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DIVÓRCIO
CRÉDITO DE COMPENSAÇÃO
ACÇÃO COMUM
Sumário
O crédito compensatório, previsto no art. 1676/2 do CC, apenas pode ser exigido depois do divórcio e não preclude pelo facto de não ter sido exigido em processo inventário, podendo sê-lo em acção comum, designadamente quando os bens comuns tiverem sido partilhados extrajudicialmente ou quando não houvesse bens a partilhar.
Texto Integral
Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa os juízes abaixo identificados:
MM intentou uma acção comum contra o seu ex-marido, CD, para fixação da indemnização compensatória entre cônjuges, nos termos do 1676, n.ºs 2 e 3 do Código Civil; diz que a acção deveria ter sido intentada como incidente ao processo de inventário, mas como autora e réu já partilharam o único bem comum do casal, extrajudicialmente, não o pode ser. Invoca como suporte da admissibilidade do pedido na acção o que é dito no acórdão do TRL de 24/11/2016, proc. 376/14.2TMFUN-A.L1-6: “o crédito de compensação previsto no art. 1676/2 do CC tem de ser exigido através dos meios comuns, em acção própria, em vez do processo de partilha, mas sempre depois de decretado o divórcio”. Na contestação, o réu deduziu, entre outras, as excepções (i) da inadmissibilidade legal da presente acção, dizendo que ela tinha de ser intentada como incidente do processo de inventário e partilha, pelo que deve ser liminarmente rejeitada/declarada totalmente improcedente; o ac. do TRL citado pela autora não é aplicável porque, no caso a que se reporta, os cônjuges eram casados no regime da separação de bens, o que não sucede no caso vertente; e (ii) da incompetência absoluta do tribunal (artigos 96, 97, 577/1-a e 576/2, todos do CPC): como a acção devia ter sido deduzida como incidente do processo de inventário e não como acção comum, o Juízo Central Cível não é competente para dela conhecer, porque a lei não lhe atribui tal competência, já que não é uma acção ordinária (artigos 81, 117/1 e 130/1, todos da Lei da Organização do Sistema Judiciário = LOSJ).
Por concessão do tribunal, a autora respondeu logo às excepções: como não existiu nenhum processo de inventário, a autora não poderia ter deduzido o incidente nesse processo; o crédito de compensação tem de ser invocado e demonstrado, pelo ex-cônjuge credor, no processo de inventário se este existir, ou em processo próprio, após o divórcio, no caso de não ter lugar o processo de inventário; não existindo processo de inventário e não existindo bens comuns do casal para partilhar, que é o caso, aplica-se o regime da separação de bens, em que a partilha não é o meio idóneo para se exigir tal crédito, uma vez que, não existindo património comum, não há lugar a partilha, pelo que o cônjuge sacrificado tem de fazer uso dos meios comuns para ver o seu crédito satisfeito: neste sentido o ac. do TRL já invocado, que agora cita incluindo a parte inicial que antes tinha omitido: “Tendo sido proposta acção de divórcio entre cônjuges casados sob o regime de separação de bens, porque inexiste partilha de bens comuns […]”. O facto de não existir processo de inventário não pode obstar ao exercício do direito da autora para o reconhecimento e obtenção do crédito compensatório; esta compensação refere-se ao crédito de um dos cônjuges face ao outro e ao património próprio deste; no processo de inventário, o tribunal, se verificasse que excessiva complexidade da matéria desse incidente não permitia uma decisão incidental segura, poderia remeter os interessados para os meios comuns; neste sentido, o ac. do TRE de 28/06/2023, proc. 1049/21.5T8BNV.E1: I– O processo especial de inventário é, em princípio, o meio adequado para se conhecer e decidir dos chamados “créditos de compensação” entre os ex-cônjuges, mas o respectivo direito de acção não preclude se ali não forem conhecidos ou relacionados. II – Assim, o cônjuge credor não fica impedido de fazer valer tais nos meios comuns, sendo os tribunais comuns competentes para conhecerem tanto dos pedidos reciprocamente formulados pelos ex-cônjuges, com esse fundamento, como dos referentes aos créditos de um dos cônjuges sobre o outro que não integrem a massa a partilhar através do processo de inventário, aos quais se aplica o direito das obrigações, da competência dos tribunais comuns.” O direito da autora não preclude por não ter existido processo de inventario e partilha, e por ter sido vendido o único bem comum do casal; e no caso de tal crédito ser reconhecido, será o património pessoal do réu que responde pelo mesmo; o pedido de compensação não pode ficar refém das normas aplicáveis ao incidente que deveria ser suscitado se existisse processo de inventário; pelo que, a acção segue as regras gerais do processo comum, no que à competência em razão da matéria e do valor diz respeito (art. 546/2 do CPC); assim, o tribunal competente não poderá ser outro que não o Juízo Central Cível, porquanto o valor da acção ultrapassa a alçada do Juízo Local Cível, que é até 50.000€. A 16/01/2025, foi proferido saneador em que se julgaram improcedentes aquelas duas excepções, com os seguintes fundamentos:
Considerando que o tribunal, como infra se decidirá, considera inexistir qualquer erro na forma de processo usada, sendo nessa medida admissível a acção como vem configurada, será este Tribunal necessariamente competente em razão da matéria, por se tratar de acção comum e não especial. Neste sentido, vide ac. do TRE de [… citado acima]. Pelo que, improcede a excepção invocada.
