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SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DA PENA
INCUMPRIMENTO
Sumário
I-A decisão que determina o cumprimento da pena de prisão substituída, não constitui uma consequência imediata e automática da conduta do condenado, antes depende da constatação, após realizadas as diligências que a lei determina e aquelas que o tribunal considera adequadas, de que as finalidades punitivas que estiveram na base da aplicação da suspensão já não podem ser alcançadas através dela, frustrando-se, definitivamente, o juízo de prognose anteriormente efetuado. II- Daqui decorre, sobretudo naquelas situações em que o crime cometido no período da suspensão da execução da pena corresponde a um comportamento meramente ocasional e não a um modo-de-ser do arguido, que ainda será possível concluir que as finalidades da suspensão não foram, em definitivo, comprometidas. III-Importa ponderar, também, a relação temporal entre a data da suspensão da execução da pena e a data em que foram praticados os novos factos, a relação entre os dois crimes praticados, a análise das circunstâncias do cometimento do novo crime, ou seja, do quadro em que o condenado voltou a delinquir e o seu impacto negativo na obtenção das finalidades que justificaram a suspensão da pena. IV - Importa, ainda, ponderar a evolução das condições de vida do arguido até ao momento em que foi proferida a decisão de revogação, dado que é esse o momento a ter em conta para a decisão de revogar ou não a suspensão da execução da pena.
Texto Integral
Em conferência, acordam os Juízes na 9ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:
I – Relatório
Nos autos principais, em 9-10-2024, ao arguido recorrente foi revogada a suspensão da execução da pena de 4 anos de prisão em que foi condenado nos autos e em consequência determinou o seu cumprimento.
Não se conformando com essa decisão, o arguido recorreu para este Tribunal da Relação, solicitando que se declare a revogação do despacho recorrido e, assim, ser mantida a anterior decisão de suspensão da execução da pena de prisão.
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Para o efeito, apresentou o arguido as seguintes Conclusões (transcrição): 1.Ao determinar a revogação da suspensão da execução da pena, o Tribunal a quo apreciou os factos e aplicou o direito erradamente, violando, assim, o disposto no artigo 56.º, n.º 1 b) do CP. 2-O Tribunal não teve em devida conta o enorme hiato temporal entre os factos praticados e não avaliou em concreto o eventual prejuízo para as finalidades atinentes à suspensão. 3. O Tribunal não valorou devidamente (e está até em contradição com) as circunstâncias de cometimento do novo crime nem atendeu ao total cumprimento das condições da suspensão. 4. Ou seja, a regularização das dívidas resultantes dos crimes, independentemente do momento em que ocorre, é um fator muito positivo que demonstra arrependimento ativo e esforço de reintegração social, e é, nestas concretas circunstâncias, por si só, suficiente para impedir a revogação da suspensão, pois está integralmente reparado o mal do crime. 5. A participação do arguido nos programas de reabilitação foi uma demonstração de um esforço ativo para a reintegração social e esta simples circunstância reforça a conclusão pela não revogação. 6. Neste contexto, em que as dívidas estão regularizadas, porque se trata de crimes patrimoniais, em que os prejuízos foram ressarcidos, a suspensão da pena ainda permite alcançar as finalidades da ressocialização e, apesar do novo crime, ainda permite alcançar os objetivos da ressocialização, considerando a regularização das dívidas e os fatores positivos que se assinalaram. 7. Suscita-se desde já a inconstitucionalidade, por violação do artigo 18.º, n.º 2 da CRP, da interpretação normativa segundo a qual o artigo 56.º, n.º 1, b) do CP, singularmente considerado ou em conjugação com quaisquer outras normas, aplicado no contexto do cometimento de crime da mesma natureza na pendência de revogação da suspensão da pena mas sem fundamentar devidamente o prejuízo das finalidades da suspensão e revelando-se desproporcional perante a gravidade 7 do incumprimento das condições impostas, permite a decretação automática da respetiva revogação.
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Recebido o recurso, o Ministério Público na primeira instância, na sua resposta, pugnou pelo total não provimento do recurso apresentado, tendo concluído que o despacho recorrido não violou as normas apontadas pelo recorrente na sua motivação, termos em que deve ser negado provimento ao recurso do arguido confirmando-se o douto despacho recorrido.
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A Sra. PGA junto deste Tribunal da Relação pronunciou-se pela improcedência do recurso aderindo à resposta apresentada pelo MP em primeira instância.
