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DIREITO DE PREFERÊNCIA
MUNICÍPIO
BENS CLASSIFICADOS
ANÚNCIO
PORTAL CASA PRONTA
CADUCIDADE
Sumário
Sumário (elaborado nos termos do disposto no artigo 663º, nº 7, CPC):
I - Os comproprietários, o Estado, as Regiões Autónomas e os municípios gozam, pela ordem indicada, do direito de preferência em caso de venda ou dação em pagamento de bens classificados ou em vias de classificação ou dos bens situados na respetiva zona de proteção (artigo 37º da Lei 107/2001, de 08/09). II - O exercício do direito de preferência equaciona-se em duas fases distintas: - Uma antes da celebração do negócio, com a comunicação do projeto negocial para exercício da preferência (artigo 416º CC); - Uma segunda fase, que ocorre nas hipóteses em que a comunicação para a preferência não foi efetuada (ou não o foi validamente) e o preferente vem exercer o direito após o negócio ter sido realizado (artigo 1410º CC). III – Essas duas fases estão ligadas a dois prazos de caducidade distintos: - A caducidade do direito de exercer a preferência, na sequência da comunicação do projeto do negócio (artigo 416º, nº 2, CPC: 8 dias, em regra); - A caducidade do direito de ação de preferência (artigo 1410º, nº 1, CC: 6 meses). IV – O artigo 18º do DL 263-A/2007, de 23 de julho, confere aos alienantes de imóveis onerados com direitos de preferência de que beneficiam o Estado, Regiões Autónomas, municípios, outras pessoas coletivas públicas ou empresas públicas, a faculdade de optarem pela realização da comunicação para preferência por via eletrónica, mediante a inserção dos elementos essenciais da alienação no sítio da internet www.casapronta.mj.pt, em vez da remessa de comunicação para preferência nos termos gerais. V – Essa forma de comunicação online substitui a notificação para preferência, nos termos gerais, não podendo a sua eficácia ficar afetada por se mostrarem suprimidas as menções relativas à forma e ao momento do pagamento do preço. VI – Verificando-se um hiato temporal significativo, superior a 6 meses, entre o negócio translativo projetado e comunicado ao preferente e o negócio efetivamente realizado, deverá o alienante efetuar nova comunicação para preferência, por - em face do tempo entretanto decorrido - se tratar de um novo negócio, distinto do inicialmente projetado e comunicado.
Texto Integral
Acordam os juízes da 2ª secção cível do Tribunal da Relação de Lisboa que compõem este coletivo:
I - RELATÓRIO
O autor, Município de Sobral de Monte Agraço, identificado nos autos, instaurou no Juízo Central Cível de Lisboa, em 06-03-2020, a presente ação comum contra os réus, A e marido, B, C, D e esposa E, F, G, e marido H,I e marido J, L e marido M, N e “Cipreste-Turismo de Habitação, Ldª”.
Para o efeito, alegou o autor que no concelho e freguesia de Sobral de Monte Agraço existe um templo designado por “Capela Romana Gótica do Salvador”, que constitui imóvel classificado, cuja transmissão se encontra sujeita às limitações decorrentes do disposto no artigo 35º e ss. da Lei nº 107/2001, de 08-09, dispondo o autor de preferência na sua aquisição.
Sucede que, por escritura pública de 01-10-2019, os réus (pessoas singulares) venderam à ré “Cipreste-Turismo de Habitação, Ldª” o dito imóvel, sem que tivessem comunicado ao autor o projeto de tal negócio, assim inviabilizando o exercício do direito de preferência em tal aquisição.
Concluiu o autor formulando os seguintes pedidos:
“a) Ser reconhecido o direito de preferência do Autor sobre o prédio urbano denominado Capela Romana-Gótica de Sobral de Monte Agraço (…), substituindo-se o réu Cipreste-Turismo de Habitação, Ldª na escritura de compra e venda; b) Serem condenados os réus a entregarem o referido prédio livre e devoluto ao Autor.”
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Em 12-03-2020, foi proferido despacho que declarou o Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa-Juízo Central Cível de Lisboa territorialmente incompetente para conhecer e decidir do objeto da ação e determinou a sua remessa para o Tribunal Judicial da Comarca de Loures - Juízo Central Cível de Loures (referência 395267904).
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Citados os réus, apenas a “Cipreste-Turismo de Habitação, Ldª”, apresentou contestação, em 29-09-2020, na qual excecionou a caducidade do direito de preferência do autor, visto que, apesar de notificado dos termos do negócio por meio de anúncio publicado no Portal Casa Pronta, não manifestou expressamente a intenção de exercer direito de preferência, além de que não procedeu ao depósito do preço.
A contestante apresentou ainda defesa por impugnação e concluiu pugnando pela procedência da exceção de caducidade arguida ou, caso assim não se entenda, pela improcedência da ação, com a sua consequente absolvição do pedido.
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Registada a ação, foi o autor convidado a exercer contraditório sobre a defesa por exceção por despacho de 15-09-2022 (referência 153966293), convite ao qual respondeu, reiterando que não lhe foi comunicada a intenção de venda da capela, o que inviabiliza o decurso do prazo de caducidade para a ação de preferência. Mais referiu que para além de não ter tido conhecimento do negócio, ainda que o mesmo tenha sido anunciado no site Casa Pronta, tal publicação referia que o negócio se iria realizar em abril de 2019, não tendo sido essa, mas outra posterior, a data em que o negócio se celebrou efetivamente, pelo que se impunha uma nova comunicação com indicação correta da data. Alegou ainda o autor ter procedido ao depósito de € 55.000,00 correspondente ao valor da aquisição, concluindo pela improcedência das exceções (requerimento com a referência 43381113).
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Foi dispensada a audiência prévia e proferido despacho saneador/sentença, em 17-11-2023, considerando que os autos continham todos os elementos necessários para o efeito, julgando a causa procedente, ali se consignando, além do mais: “(…) no caso vertente, constata-se que o anúncio em causa não reúne os requisitos legais que possibilitassem ao Município o exercício pleno daquele direito. Por um lado, deste não consta, como é obrigatória, a forma de pagamento do preço. Por outro lado, a escritura de compra e venda não ocorreu na data ali anunciada (05-04-2019) mas apenas em outubro desse mesmo ano, ou seja, decorridos mais de seis meses sobre a data mencionada no anúncio e sem que nova notificação tivesse ocorrido ou novo anúncio publicado. Não se trata aqui, propriamente, da omissão da notificação para preferir, mas antes da forma deficiente como a mesma foi feita, ou seja, sem indicação da forma de pagamento, sem qualquer alusão concreta às condições relevantes do negócio, nomeadamente, a forma e o tempo de pagamento do preço e a data concreta da celebração do negócio(…) O Tribunal considerando a ação procedente porque provada, declara: a) Anulada a venda realizada nos autos e ordena o cancelamento dos respetivos registos; b) Reconhecido que a Capela Romano Gótica de Sobral de Monte Agraço, constitui um prédio urbano autónomo e que corresponde ao prédio inscrito na matriz urbana sob o nº 913 com uma área total de 480 m2 sendo a área coberta de 75 m2 e a descoberta de 405 m2 (adro e logradouro); c) Condena os RR a reconhecer o direito de preferência do Município do Sobral do Monte Agraço na venda da dita Capela e a absterem-se de praticar quaisquer atos que afastem ou inviabilizem o exercício de tal direito sobre a Capela.”.
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Não se conformando com a decisão proferida, a ré “Cipreste – Turismo de Habitação, Ldª” da mesma interpôs recurso de apelação, julgado procedente por acórdão deste Tribunal da Relação de 09-05-2024, que anulou a decisão recorrida, determinando a sua substituição por outra precedida de contraditório relativamente ao conhecimento do mérito da causa, designadamente quanto ao fundamento da falta de comunicação “da forma e tempo de pagamento do preço” do negócio.
Concedido contraditório a ambas as partes, apenas a ré respondeu ao convite que lhe foi dirigido, o que fez por intermédio de requerimento com a referência 49727131 (de 02-09-2024), no qual, no essencial, concluiu que a forma e o modo de pagamento do preço “não integram o conteúdo obrigatório da comunicação para dar a preferência”, pelo que, in casu, deverá concluir-se que os réus vendedores cumpriram tal obrigação.
À sua pronúncia a ré juntou parecer subscrito por jurista.
Sobre tal requerimento, pronunciou-se o autor, a convite do tribunal, em 08-10-2024 (referência 50086819), alegando essencialmente que:
- A ré extravasou o convite que lhe foi dirigido dado que se pronunciou também sobre a data da celebração da compra e venda;
- A comunicação do negócio deve incluir todos os elementos que possam influir na vontade de preferir, incluindo as condições de pagamento e a própria data da celebração do contrato;
- Visto que os vendedores omitiram a obrigação de comunicar ao autor as condições de pagamento e a data da celebração do contrato de compra e venda, impunha-se nova comunicação que, não tendo sido efetuada, determina a procedência da ação.
Também o autor juntou parecer subscrito por jurista à sua pronúncia.
