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DECLARAÇÕES DE PARTE
VALOR PROBATÓRIO
UNIÃO DE FACTO
NÓMADAS DIGITAIS
COABITAÇÃO CONTÍNUA E ESTÁVEL
Sumário
(artigo 663º n º7 do Código do Processo Civil) - As declarações de parte, proferidas ao abrigo do art.º 466º, nº s 1 e 2 do CPC quanto aos factos favoráveis estão sujeitas ao princípio da livre apreciação da prova -nº 3 do mesmo artigo. - Apesar da necessária prudência na valoração das declarações de parte, tendo em conta o natural interesse directo no desfecho favorável da causa, nada impede que o juiz, na avaliação global dos meios de prova, à luz do objecto do processo, com recurso, se necessário, a presunções judiciais, em conformidade com as regras da lógica e da experiência normal de vida, forme a sua convicção atendendo a essas declarações, na parte em que não constituem confissão. - Deve ser em sede de fundamentação da matéria de facto que as declarações de parte devem ser valoradas, ponderando-se o seu conjunto com os demais elementos de prova que existam, sem prejuízo da eventual confissão que ocorra. - O concreto juízo final ficará dependente da criteriosa apreciação da factualidade sub judice, da forma como em concreto foram prestadas as declarações de parte e da análise de outros eventuais elementos de prova que possam existir e que, ainda que de forma indirecta, permitam alcançar no julgador aquele grau de convicção exigível no caso em apreço. - Não procede o argumento do recorrente de que, tendo os Autores vivido em vários países da América Latina em alojamentos de Airbnb, não se pode concluir por uma vivência análoga às dos cônjuges, por ausência de uma residência que se possa considerar como lar ou de uma coabitação contínua, ou que as despesas suportadas com esses alojamentos possam corresponder a despesas do “lar”. - Esta argumentação não acompanha a tendência actual dos jovens (ou não tão jovens) casais que se adaptaram às vantagens trazidas pelas novas tecnologias de comunicação que permitiram que as pessoas trabalhem a partir de vários pontos do mundo, com deslocações frequentes, indo de encontro às aspirações que muitos nutrem de, assim, poderem conhecer vários países do mundo. São os chamados nómadas digitais, que trabalhando à distância, podem escolher qualquer destino para viver e trabalhar, uma vez que só precisam de uma ligação à net e de um computador. - A transitoriedade dos países por onde passaram e o tipo de alojamento onde ficaram não é demonstrativa da ausência de uma coabitação contínua e estável ou que as despesas com o tipo de alojamento não podem corresponder a “despesas do lar”.
Texto Integral
ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA
I – RELATÓRIO
S... e E... intentaram a presente acção contra o Estado Português, representado pelo Ministério Público, pedindo seja declarado que vivem em união de facto, com vista à obtenção de nacionalidade portuguesa por parte da autora, nos termos e para os fins da Lei nº 7/2001 e da Lei nº 37/81.
Para tanto alegam que vivem juntos, como marido e mulher desde Março de 2020, partilham cama, refeições e habitação.
O Ministério Público, em representação do Estado Português, apresentou contestação, na qual impugnou os factos alegados, por desconhecer os mesmos.
Foi dispensada a realização de audiência prévia e foi proferido despacho saneador, no qual foi fixado o objecto do litígio e os temas da prova.
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Realizada a audiência de julgamento, foi proferida sentença que terminou com o seguinte dispositivo:
“Em face do exposto, julgo a ação procedente por provada e, em consequência, reconheço que os autores S... e E...vivem há mais de três anos em união de facto. Sem custas face à isenção do réu (artigo 4º, n.º 1, alínea a) do Regulamento das Custas Processuais)”.
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Inconformado com a sentença, veio o MºPº, em representação do réu Estado Português, interpor recurso, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões (que se transcrevem):
“A. O presente recurso incide sobre a douta sentença proferida em 27-06-2024, através da qual o Tribunal a quo julgou a presente ação por provada e, em consequência, decidiu reconhecer que os autores S... e E...vivem há mais de três anos em união de facto. B. O Tribunal a quo, no ponto 4 dos factos provados, julgou incorretamente que: “Os Autores nutrem uma relação familiar, social e afetiva, tendo iniciado a vida em comum, na mesma casa, situada na Freguesia de Abrantes (S. Vicente e S. João) e Alferrarede, na Rua…, em Março de 2020”. C. Os factos mencionados, dados como provados, constituem uma interpretação conclusiva sobre a natureza da relação dos Autores, e não constituem factos objetivos e concretos demonstrativos da coabitação e vida em comum entre os mesmos. D. Não obstante, a suposta vivência em comum tenha tido lugar, durante cerca de dois anos na casa da mãe da Autora, tal como alegado pelos Autores, não deixa de ser surpreendente que não foi arrolada qualquer testemunha que tenha corroborado tal versão dos factos, nem mesmo a mãe da Autora S..., proprietária da casa onde ambos residiram, e com quem terão convivido durante esse período. E. A união de facto é uma relação que deve ser assumida como pública e exteriorizada, pelo que, in casu, podiam e deviam ter sido apresentadas testemunhas da vivência comum dos Autores, não tendo sido apresentada nenhuma justificação para o não terem sido. F. Não se demonstrou uma partilha de vida entre os Autores, não sendo suficiente a existência do registo da mesma morada para concluir que os Autores têm uma vida em comum, sendo que tal facto fica seriamente colocado em dúvida, atendendo a que a coabitação não ocorreu exclusivamente entre os mesmos, com a autonomia e independência que se exige numa união de facto, mas sim com a presença de um terceiro elemento (a mãe da Autora), proprietária da casa. G. Segundo as regras de experiência comum, podem ser várias as circunstâncias de vida que levam duas pessoas a declarar habitar na mesma morada, ou optar pela declaração conjunta de rendimentos em sede de IRS, sem que entre as mesmas se verifique uma coabitação efetiva ou vivência comum. H. Atentando para o DOC. 7 junto com a P.I., denominado “Registo Central de Contribuinte”, verifica-se que, sem prejuízo, de o Autor E… ter registada como morada de residência “R…, Abrantes”, nesse mesmo documento se refere como “Data de Produção de Efeitos: 2022-02-04”, ou seja, quase dois anos depois do início da vivência na referida morada, e em momento temporal próximo da deslocação dos Autores para o estrangeiro, nomeadamente para países da América do Sul. I. Resultou evidenciado que a deslocação e manutenção do Autor E... para a casa da mãe da Autora, não se tratou de uma decisão conjunta, tomada no sentido de estabelecimento de uma vida em comum, mas “imposta” pelas circunstâncias vividas em período de confinamento, na sequência das restrições de deslocações e paralisação da atividade económica. J. Evidencia-se que a deslocação do Autor para Abrantes, casa da mãe da Autora, foi uma decisão extraordinária, tomada na sequência das medidas de contenção do Covid-19, que obrigou ao “confinamento”, e nunca visou o estabelecimento de uma vida em comum, como fica patente quando a Autora S... refere que “supostamente [a residência em Abrantes] era uma coisa temporária” e “Com o Covid, a situação estendeu-se mais do que nós estávamos à espera, e ficámos a morar em Abrantes durante mais de dois anos até”. K. A tese da deslocação exclusivamente motivada pelo confinamento decorrente do Covid-19 é consentânea com o facto de ambos ali se terem mantido durante todo o período em que vigoraram as medidas de contenção epidemiológica, tendo se deslocado para o estrangeiro, logo que foram levantadas as medidas de restrição às deslocações (maio de 2022). L. Os Autores reconhecem que, aquando da deslocação para Abrantes, nem mesmo a mãe da Autora, os via como namorados, pelo que se afigura que os mesmos nunca tiveram uma intenção genuína e permanente de constituir uma união de facto, estável e duradoura, sendo que a coabitação em Abrantes foi “artificialmente” determinada pela situação epidémica vivida à data. M. A Autora S... manifestou dificuldade em descrever a vida de casal que, no dia-a-dia, mantém com o Autor E..., justificando-se “Estamos muito tempo a trabalhar, na verdade, essa é a maior parte da nossa vida, e passamos quase todo o dia a trabalhar”. N. Pelo exposto, o aludido ponto 4 dos factos provados, deveria ter sido julgado como não provado, tendo o mesmo sido incorretamente julgado como provado. O. No ponto 5 dos factos provados o Tribunal a quo, julgou incorretamente como provado que: “Vivem em economia comum, ambos contribuindo para o sustento do lar, mediante mútuo auxílio no pagamento das despesas”. P. O ponto 5 dos factos dados como provados pelo Tribunal a quo, constitui um juízo meramente conclusivo, não mencionando os concretos factos donde resulte que os ambos os Autores tenham contribuído para o sustento do lar, ou o mútuo auxílio no pagamento das despesas. Q. Segundo alegam os Autores, os mesmos terão residido, num primeiro momento (até meados de 2022), em casa da mãe da Autora, e num segundo momento (a partir de fevereiro de 2022), nos vários alojamentos contratados em regime de Airbnb, em vários países da América do Sul, como seja Colômbia, Perú, Chile e Brasil. R. Assim, a única residência comum que mantiveram com alguma estabilidade (cerca de dois anos), foi a que mantiveram em Abrantes (casa da mãe da Autora), e face ao contexto em que ocorreu, como atrás ficou explanado, afigura-se que apenas subsistiu devido à obrigação de confinamento que vigorava na época. S. Foi a mãe da Autora S... que pediu, aquando da implementação das medidas de contingência e mitigação do Covid-19, para que esta regressasse a sua casa, em Abrantes, tendo a Autora pedido autorização a sua mãe para levar consigo o Autor E.... T. Segundo as regras da experiência comum, também se depreende que terá sido a mãe da Autora a ter efetuado os pagamentos das despesas, não só na qualidade de mãe da Autora, mas de igual modo, porque sendo a casa sua, é natural que as despesas, por exemplo, da eletricidade, água, gás ou telecomunicações, se encontrassem em seu nome, e não em nome dos Autores. U. Pelo que a obrigação jurídica de pagamento dessas mesmas despesas incidiria exclusivamente sobre a proprietária da casa (mãe da Autora S...), e não sobre os Autores, que a terem efetuado qualquer pagamento, que também não ficou demonstrado, o fizeram, esporadicamente, a título de “ajuda”, em resultado de um mero dever moral. V. Logo em maio de 2022, quando a nível interno e internacional, levantadas as restrições às deslocações, os Autores decidem embarcar por um “périplo” pela América Latina, residindo em alojamentos alugados em regime de Airbnb, o que permite concluir que inexistência, neste período, de uma residência estável que possa ser considerada como “lar”. W. Ora, a transitoriedade dos locais (e países) onde residiram durante um longo período de tempo é demonstrativa de ausência de uma coabitação contínua e estável, pelo que o pagamento de despesas a ter ocorrido, nesse contexto, não se poderá afirmar corresponder a “despesas do lar”, mas sim a despesas de serviços de alojamento local prestados por terceiros. X. Os contratos de arrendamento, emitidos em nome dos Autores nada demonstram no que se refere ao efetivo alojamento em comum, e designadamente quanto concretos períodos em que tais ocorreram, e à partilha das respetivas despesas. Y. Os Autores alegaram que, em 29 de agosto de 2023, foram residir temporariamente em Santiago do Chile, juntando como meio de prova, cópia do respetivo contrato de arrendamento (DOC. 21 junto com a Petição Inicial). No referido contrato, redigido em língua espanhola, constata-se que as partes outorgantes do contrato, que o assinam, são apenas Carlos …., de nacionalidade chilena, na qualidade de senhorio, e E..., na qualidade de arrendatário, não sendo a Autora S... sequer parte do mesmo, não obstante no mesmo se referir que “el arrendador entrega en arriendo al Arrendatario, acompanhado por S... (…)”. Z. Pelo exposto, o aludido ponto 5. dos factos provados, deveria ter sido julgado como não provado, tendo o mesmo sido incorretamente julgado como provado. AA. Nos pontos 7 e 8 dos factos provados, julgou o Tribunal a quo provado que: “Residiram em diversos países, enquanto viajavam e trabalhavam, uma vez que trabalham remotamente” e “Em 29 de agosto de 2023, foram residir temporariamente para Santiago do Chile, durante cerca de cinco meses”. BB. A formulação genérica de que os Autores residiram em “diversos países”, sem especificar quais, e os respetivos períodos, é demasiadamente ambígua para constituir um facto provado, que possa constituir pressuposto para reconhecimento da união de facto. CC. Relativamente às viagens e deslocações aos países da América do Sul (Colômbia, Perú, Chile ou Brasil), não foi produzida prova testemunhal nem foram juntos quaisquer documentos que tenham a virtualidade probatória de demonstrar que os Autores fizeram várias viagens de trabalho, de lazer ou de turismo. DD. Mesmo a admitir a vivência dos Autores em diferentes alojamentos locais durante as viagens realizadas pelos países da América do Sul, tal facto não é demonstrativo de uma coabitação duradoura, nem de uma residência estável, como pressuposto da união de facto, pelo que não poderia assumir a relevância de facto provado. EE. A Autora S... indicou como morada o local de residência de sua mãe, mesmo que, logo de seguida, tenha admitido que não reside em Portugal, mencionando “Residimos no Brasil. Na verdade, acabámos um contrato de arrendamento agora no Brasil, viemos a Portugal, e vamos começar agora outro contrato de arrendamento”. FF. Nenhuma prova documental foi junta que demonstrasse que os Autores trabalhassem remotamente a partir dos países da América do Sul onde terão vivido, nem foi inquirida nenhuma testemunha que declarasse no sentido de aqueles trabalharem remotamente a partir daí. GG. O Autor E..., nas declarações de rendimentos que apresentou em Portugal, nunca declarou rendimentos, e em audiência, referiu que, pelo menos enquanto se encontrava em Portugal, vivia de “poupanças”. HH. Os aludidos pontos 7. e 8. dos factos provados, deveriam ter sido julgados como não