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Não foi cumprido o artº 417º, n.º 2 do C.P.P uma vez que não foi emitido parecer autónomo quanto à resposta do MP na primeira instância.
II - Questões a decidir:
Conforme jurisprudência constante e amplamente pacífica, o âmbito dos recursos é delimitado pelas conclusões formuladas na motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (cf. Art.º 119º, nº 1; 123º, nº 2; 410º, n.º 2, alíneas a), b) e c) do CPP, Acórdão de fixação de jurisprudência obrigatória do STJ de 19/10/1995, publicado em 28/12/1995 e, entre muitos, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 25/6/1998, in BMJ 478, pp. 242, e de 3.2.1999, in B.M.J. 484, p. 271).
Tendo em conta este contexto normativo e o teor das conclusões apresentadas pelos arguidos recorrentes, há que analisar e decidir:
Se se verificam os pressupostos para a revogação da suspensão de execução da pena.
Da inconstitucionalidade, por violação do artigo 18.º, n.º 2 da CRP, da interpretação normativa segundo a qual o artigo 56.º, n.º 1, b) do CP, singularmente considerado ou em conjugação com quaisquer outras normas, aplicado no contexto do cometimento de crime da mesma natureza na pendência de revogação da suspensão da pena mas sem fundamentar devidamente o prejuízo das finalidades da suspensão e revelando-se desproporcional perante a gravidade do incumprimento das condições impostas, permite a decretação automática da respetiva revogação.
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III – FUNDAMENTAÇÃO:
A decisão recorrida tem o seguinte teor no que concerne à fundamentação (transcrição): Nos presentes autos de processo comum perante Tribunal Coletivo, o arguido/condenado AA foi julgado e condenado pela prática de um crime de falsificação de documento, previsto e punido pelo artigo 256, n.ºs 1, alínea a) e c) e n.º 3, do Código Penal e de um crime de burla qualificada, previsto e punido pelos artigos 217, n.º 1 e 218, n.º 1, por referência ao artigo 202, alínea a), do Código Penal, na pena única de 4 (quatro) anos de prisão, suspensa na sua execução, por igual período, com regime de prova e ainda sob a condição de pagar ao assistente BB, no prazo de 4 (quatro) anos, a quantia de € 5 000 (cinco mil euros), à razão de € 1 250 (mil duzentos e cinquenta euros) anuais – cfr. acórdão de primeira instância de fls. 1464 a 1511, confirmado pelo Venerando Tribunal da Relação de Lisboa de fls. 1633 a 1651. Esta decisão condenatória transitou em julgado em 30 de setembro de 2016 – cfr. fls. 1658. A fls. 1851 foi junto aos autos o “Relatório de Execução” – “Final” – no qual, entre o mais, se consignou que: “CC manifestou atitude de disponibilidade nos contactos com os serviços de reinserção, pese embora tal circunstância não se tenha constituído como contentora da sua conduta na medida em que no decurso do período da suspensão o arguido registou novas sinalizações criminais junto do Sistema de Administração da Justiça Penal. Embora se desconheça a eventual tramitação do processo acima indicado, avalia-se que se do mesmo resultar condenação, o arguido não terá assim aproveitado a oportunidade de mudança que lhe foi concedida pelo Sistema de Justiça.” Compulsados os autos, designadamente, o certificado do registo criminal de fls. 1884 verso a 1887, constatou-se que o arguido/condenado veio ainda a ser condenado na pena única de 3 (três) anos e 4 (quatro) meses de prisão efetiva, pela prática, em 04 de janeiro de 2017, de um crime de abuso de confiança, previsto e punido pelo artigo 205, n.ºs 1 e 4, do Código Penal e de um crime de falsificação ou contrafação de documento, previsto e punido pelo artigo 256, n.º 1, alínea e), do Código Penal. Apurou-se nos presentes autos que, em 15 de novembro de 2022, o arguido/condenado apenas havia depositado a quantia de € 700 (setecentos euros) – cfr. fls. 1938 Designada data para audição de condenado, ao abrigo do disposto no artigo 495º, do Código de Processo Penal, resultou (conjuntamente com a prova documental posteriormente junta aos autos) que a condição de suspensão de pagar ao assistente BB, no prazo de 4 (quatro) anos, a quantia de € 5 000 (cinco mil euros), à razão de € 1 250 (mil duzentos e cinquenta euros) anuais, foi cumprida; que o mesmo se declarou arrependido da prática dos crimes pelos quais foi condenado; que se ausentou do território