ASSOCIAÇÃO DE DEFESA DOS CONSUMIDORES
LEGITIMIDADE PARA INTERVIR NA QUALIDADE DE ASSISTENTE
Sumário

I – Uma Associação “de defesa dos consumidores na União Europeia, seus associados e dos consumidores em geral que sejam cidadãos da União Europeia ou que sejam cidadãos de Estados terceiros residentes na União Europeia”, mesmo que conste da lista publicada no Portal das Associações de Consumidores (entre outras associações de consumidores reconhecidas em Portugal), por ter âmbito transfronteiriço, não se lhe aplicam as limitações previstas no art. 17º nº 2 da Lei nº 24/96 de 31 de julho (Lei de Defesa do Consumidor), bastando-lhe (ao abrigo do disposto no art. 52º nº 3 da CRP), para requerer a sua constituição como assistente em processo-crime cujo objeto é a prática de crime de especulação p. e p. pelo art. 35º nº 1 d) do D.L. nº 28/84 de 20 de janeiro, que cumpra os requisitos previstos no art. 3º da Lei nº 83/95 de 31 de agosto (doravante LAP).
II – E assim sendo - considerando que o bem jurídico tutelado pela norma do art. 35º do D.L. nº 28/84 de 20 de janeiro é, em primeira linha, os interesses dos consumidores, enquanto interesses coletivos - a referida Associação enquanto titular do direito de ação popular, tem legitimidade para intervir na qualidade de assistente em processo-crime pela prática de crime de especulação p. e p. pelo art. 35º nº 1 d) do D.L. nº 28/84 de 20 de janeiro – embora os interesses protegidos sejam supra-individuais - por tal direito lhe vir expressamente conferido no art. 25º da Lei nº 83/95 de 31 de agosto (LAP).

(Sumário da responsabilidade da Relatora)

Texto Integral

Processo nº 3/23.7EAPRT-A.P1

Comarca do Porto Este

Juízo de Instrução Criminal de Penafiel – ...

Acordam, em conferência, na 1ª Secção do Tribunal da Relação do Porto:

I – RELATÓRIO

No inquérito nº 3/23.7EAPRT que correu termos pelo DIAP – ..., em que é arguida “A..., S.A.”, por despacho proferido em 24/09/2024 (referência 96363118), pelo Juízo de Instrução Criminal de Penafiel – ..., do Tribunal Judicial da Comarca do Porto Este, a “Citizen`s Voice - Consumer Advocacy Association” foi admitida a intervir nos autos na qualidade de assistente.


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Inconformada, arguida “A..., S.A.” em 28/10/2024 interpôs recurso da decisão, finalizando a motivação com as seguintes conclusões (transcrição):

“I. Primeiras palavras

A) O presente recurso tem por objeto o Despacho proferido pelo Tribunal a quo, que admitiu a Citizens’ Voice a intervir na qualidade de assistente, nestes autos, para tal socorrendo-se do disposto no artigo 25.º da Lei n.º 83/95 e da circunstância de a Citizens’ Voice se afirmar como uma associação de defesa dos consumidores.

B) Sucede que, sem prejuízo de formalmente a Citizens’ Voice se afirmar como uma associação de defesa de consumidores, a mesma não cumpre a totalidade dos requisitos obrigatórios para poder legítimamente exercer o direito de representação e de ação popular, pois visa apenas o desenvolvimento de um modelo de negócio lucrativo, procurando lucros para entidades terceiras, bem como para os membros dos órgãos sociais daquela associação que estão ligados a essas entidades financiadoras.

C) Ou seja, a Citizens’ Voice não é, materialmente, uma associação de defesa dos consumidores, pois não respeita os requisitos de legitimidade ativa para o exercício do direito de representação dos consumidores, pelo que, não se pode arrogar a representação de consumidores e proclamar um propósito de tutela dos seus direitos.

II. Sobre a Citizens ’ Voice

II.1. A constituição da associação

D) A Citizens’ Voice, constituída em 14.12.2021 (cf. Doc. n.º 1 junto ao Requerimento de oposição à constituição de assistente), afirma-se como uma associação de defesa dos consumidores (cf. artigos I." e 2." dos respetivos Estatutos).

E) A associação possui os seguintes órgãos sociais: (i) Direção, presidida por AA e na qual BB assume as funções de Secretária-Geral: (ii) Assembleia-Geral; (iii) Conselho Fiscal; (iv) Conselho Científico.

II.2. O Regulamento de Admissão de Associado

F) A Citizens’ Voice possui um “Regulamento de Admissão de Associado” (Documento n.º 2 ora junto), aprovado em 15.12.2021, segundo o qual qualquer pessoa singular pode ser associada (cf. artigos 1.º e 2.º do Regulamento), sendo a respetiva admissão deliberada pela Direção da associação (cf. artigo 5." do Regulamento).

G) Existirão 2 (dois) tipos de associados da Citizens’ Voice: (i) ordinários e (ii) honorários (embora em número indeterminado e nunca esclarecido).

II.3. Os acordos de financiamento de contencioso celebrados

H) Tal como foi anunciado pelo Presidente da Citizens’ Voice, AA, na reunião da Assembleia-Geral da associação, em 25.06.2022 (cf. Doc. n.º 11 junto ao Requerimento de oposição à constituição de assistente), foram celebrados acordos de financiamento de contencioso com entidades terceiras, como a B..., Ltd. e a C..., Lda.

II.3.1. O acordo de financiamento celebrado com a B..., Ltd.

I) Em 25.02.2022, a Citizens’ Voice, representada por AA, celebrou um “contrato de cessão de créditos e de posição processual e de investimento de disputa judiciar com a B..., Ltd., representada por BB, também Secretária-Geral da Citizens’ Voice (cf. Doc. n.º 3 junto ao Requerimento de oposição à constituição de assistente), relativo à cedência de vários créditos litigiosos, no valor estimado de € 3.000.000,00 (três milhões de euros), como contrapartida pelo financiamento da Citizens’ Voice numa ação popular por esta intentada contra a D... — sendo o acordo celebrado no Mónaco e submetido à legislação e jurisdição monegascas.

J) Ao abrigo do acordo de financiamento assim celebrado, foram concedidas prerrogativas à B..., Ltd. que podem ter influência significativa nas decisões a tomar pela Citizens’ Voice, quanto a aspetos essenciais dos litígios financiados, incluindo decisões relativas a possíveis acordos de transação (como resulta dos § 3, 4, 5, 6, 7, 8 e 10 do Doc. n.º 3 junto ao Requerimento de oposição à constituição de assistente).

K) A B..., Ltd. é uma sociedade offshore sedeada no ..., um paraíso fiscal, e constituída segundo a lei desse estado, em 12.07.2017 (cf. Doc. n.º 4 junto ao Requerimento de constituição de assistente), sendo

AA, Presidente da Direção da Citizens’ Voice, também Diretor dessa offshore (cf. Doc. n.º 5 junto ao Requerimento de oposição à constituição de assistente), e tendo BB, Secretária-Geral da associação, também ligação a essa sociedade offshore, pois assinou o acordo de financiamento, em representação da B..., Ltd.

L) BB, o seu irmão, CC, e DD (irmã de AA) são sócios da E..., Lda., da qual AA é Secretário (cf. Doc. n.º 8 junto ao Requerimento de oposição à constituição de assistente) — estando essa empresa ligada à marca ...”, que publicamente se apresenta como sendo dedicada aos clientes corporativos da B..., Ltd. e cujo logotipo consta do cabeçalho do acordo de financiamento celebrado com a Citizens’ Voice.

M) AA é ainda sócio da F..., Lda. - Sociedade em Liquidação, cuja insolvência foi requerida pela B..., Ltd. (cf. Doc. n.º 8 e Doc. n.º 10 juntos ao Requerimento de oposição à constituição de assistente).

N) E AA, juntamente coni a B..., Ltd., intentou uma ação, nos Julgados de Paz de Vila Nova de Gaia, contra a D... (processo n.º 350/2019 JP).

O) A B..., Ltd. não tem qualquer histórico conhecido de atividade em matéria de financiamento de contencioso, nem qualquer ligação aos consumidores portugueses, surgindo apenas como veículo utilizado pelos associados da Citizens’ Voice para obter lucro à custa dos processos em que a associação é parte.

P) O acordo celebrado entre a Citizens’ Voice e a B..., Ltd. confirma que a associação prossegue uma atividade lucrativa, se não diretamente para si própria, pelo menos para terceiros (nomeadamente, a B..., Ltd.) e para os seus associados (atentas as incontornáveis ligações dos mesmos à B..., Ltd.).

II.3.2. O acordo de financiamento celebrado com a C..., Lda.

Q) A Citizens’ Voice também celebrou, em 11.12.2023, um acordo de financiamento de contencioso com a C..., Lda. (cf. Doc. n.º 12 junto ao Requerimento de oposição à constituição de assistente), uma sociedade que tem como sócios EE, membro do Conselho Fiscal da Citizens’ Voice, FF, Secretária da Assembleia-Geral da Citizens’ Voice, a qual é também gerente daquela sociedade, e a G... Ltd. (cf. Doc. n." 13 junto ao Requerimento de oposição à constituição de assistente).

R) A C..., Lda. é financiada, entre outros, por GG, filho de EE, atual membro do Conselho Fiscal da Citizens’ Voice, HH, residente nos Estados Unidos da America, e outros cidadãos estrangeiros residentes noutras jurisdições (cf. Doc. n.º 14 junto ao Requerimento de oposição de constituição de assistente e Documentos n.ºs 3, 4, 5, 6 e 7 ora juntos).

S) E a G... Ltd. é detida por II, associado da Citizens’ Voice (c/. Doc. n.º 11 junto ao Requerimento de oposição à constituição de assistente), estando relacionada com sociedades offshore próximas da B..., Ltd. (cf. Documentos n.º 5 a n.º 7 ora juntos).

T) No acordo assim celebrado, a C..., Lda. foi representada por FF, Secretaria da Assembleia-Geral da Citizens’ Voice.

U) Ora, não se pode admitir que uma sociedade controlada por um membro de um órgão social da Citizens’ Voice possa intervir como financiadora de um litígio que lhe poderá proporcionar uma avultada remuneração, sob pena de se pôr definitivamente em crise a transparência e a independência na relação entre a Citizens’ Voice e o financiador a que recorra, constituindo a situação em apreço conflito de interesses manifesto.

V) Das cláusulas 4.1.10, 4.1.17, 4.2, 10.1,10.5, 10.7,10.11 e 10.12 do acordo de financiamento com a C..., Lda. e nas cláusulas 5.1, 5.2, 5.3, 6.2, 7.2, 7.4, 7.5, 8.2 e 8.3 da carta de instruções da Citizens’ Voice ao escritório de advogados, anexa ao mesmo, resulta uma significativa intromissão do financiador na gestão e condução da ação, na relação da Citizens’ Voice com o seu advogado e no que toca a decisões fundamentais relativas à ação, como a de apresentar ou aceitar propostas de transação ou a de lhe pôr termo por outras razões, ao ponto de impor a intervenção de uma entidade terceira — um outro advogado por si escolhido —, a quem é facultado o acesso ao processo, apesar de não dispor de mandato forense, e que fica investido num poder que vincula a Citizens’ Voice, pelo menos para efeitos do contrato de financiamento.

W) O conflito de interesses entre a Citizens’ Voice e a C..., Lda. é tão notório que, na reunião da Assembleia-Geral daquela associação, em 06.11.2023, EE, então Vice-presidente da Direção, passou a assumir as funções de membro do Conselho Fiscal, “trocando” de posição com JJ, que transitou do Conselho Fiscal para a Direção da associação (c/. Documento n.º 1 ora junto).