provados, tendo o mesmo sido incorretamente julgados como provados. II. No ponto 10 dos factos provados, a sentença recorrida considerou incorretamente como provado que os Autores “Atualmente, encontram-se a residir no Brasil”. JJ. Entendeu o Tribunal a quo, julgar como provado que os Autores residem, atualmente, no Brasil, sem, contudo, especificar em que morada, ou sequer, em que cidade ou estado, e desde que data. KK. A Autora S..., em audiência de julgamento, ao identificar-se tenha indicado como morada de residência, a sua morada em Portugal, nomeadamente a casa de sua mãe (em Abrantes), não obstante tenha depois referido só está em Portugal, durante quinze dias, para um casamento. LL. Já o Autor E..., quando questionado sobre a sua morada atual, indicou a morada de um imóvel referente a um “novo” contrato de arrendamento celebrado no Brasil, necessitando de consultar o telemóvel, de modo a poder indicar a morada completa. MM. O aludido ponto 10. dos factos provados, não deveria ter sido julgado como provado, devendo o mesmo ser expurgado. NN. Fundamentou a sentença recorrida que “(…) independentemente das circunstâncias que determinaram o início da vida em comum, ficou demonstrado que, desde Março de 2020, os autores vivem juntos, em comunhão de mesa, leito e habitação. E, desde essa data, tal união e vivência em comum mantém-se, pelo que se encontra suficientemente verificada a relação de união de facto desde essa data”. Concluiu o Tribunal a quo que, assim, “há que reconhecer que os autores vivem em união de facto há mais de três anos, julgando-se a acção totalmente procedente”. OO. No entanto, não ficaram demonstrados quaisquer factos concretos demonstrativos que, desde Março de 2020, os Autores vivem juntos, em comunhão de mesa, leito e habitação, tal como exigida pela Lei da União de Facto, antes pelo contrário. PP. Conforme ensina FRANÇA PITÃO, “Não basta uma relação fugaz, uma aventura amorosa ou encontros esporádicos para que possa falar-se de união de facto. É necessário que a relação adquira contornos tais que seja ou possa ser vista, não só pelos intervenientes, mas também pelas pessoas que os rodeiam e com eles convivem como uma relação em tudo igual ao casamento, em que as pessoas sejam como tal vistas e tratadas. Em resumo, tem de haver uma «ficção de casamento»”. QQ. A ausência total de testemunhas que corroborassem a existência de uma vida comum estável dos Autores, e a falta de prova produzida referente a uma partilha efetiva de responsabilidades, reforçam a ideia que o relacionamento se configurou mais, durante este período, como uma relação de namoro do que de uma união de facto. RR. Os Autores, em declarações de parte, vieram mesmo reconhecer que a mãe da Autora, pelo menos, em março de 2020, nem os via como namorados, desconhecendo-se o momento em que os viu como tal, e desconhecendo-se se alguma vez os tratou como se vivessem numa relação «em tudo igual ao casamento». SS. No caso dos autos, não se demonstrou uma partilha de vida, não sendo suficiente a existência do registo da mesma morada para concluir que os Autores têm entre si uma relação análoga à dos cônjuges. Acresce que, segundo as regras de experiência comum, a coabitação não tem como única explicação a conjugalidade, podendo ser várias as circunstâncias de vida que levam duas pessoas a declarar habitar na mesma morada. TT. Discorda-se da sentença recorrida quando argumenta que, para o reconhecimento da união de facto, não relevam as circunstâncias que determinaram o início da vida em comum, pois é de entender que, pelo menos, deve evidenciar-se um projeto de vida comum dos autores. UU. Conforme refere o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça datado de 22-03-2024, relatora Rosa Tching, processo n.º 6380/16.9T8CBR.C1.S1: «A vivência em “condições análogas às dos cônjuges” deve ser aferida segundo critérios de normalidade e de vulgaridade, inseridos na cultura a que pertencemos». VV. Conforme os Autores reconheceram que ambos residiam em Lisboa, onde se conheceram em janeiro de 2020, tendo começado a relação de namoro em 21 de fevereiro de 2020, e “quase imediatamente começámos a viver juntos”. Reconheceram os Autores que foi, na sequência do decretamento de medidas extraordinárias de resposta à epidemia do Covid-19, em 12-03-2020, que a mãe da Autora pediu que esta voltasse para casa, “para ficar junto com a família”. WW. A Autora S... declarou em audiência que questionou à mãe, se o Autor E... podia ir consigo “porque ele estava sozinho”, o que mais se coaduna com um pedido de autorização para que aquele fosse viver consigo. XX. Resulta evidenciado que a deslocação do Autor E... para a casa da mãe da Autora, não se tratou de uma decisão conjunta, tomada no sentido de estabelecimento de uma vida em comum, mas imposta pelas circunstâncias vividas em período de confinamento, na sequência das restrições da liberdade ambulatória, nomeadamente de deslocações, e da paralisação quase total da atividade económica. YY. A deslocação dos Autores para Abrantes, foi uma decisão extraordinária e transitória, tomada na sequência das medidas de contenção do Covid-19, como fica patente quando a Autora S... mencionou que “supostamente era uma coisa temporária”, e “Como o Covid, a situação estendeu-se mais do que nós estávamos à espera, e ficámos a morar em Abrantes durante mais de dois anos”. ZZ. A Autora S... é perentória referindo que “(…) para a minha mãe não era uma relação, era um amigo”, visão confirmada pelo Autor E... ao mencionar que “A mãe dela não sabia que nós namorávamos”, e que “A mãe não dizia que era namorado, dizia que era amigo”. AAA. A decisão de viajar por vários países, a partir de maio de 2022, e as constantes mudanças de domicílio, de idêntico modo, não podem ser enquadradas num propósito de manter uma vida comum estável, mas demonstrativas da ausência de plano comum para fixar um lar estável, e da falta do correspondente compromisso comum necessário para esse efeito. BBB. As viagens realizadas pelos Autores, que percorreram vários países e cidades da América Latina, vivendo em alojamentos temporários, e sem estabelecer, até ao presente, uma residência fixa, são mais consentâneas com a busca de “aventuras” ou experiências de vida temporárias e transitórias. CCC. A própria Autora S... admitiu que “gosta muito de viajar” e que mesmo a atual permanência do Brasil também poderá ser transitória. DDD. O cerne de uma união de facto reside numa coabitação que, na medida do possível, se deve apresentar estável, contínua e duradoura num determinado lar, com a correspondente partilha de responsabilidades. Não ficaram demonstrados factos de que resultasse a coabitação dos Autores, em comunhão de mesa, leito e habitação, nem a existência de um projeto de vida comum, pelo que não é possível concluir que os mesmos vivam em união de facto. EEE. Ao decidir como decidiu violou a douta sentença recorrida, entre o mais, o disposto nos artigos 1.º, n.º 2. e 2.º-A, ambos da Lei n.º 7/2001, de 11 de Maio, na redação dada pela Lei n.º 71/2018, de 31 de dezembro. FFF. A douta sentença não deverá ser mantida, devendo ser revogada, substituindo-se por outra que julgue a ação totalmente improcedente, por não provada”.