nacional a fim de trabalhar no estrangeiro (ajudante de camionista, em ...); que o arguido/condenado padece de problemas de saúde. A Digníssima Magistrada do Ministério Público apresentou o respetivo parecer que consta de fls. 2042 e 2043 e o Ilustre Advogado do arguido/condenado pronunciou-se a fls. 2050 a 2052. Cumpre apreciar: O percurso criminal do arguido/condenado revela que não interiorizou o desvalor das sua condutas, nem o sentido e propósitos das condenações a que foi sujeito, demonstrando insensibilidade pelos valores da comunidade que integra, pelo labor dos técnicos de reinserção social e pelas decisões judiciais que lhe deram sucessivas oportunidades (penas de multa, penas de prisão suspensas na sua execução). Demonstram os autos que, durante o período de suspensão da execução da pena de prisão aplicada nos presentes autos, o arguido/condenado praticou factos pelos quais veio a ser condenado e a suspensão na execução da pena de prisão foi absolutamente ineficaz. Note-se: o arguido/condenado praticou factos de idêntica natureza meros 3 (três) meses depois do trânsito em julgado da condenação proferida nos presentes autos. Conclui-se, assim, que a simples censura de facto que estava na base da suspensão não possibilitou que se alcançassem as respetivas finalidades, tanto mais que foi condenado pela prática de crimes contra a propriedade, contra o património em geral e de falsificação, denotando uma elevada insensibilidade em relação aos bens jurídicos protegidos por normas incriminadoras e, bem assim, pelas condenações a que foi sujeito. Expressamente consigna-se que nada poderá justificar a prática de crimes, muito menos durante um período de suspensão da pena de prisão, período que o arguido/condenado deve aproveitar para refletir e adotar um comportamento particularmente correto. O juízo de prognose favorável à suspensão na execução da pena de prisão foi objetivamente posto em causa pela condenação subsequente. Pelo exposto, revogo a suspensão da execução da pena única de 4 (quatro) anos de prisão a que o arguido AA foi condenado e, em consequência, determino o cumprimento da correspondente pena de prisão – cfr. alínea b), do n.º 1, do artigo 56, do Código Penal. Pelas razões apresentadas na promoção da Digníssima Magistrada do Ministério Público a fls. 1964, às quais se aderem e se dão por reproduzidas, não de aplica aos presentes autos a Lei n.º 38- A/2023, de 02 de agosto. Notifique. Após trânsito, diligencie pela privação da liberdade do arguido/condenado à ordem dos presentes autos e remeta boletim ao registo criminal. ***
Apreciemos o recurso
Antes de entrarmos no conhecimento das questões relativas ao objeto do presente recurso, importa recuperar aqui alguns aspetos relativos à dinâmica processual que precedeu à decisão agora colocada em causa. Por decisão de 26-6-2020, transitada em julgado em 26-05-2022, o arguido AA foi condenado, com coautor de um crime de abuso de confiança, em concurso real com um crime de falsificação de documento, na pena única de 3 anos e 4 meses de prisão efetiva, por factos ocorridos entre ..., ..., agosto e outubro de 2017 - do processo 5720/18.0...
O valor do prejuízo patrimonial causado foi de 9.5000,00 Euros.
Nos presentes autos, por acórdão de 30-1-2015, transitado em julgado em 30-9-2016, por factos praticados em maio de 1998, foi o arguido condenado prática de um crime de falsificação de documento, previsto e punido pelo artigo 256, n.ºs 1, alínea a) e c) e n.º 3, do Código Penal e de um crime de burla qualificada, previsto e punido pelos artigos 217, n.º 1 e 218, n.º 1, por referência ao artigo 202, alínea a), do Código Penal, na pena única de 4 anos de prisão, suspensa na sua execução, por igual período, com regime de prova e ainda sob a condição de pagar ao assistente BB, no prazo de 4 anos, a quantia de € 5 000 (cinco mil euros), à razão de € 1 250 (mil duzentos e cinquenta euros) anuais.
No dia ...-...-2023 foram tomadas declarações ao arguido na sequência do qual foi proferido despacho onde se concedeu ao arguido prazo até à próxima sexta-feira, dia 29, para este juntar aos autos os documentos comprovativos do pagamento efetuado, bem como da sua situação clínica.
Em ...-...-2023 veio o arguido juntar aos autos os comprovativos de pagamento da quantia fixada no acórdão de 30-1-2015 como condição de suspensão de execução da pena.