X) Nessa reunião da Assembleia-Geral, EE afirmou expressamente: “Procuramos, de facto, o lucro” (cf. Documento n.º 1 ora junto).

Y) Por outro lado, o acordo de financiamento entre a Citizens’ Voice e a C..., Lda. contempla uma remuneração do financiador para além de um valor justo e proporcional, considerando a definição de Custos do Financiamento constante do anexo I ao acordo de financiamento celebrado com a C..., Lda. (cf. Doc. n.º 12 junto ao Requerimento de oposição à constituição de assistente).

Z) Os acordos de financiamento celebrados entre a Citizens’ Voice, por um lado, e a B..., Ltd. e a C..., Lda., por outro, pretendem ser financiamento “hands-on”, no que respeita ao acesso ao processo, ao direito à informação, ao controlo da escolha dos mandatários, à possibilidade de celebração de acordos, à discussão prévia de certas decisões, à derrogação do sigilo, entre outros, com o risco notório de situações de conflitos de interesses.

AA) Aqui chegados, fica clara a lógica subjacente à profusão de dezenas de ações populares intentadas pela Citizens* Voice: sendo essas ações julgadas procedentes, parte significativa dos consumidores (alegadamente) representados não reclamarão a sua quota parte da indemnização (porque é precisamente isso que ocorre nas ações populares, como diversos estudos internacionais demonstram) e possa, assim, haver lugar à afetação da indemnização não reclamada ao pagamento de quantias a título de encargos, honorários e despesas aos financiadores, eles próprios ligados à Citizens’ Voice e aos seus associados e membros dos órgãos.

BB) Não são, por conseguinte, ações populares que visem a defesa dos direitos dos consumidores, mas sim a obtenção de lucro ilegítimo para entidades terceiras, como a B..., Ltd. e a C..., Lda. — o que poderá explicar a rapidez com que a multiplicidade de ações intentadas pela Citizens’ Voice começou, escassos dias após a sua constituição (como sucedeu com a ação n.” 22640/18.1T8LSB, na qual a associação requereu a sua intervenção 7 dias após a sua constituição).

CC) E, embora a Citizens’ Voice se afirme defensora dos direitos dos consumidores, a verdade é que são os interesses pessoais de AA, Presidente da respetiva Direção, ou de pessoas próximas de si, que são apresentados como interesses dos consumidores, como sucedeu com a ação popular n.º 7267/22.1T8BRG (Tribunal Judicial da Comarca de Braga — Juízo Central Cível de Braga — J4), que teve por base a compra, por parte de AA, de uma embalagem de limões e que conduziu à dedução de um pedido indemnizatório de € 4.000.000,00 (quatro milhões de euros) — cf. Documento n.º 8 ora junto.

II.4. Outros factos relevantes

DD) Surpreende que, como resulta da ata da reunião da Assembleia-Geral da Citizens’ Voice de 25.06.2022 (cf. Doc. n.º 11 junto ao Requerimento de oposição à constituição de assistente), a Citizens’ Voice tenha deliberado contratar: (i) a H..., Ltd.; (ii) a I...; e (iii) a J..., Lda.

EE) A H..., Ltd. é uma sociedade comercial com instalações em ..., Londres e ... que se apresenta como um grupo de veteranos das unidades de elite de inteligência israelita, especialistas na preparação de soluções customizadas para negócios complexos e litígios, que se dedica à obtenção de informações e à análise das mesmas, fornecendo esses dados aos seus clientes — existindo notícias que apontam que o respetivo “CEO” é suspeito de liderar uma organização criminosa, segundo investigação conduzida por autoridades romenas.

FF) A I... Ltd., com sede em Londres, dedica-se a consultoria para “projetos especiais”, à pesquisa, definição de estratégia e à proposta de soluções de comunicação para outras empresas e entidades governamentais, tendo como clientes clubes da primeira liga de futebol inglesa, a NATO e a Shell — o que permite antecipar que os valores cobrados pelos serviços prestados serão elevadíssimos.

GG) A J..., Lda. corresponde a uma agência de relações públicas, que oferece um departamento de comunicação externo às empresas e marcas que necessitem aumentar a respetiva visibilidade, reputação e influência, prestando ainda serviços de marketing e publicidade — não se compreendendo por que motivo uma associação de defesa dos consumidores necessita de uma entidade que presta serviços de marketing e publicidade.

HH) Por outro lado, a Citizens’ Voice apenas possui uma conta bancária aberta num banco, na Bélgica, não tendo sequer apresentado, em 2022, quaisquer movimentos contabilísticos (cf. Doc. n.º 15 junto ao Requerimento de oposição à constituição de assistente).

II) Existe ainda um paralelismo entre a Citizens’ Voice e a atuação dos seus associados, sobretudo AA — bastando notar que AA, juntamente com os seus familiares, intentou, pelo menos, 9 (nove) ações contra diferentes entidades, ou que, após propositura de ação popular pela Citizens’ Voice contra a ora Recorrente, AA declarou excluir-se dessa ação e, no dia seguinte, apresentou petição inicial, no Julgado de Paz de Vila Nova de Gaia, contra a Recorrente (cf. Doc. N.ºs 17, 18, 19, 20 e 21 juntos ao Requerimento de oposição à constituição de assistente).

II.5. As associações de defesa de consumidores e o direito de ação popular

JJ) As associações assentam num substrato de índole pessoal e prosseguem um fim necessariamente não lucrativo, podendo o mesmo ser altruístico ou egoístico — conquanto se trate de um fim de utilidade pública.

KK) Resulta do princípio da tipicidade legal da ação popular, consagrado no artigo 52.º, n.º 3, da CRP, que o direito de ação popular só está reconhecido nos casos e nos termos em que tal se encontre tipificado em legislação ordinária, assim remetendo para: (i) a Lei n.º 83/95 (“LAP”), em especial os artigos 1.º, 2.º, n.º 1, e 3.º; (ii) a Lei n.º 24/96 (“LDC”), em especial o artigo 17.º; e (iii) o Decreto-Lei n.º 114-A/2023, sobretudo os artigos 2.º, n.º 2, 6.º e 10.º

LL) Da análise conjugada desses 3 (três) diploma legais resulta que os requisitos de legitimidade ativa das associações de consumidores, de verificação cumulativa e obrigatória, são os seguintes:

a) Terem personalidade jurídica (cf. artigo 3.º da LAP, artigo 17.º da LDC e artigo 6.º do Decreto-Lei n.º 114-A/2023);

b) Terem pelo menos 3.000 (três mil), 500 (quinhentos) ou 100 (cem) associados, consoante pretendam ter âmbito nacional, regional ou local, respetivamente (cf. artigo 17.º, n.º 2, da LDC);

c) Terem os seus órgãos livremente eleitos pelo voto universal e secreto de todos os seus associados (cf. artigo 17.º, n.º 3, da LDC);

d) Não prosseguirem fins lucrativos (cf. artigo 17.º, n.º 1, da LDC);

e) Serem independentes (designadamente, serem responsáveis, a título exclusivo, por tomar as decisões de intentar, desistir ou transacionar no âmbito de uma ação coletiva) e não influenciadas por pessoas que não sejam consumidores, em especial profissionais, que tenham um interesse económico em intentar uma ação coletiva, designadamente no caso de financiamento por terceiros, e adotarem procedimentos

para impedir a sua influência, bem como para impedir conflitos de interesses entre si, os seus financiadores e os interesses dos consumidores (cf. artigo 6.º, n.º 1, alínea d), do Decreto-Lei n.º 114-A/2023);

f) Não exercerem qualquer tipo de atividade profissional concorrente com empresas ou profissionais liberais (cf. artigo 3.º da LAP e artigo 6.º do Decreto-Lei n.º 114-A/2023);

g) Ter como objetivo principal a proteção dos direitos e os interesses dos consumidores em geral ou dos consumidores seus associados (cf. artigo 17.º, n.º 1, da LDC);

h) Incluírem expressamente, nas suas atribuições ou nos seus objetivos estatutários, a defesa dos interesses em causa no tipo de ação de que se trate (cf. artigo 3.º da LAP).

MM) A Citizens’ Voice não cumpre todos estes requisitos para que possa ser considerada uma associação de defesa de consumidores.

II.6. Os requisitos de legitimidade ativa das associações de consumidores não respeitados pela Citizens' Voice

II.6.1. A ausência de número mínimo de associados

NN) A Citizens’ Voice nunca fez referência, e muito menos demonstrou, o número exato de associados que possui.

OO) À data da sua constituição, a Citizens’ Voice tinha apenas 2 (dois) associados; na reunião da sua Assembleia-Geral de 15.12.2021, somava um total de 10 (dez) associados, incluindo aqueles dois fundadores (cf. Doc. n.º 2 junto ao Requerimento de oposição à constituição de assistente); em reunião do mesmo órgão, em 06.11.2023, estavam presentes 8 (oito) associados (cf. Documento n.º 1 ora junto); e, em 23.08.2024, somente 6 (seis) associados (cf. Documento n.º 9 ora junto).

PP) A Citizens’ Voice não consta da lista das associações de consumidores disponível no site da Direcção-Geral do Consumidor.

QQ) Ora, não comprovando que tem o número mínimo de associados exigível, a Citizens’ Voice não goza de quaisquer direitos conferidos às associações de defesa dos consumidores — sendo que o número mínimo de associados, além de ser um requisito de verificação obrigatória, procura assegurar um substrato de representatividade geográfica do universo potencial de consumidores.

II.6.2. A ausência de órgãos livremente eleitos por voto universal e secreto de todos os seus associados

RR) A exigência de eleição livre dos órgãos sociais, por voto universal e secreto, nas associações de defesa de consumidores, visa garantir democraticidade interna à organização, assegurando a convergência entre os fins da associação e a vontade dos respetivos membros —- pressupondo, a montante, a inexistência de constrangimentos ou de controlo quanto à admissão de associados (o que não sucede, na prática, pois, como resulta da ata da reunião da Assembleia-Geral de 06.11.2023, “o processo de admissão está centralizado numa avaliação” feita pelo Presidente, AA — cf. Documento n." 1 ora junto).

SS) Os órgãos sociais da Citizens’ Voice, em violação do artigo 17.º, n.º 3, da LDC, não foram eleitos por voto secreto de todos os associados, como resulta da ata da reunião da Assembleia-Geral de 15.12.2021, onde se refere: “cada associado ter dito o seu sentido de voto” (cf. Doc. n.º 2 junto ao Requerimento de oposição à constituição de assistente).

II.6.3. A prossecução de fins lucrativos, a ausência de proteção dos direitos e interesses dos consumidores e a ausência de independência e de influência de não consumidores

TT) Tendo em conta os acordos de financiamento de contencioso celebrados entre a Citizens’ Voice e entidades terceiras, como a B..., Ltd. e a C..., Lda., conclui-se que esta associação não é independente, antes sendo influenciada, na sua atuação, por certas pessoas que não são consumidores típicos, em especial profissionais, com um interesse económico em intentar ações coletivas, nomeadamente contra a Recorrente.

UU) Ou seja, a Citizens’ Voice não possui como “objetivo principar a proteção dos direitos e os interesses dos consumidores, em geral, ou dos seus associados, surgindo a defesa dos consumidores como meramente instrumental face àquela ilícita finalidade — assim exercendo a associação uma atividade profissional concorrente com empresas ou profissionais liberais e servindo de veículo para gerar lucro para terceiros, em particular as entidades B... Ltd. e C..., Lda., e os membros dos seus órgãos e associados ligados a essas entidades financiadoras.