Escreveu Carla Câmara, A partilha e os créditos compensatórios, III Jornadas de direito da família e das crianças, quanto ao momento em que este crédito compensatório deve ser atendido: “O crédito de compensação tem de ser invocado e demonstrado, pelo cônjuge credor, no processo de inventário para partilha dos bens ou, em processo próprio, após o divórcio, no caso de não ter lugar o processo de partilha.”, nas situações de casamento com separação de bens no qual não há bens comuns a partilhar ou quando tenha existido partilha extrajudicial acrescentamos nós.
Veja-se o ac. do TRP de 26/04/2021, 1167/20.7T8VCD-A.P1: “O crédito indemnizatório que decorre do disposto no art. 1676/2 do CPC deve exercer-se através de incidente ao processo de inventário, quando a partilha não seja atingida por acordo entre os ex-cônjuges.”
Neste sentido Sandra Passinhas, O crédito compensatório previsto no artigo 1676/2 do CC: o que o legislador disse e o que realmente quis dizer: “Em síntese, a compensação é, pois, feita após a extinção do casamento e terá, normalmente, lugar na partilha do património conjugal. Será um incidente no processo de inventário com alguma complexidade, é certo, e em alguns casos a discutir nos meios comuns. […].”
Nestes termos, considero inexistir qualquer erro na forma do processo. O réu recorre da decisão relativa à incompetência absoluta, nos mesmos termos da contestação, acrescentando o seguinte, em síntese:
A posição de Carla Câmara, invocada no saneador recorrido, não tem o sentido que lhe foi atribuído, pois aquela autora defende que “a exigência do crédito compensatório terá lugar no processo de inventário (quando a partilha não seja atingida por acordo entre os ex-cônjuges) […]. No regime de separação de bens, em que não existem bens comuns a partilhar, o crédito de compensação pode ser exigido, através dos meios comuns, em acção declarativa própria, depois de decretado o divórcio.”
Se o legislador tivesse desejado que nas situações em que não vigorasse o regime da separação, como a presente, o crédito previsto no artigo 1676/2 do CC pudesse ser peticionado em acção autónoma (e não no processo de inventário) não teria expressamente previsto que nestes casos o referido crédito “só é exigível no momento da partilha dos bens do casal”.
O ac. do TRP de 24/11/2016, também invocado pelo saneador recorrido quer apenas significar que quando a partilha não seja atingida por acordo entre os ex-cônjuges, há que se recorrer ao processo de inventário, nomeadamente, e se for o caso, para tratar incidentalmente da questão do crédito indemnizatório, e não que, fora dos casos em que o regime do casamento é o da separação, não seja o processo de inventário o único possível para sindicar a existência do referido crédito.
E em sentido idêntico, vai o ac. do TRG de 18/10/2011, proc. 1681/09.5TBBCL.G1, “Ora, por força do disposto no art. 1676/3 do CC, o local próprio para o reconhecimento do direito à compensação, por contribuição de um dos cônjuges para os encargos da vida familiar, previsto no art. 1676/2, é o da partilha dos bens do casal.”
Como evidenciou Tomé d’Almeida Ramião, “Tal opção legislativa terá sido ditada pela constatação de que é no processo onde se discutem, avaliam e partilham os bens comuns do casal que, com mais propriedade, se poderá apurar a situação patrimonial dos cônjuges durante o casamento, ajuizando dos encargos da vida familiar e da contribuição de cada um dos cônjuges para a satisfação dos mesmos, que são os elementos a ponderar para efeito da atribuição do referido direito a compensação.” (O divórcio e questões conexas - regime jurídico actual, 3.ª edição, Quid juris, 2011, p.118).