Está em causa, nos presentes autos, a revogação da suspensão da execução da pena de 4 anos de prisão aplicada ao recorrente, com base no fundamento previsto na alínea b) do artigo 56.º, n.º 1 do Código Penal.
O artigo 50.º, n.º1, do Código Penal, dispõe: «1-O tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a cinco anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
A suspensão da execução da pena de prisão constitui uma verdadeira pena autónoma de substituição cujo cumprimento é feito em liberdade e pressupõe a prévia determinação da pena de prisão, em lugar da qual é aplicada e executada.
Para que o tribunal possa lançar mão desta pena de substituição é necessário, em primeiro lugar, a presença de um pressuposto formal de que a medida da pena imposta ao agente não seja superior a cinco anos de prisão e, em segundo lugar, a verificação de um pressuposto material que se traduz na formulação de um juízo de prognose favorável relativamente ao comportamento daquele, em que o tribunal conclua que, atenta a sua personalidade, as condições de vida, a sua conduta anterior e posterior ao crime e as respetivas circunstâncias, a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
Quanto ao pressuposto material, ou seja, quanto ao juízo de prognose favorável este tem de reportar-se ao momento em que a decisão de suspensão de execução da pena é tomada e pressupõe uma valoração conjunta de todos os elementos que tornem possível concluir que o agente irá sentir a condenação como uma solene advertência, ficando, assim, o eventual cometimento de novos crimes prevenido com a simples ameaça da prisão.
Quanto à revogação da suspensão de execução da pena estabelece o artigo 56.º do C.P o seguinte: 1–A suspensão da execução da pena de prisão é revogada sempre que, no seu decurso, o condenado: a)-Infringir grosseira ou repetidamente os deveres ou regras de conduta impostos ou o plano de reinserção social; ou b)-Cometer crime pelo qual venha a ser condenado, e revelar que as finalidades que estavam na base da suspensão não puderam, por meio dela, ser alcançadas. 2–A revogação determina o cumprimento da pena de prisão fixada na sentença, sem que o condenado possa exigir a restituição de prestações que haja efetuado.”
Daqui decorre que a decisão que determina o cumprimento da pena de prisão substituída, não constitui uma consequência imediata e automática da conduta do condenado, antes depende da constatação, após realizadas as diligências que a lei determina e aquelas que o tribunal considera adequadas, de que as finalidades punitivas que estiveram na base da aplicação da suspensão já não podem ser alcançadas através dela, frustrando-se, definitivamente, o juízo de prognose anteriormente efetuado.
No que concerne ao crime cometido no decurso da suspensão, porque a lei não distingue, ele tanto pode ser doloso, como pode ser negligente.
O artigo 56.º, n.º1, alínea b) do CP não distingue, para efeitos de revogação da suspensão, que o crime praticado no decurso do período de suspensão tenha a natureza do crime punido com a pena de substituição, sendo ainda irrelevante o tipo de pena àquele aplicada.
Como se refere o Ac. do TRL de 10-05-2022, proferido no processo nº 2755/14.6PYLSB-aL1 “Porém, o cometimento de crime não desencadeia, de forma automática, a revogação da suspensão, pois nos termos da alínea b), do n.º1, do aludido artigo 56.º, mesmo a condenação por um crime cometido no decurso do período de suspensão da execução da pena de prisão só implica a revogação da suspensão se tal facto infirmar, de modo definitivo, o juízo de prognose favorável que esteve na base da suspensão, quer dizer, se revelar que as finalidades que estavam na base da suspensão não puderam, por meio dela, ser alcançadas”.
Ou seja, partindo do caso concreto tem que se extrair que não é mais possível efetuar um juízo de prognose favorável em relação ao condenado, e que as finalidades que estiveram na base da suspensão da execução da pena estão irremediavelmente comprometidas.
Conforme refere Paulo Pinto de Albuquerque (Comentário do Código Penal, 3ª ed., pág. 317), “o critério material para decidir sobre a revogação da suspensão é exclusivamente preventivo, isto é, o tribunal deve ponderar se as finalidades preventivas que sustentaram a decisão de suspensão ainda podem ser alcançadas com a manutenção da mesma ou estão irremediavelmente prejudicadas em virtude da conduta posterior do condenado”.