VV) Os acordos de financiamento anteriormente descritos não asseguram a ausência de conflitos de interesses nem a independência da associação, pois são ali estabelecidas condições que representam a atribuição de direitos e poderes ao financiador e a assunção de obrigações pela Citizens’ Voice que se encontram em flagrante violação do artigo 17.º, n.º 1, da LDC, e do artigo 6.º, n.º 1, alínea c), do Decreto-Lei n.º 114-A/2023.

WW) A informação e documentação constantes dos autos permitem concluir o seguinte:

a) A Citizens’ Voice não tem nenhum histórico efetivo na defesa dos consumidores;

b) A Citizens’ Voice prossegue a defesa de alegados interesses difusos/interesses individuais homogéneos como uma atividade empresarial, funcionando como um veículo de angariação de lucros, para os seus membros e para terceiros, tendo, por conseguinte, fins lucrativos;

c) A personalidade jurídica da Citizens’ Voice e os interesses por esta prosseguidos confundem-se com a personalidade jurídica e os interesses dos seus fundadores e até dos seus financiadores B... Ltd. E C...;

d) A B... Ltd. E a C... (que financiaram a Citizens’ Voice noutras ações) têm ligações significativas com os associados da Citizens’ Voice;

e) Verifica-se um manifesto conflito de interesses, senão efetivo, seguramente potencial, entre os interesses dos associados, do mandatário e porventura do seu financiador, e os interesses e direitos dos consumidores alegadamente representados pela Citizens’ Voice, o que é revelador de que a representação exercida pela Citizens’ Voice não é adequada, não estando demonstrado que a Citizens’ Voice tenha como objetivo principal a proteção dos direitos e os interesses dos consumidores.

XX) Tudo isto é consentâneo com a circunstância de, desde a sua constituição, a Citizens’ Voice ter intentado largas dezenas de ações populares, litigando de forma empresarial, deduzindo pedidos que somam centenas de milhões de euros.

YY) E, por isso, inequívoco que. Por incumprir vários requisitos de verificação obrigatória para esse efeito, a Citizens’ Voice não pode ser qualificada, materialmente, como uma associação de defesa dos consumidores.

III. O caso concreto dos autos

III.1. Sobre o conceito de assistente

ZZ) Independentemente da controvérsia existente sobre uma interpretação mais restritiva ou não do conceito de ofendido para efeitos de constituição de assistente, nos termos dos artigos 68.º, n.º 1, alínea a), do CPP e 113.º, n.º 1, do CP. sempre se exigirá que quem requer a sua constituição como assistente corporize, de forma mais ou menos imediata, os interesses tutelados pela norma incriminadora que esteja em causa, no respetivo processo-crime.

AAA) Intervir como assistente, em processo penal, exige uma participação ativa no decurso do processo, na lógica de coadjuvação ao Ministério Público, no cumprimento das suas atribuições constitucionais e legais.

BBB) A apresentação de um requerimento para constituição de um sujeito jurídico como assistente não pode conduzir a uma decisão quase automática de deferimento, antes exigindo uma aferição cuidada dos interesses tutelados pela norma incriminadora e de como pode o pretenso ofendido corporizar ou representar esses interesses que terão sido ofendidos — sobretudo se estiver em causa crime que tutele interesses difusos (como sucedeu com decisões jurisprudenciais que decidiram rejeitar a qualidade de assistente à Liga dos Bombeiros Portugueses, no processo n.º 272/17.1JACBR-O.C1, à Santa Casa da Misericórdia, no processo n.º 132/08.7TAMNC-A.G2, e à Ordem dos Advogados).

III.2. A manifesta ilegitimidade da Citizens' Voice para intervir, nos autos, como assistente

CCC) No inquérito destes autos, investiga-se a alegada prática de um crime de especulação, p. e p. pelo artigo 35.“ do Decreto-Lei n.u 28/84, de 20 de janeiro, que tutela a estabilidade dos preços e o controlo dos preços pelo Estado, enquanto instrumento de intervenção numa economia de mercado regulada — daí ser um crime de perigo abstrato, pois o controlo da estabilidade dos preços não pode ser violado por ações individuais, mas apenas colocado em perigo (daí também a inserção sistemática deste tipo legal de crime, no Decreto-Lei n.º 28/84).

DDD) A estabilidade dos preços constitui um interesse próprio do setor económico e do regular funcionamento da economia, não sendo titulado por sujeitos jurídicos individualizados e não correspondendo a qualquer proteção dos direitos e interesses dos consumidores — daí que, mesmo que se admitisse, por mera hipótese, que a Citizens’ Voice seria unia associação de defesa de consumidores, não possuiria legitimidade para intervir, nos autos, como assistente.

EEE) Visando o tipo legal de crime de especulação tutelar a estabilidade dos preços, no contexto mais alargado do regular e normal funcionamento do sistema económico, sempre estaremos perante alegados comportamentos que extravasam o escopo que a Citizens' Voice declara ter adotado e as finalidades que se propõe seguir, ou seja, uma putativa defesa dos direitos e interesses dos consumidores.

FFF) Por outro lado, mesmo considerando o disposto no artigo 25.º da LAP, norma mobilizada pelo Despacho recorrido para deferir a requerida constituição de assistente, a legitimidade aí reconhecida pressupõe, a montante, que estejam em causa factos que possam consubstanciar ofensas de interesses titulados pelos consumidores, o que não sucederá com um processo-crime em que se investiga a alegada prática de crime de especulação.

GGG) Logo, nunca terá aplicação in casu o disposto no artigo 25.º da LAP.

HHH) Ademais, mesmo que assim não fosse, sempre se imporia que a Citizens’ Voice se pudesse afirmar como uma verdadeira associação de defesa de consumidores, o que não sucede, na verdade, pois:

a) A Citizens’ Voice, que nunca divulgou o número exato de associados que possui, constitui mero veículo para obtenção de lucro para si e para terceiros, em particular de entidades que são detidas e/ ou controladas pelos associados e membros dos órgãos sociais da própria associação, num manifesto conflito de interesses; é uma associação que não possui conta bancária em Portugal;

b) A Citizens’ Voice celebra acordos de financiamento com entidades offshore, como a B..., Ltd., ou com entidades detidas por membros e/ou familiares de associados da própria Citizens’ Voice, ao ponto de um Vice-presidente da Direção ter abandonado funções e transitado para as funções de vogal do respetivo Conselho Fiscal, reconhecendo a existência de conflito de interesses e proclamando, sem escolhos, que prosseguem o lucro, sendo que também o seu filho financia aquela entidade terceira com quem a associação celebrou um acordo, como a C..., Lda.;

c) Com a celebração desses acordos de financiamento, a Citizens’ Voice perde independência, bem como o respetivo mandatário judicial, na condução da estratégia processual e ao longo da tramitação da ação popular;

d) Na sua atuação, os interesses dos consumidores supostamente representados pela Citizens’ Voice correspondem apenas aos interesses do seu Presidente, AA, e outras pessoas consigo relacionadas, os quais agem como agent provocateur de situações que, escassas horas ou dias depois, conduzem à propositura de novas ações populares contra intervenientes relevantes, no mercado nacional;

e) A Citizens’ Voice deliberou contratar os serviços de empresas estrangeiras conhecidas por cobrarem elevadíssimos honorários, tendo uma delas ligações aos serviços de inteligência israelitas.

III) Por tudo isto, a Citizens’ Voice não constitui uma associação de defesa de consumidores, antes um veículo para a obtenção de lucro, pelo que não pode arrogar-se a faculdade reconhecida pelo artigo 25." da LAP, na medida em que não visa proteger os direitos e interesses dos consumidores.

JJJ) Só revertendo o Despacho recorrido é que se poderá obstaculizar que também o processo penal seja instrumentalizado pela Citizens’ Voice, como sucede com as largas dezenas de ações populares intentadas por essas associação, em manifesto abuso de direito de ação e litigância de má fé. Nestes termos e no mais de Direito aplicável, deve o Despacho recorrido, que admitiu a intervenção, nos autos, da Citizens’ Voice - Consumer Advocacy Association, na qualidade de assistente, ser revogado e substituído por outro que retire a qualidade de assistente à Citizens’ Voice - Consumer Advocacy Association,

Por assim ser de Justiça! “.


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Em 30/10/2024 o recurso foi admitido (referência 96763833).

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A assistente “Citizen`s Voice – Consumer Advocacy Association” apresentou resposta em 15/11/2024, que concluiu nos seguintes termos (transcrição):

“1. A presente reposta tem como objeto o recurso da arguida relativamente à admissão da associação de defesa de consumidores CITIZENS’ VOICE – CONSUMER ADVOCACY ASSOCIATION, como assistente no presente processo, em representação da classe de lesados pelo comportamento ilícito e de carácter criminal imputado à arguida.

2. Legitimidade da Associação Assistente: a legitimidade da associação assistente encontra-se amplamente respaldada pelo ordenamento jurídico nacional, em especial nos artigos 52 (3), da Constituição da República Portuguesa e 25 (1) da lei 83/95, de 31 de agosto, que regulam o direito de ação popular e a intervenção de associações representativas dos interesses dos consumidores no exercício da ação penal.

3. Inexistência de Obstáculos à Intervenção da Assistente: não se verificam quaisquer factos impeditivos ao exercício do direito de intervenção da CITIZENS’ VOICE – CONSUMER ADVOCACY ASSOCIATION, sendo irrelevantes as alegações da arguida quanto à suposta divergência entre os fins estatutários da associação e a causa em apreço. Tal entendimento encontra-se pacificado na jurisprudência nacional, nomeadamente no douto e belíssimo acórdão do Venerando Tribunal da Relação de Guimarães, de 31.10.2024, processo 5193/23.6T8GMR-B.G1.

4. O recurso da arguida é manifestamente infundado, prolixo e centrado em argumentos fictícios, com 114 páginas recheadas de narrativas irrelevantes, ataques ad hominem e especulações desprovidas de fundamento jurídico. Tal conduta configura uma tentativa de entorpecer a ação da justiça, preenchendo os requisitos da litigância de má-fé descritos no artigo 542(2), do CPC, embora o instituto não seja aplicável em processo penal, deverá ser aplicada a taxa sancionatória excecional pelas razões infra.

5. Aplicação de Taxa Sancionatória Excecional: atenta à conduta processual abusiva da arguida, que desrespeita o princípio da cooperação processual, é justificável a aplicação de uma taxa sancionatória excecional, ao abrigo do artigo 531 do CPC, aplicável por força do artigo 521 do CPP.

§8. Pedido

Termos ex vi supra e nos demais de direito, que Vossas Excelências, Venerandos(as) Juízes(as) Desembargadores(as) doutamente supriram, deve o recurso interposto pela arguida ser julgado

totalmente improcedente, confirmando-se a decisão de admissão da CITIZENS’ VOICE – CONSUMER ADVOCACY ASSOCIATION como assistente nos presentes autos. Deve ainda ser aplicada uma taxa sancionatória excecional, em face da conduta processual abusiva da arguida.

Fazendo-o, Vossas Excelências, Venerandos(as) Juízes(as) Desembargadores(as), fareis o que vos é costumado e próprio do Vosso múnus “.


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Também o Ministério Público apresentou resposta em 04/12/2024, pugnando pela improcedência do recurso, concluindo nos seguintes termos (transcrição):

“1) Nos autos de inquérito n.º 3/23.7EAPRT que correm os seus termos no Departamento de Investigação e Ação Penal - ..., no qual se investigam factos suscetíveis de consubstanciar a eventual prática de um crime de especulação, a Associação "Citizens’ Voice - Consumer Advocacy Association" veio requer a sua constituição como assistente o que fez nos termos e com os fundamentos reproduzidos em local próprio;

2) Conforme resulta do despacho de fls. 7 (Referência Citius 65555603) o Ministério Público determinou que os autos fossem remetidos ao (à) Meritíssimo (a) Juiz (Juíza) de Instrução Criminal para apreciação e decisão de tal requerimento, e pronunciou-se no sentido de nada ter a opor ao requerido.