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Foi então proferida decisão que reafirmou a regularidade da instância e a possibilidade de conhecer, de imediato, do mérito da causa, julgando-a procedente, constando do seu dispositivo:
“(…) Decisão: O Tribunal considerando a ação procedente porque provada: a) Declara Anulada a venda realizada nos autos e ordena o cancelamento dos respetivos registos; b) Declara reconhecido que, a Capela Romano Gótica de Sobral de Monte Agraço, constitui um prédio urbano autónomo e que corresponde ao prédio inscrito na matriz urbana sob o nº 913 com uma área total de 480 m2 sendo a área coberta de 75 m2 e a descoberta de 405 m2 (adro e logradouro); c) Condena os RR a reconhecer o direito de preferência do Município do Sobral do Monte Agraço na venda da dita Capela e a absterem-se de praticar quaisquer atos que afastem ou inviabilizem o exercício de tal direito sobre a Capela.”
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Não se conformando com a decisão, a ré da mesma interpôs recurso, transcrevendo-se as respetivas conclusões, suprimindo-se as notas de rodapé:
“A. A decisão recorrida é nula, (cfr. Art. 615, n.º 1, d) do CPC) e, por conseguinte, deverá ser revogada por: i.omissão de pronúncia, por não ter o Tribunal a quo decidido o pedido de sub-rogação do Autor na posição de adquirente ocupada pela Recorrente, nem o pedido de condenação na entrega da Capela – e ii. excesso de pronúncia, por ter o Tribunal a quo, sem que tenha sido peticionado, anulado a compra e venda concluída entre os Réus, reconhecido a Capela enquanto prédio autónomo e condenado os Réus a absterem-se de praticar atos que afastem ou inviabilizem o exercício do direito de preferência sobre a Capela pelo Autor. B. O tribunal recorrido decidiu os pedidos formulados no proc. n.º 64/16.5T8MFR instaurado pelo Recorrido e que correu termos neste Tribunal, Juízo Local Cível de Torres Vedras – Juiz 2, e não os peticionados nestes autos, que correspondem a uma ação de preferência e não a uma ação mista de simples apreciação positiva. C. DA IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO ASSENTE b. Impugna-se e, por conseguinte, deve eliminar-se, o que foi dado como assente nos pontos 2.º a 5.º e 17.º da decisão recorrida: i. O facto 2.º corresponde ao alegado pelo Município nos artigos 3.º, 4.º e 6.º da p.i., expressamente impugnado pela Recorrente (cfr. artigos 58.º e 59.º da Contestação), e em favor dos quais o Município não carreou qualquer prova. ii. O facto 17.º baseia-se, aparentemente, e apenas, no que vem dito no artigo 32.º da p.i., impugnado pela Recorrente (cfr. artigo 59.º da Contestação), que não foi demonstrado por qualquer elemento probatório junto pelo Município e que, inclusive, foi infirmado pelo anúncio publicado no Portal Casa Pronta pelos Réus (pessoas singulares), em 20.03.2019, (doc. n.º 1 à Contestação, vertido no facto assente 16.º da sentença recorrida). iii. Os factos 3.º a 5.º correspondem ao alegado pelo Município nos artigos 8.º, 9.º e 10.º da p.i., que foram, expressamente, impugnados pela Recorrente no artigo 59.º da Contestação, por desconhecimento, nem ter obrigação de conhecer, e a propósito dos quais foram juntos os docs. n.ºs 4 e 5, que não são aptos a provar os factos alegados. c. Por não serem relevantes para a decisão de mérito da ação, os factos vertidos nos pontos 6.º a 14.º da matéria assente da sentença recorrida deverão ser expurgados (estes factos reportam-se aos pedidos que o tribunal decidiu e não aos pedidos efetivamente formulados nesta ação). D. DO MÉRITO DO RECURSO d. A decisão recorrida violou o disposto nos artigos 416.º, n.º 1, 1410.º, n.º 1, do CC, art. 1028.º, Artigo 18.º, com a epígrafe “Envio eletrónico da informação necessária ao exercício do direito legal de preferência”, do DL n.º 263-A/2007, de 23 de Julho e o artigo 10.º, sobre o envio da informação para exercício do direito legal de preferência, da Portaria n.º 794-B/2007, de 23 de julho. e. Contrariamente ao concluído pelo tribunal recorrido, da conjugação do disposto no art. 416.º, n.º 1 e do art. 1410.º, n.º 1, ambos do CC, não resulta, de forma alguma, que a comunicação para dar a preferência deve conter os elementos essenciais do projeto de alienação, porquanto (i) aquele primeiro preceito nem sequer menciona elementos essenciais e (ii) os dois preceitos debruçam-se sobre fases diferentes do direito de preferência, uma com vista ao seu cumprimento voluntário e outra (patológica) no caso de incumprimento desse direito, não sendo, por isso, suscetível sequer a sua (a da norma do art. 1410.º 1 do CC) aplicação analógica aos caso dos autos. f. Da conjugação do art. 416.º do CC (“o projeto de venda e as cláusulas do respetivo contrato”) com o art. 1028.º do CPC (“o preço e as restantes cláusulas do contrato projetado”), referente à comunicação judicial para a preferência, conclui-se que esta deve conter o projeto de venda e todas as cláusulas do contrato projetado. g. No caso, como o dos autos, de preferência de entidades públicas, o legislador criou, através do Decreto-lei n.º 263-A/2007, uma forma própria para a comunicação para dar a preferência, o recurso ao Portal Casa Pronta, tendo ainda o legislador, no seu artigo 18.º, n.º 1, restringido expressamente o teor obrigatório da comunicação para “os elementos essenciais da alienação”, em vez do projeto de venda e de todas as cláusulas do contrato projetado, exigidos pelos artigos 416.º do CC e 1028.º do CPC. h. Mas, a definição do que são os elementos essenciais não pode ser subjetiva, isto é, os elementos essenciais não podem ser definidos como aqueles que são essenciais para o preferente, porque isso colocaria o obrigado a dar a preferência numa situação de impossibilidade de cumprir e a lei não cria obrigações de cumprimento impossível, como enfatizado no Parecer do Prof. Agostinho Cardoso Guedes junto, p. 14. i. A inscrição dos elementos essenciais da alienação em sítio na Internet de acesso público é feita nos termos da Portaria n.º 794-B/2007, que, no seu artigo 10.º, n.º 1, o portal casa pronta que contém os campos obrigatórios a preencher, que inclui o campo “data previsível do negócio” não previsto na lei. j. A forma e o tempo de pagamento do preço não constituem elementos obrigatórios da comunicação para dar a preferência porque não constam (i) dos campos obrigatórios do formulário da casa pronta, (ii) dos elementos exigidos pelo artigo 18.º, n.º 1 do Decreto-lei n.º 263-A/2007, (iii) dos elementos exigidos pelo artigo 10.º, n.º 2 da Portaria n.º 794-B/2007, e (iv) ainda porque o obrigado a dar a preferência não é obrigado a conceder ao preferente as mesmas facilidades de pagamento, nomeadamente, quanto à modalidade e ou quanto ao tempo de pagamento, que concedeu ao adquirente do negócio projetado, uma vez que estas dependem da solvabilidade de cada um. k. Mesmo que assim não fosse, a forma e o tempo de pagamento só seriam elementos obrigatórios de comunicação se correspondessem a cláusulas acordadas entre as partes, (cfr. artigo 416.º, n.º 1 do CC), que não foram neste caso, aplicando-se assim o art. 885.º, n.º 1 do CC, ou seja, o momento do pagamento do preço é o da entrega da coisa transmitida, que ocorre com a celebração do contrato de compra e venda. Mas isso não significa que a comunicação deve conter a data deste contrato. l. A data da celebração do negócio (contrato) não é obviamente uma cláusula do contrato, não corresponde a um elemento essencial do contrato e não consta dos elementos do formulário do portal casa pronta. m. A exigência da comunicação a dar a preferência conter a data da celebração do negócio não tem um mínimo de correspondência verbal com as citadas normais legais (arts. 416.º, n.º 1, 1410.º, ambos do CC, art. 37.º da Lei 107/2001, art. 18.º do Decreto-lei 263-A/2007 e art. 10.º, n.º 2 da Portaria n.º 794-B/2007) constituindo, assim, uma violação das regras de interpretação da lei previstas no art. 9.º, n.º 2 do CC. n. Para além de não reconstituir o pensamento legislativo, não respeitando o elemento teleológico, em obediência do disposto no n.º 1 do art. 9.º do CC, uma vez que o legislador com a criação do formulário do sítio da Internet www.casapronta.mj.pt visou apenas criar um mecanismo mais simples destinado às comunicações para preferência e não alterar o regime substantivo do respetivo direito, acrescentando mais elementos e onerando o alienante, enquanto obrigado a dar a preferência. o. A inclusão ou não da data previsível do negócio é inconsequente para efeitos da validade e regularidade da comunicação em causa, bem como, por conseguinte, no caso de inclusão, a não realização do negócio nessa data indicada, a qual é, aliás, indicada como meramente previsível, como concluído por António Agostinho Guedes no Parecer ora junto, p. 16. p. Aliás, é essa a posição assumida pela jurisprudência, veja-se o Acórdão do SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA, de 19.06.1997, processo 96B889 (…), o Acórdão do TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA de 31.05.2022, Processo 1553/11.3TVLSB.L2-7 (…), e ainda o Acórdão do SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA de 07.03.1995, Processo N.º 086424, "a comunicação ao titular do direito de preferência deve incluir as condições do pagamento do preço e o prazo normalmente previsível para a celebração do negócio, não se exigindo, porém, a indicação precisa da data da escritura (artigo 416 do CCIV66).”