Daqui decorre, sobretudo naquelas situações em que o crime cometido no período da suspensão da execução da pena corresponde a um comportamento meramente ocasional e não a um modo-de-ser do arguido, que ainda será possível concluir que as finalidades da suspensão não foram, em definitivo, comprometidas.
No caso que estamos a analisar, a revogação da suspensão de execução da pena depende da verificação da dupla condição consubstanciada no cometimento de um novo crime e que isso infirmou, de forma definitiva, o juízo de prognose favorável em que a suspensão se baseou, no sentido de que deixou de ser possível esperar, fundadamente, que no futuro o condenado se afaste da prática de outros crimes.
Este segundo elemento exige, deste modo, que em concreto e tendo por referência o momento temporal em que se toma a decisão de revogação, o cometimento do crime durante o período da suspensão é demonstrativo de que não se cumpriram as expectativas que motivaram a aplicação da suspensão de execução da pena e que esta se revela, assim, inadequada para se alcançarem as finalidades da punição, ou seja, que o arguido não volte a cometer novos crimes.
Para que o tribunal esteja em condições de concluir com segurança que não se cumpriram os objetivos procurados com a suspensão de execução da pena, terá de indagar, com vista a fundamentar a sua decisão, informações atualizadas (reportadas o mais próximo possível do momento da decisão a tomar) e em critérios preventivos reportados ao momento desta apreciação (não ao momento em que o agente cometeu o crime cuja execução da pena ficara suspensa).
Em todo o caso, a revogação surge sempre como último ratio e só terá lugar quando estiverem esgotadas ou se revelarem ineficazes as providências do art.º 55º do CP.
A revogação determina o cumprimento da pena de prisão fixada na sentença.
No caso em apreço, o arguido foi condenado, por sentença transitada em julgado em 30-9-2016, numa pena de 4 anos de prisão, suspensa na sua execução por igual período, subordinada a regime de prova.
Não restam dúvidas de que o recorrente, no período de suspensão de execução da pena, voltou a ser condenado, por decisão de 26-6-2020, transitada em julgado em 26-05-2022, por crimes de idêntica natureza, cometidos em ..., ..., agosto e outubro de 2017, na pena única de 3 anos e 4 meses de prisão, o que faz com que se mostre preenchido o pressuposto formal para a revogação da suspensão.
Assim, tendo em conta toda a informação que consta dos autos e tendo sempre por referência o momento temporal em que se toma a decisão de revogação, importa agora ponderar se os novos crimes cometidos pelo arguido, entre ..., ou seja, cerca de 2 anos após ter sido solenemente advertido pelo tribunal (em 30-1-2015), revela que a suspensão da execução da pena não teve qualquer efeito dissuasor da prática de novo crime, tendo sido definitivamente frustradas as expectativas comunitárias que assentavam na prognose de que o condenado iria conduzir futuramente a sua conduta conforme à norma e não voltaria a delinquir.
Dito de outro modo, há que avaliar se a conduta do arguido inviabilizou a satisfação das finalidades que estavam na base da pena de substituição de suspensão da execução da pena que lhe foi aplicada.
O tribunal recorrido considerou que as finalidades de prevenção especial que fundamentaram a aplicação da suspensão de execução da pena não foram alcançadas pelas seguintes razões: “Conclui-se, assim, que a simples censura de facto que estava na base da suspensão não possibilitou que se alcançassem as respetivas finalidades, tanto mais que foi condenado pela prática de crimes contra a propriedade, contra o património em geral e de falsificação, denotando uma elevada insensibilidade em relação aos bens jurídicos protegidos por normas incriminadoras e, bem assim, pelas condenações a que foi sujeito”
Porém, para chegarmos a uma conclusão segura quanto à frustração do juízo de prognose, haverá que ter em conta outros fatores, que no caso concreto constam dos autos e não foram tidos em conta na decisão recorrida.
Assim, importa averiguar o que se passou durante o período de suspensão e as razões para o sucedido.
Importa ponderar, também, a relação temporal entre a data da suspensão da execução da pena e a data em que foram praticados os novos factos, a relação entre os dois crimes praticados, a análise das circunstâncias do cometimento do novo crime, ou seja, do quadro em que o condenado voltou a delinquir e o seu impacto negativo na obtenção das finalidades que justificaram a suspensão da pena.
Importa, ainda, ponderar a evolução das condições de vida do arguido até ao momento em que foi proferida a decisão de revogação, dado que é esse o momento a ter em conta para a decisão de revogar ou não a suspensão da execução da pena.