Assim também o ac. do TRP de 05/02/2024, proc. 638/22.5T8VCD-C.P1: “I - O crédito compensatório que decorre do disposto no art. 1676/2 CC deve exercer-se através de incidente ao processo de inventário, quando a partilha não seja atingida por acordo entre os ex-cônjuges. II - Por assim a ser, competente para o processamento e decisão do referido incidente será o tribunal onde decorreu (decorre) o inventário respectivo e não qualquer outro.”
Com o mesmo entendimento, Cristina M. Araújo Dias: “a compensação aparecerá, no momento da liquidação e partilha, ou como um crédito da comunhão face ao património próprio de um dos cônjuges ou como uma dívida da comunhão face a tal património, permitindo que, no fim, uma massa de bens não enriqueça injustamente em detrimento e à custa de outra.” (Do regime da responsabilidade (pessoal e patrimonial) por dívidas dos cônjuges (problemas, críticas e sugestões)”, pág. 582.
Também no sentido de obrigatoriedade de o crédito compensatório ser peticionado no processo de inventário, excepto nos casos em que os ex-cônjuges tenham sido casados no regime da separação de bens, os acórdãos do TRL de 14/04/2011, proferido no proc. 2604/08.4TMLSB-A.L1; de 24/11/2016, proc. 376/14.2TMFUN-A.L1-6. A autora não contra-alegou. Questão a decidir: a da incompetência absoluta do tribunal em razão da matéria.
* Apreciação:
O art. 1676/3 do CC (O crédito referido no número anterior só é exigível no momento da partilha dos bens do casal, a não ser que vigore o regime da separação) tem por fim decidir o problema substantivo do momento a partir do qual o crédito compensatório pode ser exigido. É no momento do divórcio, isto é, no momento em que o casamento termina, que o crédito passa a ser exigível. A norma não tem finalidade processual, nem diz que esse crédito só pode ser exigido no processo de inventário e muito menos estabelece qualquer preclusão do direito no caso de ele não ser exigido no processo de inventário.
Falando no divórcio e na associação de tal crédito ao divórcio (e não à partilha) e dando particular relevo a isso, veja-se, por exemplo, Maria João Vaz Tomé, anotação ao art. 1676 do CC anotado, Livro IV, Direito da Família, coord. de Clara Sottomayor, Almedina, 2020, páginas 218 a 227.
Embora dando particular relevo ao facto de a lei se referir à partilha, Paula Távora Vítor (Crédito compensatório e alimentos pós-divórcio, Out2020, Almedina, páginas 451 a 480), relaciona o crédito compensatório à dissolução do casamento e não ao inventário, considera-o pois um efeito do divórcio e esclarece que esse crédito não é um crédito de compensação e não tem nada a ver com o património comum – não servindo para o diminuir antes da partilha -, sendo sim um crédito entre os cônjuges (págs. 459 e 462). Daí que acabe por dizer que “ultrapassado o momento processual determinativo da partilha, fica precludida necessariamente a afectação dos bens comuns entretanto já partilhados. Ficando, então, o crédito por satisfazer, total ou parcialmente, na cobrança coerciva posterior responderão bens do devedor” (págs. 465-466).
Ou seja, aquela autora admite a subsistência do crédito depois de ter havido partilha e os bens já terem sido entregues, sendo impossível então descontar o crédito na meação do devedor nos bens comuns. Ou seja, o crédito não preclude com a partilha. O que acontece é que o ex-cônjuge titular do crédito sofre as consequências de perda da possibilidade de o descontar na meação do outro e terá de executar os bens que ele tiver.
Como o crédito compensatório não preclude e como não pode, só por si, justificar o requerimento de um inventário quando não haja bens comuns a partilhar (por já não os haver ou por nunca terem existido), por dizer respeito a créditos entre cônjuges nascido com o divórcio (retira-se de Miguel Teixeira de Sousa e outros, O novo regime do processo de inventário…, Almedina, 2020, págs. 156/-4-d e 159/-9-b(iii) parte final, e do ac. do STJ de 03/10/2019, proc. 1517/13.2TJLSB.L1.S2, aí citado e também pelo ac. do TRE de 2023 citado abaixo), teria necessariamente de ser exercido através de uma acção comum.
Posto isto,
As referências da lei ao inventário levam às posições, citadas pelo réu, de Carla Câmara e Tomé d’Almeida Ramião, mas o réu não invoca que estes autores digam, seja onde for, que o crédito compensatório deixa de existir se não tiver sido exigido no processo de inventário.