3) Por despacho de fls. 8 (Referência Citius 96152794) foi determinado pela Meritíssima Srª Juíza de Instrução Criminal o cumprimento do disposto no artigo 68.º. n.º 4, do C.P.P. relativamente à ora Recorrente.

4) A ora Recorrente veio requerer o alargamento do prazo para se pronunciar, o que foi indeferido nos termos e com os fundamentos que constam do despacho de fls. 9/10 referência Citius 96363118) ora recorrido;

5) No mesmo despacho foi admitida a intervir nos autos como assistente a Associação "Citizens’ Voice - Consumer Advocacy Association";

6) Inconformada com tal despacho veio a ora Recorrente interpor o presente recurso, cuja motivação se encontra a fls. 12 a 65, e aqui damos por integralmente reproduzida por economia processual para todos os legais efeitos.

7) Analisadas as conclusões de recurso que se encontram a fls. 57 (verso) a 65 constatamos que a única questão a decidir é se foi. ou não, correta a decisão de admitir a Associação "'Citizens’ Voice - Consumer Advocacy Association" a intervir nos presentes autos na qualidade de assistente.

8) A questão da legitimidade (ou ilegitimidade) ativa da Associação “Citizens’ Voice - Consumer Advocacy Association” para instaurar ação popular em situações análogas às dos presentes autos já foi

apreciada, para àlém de outros, no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 07/10/2024 - Processo 17706/22.6T8PRT.P1 (consultável in www.dgsi.pt) cujo sumário é o seguinte:

I - O Direito de ação popular consagrado constitucionalmente (cfr. nº3. do art. 52º, da CRP) e, especificamente. regulado na lei ordinária (v. Lei nº 83/95, de 31/8), é conferido a todos (pessoalmente ou através de associações de defesa dos interesses em causa) - cfr. referido nº3, do art. 52º. da CRP. e nºL do art. 2o, da referida Lei.

II - E para uma associação (de consumidores ou não) ter legitimidade para propor ação popular na área do consumo, basta a verificação dos, específicos, requisitos previstos no art. 3 º, da Lei nº 83/95. de 31 de maio (cfr. remissão efetuada pela al. b), do art. 13º, da Lei de defesa do consumidor - Lei nº 24/96. de 31/7) sendo eles: i) estar dotada de personalidade jurídica: ii) incluírem expressamente nas suas atribuições ou nos seus objetivos estatutários a defesa dos interesses em causa no tipo de ação de que se trate e, por isso, sem fim lucrativo: iü) não exercerem qualquer tipo de atividade profissional concorrente com empresas ou profissionais liberais.

III - Não se encontrando estatuído na Lei de defesa do consumidor nem na Lei da Ação Popular qualquer outro requisito condicionador da legitimidade. não pode o aplicador da lei impô~lo.

Em síntese apertada o suprarreferido douto Acórdão revogou a decisão do Tribunal “a quo” que havia julgado procedente uma alegada exceção dilatória da ilegitimidade ativa da ali autora Associação “Citizens’ Voice - Consumer Advocacy Association” e. em consequência, havia absolvido a ali Ré da instância, e julgou ser a autora dotada de legitimidade ativa para a propositura de ação popular pelo que determinou o prosseguimento dos referidos autos.

Pelo exposto e porque "Nos termos do disposto no art. º 25. º, da Lei 83/95, de 31 de Agosto, "aos titulares do direito de acção popular e reconhecido o direito de denúncia, queixa ou participação ao Ministério Público por violação dos interesses previstos no artigo 1º que revistam natureza penal, bem como o de se constituírem assistentes no respectivo processo, nos termos previstos nos artigos 68. º, 69. º e 70. º do Código de Processo Penal. ” é nosso entendimento que foi correta a decisão recorrida quanto à admissão da Associação “Citizens’ Voice - Consumer Advocacy Association” a intervir nos presentes autos como assistente.

9) Não se mostram violados os normativos legais referidos pela Recorrente nem quaisquer outros que cumpra conhecer.

Termos em que, entendemos que a decisão recorrida não merece censura e deve ser mantida, negando-se provimento ao recurso “.


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A arguida “A..., S.A.”, notificada da resposta ao recurso apresentada por “Citizen`s Voice - Consumer Advocacy Association” veio, em 08/01/2025,

responder ao segmento em que por esta foi deduzido pedido de aplicação de taxa sancionatória excecional à recorrente (A...), alegando que ao impugnar o despacho de admissão de constituição de assistente apenas exerceu um direito que lhe assiste e, consequentemente, a sua conduta nunca poderá representar um ato processual de má fé, concluindo pela improcedência do pedido de condenação em taxa sancionatória excecional.


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Inexiste despacho de sustentação do despacho recorrido.

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Neste Tribunal da Relação, a Exmª Procuradora-Geral Adjunta, em 01/01/2025, emitiu parecer no qual, aderindo à resposta do Ministério Público, pronunciou-se no sentido do não provimento do recurso, referindo em síntese que: “Conforme dispõe o artigo 68º nº 2 do CPP «1 - Podem constituir-se assistentes no processo penal, além das pessoas e entidades a quem leis especiais conferirem esse direito:

a) Os ofendidos, considerando-se como tais os titulares dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação, desde que maiores de 16 anos;

b) As pessoas de cuja queixa ou acusação particular depender o procedimento;

c) No caso de o ofendido morrer sem ter renunciado à queixa, o cônjuge sobrevivo não separado judicialmente de pessoas e bens ou a pessoa, de outro ou do mesmo sexo, que com o ofendido vivesse em condições análogas às dos cônjuges, os descendentes e adoptados, ascendentes e adoptantes, ou, na falta deles, irmãos e seus descendentes, salvo se alguma destas pessoas houver comparticipado no crime;

d) No caso de o ofendido ser menor de 16 anos ou por outro motivo incapaz, o representante legal e, na sua falta, as pessoas indicadas na alínea anterior, segundo a ordem aí referida, ou, na ausência dos demais, a entidade ou instituição com responsabilidades de protecção, tutelares ou educativas, quando o mesmo tenha sido judicialmente confiado à sua responsabilidade ou guarda, salvo se alguma delas houver auxiliado ou comparticipado no crime;

e) Qualquer pessoa nos crimes contra a paz e a humanidade, bem como nos crimes de tráfico de influência, favorecimento pessoal praticado por funcionário, denegação de justiça, prevaricação, recebimento ou oferta indevidos de vantagem, corrupção, peculato,

participação económica em negócio, abuso de poder e de fraude na obtenção ou desvio de subsídio ou subvenção.

Por sua vez, na Lei nº 83/95 de 31-8, dispõe o artigo 25º que « Aos titulares do direito de acção popular é reconhecido o direito de denúncia, queixa ou participação ao Ministério Público por violação dos interesses previstos no artigo 1.º que revistam natureza penal, bem como o de se constituírem assistentes no respectivo processo, nos termos previstos nos artigos 68.º, 69.º e 70.º do Código de Processo Penal».

Ora, a propósito da legitimidade dos titulares da acção popular dispõe desde logo a CRP no seu artigo 52.º que «1. Todos os cidadãos têm o direito de apresentar, individual ou colectivamente, aos órgãos de soberania, aos órgãos de governo próprio das regiões autónomas ou a quaisquer autoridades petições, representações, reclamações ou queixas para defesa dos seus direitos, da Constituição, das leis ou do interesse geral e, bem assim, o direito de serem informados, em prazo razoável, sobre o resultado da respectiva apreciação. 2. A lei fixa as condições em que as petições apresentadas colectivamente à Assembleia da República e às Assembleias Legislativas das regiões autónomas são apreciadas em reunião plenária. 3. É conferido a todos, pessoalmente ou através de associações de defesa dos interesses em causa, o direito de acção popular nos casos e termos previstos na lei, incluindo o direito de requerer para o lesado ou lesados a correspondente indemnização, nomeadamente para:

a) Promover a prevenção, a cessação ou a perseguição judicial das infracções contra a saúde pública, os direitos dos consumidores, a qualidade de vida e a preservação do ambiente e do património cultural;

b) Assegurar a defesa dos bens do Estado, das regiões autónomas e das autarquias locais».

E nessa medida prevê a Lei n.º 24/96 de 31-7 no seu artigo 13.º) que «Têm legitimidade para intentar as ações previstas nos artigos anteriores: a) Os consumidores diretamente lesados; b) Os consumidores e as associações de consumidores ainda que não diretamente lesados, nos termos da Lei n.º 83/95, de 31 de agosto; c) O Ministério Público e a Direção-Geral do Consumidor quando estejam em causa interesses individuais homogéneos, coletivos ou difusos.

Na conjugação de tais normativos resulta que o legislador conferiu, desde logo, na sua Lei fundamental que existem interesses de caracter difuso- abrangendo não uma pessoa em concreto mas um grupo de pessoas ou colectividade- que pela sua relevância e pelas suas possíveis consequências, têm de ser defendidos de modo mais abrangente e de modo a uma fiscalização mais efectiva.

Em causa na investigação em curso está um crime de especulação, de natureza pública, previsto e punido no artigo 35º da Lei n.º 28/84 de 20 de Janeiro.

Conforme se refere, por exemplo, no acórdão do STJ de 2-2-2011, o bem jurídico defendido no tipo legal de especulação abrange a necessidade de protecção dos direitos dos consumidores, consumidores, «O crime de especulação visa proteger a estabilidade dos preços, enquanto bem jurídico projectado numa pluralidade de interesses: economia nacional, concorrência, direitos dos consumidores».

Ora, no que diz respeito à figura e papel do assistente, refere-se, nomeadamente, no acórdão do STJ de 12-7-2005,

1 – No nosso ordenamento, o exercício da acção penal foi confiado a um órgão de Estado - ao Ministério Público, pela forma especificada nos referidos dispositivos do Código de Processo Penal, de acordo com a concepção de que o jus puniendi e o correlativo jus procedendi são de interesse eminentemente público. 2 – Mas não se esqueceu que para a protecção da vítima deve conferir-se-lhe voz autónoma nível do processo penal de forma a permitir-lhe uma acção conformadora do sentido da decisão final: o assistente. 3 – Do estatuto de assistente destacam-se, pois, a sua qualificação como sujeito processual, mesmo quando se trate de processos por crimes públicos e os poderes processuais alargados que lhe são conferidos, nomeadamente o direito de recurso relativamente a todos os tipos de crimes. 4 – Podem constituir-se assistentes: – as pessoas e entidades a quem leis especiais conferirem esse direito; – qualquer pessoa em determinados crimes expressamente indicados; – as pessoas de cuja queixa ou acusação particular depender o procedimento; – os representantes do ofendido falecido, não renunciante, incapaz ou menor de 16 anos; e – os ofendidos, maiores de 16 anos, considerando-se como tais os titulares dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação. 5 – Os titulares dos interesses que a lei penal tem especialmente por fim proteger quando previu e puniu a infracção e que esta ofendeu ou pôs em perigo, são as partes particularmente ofendidas, ou directamente ofendidas e que, por isso, se podem constituir acusadores. 6 – O vocábulo "especialmente" usado pela Lei, significa, pois, de modo especial, num sentido de "particular" e não "exclusivo", adoptando aquela o conceito estrito, imediato ou típico de ofendido. 7 – A legitimidade do ofendido deve ser aferida em relação ao crime específico que estiver em causa, designadamente em caso de concurso de infracções, em que se pode ser ofendido por um só dos crimes, devendo atender-se ao Código Penal, à sistemática da sua Parte Especial, e, em especial, interpretar o tipo incriminador em causa em ordem a determinar caso a caso se há uma pessoa concreta cujos interesses são protegidos com essa incriminação e não confundir essa indagação com a constatação da natureza pública ou não pública do crime. 8 – Só caso a caso, e perante o tipo incriminador, se

poderá afirmar, em última análise, se é admissível a constituição de assistente. E esta análise do tipo legal interessado deve ter presente que a circunstância de ser aí protegido um interesse de ordem pública não afasta, sem mais, a possibilidade de, ao mesmo tempo, ser também imediatamente protegido um interesse susceptível de ser corporizado num concreto portador, assim se afirmando a legitimidade material do ofendido para se constituir assistente, pois os preceitos penais podem reconduzir-se à protecção de um ou vários bens jurídicos.