Tendo em conta o caso concreto, sobretudo o tempo já decorrido desde o momento em que foi proferida a decisão de suspensão de execução da pena e o momento em que foi decidido proceder à sua revogação, verifica-se que já decorreram praticamente 8 anos e 9 meses, sendo que o novo crime foi cometido há cerca de 6 anos e 6 meses e o período de suspensão (4 anos) decorreu de 30/9/2016 a 30/09/2020. Há que referir, ainda, que o crime em causa nestes autos foi praticado em finais de maio de 1998.
Não há notícia que o arguido, desde janeiro a outubro 2017 (data da prática dos últimos crimes) tenha voltado a delinquir. Ora, o decurso deste período temporal, pela sua extensão, permite concluir que a prática dos dois crimes aqui em causa está relacionada com uma fase na vida do arguido, que se mostra ultrapassada, e não com um modo-de-ser do mesmo.
Há que dizer, ainda, que, pelo menos desde 26-5-2022 (data do trânsito em julgado da segunda decisão), que estavam reunidas as condições para que fosse tomada uma decisão quanto à situação processual do arguido, sendo que este atraso de 2 anos e 5 meses, para além do impacto negativo que tem na vida do arguido (sobretudo se tivermos em conta que se trata de uma pessoa de 62 anos de idade) compromete, devido à distância temporal, as próprias finalidades das penas. Há que considerar que este atraso não é imputável ao arguido, mas sim ao Estado, motivo pelo qual não poderá ser aquele a sofrer as consequências deste atraso processual.
Com efeito, desde 28-9-2022 consta nos presentes autos certidão, com nota de trânsito em julgado, do acórdão proferido no processo 5720/18.0..., o que significa que desde essa data era do conhecimento do tribunal quanto à segunda condenação. Consta, ainda, destes autos certificado de registo criminal do arguido emitido em 27-9-2022 onde está mencionada a segunda condenação e informação fornecida pelo processo nº 5720/18.0... em 14-7-2022 quanto ao trânsito em julgado do acórdão.
Há que realçar, também, que estamos essencialmente perante crimes contra o património, sendo que o arguido cumpriu, através do pagamento ao ofendido, a regra de conduta fixada na sentença como condição para suspensão de execução da pena. Esta conduta do arguido não deixa de ter relevância ao nível das finalidades da punição.
O arguido encontra-se a cumprir a pena de prisão imposta no processo 5720/18.0... no ....
Quanto à relação entre os dois crimes praticados e as circunstâncias do cometimento dos novos crimes, constata-se que estamos perante a prática de um crime de falsificação de documento, previsto e punido pelo artigo 256, n.ºs 1, alínea a) e c) e n.º 3, do Código Penal e de um crime de burla qualificada, previsto e punido pelos artigos 217, n.º 1 e 218, n.º 1, por referência ao artigo 202, alínea a), do Código Penal e de um crime de abuso de confiança, previsto e punido pelo artigo 205, n.ºs 1 e 4, do Código Penal e de um crime de falsificação ou contrafação de documento, previsto e punido pelo artigo 256, n.º 1, alínea e), do Código Penal.
Estamos, assim, perante crimes contra o património, os quais o arguido já reparou os ofendidos e crimes contra a segurança e credibilidade no tráfico jurídico probatório, sendo que, atenta a grande distância temporal entre os primeiros crimes e os segundos, cerca de 18 anos, não é possível estabelecer qualquer relação, nomeadamente para concluir que o arguido revela uma propensão para este tipo de crimes.
Foram tomadas declarações ao arguido, em ...-...-2023, para efeitos do disposto no artigo 495.º, n.º 2, do C.P.P., tendo o mesmo referido ter ressarcido os ofendidos e que se mostra arrependido.
O relatório final da DGRSP referente à suspensão da execução da pena com regime de prova, apresentado em ...-...-2021, dá conta que “CC manifestou atitude de disponibilidade nos contactos com os serviços de reinserção, pese embora tal circunstância não se tenha constituído como contentora da sua conduta na medida em que no decurso do período da suspensão o arguido registou novas sinalizações criminais junto do Sistema de Administração da Justiça Penal. Embora se desconheça a eventual tramitação do processo acima indicado, avalia-se que se do mesmo resultar condenação, o arguido não terá assim aproveitado a oportunidade de mudança que lhe foi concedida pelo Sistema de Justiça.”
Assim, os únicos elementos negativos apontados no relatório referem-se à existência de mais uma situação idêntica à que levou à presente condenação.