(…) que “em regra, a marcação da escritura não se faz antes da comunicação ao preferente, por se desconhecer a sua resposta; só depois desta é que será razoável acertar essa data com o terceiro ou o preferente, conforme o caso; e ela dependerá ainda da disponibilidade dos serviços notariais e do cumprimentoprévio de diversas formalidades”. (sublinhados nossos) e por fim, o acórdão da RELAÇÃO DE COIMBRA, de 12.10.1999, Processo 1688/99(…). q. Tratando-se da indicação de uma data previsível, a celebração do contrato de compra e venda numa data diferente dessa não acarreta – nem pode acarretar -deficiência da comunicação feita e implicar a submissão de nova comunicação no sítio supra referido, como defendido na sentença recorrida, por questões de segurança e certeza jurídicas, valores tutelados pelo Direito que ficariam em crise, uma vez que o preferente veria o prazo de caducidade do direito de preferir na venda prorrogado, ad infinitum, em contravenção do prazo, intencionalmente, curto (em homenagem à segurança e certeza jurídicas) de oito dias previsto no artigo 416.º, n.º 2, 1.ª parte do CC. r. Para além disso, a data de realização do negócio nem sequer é relevante, porquanto o preferente, caso exerça a preferência, não está obrigado a celebrar o contrato na mesma data acordada para o negócio projetado (ver artigo1028.º, n.º 2 e 3 do CPC e ac. De 09.03.2021 do Supremo Tribunal de Justiça, processo 2997/18.5T8PDL.L1.S1. s. A inclusão ou não da data da escritura (data previsível do negócio) e até a celebração ou não do contrato na data indicada na comunicação ou até mesmo, próxima da referida data (menos de 90 dias) é também irrelevante para efeitos de comunicar a data de vencimento da obrigação de pagamento do preço. t. Isto porque, a data previsível do negócio só seria relevante como data do vencimento da obrigação do pagamento do preço, quando esta coincidisse com a data de vencimento da obrigação da entrega do prédio e esta, por sua vez, coincidisse com a data da celebração do negócio, ou então, por força do disposto no art. 885.º do CC, esta data coincidirá com a data da entrega da coisa e se as partes nada tiverem acordado quanto à data de vencimento da obrigação da entrega do prédio, esta terá lugar na data da celebração do contrato, por efeito do preceituado no art. 879.º, alínea b) do CC. u. Quando não existe correspondência entre a data de pagamento e a data da celebração do contrato, a informação sobre a “data previsível do negócio” não transmite ao preferente a informação sobre a data de vencimento da obrigação do pagamento do preço, antes pelo contrário, podendo tal informação até induzir em erro o preferente. v. A data previsível do negócio é ainda irrelevante, por não existir – recorde-se obrigação para o preferente observar essa data, nem podia uma vez que o direito de preferência de uma entidade pública, a qual está sujeita a procedimentos específicos (cfr. artigo 9.º da Lei 8/2012 e 46.º da Lei n.º 98/97, de 26 de Agosto (LEI DE ORGANIZAÇÃO E PROCESSO DO TRIBUNAL DE CONTAS – LOPTC) que não se compadecem com a data indicada na comunicação ao preferente, nem podem ser limitados por esta. w. os Réus pessoas singulares cumpriram, de forma válida e integral, a sua obrigação de comunicação a dar a preferência, porquanto (i) Fizeram a comunicação, em cumprimento do artigo 416.º, n.º 1 do CC, (ii) Através do portal Casa Pronta, em cumprimento do disposto no artigo 18.º, n.º 1 do Decreto lei n.º 263-A/2007, que substitui (ver n.º 2 do citado preceito legal) a forma de comunicação, previstas em termos gerais e (iii) preencheram todos os campos obrigatórios, nos termos do artigo supra articulado com o artigo 10.º da Portaria x. Quanto à capacidade financeira do preferente, note-se que é dentro do prazo de 8 dias a contar da receção da comunicação para a preferência que o preferente tem que decidir e manifestar a sua vontade de preferir. Sendo dentro desse mesmo prazo que o preferente tem que determinar se tem capacidade financeira para pagar o preço do negócio projetado. y. O tribunal a quo aderiu de forma não criteriosa à argumentação expedida pelo Município, na petição inicial, de que só com a indicação da data precisa de concretização do negócio projetado e sem alteração da mesma é que o preferente pode decidir se quer preferir, por só assim conseguir determinar se tem capacidade financeira para o efeito. z. Esta argumentação não pode proceder não só pelas razões supra aduzidas, mas também porque: i. Insere uma componente muito subjetiva na definição do conteúdo obrigatório da comunicação para a preferência, que só pode ser lido em termos objetivos, por questões de certeza e segurança jurídicas; ii. Não se trata, aqui, de um problema de indicação na comunicação para preferir da data concreta do contrato de compra e venda, mas sim de um problema da data de realização dessa comunicação, ou seja, o Município, aqui Recorrido, só exerceria o seu direito à preferência por saber que tinha capacidade financeira para tal, segundo o próprio, se a comunicação para a preferência tivesse sido feita depois da revisão orçamental, ou seja, depois de 19 de junho de 2019, sendo irrelevante se da mesma constava ou não a data previsível ou concreta do contrato de compra e venda. iii. O legislador não teve esse fator – a capacidade financeira do preferente - em consideração na regulação do exercício do direito de preferência, o que se extrai tanto da referência ao prazo curto de caducidade de 8 (oito) dias previsto no artigo 416.º, n.º 2 do CC, como do artigo 19.º, n.º 3 do Decreto-lei n.º 263-A/2007, de 23 de Julho e, bem assim, do disposto no artigo 1028.º do CPC, relativo ao processo de jurisdição voluntária da notificação para a preferência. Da inconstitucionalidade aa. O Tribunal a quo parece interpretar as normas contidas nos arts. 416.º, n.º 1, do CC, 37.º da Lei 107/2001, 18.º do Decreto-lei 263-A/2007 e 10.º, n.º 2 da Portaria n.º 794-B/2007 – ou mesmo incluindo ainda o art. 1410.º do CC -, em termos tais que viola o direito à propriedade privada consagrado no artigo 62.º da CRP, na sua componente do direito à transmissão, e põe em causa a segurança e a certeza jurídicas, se lidas as ditas normas: i.No sentido de que a data precisa do contrato de compra e venda é um elemento obrigatório da comunicação para a preferência, sob pena de invalidade ou ineficácia desta; ii. No sentido de que, quando a data concreta do contrato de compra e venda não coincida com a data previsível indicada na comunicação publicada no sítio Casa Pronta, a comunicação efetuada é deficiente, sendo, por isso, inválida; iii. No sentido de que, a comunicação para a preferência é deficiente e, por isso, inválida e ineficaz, quando a data concreta do contrato de compra e venda não coincida com a data previsível indicada na comunicação publicada no sítio Casa Pronta, e esta não contenha indicação expressa sobre a forma e pagamento do preço. bb. O entendimento sufragado pelo Tribunal a quo sacrificaria, em excesso, a certeza e a segurança jurídicas necessárias ao normal e bom funcionamento do tráfego jurídico, sob a égide da autonomia privada, e teria por efeito a compressão inconstitucional do direito de propriedade do “obrigado”, quanto ao poder que lhe assiste de disposição do bem, o qual teria de notificar o preferente tantas vezes quantas as alterações da data concreta do negócio projetado. cc. Constitui ainda uma violação do princípio da separação de poderes ínsito no artigo 111.º da Constituição, por corresponder a uma solução criada pelo julgador, em substituição do legislador, como melhor explicado no Parecer do Professor Agostinho Cardoso Guedes já junto, pp. 6 a 8. Nestes termos e nos mais de Direito aplicáveis, deve o presente recurso ser admitido e julgado procedente e, em consequência, deve
a. A sentença recorrida ser declarada nula e revogada,
b. O presente recurso deve ser julgado procedente, devendo ser proferida decisão que julgue improcedente a ação e absolva os réus dos pedidos”. *
O autor apresentou contra-alegações, pugnando pela manutenção do decidido.
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Apreciadas e indeferidas pelo tribunal recorrido as nulidades arguidas, foi admitido o recurso, como apelação, com subida imediata e nos próprios autos e efeito devolutivo.
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Inscrito o recurso em tabela, foram colhidos os vistos legais, cumprindo apreciar e decidir.
II – QUESTÕES A DECIDIR
O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação, ressalvadas as matérias de conhecimento oficioso pelo tribunal, bem como as questões suscitadas em ampliação do âmbito do recurso a requerimento do recorrido, nos termos do disposto nos artigos 608, nº 2, parte final, ex vi artigo 663º, nº 2, 635º, nº 4, 636º e 639º, nº 1, CPC.
Assim, são as seguintes as questões a decidir:
- Nulidade (ou anulabilidade) da decisão recorrida;
- Impugnação da matéria de facto;
- Fundamentos do direito de preferência reconhecido ao autor;
- Inconstitucionalidade da interpretação efetuada na decisão recorrida das normas em que se fundamenta o direito de preferência reconhecido ao autor (416º, nº 1, do CC, 37º da Lei 107/2001, 18º do Decreto-lei 263-A/2007 e 10º, n.º 2 da Portaria n.º 794-B/2007).
III – FUNDAMENTAÇÃO Nulidade da decisão recorrida
Alegou a recorrente que o tribunal recorrido não decidiu o pedido de sub-rogação do autor na posição do adquirente, nem o pedido de entrega da Capela Romano-Gótica de Sobral de Monte Agraço, omitindo, em consequência, questões que deveria ter apreciado, vícios que considerou configurarem omissão de pronúncia, nos termos do disposto no artigo 615º, nº 1, alínea d), CPC.