E no que diz respeito ao alargamento da legitimidade para intervir como assistente no processo penal aos titulares da defesa de interesses difusos, veja-se ainda o acórdão de 18-11-2015 do TRC,

1. O princípio geral estabelecido é o de que pode constituir-se assistente o ofendido, entendido como titular do interesse que a lei especialmente quis proteger com a incriminação, desde que maior de 16 anos (art. 68º, nº 1, a) do C. Processo Penal). Podemos ainda incluir neste princípio geral, as situações semelhantes previstas b), c) e d) do n.º 1 do art. 68.º do CPP.

2. Adoptando depois um conceito lato de ofendido, a lei prevê outras duas situações. Assim, confere legitimidade para se constituírem assistentes às pessoas e entidades a quem normas especiais atribuam essa faculdade (corpo do n.º 1 do art. 68.º do CPP). E, finalmente, atribui legitimidade para se constituir assistente a qualquer pessoa quando o procedimento criminal tenha por objecto crimes contra a paz e a humanidade, tráfico de influência, favorecimento pessoal praticado por funcionário, denegação de justiça, prevaricação, corrupção, peculato, participação económica em negócio, abuso de poder e de fraude na obtenção ou desvio de subsídio ou subvenção (art. 68.º, n.º 1, e) do CPP).

3. Dando por assente que um agente de execução, estando em investigação factos típicos por si, eventualmente, praticados, deve ser considerado funcionário (cfr. art. 386.º, n.º 1, d) do CP), tais factos, quando envolvam, além do mais, a apropriação ilegítima de dinheiro público ou particular que lhe tenha sido entregue ou esteja na sua posse em razão das suas funções, preenchem o tipo do crime de peculato, previsto no art. 375.º do CP.

4. A constituição como assistente da Câmara dos Solicitadores não poderia fundar-se no corpo do n.º 1 do art. 68.º do CPP, conjugado com o art. 6.º do respectivo Estatuto.

5. Resta, a ‘acção popular penal’ prevista na alínea e), do n.º 1 do art. 68.º do CPP, uma vez que o crime em investigação integra o catálogo nela prevista. Esta norma radica de uma longa tradição do processo penal pátrio que, tendo implícita a ideia de que nestes crimes qualquer cidadão é particular e imediatamente ofendido pela infracção (cfr. Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, 1ª Edição, 1974, Reimpressão, Coimbra Editora, 2004, pág. 514), se mostra justificada pelo interesse comunitário na sua detecção e perseguição.

6. Em síntese conclusiva, o art. 68.º, n.º 1, e) do CPP atribui legitimidade à recorrente, atento o crime em investigação nos autos, para se constituir assistente.

A Citizen Voice de acordo com os seus estatutos e objecto social tem como missão defender os interesses dos consumidores em geral e nessa medida tem interesse em exercer

essa sua prorrogativa como associação em processo penal em que está em causa um crime de especulação, não estando em causa para o efeito a avaliação sobre o modo como a associação em concreto actua, mas sim a confirmação que esse é o cerne da sua constituição e objectivos e que não existem actividades paralelas ou complementares.

Deste modo, entende-se que deverá o recurso da arguida improceder “.


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Observado o disposto no art. 417º nº 2 do CPP, a recorrente apresentou resposta na qual reiterou os fundamentos do recurso.

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Efetuado o exame preliminar, por despacho de 31/03/2025, ordenou-se a notificação da recorrida “Citizen`s Voice - Consumer Advocacy Association” para juntar a estes autos, o Acordo de Financiamento (eventualmente celebrado com um funder) ou o Acordo-Quadro, com vista à sua intervenção nestes autos nº 3/23.7EAPRT-A.P1 na qualidade de assistente (referência 18975523).

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Na mesma data (31/03/2025), a recorrida respondeu afirmando que “este processo, assim como todos envolvendo esta ré não são financiados por terceiros (com exceção de um derivado da falsificação de compressas medicas envolvendo também como ré a sociedade K... e outro, com abrangência nacional, relativamente à especulação de preços num outro produto - mousse proteica) e que as fontes de financiamento da representante fa classe, já devidamente escrutinadas pela DGC, podem ser consultadas no seu site em: https://citizensvoice.eu/2024/02/08/fontes-de-financiamento-e-atividades/” – cfr. referência 416435.

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Notificada a recorrente para, querendo, pronunciar-se, veio a mesma em 09/04/2025 responder, reiterando os fundamentos do recurso (referência 417022).

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Colhidos os vistos legais, realizou-se a conferência.

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II – FUNDAMENTAÇÃO

O âmbito do recurso afere-se e delimita-se pelas conclusões extraídas pelo recorrente, a partir da respetiva motivação, onde sintetiza as razões de discordância com o decidido e resume o pedido sendo, quanto às sentenças/acórdãos, sem prejuízo da tomada de posição sobre todas e quaisquer questões que sejam de conhecimento oficioso.

A única questão submetida à apreciação deste Tribunal ad quem consiste em saber se a pessoa coletiva “Citizen`s Voice - Consumer Advocacy Association” tem legitimidade para se constituir como assistente nestes autos, cujo objeto é a prática de crime de especulação p. e p. pelo art. 35º nº 1 d) do D.L. nº 28/84 de 20 de janeiro.


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O despacho recorrido tem o seguinte teor (transcrição):
“Veio a CITIZENS' VOICE - CONSUMER ADVOCACY ASSOCIATION requerer a sua constituição como assistente.
O MP nada opôs ao requerido.
Notificadas, nos termos e para os efeitos do disposto no art. 68.°, n.°4, do CPP, as arguidas opuseram-se com os fundamentos aduzidos nos seus requerimentos com as ref. 9922444 e 9922445, cujo teor se dá por reproduzido, por questões de celeridade e simplicidade.
Cumpre decidir.
Nos termos do disposto no art. 25.°, da Lei 83/95, de 31 de Agosto, “aos titulares do direito de acção popular é reconhecido o direito de denúncia, queixa ou participação ao Ministério Público por violação dos interesses previstos no artigo 1.° que revistam natureza penal, bem como o de se constituírem assistentes no respectivo processo, nos termos previstos nos artigos 68°, 69° e 70.° do Código de Processo Penal. “
A presente lei define os casos e termos em que são conferidos e podem ser exercidos o direito de participação popular em procedimentos administrativos e o direito de acção popular para a prevenção, a cessação ou a perseguição judicial das infracções previstas no n.° 3do artigo 52°da Constituição.
O art. 1.°, n.°2, estabelece que são, designadamente interesses protegidos pela presente lei, a saúde pública, o ambiente, a qualidade de vida, a protecção do consumo de bens e serviços, o património cultural e o domínio público.

Já nos termos do art. 2.°:
“1 - São titulares do direito procedimental de participação popular e do direito de acção popular quaisquer cidadãos no gozo dos seus direitos civis e políticos e as associações e fundações defensoras dos interesses previstos no artigo anterior, independentemente de terem ou não interesse directo na demanda.
2 - São igualmente titulares dos direitos referidos no número anterior as autarquias locais em relação aos interesses de que sejam titulares residentes na área da respectiva circunscrição. ”
Nos autos, investiga-se a eventual prática de um crime de especulaçãp, p. e p. pelo artigo 35, n.° 1, al. d) do Decreto lei 28/84, de 20 de Janeiro.
A requerente CITIZENS' VOICE - CONSUMER ADVOCACY ASSOCIATION trata-se de uma associação que tem como fim a defesa dos consumidores na União Europeia, seus associados, e dos consumidores em geral que sejam cidadãos da União Europeia ou que sejam cidadãos de Estados terceiros residentes na União Europeia.
Conclui-se que a requerente é uma associação defensora dos interesses previstos na Lei 83/95, de 31 de Agosto (art.1.°, n.°2), designadamente os dos consumidores, sendo que o é independentemente de ter ou não interesse directo na demanda (art. 2.°, n.°1).
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Por estar em tempo, para tal ter legitimidade, se encontrar devidamente representado/a por Advogado e beneficiar de isenção prevista no art. 4.°, n.°1, al. b) do Regulamento das Custas Processuais, admito CITIZENS' VOICE - CONSUMER ADVOCACY ASSOCIATION a intervir nos presentes autos na qualidade de assistente, de harmonia com o estatuído nos artigos 68.°, n.°1, alínea a), 2 e 3, 70 °, n°1 e 519.°, n.°1, todos do Código de Processo Penal e art. 25.°, da Lei 83/95, de 31 de Agosto.
Notifique “.
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Apreciação do recurso.

Questão única: saber se a pessoa coletiva “Citizen`s Voice - Consumer Advocacy Association” tem legitimidade para se constituir como assistente nestes autos, cujo objeto

é a prática de crime de especulação p. e p. pelo art. 35º nº 1 d) do D.L. nº 28/84 de 20 de janeiro.

A arguida “A..., S.A.” insurge-se contra a decisão do Tribunal a quo que admitiu a pessoa coletiva denominada “Citizen`s Voice - Consumer Advocacy Association” a intervir nestes autos na qualidade de assistente, com fundamento no disposto no art. 25º da Lei nº 83/95 de 31 de agosto (“Direito de participação procedimental e de acção popular”) e na circunstância de a “Citizen`s Voice - Consumer Advocacy Association” se afirmar como uma associação de defesa do consumidor.