Conforme já vimos acima, para que se verifique a revogação da suspensão, a lei não se basta com a mera prática de um crime no período de suspensão da execução da pena, é necessário, ainda, que essa prática demonstre a frustração do juízo de prognose favorável subjacente à suspensão da execução da pena de prisão.
Neste contexto, tendo em conta todo o quadro circunstancial em que o arguido voltou a cometer o novo crime, sendo globalmente positivo o relatório da DGRSP junto aos autos, onde não se identificam, concretamente, factos que traduzam o incumprimento do regime de prova, o tempo decorrido entre a decisão que aplicou a suspensão de execução da pena e o momento atual, o momento da prática do segundo crime, o facto do período do regime de prova ter terminado em 30-09-2020, o facto de o arguido ter cumprido a condição de pagamento quanto ao prejuízo patrimonial causado e não haver notícia que o cumprimento do regime de prova não tenha produzido um efeito, afigura-se-nos não se justificar a revogação da suspensão da execução da pena, já que os factos praticados no decurso do período de suspensão, tendo em conta as circunstâncias em que foi cometido, não frustram o juízo de prognose favorável que esteve na base da dita suspensão.
Não se justifica, neste momento processual, equacionar a prorrogação da suspensão e do regime de prova, dado que esse período já terminou em ...-...-2020 e nem o tribunal a quo, nem a recorrente equacionaram essa possibilidade.
Conclui-se, deste modo, que o recurso, quanto a este segmento, merece provimento.
Face ao agora decidido fica prejudicado o conhecimento das demais questões suscitadas pelo recorrente.
IV - Decisão
Por todo o exposto, acordam os Juízes da 9.ª Secção desta Relação de Lisboa em conceder provimento ao recurso interposto pelo arguido AA revogando-se o despacho recorrido e determinando que, em seu lugar, seja declarada a extinção da pena.
Lisboa, 8 de Maio de 2025
Sem custas – artigo 513º nº 1 do CPP
Notifique
Processado por computador e revisto pelo Relator (cf. art.º 94º, nº 2, do CPP).
Lisboa, 08-05-2025
Ivo Nelson Caires B. Rosa
Rosa Maria Cardoso Saraiva
Jorge Rosas de Castro (vencido)
Voto vencido
Reconheço os méritos da fundamentação expressa no acórdão, mas não a subscrevo em parte decisiva, com o devido respeito para com os meus Exmos. Colegas. Teria confirmado o despacho recorrido.
Porquê?
Diz-nos o art. 56º, nº 1, alínea b) que «a suspensão da execução da pena de prisão é revogada sempre que, no seu decurso, o condenado (…) cometer crime pelo qual venha a ser condenado, e revelar que as finalidades que estavam na base da suspensão não puderam, por via dela, ser alcançadas.»
Não oferece dúvida, nos autos, que no decurso do período de suspensão o Arguido acabou por «cometer crime pelo qual [foi] condenado»; a questão que se põe é saber se a partir daí, e consideradas todas as circunstâncias atendíveis, pode ou não dizer-se que se frustraram as finalidades da suspensão.
É essa e não outra a questão em debate.
Vale a pena recordar o que esteve na base da suspensão da execução da pena de prisão aplicada nestes autos. Olhemos pois para o que de relevante nesta matéria consta do acórdão condenatório proferido nestes autos em 1ª Instância (intocado neste ponto pela Relação); está na pg. 40: «No caso concreto, verificando-se que o arguido apresenta já antecedentes criminais por crime de idêntica natureza, que não evidenciou qualquer interiorização do desvalor das respectivas condutas e se mostrou mesmo indiferente aos prejuízos causados, e tendo ainda presentes as conclusões do relatório social nas quais se considera que persistem os mesmos princípios e valores de conduta presentes na data dos factos e que não foram protectores do envolvimento do arguido em tais factos, tais elementos levam à partida a concluir que a reintegração social do arguido dificilmente se fará em liberdade. Não obstante, dado o lapso de tempo já decorrido desde a prática dos factos, mais de 14 anos, bem como a integração familiar e profissional do arguido, a qual sempre poderá constituir um factor de protecção de futuras condutas criminosas, querendo acreditar que a simples censura do facto e a ameaça do cumprimento da pena de prisão em que o arguido vai condenado serão suficientes para o afastar da prática da criminalidade, desde que conjugadas com regime de prova e ainda com a obrigação de ressarcimento de parte dos prejuízos causados, por forma a que o arguido interiorize devidamente o desvalor e a gravidade da sua conduta e nefastas consequências da mesma, suspender-se-á (…)».