Acresce que, na perspetiva da recorrente, a decisão recorrida decidiu sobre objeto diferente do pedido, em violação do princípio do dispositivo (nos segmentos em que anula a venda celebrada entre os réus, reconhece que a Capela constitui um prédio autónomo e condena os réus na abstenção da prática de atos, porquanto tais pedidos foram apreciados em ação diversa e não foram deduzidos nestes autos), vício que considerou reconduzir-se à nulidade decorrente de excesso de pronúncia – cfr. artigo 615º, n.º 1, alínea d), do CPC.
Pronunciando-se sobre a apontada nulidade, considerou o autor/recorrido que ainda que os termos da condenação não sejam inteiramente coincidentes com os do pedido, deverá ter-se presente que a sentença condenou os réus a reconhecer o direito de preferência que assiste ao Município, anulando a venda. Consequentemente, sendo idênticos os efeitos jurídicos resultantes da condenação, na tese do recorrido, não faz sentido alegar-se que a condenação ocorreu em objeto diverso do pedido, pelo que a sentença não incorreu em nulidade por excesso de pronúncia.
Esclarecendo a divergência entre os pedidos formulados nesta ação e o decidido, o autor referiu ainda que na petição inicial alegou ter instaurado uma anterior ação em que solicitou a declaração de que a Capela Romana-Gótica de Sobral de Monte Agraço constituía um prédio urbano autónomo, bem como a condenação dos ali réus (seus proprietários) a reconhecerem o direito de preferência na sua alienação, abstendo-se da prática de quaisquer atos que inviabilizassem o exercício de tal direito. Tal ação terminou por inutilidade superveniente da lide, na sequência da subscrição de acordo em que os réus reconheceram a autonomia do prédio em questão, bem como o direito de preferência, na sua aquisição, do Município de Sobral de Monte Agraço. Concluiu o autor que os termos da condenação proferida nestes autos poderão ter decorrido dessa anterior ação.
Apreciando os vícios invocados, interessa salientar que, em rigor, constituem fundamentos de anulabilidade da sentença, relacionados com os seus limites, ocorrendo quando o juiz não esgotou todas as questões que lhe incumbia conhecer ou conheceu de outras indevidamente – José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil anotado, Volume 2º, 3ª edição, página 735
Na realidade, ao juiz incumbe o conhecimento de todas as questões “que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada (…)” – cfr. artigo 608º, nº 2, CPC. Consequentemente: “(…) o não conhecimento de pedido, causa de pedir ou exceção (…) constitui (…), vício que também ocorre quando a sentença “(…) violando o princípio do dispositivo na vertente relativa à conformação objetiva da instância (…) não observe os limites impostos pelo artigo 609º, nº1, condenando ou absolvendo em quantidade superior ao pedido ou em objeto diverso do pedido” - Lebre de Freitas, ob. cit. pág. 737.
Da leitura da petição inicial não restam dúvidas quanto à configuração da presente ação comum como ação de preferência, como se alcança dos pedidos formulados nos seguintes termos:
“a) Ser reconhecido o direito de preferência do autor sobre o prédio urbano denominado Capela Romano-Gótica de Sobral de Monte Agraço, situado na Rua 25 de abril, em São Salvador, Concelho de Sobral de Monte Agraço, substituindo-se o réu “Cipreste-Turismo de Habitação, Ldª na escritura de compra e venda; B) Serem condenados os RR a entregar o referido prédio livre e desocupado ao Autor”.
No relatório da decisão recorrida fez-se constar:
“Os presentes autos reportam-se a uma ação de preferência instaurada pelo Município do Sobral do Monte Agraço contra A, Cipreste – Turismo de Habitação e outros, melhor identificados na petição inicial, na qual aquele peticiona: a) O reconhecimento de que a Capela Romano Gótica de Sobral de Monte Agraço, ou Capela do Salvador do Mundo constitui um prédio urbano autónomo e que corresponde ao prédio inscrito na matriz urbana sob o nº 913 com uma área total de 480 m2 sendo a área coberta de 75 m2 e a descoberta de 405 m2 (adro e logradouro); b) A condenação dos RR a reconhecer o direito de preferência que assiste ao Município do Sobral do Monte Agraço na venda da dita Capela e consequentemente a absterem-se de praticar quaisquer atos que afastem ou inviabilizem o exercício de tal direito sobre a Capela.”
No dispositivo da decisão recorrida (saneador-sentença em proferido em 19-11-2024), que julgou a ação procedente, consta:
“a) Declara Anulada a venda realizada nos autos e ordena o cancelamento dos respetivos registos; b) Declara reconhecido que, a Capela Romano Gótica de Sobral de Monte Agraço, constitui um prédio urbano autónomo e que corresponde ao prédio inscrito na matriz urbana sob o nº 913 com uma área total de 480 m2 sendo a área coberta de 75 m2 e a descoberta de 405 m2 (adro e logradouro); c) Condena os RR a reconhecer o direito de preferência do Município do Sobral do Monte Agraço na venda da dita Capela e a absterem-se de praticar quaisquer atos que afastem ou inviabilizem o exercício de tal direito sobre a Capela.”
Percorrendo os factos considerados provados na decisão recorrida, verifica-se que foram extraídos – essencialmente – da alegação constante dos articulados (petição inicial e contestação) apresentados nos presentes autos. Com especial relevância para a apreciação das pretensões deduzida, ficaram consignados os seguintes factos:
- O prédio relativamente ao qual o autor pretende exercer direito de preferência foi classificado como imóvel de interesse público;
- Tal prédio tem estado na posse do Município de Sobral de Monte Agraço, que celebrou com o IPPAR um protocolo de cooperação que o teve por objeto;
- Tal prédio foi objeto de escritura de partilha celebrada em 03-09-1976;
- Em 01-10-2019 os réus - pessoas singulares - venderam o prédio em questão à ré “Cipreste”;
- Previamente a tal venda, em 20-03-2019, foi publicado anúncio no Portal “Caso Pronta”, publicitando-a;
- O autor teve conhecimento desse negócio em finais de novembro de 2019.
Por outro lado, toda a fundamentação da sentença, acima transcrita, aprecia da existência do direito de preferência invocado pelo autor, referindo-se imediatamente antes do dispositivo:
“Recorrendo os RR a um mecanismo de notificação, nestas condições, então, deverão ser estes a suportar o “risco dessa sua opção”. Nesta medida, não tendo os RR comunicado ao preferente a nova data para a celebração da escritura de compra e venda nunca o Município poderia ter concretizado o seu direito de preferir na aquisição, consequentemente, não se iniciou o decurso do prazo de caducidade a que se alude no art. 416º, nº2 do CC. Face ao exposto, improcede a alegada exceção declarando-se a ação procedente porque provada.”
Ora, a conjugação dos factos e da fundamentação de direito inculca ao tribunal a convicção segura de que foram ponderados os articulados (designadamente a petição inicial) apresentados na presente ação. Assim como não pode deixar de concluir-se que foi apreciado o direito de preferência que o autor se apresentou a exercer, bem como a exceção de caducidade que lhe foi oposta pela ré contestante.
Porém, no relatório da decisão recorrida, embora corretamente identificada a presente ação como ação de preferência e devidamente identificadas as partes, foram erroneamente identificados os pedidos, já transcritos, no que se reporta à declaração de que a Capela Romano-Gótica de Sobral de Monte Agraço constitui prédio autónomo, à mera declaração da existência de um direito de preferência na esfera jurídica do autor, e à condenação dos réus na abstenção de atos que inviabilizem o exercício de tal direito.
Ora, tais pedidos manifestamente não foram os formulados nestes autos que, na realidade, visam agora a efetivação de direito de preferência relativamente a negócio de alienação da Capela Romano-Gótica de Sobral de Monte Agraço já realizado. Em rigor, tais pedidos correspondem aos formulados em anterior ação, que opôs as mesmas partes (com exceção da ré “Cipreste” que ali não foi demandada), cuja cópia da petição inicial foi junta aos autos como documento nº 9 pelo autor. Nessa ocasião, a venda, relativamente à qual o autor se apresenta nestes autos a preferir, não tinha sido realizada, pretendendo o autor que fosse reconhecido que a Capela Romano-Gótica de Sobral de Monte Agraço constituía prédio autónomo e obter a condenação dos ali réus (proprietários) a reconhecerem que o Município beneficiava do direito de preferência na sua transmissão.
Por outro lado, no dispositivo da decisão recorrida, mantendo – em parte - a desconformidade quanto aos pedidos formulados constante do relatório, foi a ação julgada procedente, recorde-se, nos seguintes termos:
“a) Declara Anulada a venda realizada nos autos e ordena o cancelamento dos respetivos registos; b) Declara reconhecido que, a Capela Romano Gótica de Sobral de Monte Agraço, constitui um prédio urbano autónomo e que corresponde ao prédio inscrito na matriz urbana sob o nº 913 com uma área total de 480 m2 sendo a área coberta de 75 m2 e a descoberta de 405 m2 (adro e logradouro); c) Condena os RR a reconhecer o direito de preferência do Município do Sobral do Monte Agraço na venda da dita Capela e a absterem-se de praticar quaisquer atos que afastem ou inviabilizem o exercício de tal direito sobre a Capela.”