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Os autores não apresentaram contra-alegações.
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Colhidos os vistos, cumpre decidir.
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II - DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do Recorrente, ressalvadas as questões que sejam do conhecimento oficioso do tribunal (artigos 635º, n.º 4 e 639º, n.º 1 do CPC).
No caso vertente, as questões a decidir que ressaltam das conclusões do Recurso interposto são as seguintes:
- Se deve ser modificada a decisão proferida sobre a matéria de facto;
- Se deve ser alterada a decisão de mérito.
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III - FUNDAMENTAÇÃO
3.1. Os factos
Na 1ª instância, foi a seguinte a decisão quanto à matéria de facto:
“A – Matéria de Facto Provada Com relevância para a presente decisão, mostram-se provados os seguintes factos: 1. A autora nasceu em 03.09.1996, é solteira e tem nacionalidade portuguesa. 2. O autor nasceu em 25.12.1991, é solteiro e tem nacionalidade russa. 3. O autor tem Título de Residência em Portugal, tem Identificação Fiscal portuguesa, com o n.º, encontra-se inscrito na Segurança Social, com o n.º. 4. Os Autores nutrem uma relação familiar, social e afetiva, tendo iniciado a vida em comum, na mesma casa, situada na Freguesia de ….. e …., na Rua…, em Março de 2020. 5. Vivem em economia comum, ambos contribuindo para o sustento do lar, mediante mútuo auxílio no pagamento das despesas 6. Optam pela tributação conjunta dos seus rendimentos em sede de IRS desde 2021. 7. Residiram na morada indicada em 4), casa da mãe da autora durante cerca de 2 anos, após o que se mudaram para a América do Sul. 8. Residiram em diversos países, enquanto viajavam e trabalhavam, uma vez que trabalham remotamente. 9. Em 29 de agosto de 2023, foram residir temporariamente para Santiago do Chile, durante cerca de cinco meses. 10. Actualmente encontram-se a residir no Brasil. * B – Matéria de Facto Não Provada Não ficaram por provar factos com relevância para a decisão da causa”.
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3.2. O Direito
3.2.1. Da modificabilidade da decisão sobre a matéria de facto
O MºPº recorre da sentença, impugnando a decisão da matéria de facto, defendendo que deveriam ter sido dados como não provados os pontos 4, 5, 7, 8 e 10.
O artigo 640º do CPC, impõe ao recorrente o ónus de:
a) especificar os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) especificar os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que imponham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) especificar a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
Entendemos que o recurso interposto, no que respeita à impugnação da matéria de facto cumpre o ónus imposto pelo art.º 640º do CPC, pelo que passaremos à análise da referida impugnação.
Como se referiu, o Apelante põe em causa os pontos 4, 5, 7, 8 e 10, entendendo que os mesmos não deveriam ter sido considerados como provados.
Quanto aos dois primeiros pontos, defende que os factos descritos no ponto 4 “constituem uma interpretação conclusiva sobre a natureza da relação dos Autores, e não constituem factos objetivos e concretos demonstrativos da coabitação e vida em comum entre os mesmos”, e que apesar de a suposta convivência em comum possa ter existido não foi arrolada qualquer testemunha que pudesse corroborar o alegado, sendo que a união de facto “é uma relação que deve ser assumida como pública e exteriorizada”. Por outro lado, defende que a existência de registo da mesma morada ou a apresentação da declaração de rendimentos em comum não é suficiente para concluir pela vida em comum. Por outro lado, argumenta que a deslocação do Autor para casa da mãe da Autora não resultou de uma decisão conjunta, no sentido de estabelecer uma vida em comum, mas “imposta pelas circunstâncias vividas em período de confinamento”, para ser uma situação temporária, como referido pela Autora. No que respeita ao ponto 5 dos factos provados, alega o Apelante que o mesmo constitui um juízo meramente conclusivo, por não mencionar factos concretos de onde resulte que ambos os Autores contribuam para o sustento do lar, sendo certo que nos dois anos que residiram em casa da mãe da Autora, as despesas da casa eram pagas por aquela. Depois do período de dois anos, em que terão residido em Abrantes, residiram em vários países da América Latina em alojamentos de Airbnb, sem que se possa concluir, nesse período, por uma residência estável que se possa considerar como lar, nem nada foi demonstrado de onde se possa concluir que nesse período os Autores partilharam despesas, não sendo de considerar para esse efeito o contrato de arrendamento celebrado no Chile, em que apenas aparece como arrendatário o Autor.
No que respeita aos pontos 7 e 8, alega que a referência genérica à residência em “diversos países” é “demasiado ambígua” para que possa constituir pressuposto para o reconhecimento de uma união de facto. Da mesma foram, insiste que não foi produzida prova testemunhal, nem documental quanto a esse facto e mesmo que o fosse o tipo de vida e alternância de alojamentos locais não permite concluir por uma coabitação duradoura e residência estável. Por outro lado, não foi junta qualquer prova testemunhal ou documental quanto ao facto de os Autores trabalharem remotamente a partir de países de África do Sul.
Quanto ao ponto 10, defende o Apelante que as declarações dos Autores não foram convincentes, pelo que também devia ser dado como não provado.
Na fundamentação da decisão da matéria de facto, escreveu a Sr.ª Juiz a quo:
“A convicção do Tribunal alicerçou-se nas declarações de parte prestadas por ambos os autores, as quais se mostraram espontâneas, isentas e credíveis, conjugadas com os documentos juntos aos autos, concretamente as certidões de nascimento dos autores, atestado de residência, declaração de união de facto, comprovativo de residência fiscal, declarações de IRS conjuntas, contratos de arrendamento. Ambos os autores descreveram as circunstâncias e data em que iniciaram a relação e começaram a viver juntos, inicialmente, durante a pandemia, em casa da mãe da autora, em Abrantes, posteriormente, durante alguns meses em vários países da América do Sul, enquanto viajavam e trabalhavam remotamente, e actualmente no Brasil, onde celebraram contrato de arrendamento em conjunto para os próximos anos. (…) Entendemos, assim, que a prova por declarações de parte, ainda que sujeita a livre apreciação do Tribunal, é insuficiente para, sem qualquer outro elemento probatório, sustentar a sua convicção. No caso, contudo, as declarações de parte, ainda que não coadjuvadas por prova testemunhal, encontram-se suficientemente suportadas pela prova documental junta, permitindo, em conjunto, corroborar a vivência comum dos autores, enquanto casal, desde Março de 2020”.