E fá-lo em duas vertentes:

1) numa primeira vertente, questiona a legitimidade ativa da Citizens Voice para ser considerada uma associação de defesa dos consumidores por, em seu entender, não cumprir totalmente os seguintes requisitos formais e materiais, de verificação cumulativa e obrigatória, impostos por lei (Lei nº 83/95, de 31 de agosto, da Lei nº 24/96, de 31 de julho e Decreto-Lei n.º 114-A/2023, de 5 de dezembro) e, consequentemente, para que possa de forma legítima exercer o direito de representação popular:

(a) Terem personalidade jurídica (cf. artigo 3.º da LAP, artigo 17º da LDC e artigo 6.º do Decreto-Lei n.º 114-A/2023);

b) Terem pelo menos 3.000 (três mil), 500 (quinhentos) ou 100 (cem) associados, consoante pretendam ter âmbito nacional, regional ou local, respetivamente (cf. artigo 17.º, n.º 2, da LDC);

c) Terem os seus órgãos livremente eleitos pelo voto universal e secreto de todos os seus associados (cf. artigo 17.º, n.º 3, da LDC);

d) Não prosseguirem fins lucrativos (cf. artigo 17.º, n.º 1, da LDC);

e) Serem independentes (designadamente, serem responsáveis, a título exclusivo, por tomar as decisões de intentar, desistir ou transacionar no âmbito de uma ação coletiva) e não influenciadas por pessoas que não sejam consumidores, em especial profissionais, que tenham um interesse económico em intentar uma ação coletiva, designadamente no caso de financiamento por terceiros, e adotarem procedimentos para impedir a sua influência, bem como para impedir conflitos de interesses entre si, os seus financiadores e os interesses dos consumidores (cf. artigo 6.º, n.º 1, alínea d), do Decreto-Lei n.º 114-A/2023);

f) Não exercerem qualquer tipo de atividade profissional concorrente com empresas ou profissionais liberais (cf. artigo 3.º da LAP e artigo 6.º do Decreto-Lei n.º 114-A/2023);

g) Ter como objetivo principal a proteção dos direitos e os interesses dos consumidores em geral ou dos consumidores seus associados (cf. artigo 17.º, n.º 1, da LDC);

h) Incluírem expressamente, nas suas atribuições ou nos seus objetivos estatutários, a defesa dos interesses em causa no tipo de ação de que se trate (cf. artigo 3.º da LAP)), pois segunda alega a recorrente,

a) nunca demonstrou o número exato de associados que possui (cf. capítulo II.6.1. e conclusões NN) a QQ) da Motivação de Recurso);

b) não possui órgãos livremente eleitos por voto universal e secreto de todos os seus associados (cf. capítulo II.6.2. e conclusões RR) a SS) da Motivação de Recurso);

c) prossegue fins lucrativos, em detrimento de proteger os direitos e interesses dos consumidores, e não possui a necessária independência e ausência de influência de não consumidores (cf. capítulo II.6.3. e conclusões TT) a YY) da Motivação de Recurso);

2) numa segunda vertente, defende que a “Citizen`s Voice” não tem legitimidade para intervir nos autos como assistente em processo-crime pela alegada prática de crime de especulação p. e p. pelo art. 35º do D.L. nº 28/84 de 20 de janeiro, “que tutela a estabilidade dos preços e o controlo dos preços pelo Estado, enquanto instrumento de intervenção numa economia de mercado regulada e, daí ser um crime de perigo abstrato, pois o controlo da estabilidade dos preços não pode ser violado por ações individuais, mas apenas colocado em perigo (daí também a inserção sistemática deste tipo legal de crime no D.L. nº 28/84); além de que, a estabilidade dos preços, constitui um interesse próprio do sector económico e do regular funcionamento da economia, não sendo titulado por sujeitos jurídicos individualizados e não correspondendo a qualquer proteção dos direitos e interesses dos consumidores; por isso, se a “Citizen`s Voice” fosse uma associação de defesa de consumidores, de qualquer modo não possuiria legitimidade para intervir nestes autos na qualidade de assistente”.

Cumpre decidir.

Através de requerimento datado de 16/04/2024 (referência 96165620), a pessoa coletiva denominada “Citizen`s VoiceConsumer Advocacy Association”, veio aos presentes autos formular pedido com o seguinte teor (transcrição):

“CITIZENS' VOICE - CONSUMER ADVOCACY ASSOCIATION, representante da classe, e demais AUTORES POPULARES, na qualidade de lesados pelas praticas ilícitas da aqui denunciada / arguida A..., S.A., vêm, nos termos do disposto nos artigos 68 (1, a) e 70, ambos do CPP, aplicável ex vi, artigo 25, da lei 83/95, por estarem em tempo, terem legitimidade para tanto, estarem representados por advogado e estarem isentos do pagamento da taxa de justiça, requerer a sua constituição como assistente”.

Iremos começar pela primeira vertente de impugnação, referente à validade intrínseca da própria pessoa coletiva “Citizen`s Voice” para ser considerada uma associação de defesa de consumidores.

A recorrente defende que a associação “Citizen`s Voice” não possui os requisitos necessários para ser considerada uma associação de defesa de consumidores por não cumprir os requisitos cumulativos previstos no art. 17º da Lei nº 24/96, de 31 de julho (Lei de Defesa do consumidor) para poder legitimamente exercer o direito de representação e de ação popular, dado que visa apenas o desenvolvimento de um modelo de negócio lucrativo, procurando lucros para entidades terceiras, bem como para os membros dos órgãos sociais daquela associação que estão ligados a essas entidades financiadoras.

Desde já se adianta que não assiste razão à recorrente nesta alegação.

A C.R.P. prevê o direito de ação popular no art. 52º que tem por epígrafe «Direito de petição e de ação popular» e no nº 3, estabelece que “É conferido a todos, pessoalmente ou através de associações de defesa dos interesses em causa, o direito de acção popular nos casos e termos previstos na lei, incluindo o direito de requerer para o lesado ou lesados a correspondente indemnização, nomeadamente para: (…)”.

O art. 60º, sob a epígrafe «Direitos dos consumidores», dispõe quanto à associação de consumidores que “1. Os consumidores têm direito (…), à protecção (…) dos seus interesses económicos, bem como à reparação de danos”.

O âmbito de aplicação das duas normas da CRP não é coincidente.

O nº 3 do art. 60º reconhece às “(…) associações de consumidores (…) legitimidade processual para defesa dos seus associados ou de interesses colectivos ou difusos”.

No plano infraconstitucional, a Lei nº 24/96 de 31 de julho (Lei de Defesa do Consumidor), respeitante às associações de consumidores dispõe no seu art. 17º que “As associações de consumidores são associações dotadas de personalidade jurídica, sem fins lucrativos e com o objetivo principal de proteger os direitos e os interesses dos consumidores em geral ou dos consumidores seus associados”.

Quanto à área a que circunscrevem a sua ação, o nº 2 do mesmo art. 17º, exige que tenham, pelo menos 3000 associados as que atuam no âmbito nacional, 500 associados as que atuam no âmbito regional e 100 as que atuam no âmbito local.

Como ensina J. Lebre de Freitas([1]), que vimos seguindo, “a associação de defesa dos consumidores não tem de coincidir com uma associação de consumidores. Mostra-o, em primeiro lugar, a Constituição” – sublinhados da nossa autoria.

A “associação pode assim atuar no interesse dos seus associados ou no interesse, mais geral, desses e outros consumidores; mas é, ela própria, uma associação de consumidores”.

uma associação de cidadãos que tenha como fim estatutário a defesa dos interesses dos consumidores em geral ou de determinada categoria de consumidores não tem que ser constituída por consumidores ou por consumidores dessa categoria; perante ela, não se põe a questão de ter atuações concretas no interesse dos seus associados ou dos consumidores nela não associados; por definição, atua no domínio dos interesses coletivos ou difusos, podendo, aliás, defender também, se assim disserem os seus estatutos, outro tipo desses interesses ”.

Em nota de rodapé, acrescenta, “Nada impede, por exemplo, que uma associação tenha como objeto a propositura de ações populares para defesa dos consumidores e para defesa do ambiente”.

E conclui, “Tida em conta a disposição do art. 60º CRP, a associação de consumidores é, por inerência, uma associação de defesa dos consumidores, podendo exercer a ação popular se o consentirem os seus estatutos. Mas a inversa não é verdadeira e a associação de defesa dos consumidores que não seja uma associação de consumidores não está sujeita à mesma exigência de representatividade que para esta se põe. Muito menos, como se deixou dito, quando se trata de propor ações populares”.

No caso destes autos, do documento com a referência 9922445, respeitante à “Citizen`s Voice”, intitulado “Constituição de Associação” verificamos que a mesma é constituída por 2 associados (AA e KK; este último, cremos, é o mandatário judicial da “Citizen`s Voice” nestes autos) e, concretamente no seu art. 2º, tendo por epígrafe «Fim», consta que “A associação tem como fim Defesa dos consumidores na União Europeia, seus associados, e dos consumidores em geral que sejam cidadãos da União Europeia ou que sejam cidadãos de Estados terceiros residentes na União Europeia”.

E, pese embora a mesma conste da lista publicada no Portal das Associações de Consumidores, entre outras associações de consumidores reconhecidas em Portugal, a “Citizen`s Voice”, por ter âmbito transfronteiriço, não se lhe aplicam as limitações previstas no art. 17º nº 2 da Lei nº 24/96 de 31 de julho Lei de Defesa do Consumidor).

Sobre este tema pronunciou-se o Ac. da R.L. de 20/06/2024([2]), decidindo que “Para uma associação, seja ela de consumidores ou não, ter legitimidade para propor ação popular na área do consumo, basta a verificação dos requisitos previstos no art. 3º da Lei nº 83/95”.

(O dito aresto diz respeito precisamente à “Citizen`s Voice”).

E tais requisitos impostos pela Lei nº 83/95 de 31 de agosto (Direito de Participação Procedimental e de Ação Popular, doravante LAP) são os seguintes:

Artigo 3º (Legitimidade ativa das associações e fundações):

Constituem requisitos da legitimidade activa das associações e fundações:

a) A personalidade jurídica;

b) O incluírem expressamente nas suas atribuições ou nos seus objectivos estatutários a defesa dos interesses em causa no tipo de acção de que se trate;

c) Não exercerem qualquer tipo de actividade profissional concorrente com empresas ou profissionais liberais”.

Ora a arguida /recorrente “A... S.A.” não coloca em causa que a “Citizen`s Voice” encontra-se dotada de personalidade jurídica (cfr. arts. 167º e 168º nº 1 do Cód. Civil).

O art. 2º dos Estatutos da “Citizen`s Voice” prevê exatamente que a mesma tem por finalidade a “Defesa dos consumidores na União Europeia, seus associados, e dos consumidores em geral que sejam cidadãos da União Europeia ou que sejam cidadãos de Estados terceiros residentes na União Europeia”.

Dos seus estatutos não consta que a dita Associação exerça outro tipo de atividade profissional concorrente com empresa ou profissão liberal, nem a recorrente o alega.

A defesa dos direitos do consumidor tanto pode fazer-se por associações de defesa de consumidores ou por advogado, sendo que ambas as atividades estão regulamentadas por lei.

Ainda que a associação “Citizen`s Voice” fosse composta apenas por membros/advogados especialistas em questões de consumo de bens e serviços (o que não resulta dos seus Estatutos) não se poderia considerar que a “Citizen`s Voice” exerce uma atividade concorrente com a profissão liberal de advogado (ainda que se pudesse considerar a relação advogado/cliente uma relação de consumo, sobretudo por reporte às grandes sociedades de advogados cada fez mais frequentes hoje em dia) uma vez que à defesa dos (direitos) consumidores aplica-se a LDF (Lei nº 24/96 de 31 de julho), a Lei nº 84/2008 de 21 de maio (Guia dos Direitos dos Consumidores) e a Lei nº 84/2021 de 18 de outubro, enquanto que o contrato celebrado entre advogado-cliente rege-se pelas normas do Cód. Civil (cfr. arts. 1157 e segs.), pelo Estatuto da Ordem dos Advogados e pela Lei nº 10/2024 de 19 de janeiro.

Conforme se pode ler a dado passo no aresto citado, aplicável ao caso destes autos quanto à invocada necessidade de 3000 associados, “(…) tal deixa de fazer sentido quando passamos para o campo adjetivo do exercício da ação popular, tido nomeadamente em conta que qualquer cidadão, individualmente, a pode exercer. Se se considerasse que a exigência do mínimo de 100 associados (leia-se, 3000 associados) é requisito constitutivo da associação ou pressuposto do exercício das suas funções, esse mínimo ser-lhe-ia sempre indispensável para exercer o direito de ação popular (art. 3-a LAP). Mas não é assim: trata-se apenas de requisito exigido para a generalidade das atuações da associação, como bem mostram os nºs 2 e 3 do art. 18. Não é este o caso da ação popular, como inequivocamente resulta do art. 3 LAP, que só faz depender a legitimidade ativa das associações da sua personalidade jurídica, do seu fim estatutário e do não exercício de atividade profissional concorrente com empresa ou profissão liberal. Aliás, só para a LAP, que não faz qualquer exigência desse tipo, remete o art. 13-b LDC, ao reconhecer a legitimidade para propor a ação popular aos consumidores e às associações de consumidores, ainda que não diretamente lesados” – destacado da nossa autoria.