Tal decisão, designadamente nas suas alíneas b) e c), não reproduz os pedidos formulados, mas sim os anteriormente transcritos, deduzidos em ação em que, previamente a qualquer alienação da Capela Romana-Gótica de Sobral de Monte Agraço, o autor solicitou, perante os vendedores, que lhe fosse reconhecido o seu direito de preferência.
Já o decidido na alínea a) – anulação da venda e cancelamento dos registos - inculca a convicção de que foi o direito de preferência invocado na presente ação que foi objeto dessa decisão, embora sem o rigor que se impunha (dado que a procedência da preferência determina não a anulação da venda – pedido que nem sequer foi formulado - mas a substituição do comprador pelo preferente no negócio em que a preferência foi preterida). Esclarecendo o efeito da ação de preferência, citando Vaz Serra (RLJ, ano 101º, pág. 329), refere-se no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 29-04-2010 (proferido no processo nº 81/05.0TBMPTS.P1.S1, disponível em www.dgsi.pt): «(…) a procedência da ação de preferência tem efeito retroativo, até ao preciso momento da alienação, daí resultando a substituição, com eficácia “ex tunc”, ou seja, “ab initio”, do adquirente pelo preferente, razão pela qual enquanto a alienação estiver pendente do exercício do direito de preferência, não pode dizer-se que o adquirente é proprietário definitivo da coisa comprada ou doada». Ou, como se refere no Acórdão da Relação de Coimbra de 07-11-2023 (proferido no processo nº 75/21.9T8IND.C1 (disponível em www.dgsi.pt): “Visa esta ação de preferência colocar o preferente na posição do adquirente, com efeitos à data da celebração do negócio em relação ao qual se verificou a violação da preferência, tudo se processando como se o negócio tivesse sido originariamente celebrado entre o preferente e o alienante”.
É certo que se extrai da fundamentação da sentença que foi a pretensão de exercício de direito de preferência por parte do autor que foi apreciada e objeto da decisão de procedência, o que foi claramente intuído por ambas as partes, como se alcança das respetivas alegações de recurso.
Porém, a procedência da ação não poderia deixar de determinar o reconhecimento judicial do direito de preferência do autor na venda em causa (de 01-10-2019), pelo preço aí mencionado, devendo no dispositivo ser ordenada a substituição do adquirente naquele negócio pelo autor/preferente. Essa seria a decisão tecnicamente adequada à pretensão formulada, o que evidencia que a proferida ficou aquém do pedido.
Assim, por não ter ordenado a substituição do autor na posição do adquirente e não lhe ter determinado a entrega do prédio (desde logo como corolário do direito de sequela que o ingresso em tal posição de adquirente/proprietário lhe confere – cfr. artigo 1311º, CC), a decisão proferida incorre no vício de nulidade por não ter apreciado todas as questões suscitadas – cfr. artigo 615º, nº 1, alínea d), CPC.
Acresce que, como bem nota a recorrente, a decisão recorrida padece de excesso de pronúncia, no segmento relativo à declaração de que a Capela Romano-Gótica de Sobral de Monte Agraço configura prédio autónomo, dado que tal questão não foi suscitada nestes autos, não integrando nem a causa de pedir, nem os pedidos deduzidos.
Por fim, em rigor, também a condenação dos réus a absterem-se de praticar atos que inviabilizem o direito de preferência do autor constitui condenação ultra petitum, dado que não foi deduzida nesta ação.
Ora, como se refere no sumário do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça 08-09-2020 (proferido no processo nº 103355/17.8YIPRT.P1.S1, disponível em www.dgsi.pt): “(…) II - O tribunal pode proceder à qualificação jurídica que julgue adequada, dentro da factualidade alegada e provada e nos limites do efeito jurídico pretendido, mas está processualmente vedado atribuir-lhe, sob a capa de tal reconfiguração, bens ou direitos substancialmente diversos dos que o autor procurava obter através da pretensão que efetivamente formulou.”
Também nestes segmentos condenatórios além do pedido, a decisão recorrida incorre no vício previsto no artigo 615º, nº 1, alínea d), CPC.
Contudo, em face da regra da substituição do tribunal recorrido no suprimento de tais nulidades, nos termos do disposto no artigo 665º, nº 1, CPC, nada obsta à apreciação da questão subsequente (impugnação da matéria de facto). Caso se conclua que os autos consentem a apreciação do mérito da causa, este tribunal de recurso, em substituição do tribunal recorrido, suprirá as nulidades enunciadas, já suficientemente debatidas entre as partes, em ambas as alegações (e respostas) apresentadas nos autos.
Pelo exposto, acorda-se em julgar procedente o vício de nulidade invocado, prosseguindo a apreciação do recurso com a decisão da impugnação da matéria de facto.
* Impugnação da matéria de facto
A reapreciação da matéria de facto pelo tribunal de recurso implica que o recorrente, nas alegações em que impugna a decisão relativa à matéria de facto, cumpra os ónus que o legislador estabeleceu a seu cargo, enunciados no artigo 640º CPC. Resulta de tal norma, incumbir ao recorrente, por forma a cumprir o que tem vindo a designar-se por “ónus primário de alegação”, e sob pena de rejeição do recurso, identificar os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados (640º, nº 1, alínea a), CPC), os concretos meios probatórios que impunham decisão diversa (640º, nº 1, alínea b), CPC) e indicar a decisão que deve ser proferida quanto aos factos impugnados (640º, nº 1, alínea c), CPC). Já o designado “ónus secundário” reporta-se à especificação dos meios de prova que implicariam, na perspetiva do recorrente, diversa decisão da matéria de facto, gerando o seu incumprimento a rejeição do recurso apenas se ficar gravemente dificultado o exercício de contraditório ou o exame pelo tribunal de recurso – Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 21-03-2019, proferido no processo 3683/16.6T8CBR.C1.S2, disponível em www.dgsi.pt
Assim, na exigência do cumprimento dos ónus de impugnação previstos no citado artigo 640º, “os aspetos de ordem formal (…) devem ser modelados em função dos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade” – Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 21-03-2019 (proferido no processo nº 3683/16.6T8CBR.C1.S2, disponível em www.dgsi.pt)
Acresce que nesse âmbito haverá ainda que ponderar o AUJ do STJ de 17-10-2023 (acórdão nº 12/2023 de 14 de novembro, publicado no Diário da República nº 220/2023, Série I de 2023-11-14) que uniformizou a seguinte jurisprudência: “Nos termos da alínea c), do n.º 1 do artigo 640.º do Código de Processo Civil, o Recorrente que impugna a decisão sobre a matéria de facto não está vinculado a indicar nas conclusões a decisão alternativa pretendida, desde que a mesma resulte, de forma inequívoca, das alegações.” Aplicando tal entendimento, o Supremo Tribunal de Justiça em acórdão de 08-02-2024, (proferido no processo n.º 7146/20.7T8PRT.P1.S1, disponível em www.dgsi.pt) considerou que “a rejeição do recurso respeitante à impugnação da decisão da matéria de facto apenas deve verificar-se quando falte nas conclusões a referência à impugnação da decisão sobre a matéria de facto, através da referência aos «concretos pontos de facto» que se considerem incorretamente julgados (alínea a) do n.º 1 do artigo 640.º), sendo de admitir que as restantes exigências (alíneas b) e c) do n.º 1 do artigo. 640.º), em articulação com o respetivo n.º 2, sejam cumpridas no corpo das alegações”.
No caso, a recorrente esclareceu que a impugnação da matéria de facto visa a supressão dos factos provados de matéria que impugnou e que não se encontra demonstrada documentalmente, e ainda de factos que não correspondem aos pedidos deduzidos.
Assim, afigurando-se que a recorrente cumpriu os ónus enunciados, procede-se à apreciação da impugnação da matéria de facto que deduziu.
A recorrente impugnou os factos assentes tendo por base os seguintes fundamentos:
- O facto provado nº 2 corresponde ao alegado pelo autor nos artigos 3º, 4º e 6º da petição inicial, matéria que foi expressamente impugnada nos artigos 58º e 59º da contestação, além de que inexiste qualquer prova documental que a sustente;
- O facto 17º corresponde ao alegado artigo 32º da petição inicial, impugnado pela recorrente no artigo 59º da contestação, não estando demonstrado por qualquer elemento probatório junto pelo autor, além de que, na sua perspetiva, mostra-se infirmado pelo anúncio publicado no Portal Casa Pronta pelos Réus (doc. n.º 1 junto com a contestação;
- Os factos 3º a 5º correspondem ao alegado pelo autor/recorrido nos artigos 8º, 9º e 10º da petição inicial, expressamente impugnados pela recorrente no artigo 59º da contestação, não se revelando os documentos juntos aos autos aptos à sua demonstração;
- Os factos 6º a 14º devem ser expurgados por não serem relevantes para o mérito da ação.
Nos presentes autos, procedeu-se ao conhecimento do mérito da causa no despacho saneador, nos termos do disposto no artigo 595, nº 1, alínea b), CPC, e, consequentemente sem produção de qualquer prova, para além da documental.