É visível a reserva com que o Tribunal encarara o Arguido, nomeadamente (i) por ter já então uma condenação por crime de natureza idêntica, (ii) por não ter evidenciado qualquer interiorização do desvalor das suas condutas e (iii) por se ter mostrado indiferente aos prejuízos causados. Ainda assim visivelmente acreditou, face ao tempo decorrido desde a prática dos factos, que o Arguido se teria modificado e seria agora capaz, no contexto de uma suspensão da execução da pena com regime de prova e condições, não reiterar em nova prática criminosa.
Pois bem, essa expetativa tímida, mas positiva, esse juízo de prognose envolto em dúvidas, mas favorável, frustraram-se totalmente, do meu ponto de vista, já que o Arguido, logo no ano seguinte ao do trânsito em julgado da condenação, cometeu não um, mas dois novos crimes.
E de resto, olhando o enunciado dos factos dados como provados na decisão condenatória, percebe-se que estes dois novos crimes se consubstanciaram na prática de atos de resultado danoso que se alongaram por vários meses.
Mais ainda: estes novos ilícitos, seja entre si, seja em relação àqueles pelos quais fora condenado nos nossos autos, partilham de uma mesma ou similar natureza.
A circunstância de existir um grande lapso temporal entre os factos pelos quais aqui foi condenado e aqueles outros que veio a cometer durante o período de suspensão, por um lado; a circunstância, por outro lado, de os novos crimes se traduzirem em factos praticados ao longo de meses; e a circunstância, por fim, de todos os crimes terem uma mesma ou próxima natureza, tudo converge para um significado expressivo: o de que o Arguido tem uma manifesta propensão para a prática deste tipo de ilícitos.
Olhemos para outra dimensão do problema: a obrigação de indemnização, cuja satisfação foi erigida em condição da suspensão da execução da pena.
A sentença transitou em 30/09/2016; o arguido tinha 4 anos para pagar € 5.000, ou seja, até 30/09/2020.
E na verdade não cumpriu: note-se que em 15/11/2022, ou seja, já bem depois de findo o prazo de suspensão, tinha pago apenas € 700.
Parece-me claro que o pagamento que veio entretanto a fazer, apenas depois de designada data para a sua audição, teve lugar completamente a destempo e apenas porque terá percebido que estava em causa a mais do que provável revogação da suspensão. A ter existido um real e efetivo (e não meramente verbalizado) arrependimento, teria por certo adotado uma atitude pró-ativa muito mais rapidamente.
Não ignoro que os factos pelos quais o Arguido foi condenado nestes autos são muito antigos - 1998/2000; mas é preciso notar que o acórdão condenatório de 1ª instância data de 30/01/2015 e o da Relação, que o confirmou, é de 12/07/2016, transitando em julgado apenas em 30/09/2016.
A pena aplicada é a que é, devendo portanto ser cumprida; e o que nela se previu foi um período alargado de suspensão da execução, que necessariamente nos afasta ainda mais da data de cometimento dos factos. Foi o que ficou estabelecido e a que devemos obediência.
A questão primeira e principal que se nos coloca é a de saber, insista-se, se o arguido cometeu crime pelo qual veio a ser condenado e se, com isso, ficaram ou não definitivamente frustradas as finalidades que estiveram na base da medida.
Ora, pela reiteração ostensiva do seu comportamento criminoso e pelo não pagamento minimamente atempado do valor indemnizatório fixado, evidencia-se que o arguido não cumpriu com o que de mínimo se lhe exigia.
Aliás, a circunstância de o arguido ter reiterado em práticas da mesma natureza 17/19 anos depois dos primeiros factos significa que estes não ficaram substantivamente no seu passado como episódios longínquos e irrepetíveis da sua história pessoal; antes revela uma muito preocupante tendência, que aliás o acórdão condenatório havido nestes autos e a que fizemos referência de algum modo já manifestara recear.
A decisão de revogação é um pouco tardia? Sê-lo-á na verdade, mas é preciso também ter presente que o Arguido esteve entretanto um período significativo em cumprimento da pena de prisão à ordem do processo da condenação ulterior, o que significa que não esteve então verdadeiramente à prova a sua resiliência face ao universo criminoso que o trouxe aqui.
Em suma, teria confirmado o despacho recorrido.