Uma vez que a prova produzida resultou das declarações de parte dos autores e da análise documentos juntos aos autos, este tribunal ouviu integralmente aquelas declarações.
Assim, a Autora S..., de forma espontânea, coerente e sem contradições, narrou de que forma iniciou o seu relacionamento amoroso com o Autor E..., referindo que se conheceram em Janeiro de 2020, começaram a namorar em Fevereiro do mesmo ano e, em Março, quando o país entrou em confinamento devido à pandemia do Covid, a mãe convenceu-a a ir para casa, em Abrantes, altura em que pediu a esta para que o Autor também a pudesse acompanhar, pois pensavam que seria uma situação que se manteria por 10 dias. Comentou, sem qualquer subterfúgio, que a mãe inicialmente via o E... como um amigo, mas depressa percebeu que era mais do que isso. Acabaram por ficar a viver juntos em Abrantes em casa da mãe, por dois anos, até que em Maio de 2022, porque trabalhavam os dois à distância, foram viver para a América do Sul, passando pela Colômbia, Peru, Chile, permanecendo um mês em cada país, depois viveram em Agosto de 2022 em São Paulo, Curitiba e Santos, no Brasil (sempre em alojamentos locais ou AirB&B), e voltaram para o Chile onde passaram mais 5 meses, tendo arrendado uma casa. Actualmente residem no Brasil, onde também arrendaram uma casa. De forma igualmente espontânea e credível, referiu que desde que iniciaram o namoro e passaram a viver juntos nunca mais estiveram separados, dormem juntos, têm uma boa relação afectiva/amorosa, referindo que contribuem os dois para as despesas do dia a dia, dos arrendamentos (inicialmente, em casa da mãe, apenas contribuíam com as despesas de supermercado, pois a mãe não aceitava ajuda nas despesas da casa (o que se compreende), explicou que é o Autor que faz o pequeno almoço e ela o jantar, tendo em conta os horários de trabalho de ambos e o facto de trabalharem à distância para diferentes países, passeiam juntos e têm actividades de lazer e amigos em comum no Brasil, sendo que à data em que se realizou o julgamento se encontravam em Portugal, onde iam ficar por 15 dias, pois vão ao casamento de uma amiga.
Por sua vez, o Autor E..., confirmou a forma como conheceu a Autora S..., em Janeiro de 2020, afirmando que começaram a namorar quase de imediato, sendo que esta ficava muitas vezes a dormir consigo num quarto que tinha no espaço de CoWorking em Lisboa. Por causa do confinamento imposto pelo Covid, mudaram-se para casa da mãe de S..., em Março de 2020, porque não se queriam separar. Inicialmente era considerado por pela mãe da S... como amigo da filha. Nas suas palavras, “depois correu bem” e ficaram a residir naquela morada, em Abrantes, por dois anos. Dormiam juntos, faziam as refeições juntos e ajudavam nas despesas, com a compra de “comida”, não com as despesas da casa que eram suportadas pela mãe da S.... Apesar de não ter rendimentos em Portugal, pois o trabalho que fazia era digital e a startup para que trabalhava não tinha lucros, tinha as suas poupanças. Depois foram para a América Latina, onde viveram por uns tempos na Colômbia, Peru, Chile e Brasil, onde vivem actualmente, em São Paulo, há quase dois anos. Afirmou categoricamente que desde 18/3/2020 sempre viveram juntos, fazem tudo juntos, têm amigos, já visitaram a sua mãe na Holanda por duas vezes e conhece toda a família da S..., avós, irmã, cunhado, tios, sendo que ainda no dia anterior tiveram um almoço de família.
Como se sabe a prova, através do depoimento de parte, visa alcançar a confissão dos factos naturalmente desfavoráveis ao depoente e obedece ao regime adjectivo previsto nos arts. 452º a 465º do CPC.
As declarações de parte, proferidas ao abrigo do art.º 466º, nº s 1 e 2 do CPC quanto aos factos favoráveis estão sujeitas ao princípio da livre apreciação da prova -nº 3 do mesmo artigo.
Apesar da necessária prudência na valoração das declarações de parte, tendo em conta o natural interesse directo no desfecho favorável da causa, nada impede que o juiz, na avaliação global dos meios de prova, à luz do objecto do processo, com recurso, se necessário, a presunções judiciais, em conformidade com as regras da lógica e da experiência normal de vida, forme a sua convicção atendendo a essas declarações, na parte em que não constituem confissão.
A valoração das declarações de parte tem suscitado divisão na doutrina e jurisprudência, sendo possível diferenciar três posições.
Uma posição defende que as declarações de parte constituem uma forma de o juiz esclarecer, clarificar o resultado das demais provas produzidas em audiência (neste sentido, cfr. Ac. da RC de 8/7/21, proc. 5281/19.3T8VIS.C1).
Uma segunda tese defende que as declarações de parte, não sendo suficientes para, de per si, sustentar a prova de factos favoráveis ao depoente, permitem quando conjugadas com outros meios de prova que as corroborem, sustentar a convicção do juiz quanto à prova de tais factos (neste sentido, cfr. os Acs. da RP de da RP de 20/11/14, p. 1878/11; de 26/6/14, p. 216/11; de 23/4/18, p. 482/17de 4/2/19, p. 999/15; da RE de 17/1/19, p. 800/17; da RG de 18/1/2018, p. 294/16; de 3/5/18, p. 4891/17; da RL de 13/10/2016, p. 640/13; de 1/3/18, p. 1770/16, todos disponíveis em www.dgsi.pt).