Assim, a apreciação da impugnação da matéria de facto deverá ponderar quer a prova documental junta aos autos, quer a disciplina do artigo 574º CPC, que impõe ao réu contestante o ónus de tomar posição definida perante os factos que: “(…) constituem a causa de pedir invocada pelo autor.” Não sendo cumprido tal ónus nos termos do nº 2 daquela norma: “Consideram-se admitidos por acordo os factos que não forem impugnados, salvo se estiverem em oposição com a defesa considerada no seu conjunto, se não for admissível confissão sobre eles ou se só puderem ser provados por documento escrito; a admissão de factos instrumentais pode ser afastada por prova posterior.
Aos factos impugnados foi conferida a seguinte redação:
“2º- Trata-se do mais antigo monumento do concelho e tem sido objeto de estudo e intervenção arqueológica e do qual o Município do Sobral do Monte Agraço teve a posse durante vários anos”.
“3º- Em 25 de Fevereiro de 1997, o Município celebrou com o IPPAR um protocolo de cooperação, tendo por objeto aquele monumento e do qual consta o seguinte: “A Igreja do Salvador do Mundo templo cristão presumivelmente fundado no séc. XIV em estilo gótico rural de transição, constitui um conjunto artístico e arquitetónico de grande valor cultural, essencial, para o conhecimento da história das edificações religiosas medievais na região da península de Lisboa e encontra-se afeta ao IPPAR:” 4º- Desde 1982, existe correspondência trocada entre o Município e o, à data IPPC, da qual resulta que o Município se encontrava na posse da Capela aí pretendendo desenvolver um conjunto de ações que visavam a defesa do património. 5º. Este contacto manteve-se com outras entidades da Administração central ligadas ao património cultural e outras entidades públicas e privadas. 6º. Através da AP. 1642 de 07/09/2015, o Autor logrou registar o prédio aludido nos autos (no qual se encontra implantada a Capela do Salvador do Mundo) em nome da Fábrica da Igreja Paroquial do Sobral de Monte Agraço, (cfr. Doc.9 junto com a petição inicial). 7º. Após o decurso de um processo de retificação, foi declarada a nulidade do registo de propriedade em nome da Fábrica da Igreja Paroquial, cfr. Docs, 2 e 3 da contestação; 8º- Por força desse cancelamento foi convertido em definitivo o registo de aquisição em favor dos anteriores proprietários do imóvel e demais RR, em resultado do registo nº. 161 244 2015/2015-11-13. 9º. No dia 03/09/1976 foi celebrada uma escritura de partilha, cujo teor se dá por integralmente reproduzido, da qual consta a Verba Nº. 15 , cujo teor se transcreve na parte relevante: Verba Nº. 15: Um prédio urbano constituído por uma casa de arrecadação em ruínas e logradouro, no sítio do Salvador da freguesia e concelho do Sobral de Monte Agraço, a confinar de norte e poente com prédio rústico pertencente a herdeiros de O, e do sul e nascente com caminho, o qual é parte da descrição predial número trinta mil e oitenta e seis a folhas noventa e uma do livro B-setenta e sete, omisso à respetiva matriz mas já feita a participação para a sua inscrição em vinte e oito de agosto findo. (…). 10º. Em 13-11-2015 os RR efetuaram um pedido de registo, sob o Nº, 1612442015 correspondente às verbas 14 e 15 da referida escritura de partilha referida em 9º) e do qual constam as seguintes declarações complementares em cuja parte relevante consta: “1- Prédio misto denominado “Salvador” sito nos limites de Cachimbos, freguesia e concelho de Sobral de Monte Agraço, composto por: - parte urbana: casa em ruínas e logradouro, com a área coberta de 75 m2 e logradouro com 405 m2 inscrita atualmente na matriz urbana sob o art. 913º da freguesia de Sobral de Monte Agraço; e - parte rústica: cultura arvense, oliveira mato e vinha com a área de 48720 m2 por dele fazer parte a parte urbana desta descrição, inscrita na matriz cadastral sob o art. 81 º da secção E da freguesia do Sobral do Monte Agraço; a confronto de norte, sul e nascente com caminho e poente com AA. 2- Verba 15-Prédio urbano a desanexar da descrição 553/Sobral de Monte Agraço que corresponde integralmente à parte urbana acima indicada. 11º. Através do pedido de registo Nº. 161 2442015 o requerente pretendia que o prédio urbano fosse desanexado do prédio rústico adquirindo uma inscrição autónoma. 12º. Esse pedido de registo foi efetuado na inscrição do imóvel na Conservatória do Registo Predial do Sobral de Monte Agraço, atualmente, sob o nº 2101/20150907 da Freguesia do Sobral do Monte Agraço. 13º- O Imóvel atualmente sob esse número de registo corresponde à verba Nº. 15 da escritura de partilha referida em 9º. 14º. Da certidão do registo predial relativamente ao prédio ora designado pela Matriz 913 consta o seguinte: “Matriz 913 Composição e Confrontações: Desanexado do prédio nº. 533 da Freguesia do Sobral de Monte Agraço”, cfr. Certidão do registo predial do imóvel junta como doc. 5 da contestação. (…) 17º. O negócio descrito no ponto 15º) da matéria de facto chegou ao conhecimento do Autor no final do mês de novembro de 2019.”
O tribunal recorrido motivou nos seguintes termos a decisão da matéria de facto:
“A nossa convicção resultou dos elementos documentais carreados pelas partes, bem como, da matéria aceite nos articulados. Prova documental relevante: - Decreto Lei 40361, de 20/10/1955, que confirma a classificação do imóvel dos autos como “imóvel de interesse público; - Protocolo celebrado entre o IPPAR e a Câmara Municipal do Sobral do Monte Agraço em relação à Igreja do Salvador do Mundo; - Escritura Pública de Compra e Venda do prédio inscrito na matriz sob o nº 913 e que corresponde à referida Igreja; - Escritura de partilhas; -Certidão do Registo Predial doc. 5 da contestação; - O anúncio do Portal Casa Pronta”.
Compulsada a petição inicial, verifica-se que os factos enunciados na sentença sob os nºs 2, 3, 4, 5 e 17, foram efetivamente alegados nos artigos 3º, 4º, 5º, 6º, 8º, 9º, 10º e 32º da petição inicial, e todos expressamente impugnados nos artigos 58º e 59º da contestação.
Ora, o protocolo celebrado entre o IPPAR e a Câmara Municipal do Sobral do Monte Agraço, ou a correspondência trocada entre o Município e o IPPC, não constituem documentos autênticos, nos termos previstos nos artigos 369º e ss, CC. Consequentemente, não se revestindo de força probatória plena, são insuficientes para demonstrar os factos supra enunciados sob os nºs 2, 3, 4 e 5, expressamente impugnados pela recorrente – cfr. artigo 604º, nº 4, 2ª parte, CPC.
O facto enunciado sob o nº 17 foi alegado pelo autor no artigo 32º da petição inicial e também expressamente impugnado pela ré no artigo 59º da contestação.
Em síntese, não se tratando de factos cujo apuramento tenha resultado de documento autêntico, a sua impugnação determina que permaneçam controvertidos, impondo-se a sua supressão da factualidade apurada.
Consequentemente, os factos provados enunciados sob os números 2 a 5 e 17, não poderão deixar de ser suprimidos do elenco da factualidade assente, revelando-se, nessa parte, procedente a impugnação da matéria de facto deduzida pela recorrente.
Os factos 6º a 14º, com a redação que lhes foi conferida na decisão recorrida, reportam-se quer a vicissitudes registrais relativas ao prédio em discussão nos autos, quer à sua adjudicação por partilha aos proprietários, e resultam dos documentos juntos com a petição inicial (doc. nºs 7,8 e 11) e com a contestação (com os nºs 2, 3, 4, 5 e 6).
Tais factos foram parcialmente alegados pelo autor, designadamente nos artigos 18º a 22º da petição inicial. Segundo a alegação ali efetuada, os réus procuraram omitir a descrição da Capela no Registo Predial, identificando-a já não como prédio urbano, mas como prédio misto, associando a tal artigo urbano um terreno rústico, visando com o aumento da área fazer “disparar o preço para um valor astronómico”, inviabilizando o exercício do direito de preferência por parte do Município. Alegou ainda o autor que tal atuação determinou que tivesse instaurado uma anterior ação na qual solicitou a declaração de que a Capela constituía um prédio urbano autónomo, bem como o reconhecimento do seu direito de preferência em futura alienação (artigos 23º a 26º da petição inicial).
Ora, tal factualidade, designadamente no que se reporta à intenção subjacente às vicissitudes registrais, foi expressamente impugnada pela ré (no artigo 58º da contestação) e, consequentemente, permanece controvertida.
De todo o modo, os vários eventos registrais mencionados nos factos provados 6 a 14, bem como os termos da descrição da Capela na escritura de partilha, a descrição atual do prédio no registo predial, resultam da prova documental carreada para os autos, nada obstando à sua consideração ao abrigo do disposto no artigo 607º, nº 4, CPC. Tal factualidade contribui para a identificação cabal do prédio em discussão e, nos segmentos em que não foi expressamente alegada, além de se extrair dos documentos, sempre deveria ser ponderada ao abrigo do disposto nos artigos 5º, nº 2, alíneas b) e c), CPC, por estar em causa factualidade concretizadora e instrumental dos factos expressamente alegados, com relevo jurídico.
Consequentemente, a impugnação da matéria de facto improcede quanto aos factos provados sob os números 6 a 14.