E escreveu-se no dito aresto que a associação em causa (“Citizen`s Voice”) por não ter limitação territorial ao nível nacional “permite apenas concluir qua a A. não é uma associação de consumidores (art. 17º nº 2 da Lei 24/96, de 31 de julho)”.

O referido art. 13º da Lei de Defesa do Consumidor (citada Lei nº 24/96 de 31 de julho) que rege para o(s) consumidor(es) e para as associações de consumidores, estabelece que “Têm legitimidade para intentar as ações previstas nos artigos anteriores:

a) Os consumidores diretamente lesados;

b) Os consumidores e as associações de consumidores ainda que não diretamente lesados, nos termos da Lei n.º 83/95, de 31 de agosto;

c) (…)” - destacado e sublinhado da nossa autoria.

No mesmo sentido alinhou o Ac. da R.P. de 07/10/2024([3]) citado pelo MºPº na resposta, decidindo que “I - O Direito de ação popular consagrado constitucionalmente (cfr. nº3, do art. 52º, da CRP) e, especificamente, regulado na lei ordinária (v. Lei nº 83/95, de 31/8), é conferido a todos (pessoalmente ou através de associações de defesa dos interesses em causa) – cfr. referido nº3, do art. 52º, da CRP, e nº1, do art. 2º, da referida Lei. II - E para uma associação (de consumidores ou não) ter legitimidade para propor ação popular na área do consumo, basta a verificação dos, específicos, requisitos previstos no art. 3º, da Lei nº 83/95, de 31 de maio (cfr. remissão efetuada pela al. b), do art. 13º, da Lei de defesa do consumidor – Lei nº 24/96, de 31/7) sendo eles: i) estar dotada de personalidade jurídica; ii) incluírem expressamente nas suas atribuições ou nos seus objetivos estatutários a defesa dos interesses em causa no tipo de ação de que se trate e, por isso, sem fim lucrativo; iii) não exercerem qualquer tipo de atividade profissional concorrente com empresas ou profissionais liberais. III - Não se encontrando estatuído na Lei de defesa do consumidor nem na Lei da Ação Popular qualquer outro requisito condicionador da legitimidade, não pode o aplicador da lei impô-lo”.

(Este aresto respeita também à mesma associação “Citizen`s Voice”).

Vejamos o que diz ainda a Lei nº 83/95 de 31 de agosto (Direito de Participação Procedimental e de Ação Popular).

Dispõe o art. 1º deste diploma que:

“1 - A presente lei define os casos e termos em que são conferidos e podem ser exercidos o direito de participação popular em procedimentos administrativos e o direito de acção popular para a prevenção, a cessação ou a perseguição judicial das infracções previstas no nº 3 do artigo 52º da Constituição.

2 - Sem prejuízo do disposto no número anterior, são designadamente interesses protegidos pela presente lei a saúde pública, o ambiente, a qualidade de vida, a protecção do consumo de bens e serviços, o património cultural e o domínio público”.

No seu art. 2º prescreve-se que “1 - São titulares do direito procedimental de participação popular e do direito de acção popular quaisquer cidadãos no gozo dos seus direitos civis e políticos([4]) e as associações e fundações defensoras dos interesses previstos no artigo anterior, independentemente de terem ou não interesse directo na demanda”.

Na doutrina, a propósito das citadas normas ensina Miguel Teixeira de Sousa([5]) que “(…) o autor popular não tem que ser escolhido por ninguém: a iniciativa da propositura da ação popular pode pertencer a um grupo que escolhe o ou os demandantes que o vão representar, mas também pode pertencer a um titular isolado e «autodesignado»”.

E em comentário ao transcrito art. 2º da Lei nº 83/95 de 31 de agosto, ensina o referido Autor que “(…) quando o art. 2º nº 1 da Lei nº 83/95 atribui legitimidade aos cidadãos para a propositura da ação popular, isso não significa que apenas um sujeito individual a possa instaurar. Nada impede que essa ação seja proposta por vários cidadãos ou por um grupo de cidadãos, o que demonstra que, para esse efeito, a associação personalizada não é o único meio de conjugar a vontade de vários interessados. (…).

As referidas associações (…) só possuem legitimidade processual para a ação popular se tiverem personalidade jurídica, se incluírem expressamente nas suas atribuições ou nos seus objetivos estatutários a defesa dos interesses em causa e, finalmente, se não exercerem qualquer tipo de atividade profissional concorrente com empresas ou profissões liberais (art. 3º da Lei nº 83/95). (…).

A esses mesmos requisitos devem igualmente obedecer as associações de defesa dos consumidores às quais o art. 13º al. b), e 18º nº 1 l) da Lei nº 24/96 reconhecem legitimidade para a propositura de uma ação popular, bem como as associações de consumidores (…)”.

Alega ainda a recorrente que a “Citizen`s Voice” carece de legitimidade ativa para se constituir assistente nos presentes autos porque não cumpre os requisitos previstos no art. 6º nº 1 d) do D.L. nº 114-A/2023 de 05 de dezembro, ou seja, ser independente (designadamente, ser responsável a título exclusivo, por tomar as decisões de intentar, desistir ou transacionar no âmbito de uma ação coletiva) e não influenciada por pessoas que não sejam consumidores, em especial profissionais, que tenham um interesse económico em intentar uma ação coletiva, designadamente no caso de financiamento por terceiros, e adotarem procedimentos para impedir a sua influência, bem como para impedir conflitos de interesses entre si, os seus financiadores e os interesses dos consumidores.

Em face do alegado e do disposto no art. 10º nºs 1, 3, 4 e 5 do D.L. nº 114º-A/2023 de 5 de dezembro([6]) (que transpôs para a ordem jurídica nacional a Diretiva (UE) 2020/2018 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 25 de novembro de 2020), este Tribunal da Relação por despacho proferido em 31/03 do corrente ano (referência 18975523) ordenou a notificação da recorrida “Citizen`s Voice” para juntar aos autos, o Acordo de Financiamento com vista à sua intervenção neste processo nº 3/23.7EAPRT na qualidade de assistente, ou o Acordo-Quadro, devidamente traduzido(s) em língua portuguesa.

No mesmo dia, a recorrida “Citizen`s Voice” respondeu que “este processo, assim como todos envolvendo esta ré não são financiados por terceiros (com exceção de um derivado da falsificação de compressas medicas envolvendo também como ré a sociedade K... e outro, com abrangência nacional, relativamente à especulação de preços num outro produto - mousse proteica).

Contudo, as fontes de financiamento da representante da classe, já devidamente escrutinadas pela DGC, podem ser consultadas no seu site em: https://citizensvoice.eu/2024/02/08/fontes-de-financiamento-e-atividades/” (referência 416435).

Notificada a recorrente para se pronunciar, veio a mesma em 09/04/2025 responder (referência 417022), dizendo, em síntese, que embora a “Citizen`s Voiceproclame no papel defender os interesses dos consumidores, na realidade ao atuar com base em acordos de financiamento (nomeadamente, com a “B..., Lda.”, a “C..., Lda”.), dado “possuir um vasto histórico de ações populares intentadas contra os mais variados operadores económicos do mercado nacional, desprovidas de qualquer sustentação e nas quais peticiona indemnizações de valores elevadíssimos com a exclusiva finalidade de gerar proveitos económicos para si, para o fundador e Presidente AA e para entidades terceiras que estão, por sua vez, conectadas com associados e membros de órgãos sociais da “Citizen`s Voice”, ainda deliberou em Assembleia-Geral, de acordo com a documentação que a recorrente juntou aos autos, a contratação da “H..., Lda.” da “I...””, não o faz, antes visa prosseguir um fim eminentemente lucrativo, perseguindo diversos agentes económicos no mercado nacional, incluindo a recorrente; e que o Tribunal Judicial da Comarca do Porto – Juízo Central Cível do Porto-Juiz 6 (proc. nº 10374/23.0T8PRT), ordenou a extração de certidão de peças do processo e enviou ao DIAP do Porto com vista à instauração de inquérito para averiguar da regularidade da eleição dos órgãos e do funcionamento da autora enquanto associação de defesa dos consumidores”.

Também não assiste razão à recorrente quanto à invocação do aludido requisito.

Desde logo, porque não é ilegal a instauração por uma parte de ação judicial financiada por um terceiro (doravante TPF) relativamente ao objeto da causa.

Sobre o tema, ensina Tomás Pereira Carneiro([7]) que “O financiamento de litígios por terceiros mais não é do que um modelo de negócio que tem na sua génese a necessidade de alguém (em regra o autor) habilitar-se com os meios financeiros para propor uma demanda (judicial ou arbitral) com vista à satisfação da sua pretensão e, por outro lado, da ambição de um funder, alheio à disputa judicial, mas não ao seu resultado, que irá financiar uma das partes, vir a quinhoar no resultado do desfecho da lide. (…) custear um processo judicial ou um procedimento arbitral pode encontrar-se fora da disponibilidade das partes, designadamente no caso das pequenas e médias empresas (PME), com particulares dificuldades na resolução de litígios transfronteiriços, cada vez mais frequentes. (…).

Mais recentemente, o legislador português tratou do TPF no nosso ordenamento jurídico, (…) o recém-aprovado D.L. nº 114-A/2023, de 5/12, que veio transpor a Diretiva (UE) 2020/2018---relativa a ações coletivas para a proteção dos interesses dos consumidores. (…). Este tipo de ações é particularmente atrativo para um financiador, quer seja pela sua dimensão (e potencial retorno), quer seja pelo potencial de diversificação do risco. Tanto assim o será que alguns funders divulgam esta área de atividade como um dos seus principais alvos de investimento. (…).

Naquilo que releva para o presente estudo, o D.L. nº 114-A/2023 regulamenta, no seu art. 10º, o financiamento por terceiros destas ações coletivas para medidas de reparação. (…).

No que respeita ao TPF, parece-nos adequado categorizá-lo como um derivado: trata-se de um contrato, cujo retorno pecuniário depende do (in)sucesso da parte financiada, servido o litígio como ativo subjacente sobre o qual se fará depender o valor e, acima de tudo, o retorno do financiador. (…)”.

Por outro lado, desconhece-se se, na realidade, quanto à sua intervenção nestes autos na qualidade de assistente (e, quiçá, para vir a deduzir pedido de indemnização cível (como aliás a recorrida já anunciou pretender fazer no requerimento supra referido com a referência 96165620 para a sua intervenção como assistente), a recorrida “Citizen`s Voice” atua financiada por algum funder.

A recorrida afirma inexistir um tal acordo de financiamento e, por sua vez a recorrente, se conhecesse a sua existência, cremos que já o teria remetido a estes autos, como fez quanto ao Acordo que a recorrida “Citizen`s Voice” celebrou com a “C..., Lda.” denominado “Financiamento de Contencioso”, para a ação popular que instaurou no Tribunal Judicial da Comarca de Braga, Juízo Central Cível de Braga – Juiz 4 (proc. nº ... (Ação Popular 254, aparentemente celebrado em 11/12/2023) contra as sociedades “A..., S.A.” e “K..., S.A.” em representação dos Membros da Classe, “ao abrigo do regime de ação popular opt-out português”.

O art. 10º nº 1 do D.L. nº 114-A/2023, de 5/12 obriga a parte a “fornece(r) ao tribunal cópia autenticada do acordo, redigido de forma clara, facilmente compreensível e em língua portuguesa”.

Teremos, assim, que apreciar a questão na base da inexistência desse acordo de financiamento para a intervenção da recorrida como assistente nos presentes autos.