Por fim, uma terceira posição sustenta que o juiz pode formar a sua convicção quanto à prova dos factos nas declarações de parte sem recurso a outros meios probatórios, é a tese da auto-suficiência das declarações de parte. Segundo António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, in Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, Parte Geral e Processo de Declaração, Coimbra, 2018, pág. 539 e ss., em anotação ao citado art.º 466º do CPC, as declarações de parte estão ao mesmo nível que os demais meios de prova, sendo valoradas de forma autónoma e integrada, sem que se estabeleça qualquer hierarquia entre os vários elementos probatórios. Significa isto que é em sede de fundamentação da matéria de facto que as declarações de parte devem ser valoradas, ponderando-se o seu conjunto com os demais elementos de prova, sem prejuízo da eventual confissão que ocorra. Conforme se pode ler no Ac. da RL de 26/4/2017, p. 18591/15, relatado por Luís Filipe Pires de Sousa, “repudiamos o pré-juízo de desconfiança e de desvalorização das declarações de parte, sendo infundada e incorreta a postura que degrada – prematuramente - o valor probatório das declarações de parte. Em primeiro lugar, a prova testemunhal, a prova pericial e a prova por inspeção estão também sujeitas à livre apreciação do tribunal (Arts. 389, 391 e 396 do Código Civil), sem que se questione que o juiz possa considerar um facto provado só com base numa dessas provas singulares, no limite, só com base num depoimento. Em segundo lugar, desde há muito que se enfatiza que o interesse da testemunha na causa não é fundamento de inabilidade, devendo apenas ser ponderado como um dos fatores a ter em conta na valoração do testemunho. Assim, «Nada impede assim que o juiz forme a sua convicção com base no depoimento de uma testemunha interessada (até inclusivamente com base nesse depoimento) desde que, ponderando o mesmo com a sua experiência e bom senso, conclua pela credibilidade da testemunha.» (Ac. da RP de 15/3/2012, Deolinda Varão, 6584/09). Ou seja, o interesse da parte (que presta declarações) na sorte do litígio não é uma realidade substancialmente distinta da testemunha interessada: a novidade é relativa e não absoluta, a diferença é de grau apenas. Elizabeth Fernandez enfatiza pertinentemente que «se as partes podem passar a declarar a seu pedido o que viram, ouviram, sentiram, cheiraram, tocaram, conversaram, disseram, em suma, o que testemunharam, e porque o testemunharam não faz qualquer sentido conferir a estas declarações proferidas por pessoas que materialmente são testemunhas só porque são partes, um valor diverso do daqueles factos que foram testemunhados por quem é material e formalmente testemunha» (in “Nemo Debet Esse Testis in Própria Causa? Sobre a (in)Coerência do Sistema Processual a Este Propósito”, in Julgar Especial, Prova Difícil, 2014, p. 23). Com efeito, amiúde se não na maioria dos casos, quem tem melhor razão de ciência do que a própria parte? Em terceiro lugar, o texto do Artigo 466º não degradou o valor probatório das declarações de parte, nem pretendeu vincar o seu caráter subsidiário e/ou meramente integrativo e complementar de outros meios de prova. Se esse fosse o desiderato do legislador, o mesmo teria adotado uma formulação diversa à semelhança, por exemplo, do que se prevê no § 445 do Código de Processo Civil Alemão. Em quarto lugar, o julgador tem que valorar, em primeiro lugar, a declaração de parte e, só depois, a pessoa da parte porquanto o contrário (valorar primeiro a pessoa e depois a declaração) implica prejulgar as declarações e incorrer no viés confirmatório. Dito de outra forma, tal equivaleria a raciocinar assim: não acredito na parte porque é parte, procurando nas declarações da mesma, detalhes que corroborem a falta de objetividade da parte sempre no intuito de confirmar tal ponto de partida. A credibilidade das declarações tem de ser aferida em concreto e não em observância de máximas abstratas pré-constituídas, sob pena de esvaziarmos a utilidade e potencialidade deste novo meio de prova e de nos atermos, novamente, a raciocínios típicos da prova legal de que foi exemplo o brocardo testis unis, testis nullus (uma só testemunha, nenhuma testemunha)” – acórdão disponível em www.dgsi.pt.
No fundo, deve ser em sede de fundamentação da matéria de facto que as declarações de parte devem ser valoradas, ponderando-se o seu conjunto com os demais elementos de prova que existam, sem prejuízo da eventual confissão que ocorra.
Tal como referido no citado acórdão da Relação de Lisboa, “os critérios de valoração das declarações de parte coincidem essencialmente com os parâmetros de valoração da prova testemunhal, havendo apenas que hierarquizá-los diversamente. Em última instância, nada obsta a que as declarações de parte constituam o único arrimo para dar certo facto como provado desde que as mesmas logrem alcançar o standard de prova exigível para o concreto litígio em apreciação” (nestes mesmo sentido cfr. Acs. do STJ de 28/1/2020, 287/11, disponível em ECLI; de 7/2/2019, p. 2200/18; da RG de 13/9/18, p. 159/17; de 4/4/19, p. 1012/15; de 2/5/19, p. 2319/17; de 28/5/20, p. 5959/16; de 1/10/20, p. 3461/16; de 13/5/21, p. 6364/16; da RL de 26/4/17, já citado; de 2/2/21, p.2350/16; da RP de 25/3/25, p. 1634/23; da RC de 11/2/20, p. 286/17, todos disponíveis em www.dgsi.pt).
Propendemos para aceitar esta tese mais permissiva, tendo presente que na valoração das declarações de parte prestadas não significa que tudo quanto a parte declare deva ser considerado provado, ou - pelo contrário - que tudo o que a parte declare, e justamente porque é parte, deva ser considerado não provado. O concreto juízo final ficará dependente da criteriosa apreciação da factualidade sub judice, da forma como em concreto foram prestadas as declarações de parte e da análise de outros eventuais elementos de prova que possam existir e que, ainda que de forma indirecta, permitam alcançar no julgador aquele grau de convicção exigível no caso em apreço.
Assim, tendo em conta as declarações de parte prestadas nos autos, impõe-se não só fazer a sua apreciação, como conjugá-las com os documentos juntos aos autos, para assim concluir se a convicção a que chegou o tribunal a quo é passível de censura, como defende o Apelante.
Em primeiro lugar, começamos por dizer que as declarações de parte dos dois Autores revelaram-se merecedoras de credibilidade, pois foram prestadas de forma segura, espontânea; ambos tiveram um relato autêntico e sem contradições no que respeita a momentos temporais ou espaciais da vivência em comum desde o ano de 2020 e, ao mesmo tempo, sem denotar preocupação em prestar depoimentos idênticos, fazendo sobressair determinados factos que lhes pudessem ser essenciais na perspectiva de fazer valer a sua pretensão, o que evidenciaria uma posição concertada e “trabalhada”.
É certo que os Autores não arrolaram testemunhas, que facilmente poderiam atestar os factos alegados, mas tal não surpreende pelo facto de desde o ano 2022 viverem entre países da América latina, passando pequenos períodos de tempo em cada um, como relataram, porque trabalham os dois à distância e gostam de viajar.
Acresce que os Autores juntaram 21 documentos com a petição inicial, cuja análise, concatenada com aquelas declarações, permitiram à primeira instância e também a este Tribunal chegar ao mesmo grau de certeza para dar como provados os factos impugnados pelo Apelante.
