta ao próprio conhecimento do presente recurso [art. 417º, nº 6, alínea a)]. Na verdade, ainda que a Relação entenda ou entendesse que o despacho recorrido, ao tempo em que foi proferido, fizera uma interpretação menos acertada do Direito aplicável, ainda assim a decisão a tomar nesta instância recursal nunca poderia ser de provimento do recurso, pelos motivos enunciados.
*
3 – DISPOSITIVO
Nos termos e pelos fundamentos expostos, decidimos julgar verificada uma circunstância superveniente ao despacho recorrido, a saber, a suspensão provisória do processo determinada pelo Ministério Público, que obsta ao conhecimento do recurso interposto enquanto a investigação decorria, o que se declara.
Sem tributação.
Registe e notifique.
Lisboa, 08 de maio de 2025
Os Juízes Desembargadores (processado a computador pelo Relator e por todos revisto; assinatura eletrónica)
Jorge Rosas de Castro
Isabel Maria Trocado Monteiro
Maria de Fátima R. Marques Bessa