De qualquer forma sempre se dirá que, em termos abstratos, mesmo que esse acordo existisse (o que não está comprovado), desde que o funder não influísse/coartasse os poderes que o CPP atribui ao assistente previstos no art. 69º nºs 1 e 2 do mesmo Código (cfr. nº 4 do art. 10º do D.L. nº 114-A/2023), nada impediria que a recorrida se encontrasse financiada por terceiro.

E, ainda assim, seria ao Tribunal de 1ª Instância (e já não este Tribunal de 2ª Instância, sob pena de se preterir um grau de recurso), que competiria apreciar se o referido acordo violava, ou não, o disposto nos nºs 4 e 5 do citado art. 10º e, concluindo pela afirmativa, a consequência seria a da notificação da recorrida para “dentro de determinado prazo, recusar ou fazer alterações ao financiamento por terceiro de forma a garantir o respeito pelo disposto na norma violada,…” – cfr. nº 8 do art. 10º do D.L. nº 114-A/2023.

O que acaba de dizer-se é válido para um eventual pedido de indemnização cível enxertado que eventualmente venha a ser deduzido nos presentes autos pela recorrida (cfr. arts. 71º e segs. do CPP).

Trata-se, porém, de questão que não faz parte do objeto do presente recurso (que se cinge à apreciação da intervenção da requerente “Citizen`s Voice” na qualidade de assistente nos presentes autos).

Vejamos agora da segunda vertente de impugnação: ausência de legitimidade da “Citizen`s Voice” para se constituir assistente no processo pela prática de crime de especulação p. e p. pelo art. 35º do D.L. nº 28/84 de 20 de janeiro “em face do bem jurídico protegido – a estabilidade dos preços – sendo um crime de perigo abstrato e o controlo da estabilidade dos preços não pode ser violado por ações individuais, mas apenas colocado em perigo”.

Nos termos do nº 1 do art. 68º do CPP, podem constituir-se assistentes no processo penal (“além das pessoas e entidades a quem leis especiais conferirem esse direito”), as pessoas aí indicadas, entre elas os ofendidos maiores de 16 anos e qualquer pessoa nos crimes indicados na alínea e), nos prazos estabelecidos na lei (cfr. nº 3 do referido preceito).

Como refere Maria do Carmo Silva Dias([8]), citando Cláudia Cruz Santos, “nem todas as vítimas podem constituir-se assistentes (como sucede por exemplo, em parte dos crimes públicos, que não estão abrangidos no art. 68º do CPP) e, mesmo quando pode assumir essa qualidade, a sua intervenção é limitada ao papel de colaborador do Ministério Público” o que acaba por significar que os seus concretos interesses no processo só são atendíveis enquanto coincidirem com o interesse coletivo na realização da justiça penal. (…). O assistente apesar de ser um «sujeito processual», não está no mesmo plano do Ministério Público ou do arguido, tendo uma posição “secundária” e até subordinada em relação ao Ministério Público, nos termos do art. 69º nº 1 do CPP, ressalvadas as excecções previstas na lei”.”.

Na alínea e) do nº 1 do art. 68º não figura o crime de especulação p. e p. pelo art. 35º nº 1 d) do D.L. nº 28/84 de 20 de janeiro imputado à arguida “A...” nestes autos.

Para Marcelino António Abreu([9]), “o bem jurídico «estabilidade dos preços» não diz respeito a uma pessoa ou grupo de pessoas determinado, sendo antes bem jurídico que a todos diz respeito ou a todos suscita interesse, sendo, portanto, um bem jurídico respeitante à economia, mais concretamente, ao funcionamento do mercado. Com a sua tutela visa-se, mais que a salvaguarda da estabilidade dos preços em si, a salvaguarda da estabilidade do próprio mercado e, com isso, permitir que se criem condições para o desenvolvimento económico em geral. Nesta medida, é a estabilidade dos preços, um bem jurídico de natureza supra individual”.

E a propósito do tipo de crime p. e p. pelo 35º nº 1 d) do D.L. nº 28/84 (o aqui imputado à arguida), citando Manuel da Costa Andrade refere que “É certo que nem todas as condutas incriminadas e punidas como especulação nos vários números e alíneas do art. 35º do Decreto-Lei nº 28/84 resultarão num atentado direto à estabilidade dos preços. Tal só sucederá de forma mediata com as práticas previstas na alínea d) do nº 1: «Vender bens que, por unidade, devem ter certo peso ou medida, quando os mesmos sejam inferiores a esse peso ou medida, ou contidos em embalagens ou recipientes cujas quantidades forem inferiores às nestes mencionadas». Práticas que mais não são, aliás, do que casos especiais de Fraude de mercadorias e que como tais já seriam punidas” – destacado da nossa autoria.

Por sua vez P. Pinto de Albuquerque e José Branco([10]) em anotação à norma do art. 35º do D.L. nº 28/84, ensinam que o “bem jurídico tutelado é, em primeira linha os interesses dos consumidores, enquanto interesses coletivos. O combate às atividades especulativas e a proteção dos consumidores são objetivos da política comercial, não necessariamente garantidos por recurso à política criminal”.

E precisamente para o caso dos autos, existe a lei especial a que se reporta o proémio do nº 1 do art. 68º do CPP a conferir o direito à recorrida “Citizen`s Voice” a intervir na qualidade de assistente, nomeadamente, o art. 25º da LAP (Lei nº 83/95, de 31 de maio) onde se prescreve que “Aos titulares do direito de acção popular é reconhecido o direito de denúncia, queixa ou participação ao Ministério Público por violação dos interesses previstos no artigo 1.º que revistam natureza penal, bem como o de se constituírem assistentes no respetivo processo, nos termos previstos nos artigos 68º, 69º e 70º do Código de Processo Penal” – destacado da nossa autoria.

Concluindo, do que vem estatuído nos arts. 52º nº 3 da CRP, 1º nºs 1 e 2 e 3º da LAP (citada Lei nº 83/95 de 31 de agosto), resulta que a “Citizen`s Voice” não é uma associação de consumidores e cumpre os requisitos legais de validade e legitimidade ativa para ser considerada uma associação de defesa dos (direitos) dos consumidores de âmbito transfronteiriço, à qual é conferido o direito de ação popular, independentemente de ter ou não interesse direto na demanda (cfr. art. 2º nº 1 da LAP).

E o seu direito a constituir-se assistente, ainda que os interesses protegidos pela norma do art. 35º nº 1 d) do D.L. nº 28/84 de 20 de janeiro sejam supra-individuais, vem, como se disse, previsto em lei especial.

Não merece, pois, qualquer censura o despacho recorrido.

Consequentemente, improcede o recurso.

Uma palavra, por fim, quanto ao pedido formulado pela recorrida na resposta ao recurso - de condenação da recorrente no pagamento de taxa sancionatória excecional prevista no art. 531º do CPC aplicável ex vi do art. 521º nº 1 do CPP – baseado na extensão do recurso interposto pela arguida “A...”, composto por 114 páginas e as questões nele invocadas e a chamada à colação de pessoas completamente alheias ao litígio, ligações societárias a sociedades que em nada se relacionam com estes autos ou com a associação, que considera irrelevantes para a questão da admissibilidade, ou não, da intervenção da recorrida como assistente nos autos, que considera abusivo e tentativa de entorpecer a ação da justiça.

Respondeu a recorrente alegando que se limitou a exercer o direito ao recurso previsto no art. 20º e 32º nº 1, ambos da CRP.

Decidindo, entendemos que neste ponto assiste razão á recorrente (cfr. ainda os arts. e 399º e 411º nº 1 a) do CPP), independentemente da extensão do recurso e da complexidade das questões suscitadas, o que apenas tem reflexo no montante a fixar da taxa de justiça dentro dos limites fixados na tabela III anexa ao RCP.


*


III – DECISÃO

Pelo exposto, os Juízes que compõem a 1ª Secção deste Tribunal da Relação do Porto decidem negar provimento ao recurso interposto pela arguida “A..., S.A.” e, em consequência, manter o despacho recorrido.

Custas pela recorrente fixando-se em 5 UC a taxa de justiça – cfr. arts. 513º nº 1 do CPP e 8º nº 9 do RCP, com referência à Tabela III anexa ao referido diploma legal.

Notifique – cfr. art. 425º nº 6 do CPP.

Porto, 30/04/2025

Lígia Trovão

Pedro Vaz Pato

Maria Joana Grácio
_____________________________
[1] Cfr. “Revista de Direito Comercial”, págs. 562 a 564, acedida in www.revistade direitocomercial.com
[2] Cfr. Ac. da R.L. de 20/06/2024, no proc. nº 14454/23.3T8SNT.L1-8, relatado por Maria do Céu Silva, acedido in www.dgsi.pt
[3] Cfr. proc. nº 17706/22.6T8PRT.P1, relatado por Eugénia Cunha, acedido in www.dgsi.pt
[4] Segundo Miguel Teixeira de Sousa, não têm que ser necessariamente, cidadãos portugueses.
[5] Cfr. “A Tutela Jurisdicional dos Interesses Difusos no Direito Português”, págs. 20 e 21.
[6] Art. 10º sob a epígrafe «Financiamento de ações coletivas para medidas de reparação»:
1 - No caso de celebração de acordo de financiamento relativo à prossecução de uma ação coletiva com terceiros, e para que possa ser avaliado o cumprimento do disposto nos números seguintes do presente artigo, o demandante da ação coletiva fornece ao tribunal cópia autenticada do acordo, redigido de forma clara, facilmente compreensível e em língua portuguesa, devendo incluir os seguintes elementos:
a)
Uma síntese financeira que enumere as fontes de financiamento utilizadas para apoiar a ação coletiva;
b)
As diferentes custas e despesas que serão suportadas pelo terceiro financiador.
3 - O acordo de financiamento a que se refere o n.º 1 deve garantir a independência do demandante e a ausência de conflitos de interesses.
4 - Para efeitos do número anterior, entende-se que o demandante é independente do terceiro financiador se for exclusivamente responsável por tomar todas as decisões relativas à ação coletiva, tendo por princípio orientador a defesa dos interesses em causa, incluindo, designadamente, a escolha dos mandatários judiciais, a definição da estratégia processual e, ainda, as decisões de intentar, prosseguir, desistir, transigir, recorrer ou não recorrer e, em geral, praticar ou não praticar qualquer ato processual no âmbito da ação coletiva.
5 - O financiador da ação coletiva não pode impor, impedir ou influenciar por qualquer forma as decisões referidas no número anterior, sendo nulas quaisquer cláusulas em sentido contrário, nomeadamente as que imponham qualquer autorização ou consulta ao terceiro financiador antes da tomada de decisão ou que associem uma consequência desvantajosa para o demandante à tomada de qualquer uma dessas decisões.
8 - Nos casos em que se verifique uma violação do disposto nos nºs 3, 5 e 7 o tribunal convida o demandante a, dentro de determinado prazo, recusar ou fazer alterações ao financiamento por terceiro de forma a garantir o respeito pelo disposto na norma violada, devendo declarar a ilegitimidade ativa do demandante caso as alterações necessárias não sejam feitas no prazo estabelecido” – destacado da nossa autoria.
[7] Cfr. “Do third-party funding – Por uma eficaz composição de interesses?” in Scientia Iuridica – Tomo LXXIII, 2024, nº 365, págs. 223 a 251.
[8] Cfr. “Ofendida, lesada, assistente vítima – definição e intervenção processual”, Revista Julgar Online, fevereiro de 2019, págs. 15 a 19.
[9] Cfr. “O Crime de Especulação de Preços Previsto no artigo 35º do Decreto-Lei nº 28784, de 20 de Janeiro (Comentário)”, págs. 1435 a 1439.
[10] Cfr. “Comentário das Leis Penais Extravagantes”, Volume 2, Universidade Católica Editora, pág. 104.