Assim, já em Agosto de 2020 o Autor requeria a Concessão de Autorização de Residência, que lhe concedido foi pelo SEF em 29/9/2020, tendo naquele documento indicado como morada a residência da mãe da Autora (docs. 5 e 6); no mês de Julho do mesmo ano foi-lhe passado um Atestado de residência junta de freguesia de Abrantes (S. Vicente e S. João), com a mesma morada (doc. 10); em 6/5/2021, adquire identificação de utente no centro de Saúde de Abrantes (doc. 12), em 21/6/21, recebe cartão de acesso aos serviços da Altice (doc. 16), em Julho de 2021, o Autor recebe uma comunicação da identificação na Segurança Social (doc. 8), em 5/8/21, recebe um de saúde Europeu (doc. 14), todos estes documentos com a menção da mesma morada (residência da mãe da Autora); em 2022, os Autores apresentaram declaração de rendimentos conjunta relativa ao ano de 2021 e recebem a demonstração de liquidação de IRS, mais uma vez na mesma residência (docs. 17 e 18); no ano de 2022, o Autor apresentou um documento para registo de contribuinte (doc. 7) e, em 19/4/22, recebe uma certidão do seu domicílio fiscal na mesma morada (doc. 9); em 22 de Maio é emitido novo atestado de residência da Junta da Freguesia de Abrantes, com teor idêntico ao já referido (doc. 11); em Abril de 2022 os Autores, perante Notária, declaram sobre compromisso de honra que vivem em União de Facto há mais de 2 anos e, em Maio de 2022, a junta de Freguesia emite uma declaração de União de Facto (docs. 19 e 20). Por fim, o documento nº 21, é o contrato de arrendamento celebrado em 29/8/2023, pelo Autor, “acompanhado por S..., nº de passaporte….”, pelo período de 5 meses, daí constando que a residência do Autor é em São Paulo, Brasil.
Ora estes documentos, se por si só, não provam os factos alegados pelos Autores, acrescentam ainda mais coerência e credibilidade às declarações de parte dos mesmos.
Ambos referiram que vivem juntos desde Março de 2020 e que nunca mais se separaram, dormindo juntos, fazendo juntos as refeições, cada um contribuindo para as despesas do casal, comungando dos mesmos interesses e têm amigos em comum.
Ao contrário do casamento, na união de facto não existe um acto fundacional, o que pode dificultar a prova no que respeita ao início do período necessário para que duas pessoas possam invocar juridicamente a união de facto.
Os Autores alegam que esse dia foi em Março de 2020, altura em que ambos foram viver para casa da mãe da Autora. O MºPº contrapõe que esse momento não coincidiu com uma decisão dos Autores no sentido de passarem a viver como casal, não só porque a deslocação para casa da mãe da Autora em Abrantes foi imposta pelo confinamento do Covid, mas também com o argumento (entre outros) de que esta via o Autor como um amigo da filha, como, aliás, foi reconhecido por ambos. No entanto, a verdade é que se assim foi no início, foi esclarecido que a mãe da Autora depressa percebeu que era mais do que um amigo e “depois correu bem”, como referiu o Autor E.... Acresce que o confinamento devido ao Covid, com início no mês de Março do ano 2020, terminou no mês de Maio do mesmo ano, e nem por isso os Autores deixaram de viver juntos e ali permaneceram por dois anos, como por eles foi declarado e cuja prova documental (documentos dos anos 2020, 2021 e 2022) vem confirmar, conferindo um “plus” às já de si credíveis declarações dos Autores.
Assim, senão desde Março, pelo menos desde Maio de 2020 que se pode afirmar que os Autores já viviam, nos moldes por eles referidos, sendo certo que o facto de durante aqueles dois anos apenas ajudarem nas despesas da “comida” e não com as despesas da casa, sendo estas suportadas pela mãe da Autora, não invalida a conclusão a que chegou o tribunal (ponto 5 dos factos provados).
Por outro lado, não procede o argumento de que, tendo os Autores vivido em vários países da América Latina em alojamentos de Airbnb, não se pode concluir por uma vivência análoga às dos cônjuges, por ausência de uma residência que se possa considerar como lar ou de uma coabitação contínua, ou que as despesas suportadas com esses alojamentos possam corresponder a despesas do “lar”.
Pensamos que esta argumentação não acompanha a tendência actual dos jovens (ou não tão jovens) casais que se adaptaram às vantagens trazidas pelas novas tecnologias de comunicação que permitiram que as pessoas trabalhem a partir de vários pontos do mundo, com deslocações frequentes, indo de encontro às aspirações que muitos nutrem de, assim, poderem conhecer vários países do mundo. São os chamados nómadas digitais, que trabalhando à distância, podem escolher qualquer destino para viver e trabalhar, uma vez que só precisam de uma ligação à net e de um computador. Ou seja, a transitoriedade dos países por onde passaram e o tipo de alojamento onde ficaram não é demonstrativa, salvo devido respeito, da ausência de uma coabitação contínua e estável ou que as despesas com o tipo de alojamento não podem corresponder a “despesas do lar”, mas sim a despesas de serviços de alojamento local prestados por terceiros.
Por outro lado, o ponto 8 dos factos provados, não necessita de maior concretização, como propugnado pelo apelante, correspondendo a um mínimo de factos, com relevo para a decisão, sendo que no ponto 9 é referido que em 29 de Agosto foram residir para o Chile, por 5 meses, o que é comprovado por documento e consentâneo com as declarações dos Autores, que afirmaram que viviam no Brasil, quando voltaram ao Chile, por 5 meses, para depois regressarem novamente ao Brasil, onde ainda permanecem. Note-se que o contrato de arrendamento junto com a p.i. como doc. 21 refere que a morada do Autor, arrendatário, é no Brasil e que este estava “acompanhado por S..., nº de passaporte….”.
Por seu turno, o ponto 10 dos factos provados, resulta, mais uma vez, das declarações de parte dos Autores, sem que, nesta parte, exista qualquer motivo para contrariar o que até agora foi dito sobre a sua credibilidade.
Assim, tudo considerado, este Tribunal formula uma convicção idêntica à do Tribunal recorrido, cuja argumentação acompanhamos e reforçamos.
É certo que a redacção do ponto 4 dos factos provados, resultando do alegado pelos Autores no art.º 6 da petição inicial, não é a mais feliz. No entanto, entendemos que contém um inquestionável substrato factual (e não meramente conclusivo, como defende o Apelante) e minimamente consistente, devendo ser interpretado com os restantes factos, de forma a demonstrar a coabitação e vida em comum entre os Autores.
No fundo, dizer que os Autores “nutrem uma relação familiar, social e afectiva, tendo iniciado a vida em comum” (ponto 4), conjugado com o ponto seguinte de que “vivem em economia comum, ambos contribuindo para o sustento do lar, mediante mútuo auxílio no pagamento das despesas” (ponto 5), tem um sentido facilmente apreendido na linguagem comum, correspondendo a factos que qualquer pessoa sem formação jurídica atribuirá a uma coabitação ou a uma vivência íntima, de casal.
Em relação ao ponto 4 dos factos provados entendemos apenas que deve ser alterada a sua redacção, tendo em conta o que foi exposto supra quanto ao início da vida “em comum”, passando a ser a seguinte:
“4. Os Autores nutrem uma relação familiar, social e afetiva, tendo iniciado a vida em comum, na mesma casa, situada na Freguesia de Abrantes (S. Vicente e S. João) e Alferrarede, na Rua …, pelo menos em Maio de 2020”.