A referência que o réu faz à posição de Cristina R. Araújo Dias, pág. 582 (a passagem é da tese na publicação online, que corresponde à página 784 da edição da Coimbra Editora de 2009), é despropositada, pois que aquela autora se está a referir ao problema das compensações devidas pelo pagamento de dívidas do casal, o que, como é bom de ver, nada tem a ver com o crédito compensatório em causa nos autos.
Quanto aos acórdãos citados pelo réu: os do TRP de 2016 e de 2024, apenas decidiram que o tribunal onde corria o inventário era competente para discutir do crédito compensatório, sendo que o crédito tinha sido aí reclamado. O ac. do TRG de 2011, apenas decidiu que o crédito compensatório não podia ser discutido na acção de divórcio. Ambos estão certos mas não têm aplicação ao caso.
O ac. do TRL de 14/04/2011, proc. 2604/08.4TMLSB-A.L1-2, foi invocado pelo ac. do TRE referido pela autora desta acção e pelo saneador recorrido.
Tem o seguinte teor:
1 - O “crédito de compensação” do art 1676/2 CC (na redacção da Lei 61/2008 de 31/10), corresponde, apesar da sua designação de “compensação”, a um crédito entre os cônjuges, que tem de particular, por ser directamente um efeito do divórcio, só poder ser exigido no fim do casamento.
2 - A exigência do crédito em referência terá lugar no processo de inventário, quando a partilha não seja atingida por acordo entre os ex-cônjuges.
3 - Terá lugar por incidente, mas não propriamente pelo incidente a que se referem os artigos 1349 e 1350 CPC, antes por um incidente autónomo.
4 - Se (a não) complexidade da matéria desse incidente o permitir, será a existência e montante do crédito em causa decidido no inventário, pelo que se aplicará à subsequente partilha a regra do art 1689/3 CC.
5 - Se, pelo contrário, a excessiva complexidade da matéria desse incidente não permitir uma decisão incidental segura, haverá que remeter os interessados para os meios comuns.
6 - Mas sem que tal acção prejudique o andamento do inventário e a própria partilha, pois que, o mais que poderá acontecer, é que esta tenha lugar antes do trânsito em julgado daquela acção autónoma, caso em que o crédito que em tal acção venha a ser apurado, será pago – e ainda em observância do disposto no art. 1689/3 do CC, na sua segunda parte – porque já não existam bens comuns, pelos bens próprios do cônjuge devedor.
Assim, vê-se que o acórdão admite que um crédito compensatório (do art. 1676/2 do CC), mesmo num regime de comunhão de bens, possa ser discutido numa acção comum, estando a correr um processo de inventário, sem prejudicar o andamento do mesmo e a própria partilha, apenas com prejuízo para a ex-cônjuge credora por não o poder descontar na meação. Ou seja, o crédito não preclude com a partilha. Não serve, pois, de apoio à tese do réu, antes pelo contrário.
O réu invoca ainda o ac. do TRL de 24/11/2016, proc. 376/14.2TMFUN-A.L1-6, que foi invocado pela autora a favor da sua posição. Dizendo, o acórdão, respeito a um caso em que o regime de bens era o da separação, não pode servir de apoio à posição do réu (também não pode servir de apoio à posição da autora por então se incorrer em petição de princípio e daí que a autora o tenha citado truncado).
Já o ac. do TRE invocado pelo saneador recorrido refere-se a um caso de créditos dos cônjuges entre eles, de natureza diferente do crédito que está em causa nos autos e, por outro lado, refere uma série de acórdãos que, uns, se referem a créditos nascidos depois de divórcio e outros nascidos antes, pelo que, por tudo isto, a situação não é idêntica à dos autos (ac. do TRC de 24/05/2022, proc. 4224/19.9T8VIS.C1; ac. do TRP de 17/06/2019, proc. 1975/17.6T8VLG.P1). Assim sendo, para evitar o desenvolvimento desnecessário da questão, não nos servimos do mesmo, nem dos por ele referidos, como fundamentação deste acórdão, apesar de todos eles servirem para apoiar a decisão recorrida e o réu não ter dito uma única palavra contra eles.
Posto isto,
O tribunal recorrido é competente para a acção interposta, sendo que o direito invocado não tinha que ser deduzido em incidente de processo especial para o qual o tribunal recorrido fosse incompetente.
*
Pelo exposto, julga-se o recurso improcedente.
Custas, na vertente de custas de parte (não existem outras), pelo réu.
Lisboa, 08/05/2025
Pedro Martins
Paulo Fernandes da Silva
Rute Sobral