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Em face da decisão que antecede, são os seguintes os FACTOS PROVADOS a considerar (mantendo-se a numeração que lhes foi conferida na decisão recorrida): 1º- No concelho e freguesia de Sobral de Monte Agraço existe um antigo templo designado por Capela Romano Gótica do Salvador que foi classificada como imóvel de interesse público por via do Decreto nº. 40361 de 20 /10/1995; 6º. Através da AP. 1642 de 07/09/2015, o Autor logrou registar o prédio aludido nos autos (no qual se encontra implantada a Capela do Salvador do Mundo) em nome da Fábrica da Igreja Paroquial do Sobral de Monte Agraço, (cfr. Doc.9 junto com a petição inicial). 7º. Após o decurso de um processo de retificação, foi declarada a nulidade do registo de propriedade em nome da Fábrica da Igreja Paroquial, cfr. Docs, 2 e 3 da contestação; 8º- Por força desse cancelamento foi convertido em definitivo o registo de aquisição em favor dos anteriores proprietários do imóvel e demais RR, em resultado do registo nº. 161 244 2015/2015-11-13. 9º. No dia 03/09/1976 foi celebrada uma escritura de partilha, cujo teor se dá por integralmente reproduzido, da qual consta a Verba Nº. 15 , cujo teor se transcreve na parte relevante: Verba Nº. 15: Um prédio urbano constituído por uma casa de arrecadação em ruínas e logradouro, no sítio do Salvador da freguesia e concelho do Sobral de Monte Agraço, a confinar de norte e poente com prédio rústico pertencente a herdeiros de O, e do sul e nascente com caminho, o qual é parte da descrição predial número trinta mil e oitenta e seis a folhas noventa e uma do livro B-setenta e sete, omisso à respetiva matriz mas já feita a participação para a sua inscrição em vinte e oito de agosto findo. (…). 10º. Em 13-11-2015 os RR efetuaram um pedido de registo, sob o Nº, 1612442015 correspondente às verbas 14 e 15 da referida escritura de partilha referida em 9º) e do qual constam as seguintes declarações complementares em cuja parte relevante consta: “1- Prédio misto denominado “Salvador” sito nos limites de Cachimbos, freguesia e concelho de Sobral de Monte Agraço, composto por: - parte urbana: casa em ruínas e logradouro, com a área coberta de 75 m2 e logradouro com 405 m2 inscrita atualmente na matriz urbana sob o art. 913º da freguesia de Sobral de Monte Agraço; e - parte rústica: cultura arvense, oliveira mato e vinha com a área de 48720 m2 por dele fazer parte a parte urbana desta descrição, inscrita na matriz cadastral sob o art. 81 º da secção E da freguesia do Sobral do Monte Agraço; a confronto de norte, sul e nascente com caminho e poente com AA. 2- Verba 15-Prédio urbano a desanexar da descrição 553/Sobral de Monte Agraço que corresponde integralmente à parte urbana acima indicada. 11º. Através do pedido de registo Nº. 161 2442015 o requerente pretendia que o prédio urbano fosse desanexado do prédio rústico adquirindo uma inscrição autónoma 12º. Esse pedido de registo foi efetuado na inscrição do imóvel na Conservatória do Registo Predial do Sobral de Monte Agraço, atualmente, sob o nº 2101/20150907 da Freguesia do Sobral do Monte Agraço. 13º- O Imóvel atualmente sob esse número de registo corresponde à verba Nº. 15 da escritura de partilha referida em 9º. 14º. Da certidão do registo predial relativamente ao prédio ora designado pela Matriz 913 consta o seguinte: “Matriz 913 Composição e Confrontações: Desanexado do prédio nº. 533 da Freguesia do Sobral de Monte Agraço”, cfr. Certidão do registo predial do imóvel junta como doc. 5 da contestação. 15º. No dia 01 de Outubro de 2019, através de escritura pública de compra e venda os RR (pessoas singulares) declararam vender à Ré “Cipreste- Turismo de Habitação, Ldª” e esta declarou comprar, pelo valor de 55.000 euros, o prédio urbano que constitui um edifício de um piso composto de capela usada como arrecadação e adega com lagar, correspondente às ruínas da Capela do Salvador do Mundo, classificada como imóvel de interesse público, (…) inscrito na matriz predial urbana sob o art. 913, com o valor patrimonial de 10.779, 30 euros.” 16º. Os RR publicaram no Portal Casa Pronta um anúncio do qual consta: “Entidade Câmara Municipal de Sobral de Monte Agraço Direção Regional de Cultura e Vale do Tejo (DGPC) Nº anúncio: 17631/2019 Data do anúncio: 20-03-2019 Compradores Nome/ Firma ou denominação Cipreste- Turismo de Habitação Ldª, Identificação do Imóvel Descrição em ficha 2101 Dados da transmissão Tipo de negócio : Compra e Venda Preço / Moeda 55.000,00 euros Data previsível do negócio 05-04-2019, cfr. Doc. 1 junto com a contestação.” 17º - Com vista ao exercício do direito de preferência, o autor depositou a quantia de € 55.000,00, à ordem dos presentes autos, na agência da Caixa Geral de Depósitos de Sobral de Monte Agraço (facto aditado atendendo à sua relevância para a decisão da causa, ao abrigo do disposto nos artigos 607º, nº 4 e 663º, nº 2, CPC, tendo por base o conteúdo da “guia de depósito” junta pelo autor com o requerimento de 13-03-2020).
* Dos pressupostos do direito de preferência invocado pelo autor
Não obstante a alteração operada à matéria de facto, embora persistindo controvertidos vários factos, afigura-se que os autos reúnem os elementos necessários à decisão de mérito, nos termos do disposto no artigo 595º, nº 1, alínea b), CPC. Efetivamente, como se explanará de seguida, os factos assentes consentem o conhecimento quer do direito de preferência invocado pelo autor, quer da exceção de caducidade deduzida pela ré.
Resulta do facto provado nº 1 que a Capela Romano-Gótica de Sobral de Monte Agraço mostra-se classificada como imóvel de interesse público, pelo que nos termos do artigo 37º da Lei 107/2001, de 08/09, o Município/autor dispõe do direito de preferência na sua aquisição. Efetivamente, sob a epígrafe “Direito de preferência”, resulta daquela norma:
“1 - Os comproprietários, o Estado, as Regiões Autónomas e os municípios gozam, pela ordem indicada, do direito de preferência em caso de venda ou dação em pagamento de bens classificados ou em vias de classificação ou dos bens situados na respetiva zona de proteção. 2 - É aplicável ao direito de preferência previsto neste artigo o disposto nos artigos 416.º a 418.º e 1410.º do Código Civil, com as necessárias adaptações. 3 - O disposto no presente artigo não prejudica os direitos de preferência concedidos à Administração Pública pela legislação avulsa.”
Tal direito de preferência, que nos autos não suscita qualquer controvérsia, define-se como um “(…) direito real que confere ao titular o direito de prevalência e sequela sobre o objeto preferido, tudo se passando, quando feito valer judicialmente, como se o contrato de alienação houvesse sido celebrado com o preferente, o qual se substitui ao comprador na escritura de compra e venda” – Acórdão da Relação de Coimbra de 11-12-2007 (proferido no processo nº 160/04, disponível em www.dgsi.pt).
O direito de preferência em discussão nos autos possui, como emerge do citado artigo 37º da Lei 107/2001, de 08-9, fundamento legal, constituindo um direito potestativo, porquanto, verificados os seus pressupostos, se impõe inelutavelmente à contraparte. O seu exercício limita o princípio da liberdade contratual, na vertente da escolha livre e arbitrária da identidade do vendedor, limitação essa justificada pela proteção dos bens culturais classificados e pela vantagem da sua colocação no domínio público/municipal.
O exercício do direito de preferência equaciona-se em duas fases distintas, ocorrendo a primeira antes da celebração do negócio, com a comunicação para exercício da preferência. Nesta fase, o obrigado à preferência decidiu efetuar o negócio, já definiu o projeto negocial e transmite-o ao preferente. A segunda fase do exercício do direito de preferência ocorre nas hipóteses em que a comunicação para a preferência não foi efetuada (ou não o foi validamente) e o preferente vem exercer o direito após o negócio ter sido realizado.
O artigo 416º, CC, sob a epígrafe “Conhecimento do preferente, inscreve-se na primeira das enunciadas fases, impondo expressamente o nº 2 do artigo 37º da Lei 107/2001, de 08/09, a sua aplicação ao direito de preferência que o autor pretende exercer nestes autos, dispondo:
“1. Querendo vender a coisa que é objeto do pacto, o obrigado deve comunicar ao titular do direito o projeto de venda e as cláusulas do respetivo contrato. 2. Recebida a comunicação, deve o titular exercer o seu direito dentro do prazo de oito dias, sob pena de caducidade, salvo se estiver vinculado a prazo mais curto ou o obrigado lhe assinar prazo mais longo”.
Já o artigo 1410º CC, também aplicável ao direito de preferência de que se arroga o autor ex vi artigo 37º da Lei 107/2001, de 08/09, regula a ação de preferência, para as hipóteses em que a comunicação para o negócio não foi efetuada, dispondo:
“1 - O comproprietário a quem se não dê conhecimento da venda ou da dação em cumprimento tem o direito de haver para si a quota alienada, contanto que o requeira dentro do prazo de seis meses, a contar da data em que teve conhecimento dos elementos essenciais da alienação, e deposite o preço devido nos 15 dias seguintes à propositura da ação. 2. O direito de preferência e a respetiva ação não são prejudicados pela modificação ou distrate da alienação, ainda que estes efeitos resultem de confissão ou transação judicial.”