Quanto ao mais, pelos motivos já expostos, improcede a impugnação da matéria de facto.
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3.2.2. Da subsunção jurídica
Defende o Apelante a revogação da sentença da primeira instância fundada na alteração da fundamentação de facto por si reivindicada em sede de recurso e que, como vimos, se manteve inalterada nos factos mais relevantes (apenas o ponto 4 dos factos provados sofreu alteração, no que respeito ao início da convivência em comum dos Autores).
Vejamos, pois, se de acordo com a matéria de facto provada a decisão recorrida deverá, ou não, manter-se.
Os Autores intentaram a presente acção peticionando que fosse reconhecida a sua união de facto, nos termos e para os fins da Lei nº 7/2001 e da Lei nº 37/81.
Segundo o nº 3 do art.º 3º da Lei nº 37/81 de 3 de Outubro, “O estrangeiro que, à data da declaração, viva em união de facto há mais de três anos com nacional português pode adquirir a nacionalidade portuguesa, após ação de reconhecimento dessa situação a interpor no tribunal cível”.
A união de facto tem na sua génese a ausência do um contrato com as inerentes formalidades. Por isso, que na sua definição não nos podemos reportar a um acto fundador dessa relação.
A lei vai, então, buscar a caracterização do conceito de união de facto ao tipo de vivência.
A Lei nº 7/2001 de 11/5, define a união de facto como a situação jurídica de duas pessoas que, independentemente do sexo, viviam em condições análogas às dos cônjuges há mais de dois anos (art.º 1º, nº 2).
A utilização da expressão “condições análogas às dos cônjuges” pode levantar dificuldades, face à vastidão de tipos de vivência entre os cônjuges. No entanto, a tutela conferida à união de facto não pode deixar de se sustentar numa ideia de normalidade ou vulgaridade na “vivência conjugal”. Assim, pensa-se na vivência de dois cônjuges em situação de normalidade ou vulgaridade, inseridos na cultura a que pertencemos e é aí que se há-de encontrar o preenchimento do conceito de “condições análogas às dos cônjuges”.
O conceito de “condições análogas às dos cônjuges” tem de buscar-se nos deveres que resultam do casamento, nomeadamente os que constam do art.º 1672º do Código Civil, como os deveres de respeito, fidelidade, coabitação, cooperação e de assistência. Estes deveres, tendo diferentes graus de relevância, admitem mais ou menos preenchimento, segundo as concepções culturais concretas e segundo a disposição voluntária de cada cônjuge e as suas condições específicas. O dever que tem um cariz mais objectivo e, desse modo, mais simples de apurar, é o dever de coabitação, ou seja, viver na mesma casa, ou, nas expressões tradicionais, viver em comunhão de mesa, leito e habitação.
Como se pode ler no Ac. do STJ de 9/7/2014, p. 3076/11, disponível em www.dgsi.pt, “Pode-se viver na mesma casa, repartir os dinheiros ou as refeições, apoiar-se mutuamente na doença e fora dela, que, se não houver qualquer forma de intimidade, não se poderá dizer que se vive “em condições análogas às dos cônjuges”. No fundo estamos perante a “comunhão de mesa, leito e habitação” a que tradicionalmente se recorre para caracterizar a relação (cfr. - se Jorge Pinheiro, O Direito da Família Contemporâneo, 4.ª Ed., 651 e Telma Carvalho, A União de Facto: A Sua Eficácia Jurídica, in Comemorações dos 35 Anos do Código Civil e dos 25 Anos da Reforma de 1977, I, 236). Sendo certo que a alusão a “comunhão de leito” é integrada pela comunhão sexual (Jorge Pinheiro, ob. cit. 653 e França Pitão – União de Facto e Economia Comum, 34). Não cremos, todavia que, apesar da exigência de intimidade, esta seja, em todos os casos, de reportar ao cariz sexual. Sê-lo-á na esmagadora maioria, mas pode haver casos em que a idade, a doença ou a opção pessoal afastem o convívio sexual, mas permitam outras formas de vivência íntima, que são próprias do casamento ou de quem optou por viver “em condições análogas”. Não se justifica que se subtraiam à união de facto pessoas cuja realidade sexual as não impediria de casar. Aliás, a alusão à convivência sexual não é uma constante. Pamplona Corte-Real e Silva Pereira (Direito da Família, 47) reportam-se a «uma profunda intersubjectividade e interrelacionalidade dos cônjuges e, ou, dos parceiros conviventes: dignidade, liberdade, intimidade, respeito pelo próximo e boa-fé». E Cristina Araújo Dias (Revista Jurídica da Universidade Portucalense n.º 15, 2012, página 40), a propósito da jurisprudência do TEDH, refere que tal tribunal «inclui na noção de vida familiar as relações matrimoniais, mas também as famílias de facto, assentes noutras formas de convivência afectiva constitutivas de laços familiares, sendo relevante, portanto, o critério da efectividade de laços interpessoais». Em reforço desta ideia de necessidade de convivência íntima, podemos lançar mão do cotejo com a figura das “pessoas que vivam em economia comum há mais de dois anos”, trazida pela Lei n.º 6/2001, de 11.5 e ali definida, nos seguintes termos (artigo 2.º): Entende-se por economia comum a situação de pessoas que vivam em comunhão de mesa e habitação há mais de dois anos e tenham estabelecido uma vivência em comum de entreajuda ou partilha de recursos. É clara a distinção relativamente à união de facto (cfr. - se os artigos 1.º, n.º 2, 3.º e 4.º, n.º 2) e é a ausência de intimidade que constitui a diferença”.
Em face da matéria factual apurada, mesmo com a alteração operada no ponto 4 dos factos provados, parece-nos que não podemos deixar de concluir como na primeira instância. Efectivamente, tendo resultado provado que os Autores “nutrem uma relação familiar, social e afetiva, tendo iniciado a vida em comum”, na mesma casa, pelo menos em Maio de 2020, vivendo em economia comum, ambos contribuindo para o sustento do lar, mediante mútuo auxílio no pagamento das despesas, não pode deixar de ser entendido que ambos vivem “debaixo do mesmo tecto”, coabitam, mantendo uma relação familiar e íntima, numa relação afectiva e de laços interpessoais, comuns às condições vividas entre cônjuges.
Assim, encontrando-se verificada a situação de união de facto há mais de três anos, o recurso tem de improceder.
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IV - DECISÃO
Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar improcedente a Apelação, confirmando a decisão recorrida.
Sem custas, por delas estar isento o Apelante.
Lisboa, 30/4/25
(o presente acórdão não segue na sua redacção as regras do novo acordo ortográfico, com excepção das “citações/transcrições” efectuadas que o sigam)