Conjugando as normas supra enunciadas, e dado que a ré opôs ao direito de preferência que o autor se propõe exercer a exceção de caducidade, interessa clarificar que a apreciação do mérito da causa envolve a ponderação de dois prazos de caducidade:
- A caducidade do direito de ação de preferência;
- A caducidade do direito de exercer a preferência, na sequência da comunicação do projeto do negócio.
Ora, o prazo de caducidade do direito de ação (de preferência), conforme previsão do artigo 1410º, nº 1, do Código Civil, é de seis meses, devendo ser contabilizado desde a “(…) data em que [o preferente] teve conhecimento dos elementos essenciais da alienação”. Trata-se, pois, de prazo que corre desde o momento em que o preferente soube da efetiva realização do negócio.
No caso dos autos, o negócio foi celebrado em 01-10-2019 e a ação foi instaurada em 06-03-2020, ou seja, antes de decorrido tal prazo, pelo que, embora permaneça controvertida a data em que o preferente teve conhecimento do negócio, pode, com segurança, afirmar-se que não se verifica a exceção de caducidade (de ação).
Porém, a ré alega ter comunicado o projeto do negócio ao autor, o que fez recorrendo ao Portal “Casa Pronta”, não tendo este manifestado, no prazo legal de oito dias, a intenção de exercer a preferência, o que, na sua perspetiva, extinguiu por caducidade tal direito.
Consequentemente, constitui questão nuclear a de definir se a comunicação prevista no artigo 416º, nº1, CC, foi ou não cabalmente efetuada, dado que, na afirmativa, opera a caducidade prevista no artigo 416º, nº 2, CPC, como facto extintivo do direito do autor, por o não ter exercido no prazo de 8 dias. Porém, na hipótese negativa, designadamente se não tiverem sido respeitados todos os requisitos da comunicação, tudo se passa como se a comunicação não tivesse sido efetuada, estando o preferente (preterido) legitimado a lançar mão da ação de preferência regulada no artigo 1410º, CC. Neste caso, a comunicação não produz efeitos “(…) abrindo caminho ao preferente, no caso de alienação, para a propositura da ação prevista no citado art. 1410º (…)” – Ac STJ de 27-11-2018 (proferido no processo nº 14589/17.1T8PRT.P1.S1, disponível em www.dgsi.pt).
O anúncio da venda (que na perspetiva da recorrente cumpre os requisitos, e na perspetiva da recorrido não os cumpre), foi publicado no portal “Casa Pronta” e possui o seguinte teor:
“Entidade Câmara Municipal de Sobral de Monte Agraço Direção Regional de Cultura e Vale do Tejo (DGPC) Nº anúncio: 17631/2019 Data do anúncio: 20-03-2019 Compradores Nome/ Firma ou denominação Cipreste- Turismo de Habitação Ldª, Identificação do Imóvel Descrição em ficha 2101 Dados da transmissão Tipo de negócio: Compra e Venda Preço / Moeda 55.000,00 euros Data previsível do negócio 05-04-2019.”
Tal específica forma de publicação está regulada no DL 263-A/2007, de 23 de julho, para os direitos de preferência de que beneficiam o Estado, Regiões Autónomas, municípios, outras pessoas coletivas públicas ou empresas públicas, designadamente no seu artigo 18º, com o seguinte teor:
“Envio eletrónico da informação necessária ao exercício do direito legal de preferência 1 - O alienante pode remeter os elementos essenciais ao exercício do direito legal de preferência pelo Estado, Regiões Autónomas, municípios, outras pessoas coletivas públicas ou empresas públicas por uma via eletrónica única, mediante a inscrição dos elementos essenciais da alienação em sítio na Internet de acesso público, nos termos a definir por portaria do membro do Governo responsável pela área da justiça. 2 - O envio da informação nos termos previstos no número anteriorsubstitui a notificação para preferência, nos termos gerais. 3 - O disposto nos números anteriores não é aplicável aos casos referidos no n.º 5 do artigo seguinte.”
O artigo subsequente daquele diploma, relativo ao exercício do direito de preferência estipula que o interessado o deve exercer “em sítio da internet, em termos a definir na portaria referida no nº 1 do artigo anterior”.
Tal definição mostra-se efetivada pela Portaria 794-B/2007, estabelecendo o seu artigo 10º:
“Envio da informação para exercício do direito legal de preferência 1 - O alienante pode remeter os elementos essenciais para o exercício do direito legal de preferência pelo Estado, Regiões Autónomas, municípios, outras pessoas coletivas públicas ou empresas públicaspor via eletrónica, mediante a inserção dos elementos essenciais da alienação no sítio da Internet www.casapronta.mj.pt. 2 - Para os feitos referidos no número anterior, o alienante deve inserir os dados respeitantes à sua identificação, à identificação do comprador e à identificação do prédio, bem como os elementos respeitantes ao futuro negócio, designadamente o preço.”
Do preâmbulo do DL 263-A/2007, de 23 de julho, que cria “o procedimento especial de transmissão, oneração e registo imediato de prédio urbano (…)”, resulta ter sido objetivo do legislador: “(…) a eliminação de formalidades dispensáveis nos processos de transmissão e oneração de imóveis e a possibilidade de realizar todas as operações e atos necessários num único balcão, perante um único atendimento. Assim, por um lado, eliminam-se formalidades no processo de compra de casa e noutros negócios jurídicos relacionados com a transmissão e oneração do imóvel. Com a utilização intensiva de meios de comunicação eletrónica e da Internet torna-se desnecessário o envio separado de informação a diversas pessoas coletivas públicas e empresas públicas para efeito de exercício do direito de preferência,”. Ora, o artigo 18º deste diploma, ao estipular que o alienante pode proceder ao envio eletrónico da informação necessária ao exercício do - específico - direito legal de preferência aí previsto pelo “Estado, regiões autónomas, municípios, outras pessoas coletivas públicas”, confere-lhe uma faculdade cuja conceção resultou de programa legislativo de simplificação e desformalização no âmbito do exercício do direito de preferência, prevendo expressamente que a informação/comunicação do negócio possa ser efetuada nos termos ali previstos.
Consequentemente, afigura-se que o alienante que exerça tal faculdade não pode ser penalizado por ter recorrido a tal mecanismo legal de simplificação para a comunicação da preferência. Neste sentido, merece concordância o afirmado no parecer junto pela ré, subscrito por António Agostinho Guedes, quando, após constatar que o Dl 263-A/2007, de 23 de julho, criou o Portal Casa Pronta, afirma: “Este diploma permite a qualquer cidadão que pretenda vender um imóvel sujeito à preferência de entidades públicas recorrer ao Portal para comunicar a essas entidades o seu projeto de venda, ficando assim desonerado de endereçar comunicações individuais e eliminando o risco de, por lapso, não notificar alguma entidade” (páginas 12 e 13 do parecer junto pela ré em 02-09-2024). Confirma-se ainda que, como refere o subscritor de tal parecer, “(…) a página do Portal Casa Pronta onde é submetido o requerimento não contempla qualquer campo onde se possa fazer referência à forma ou data do pagamento” (pág. 20).
Na definição dos elementos que devem obrigatoriamente constar da comunicação para preferência impõe-se, desde logo, a caraterização da sua natureza jurídica.
Ora, impondo o artigo 416º, nº 1, CC que o obrigado à preferência comunique ao preferente “o projeto da venda” e “as cláusulas do respetivo negócio”, ou seja, os elementos necessários para a sua decisão, a comunicação para a preferência é maioritariamente classificada como uma verdadeira proposta contratual, tornando-se vinculativa para o seu autor – cfr. Pinto Furtado (Manual do Arrendamento Urbano, Vol II, 5ª edição, pág. 829, defendendo que a comunicação para a preferência constitui uma proposta de contrato promessa de compra e venda); Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil anotado, 3ª edição, Vol I, pág. 367); Ac STJ de 23-03-2021 (proferido no processo nº 609/19.9T8FND.C1.S1, disponível em www.dgsi.pt); Ac STJ de 27-11-2018 (processo nº 14589/17.1T8PRT.P1.S1, disponível em www.dgsi.pt, constando do respetivo sumário: “(…) VII - O dever de comunicação para preferência resulta da vontade, da vontade séria, do obrigado à preferência a contratar – «Querendo vender a coisa», diz-se no nº 1 da art. 416º («Se quiser vender a coisa», no nº 1 do artigo seguinte) – e supõe a sua realização expressa num projeto concreto, articuladamente delineado, que deverá ser transmitido ao preferente. VIII - Tal comunicação não pode qualificar-se como convite a contratar, devendo por este entender-se apenas um ato tendente a provocar uma proposta, resumindo-se a um incentivo para que alguém dirija uma proposta contratual a quem convida, cabendo depois a este o papel de aceitar ou não a proposta”; Acórdão da Relação de Lisboa de 10-11-2022, proferido no processo nº 4354/20.4T8ALM.L1-2, disponível em www.dgsi.pt.
Assim, classificada a comunicação para preferência como uma verdadeira proposta contratual, o certo é que quando é efetuada, devem já estar delineados os termos negociais por parte do devedor, devendo reputar-se como essencial para esse projeto não só o seu valor (preço), mas a forma como será pago. No sentido de que na comunicação devem constar as condições de pagamento do preço pronunciaram-se os Acórdãos do STJ de 23-03-2021, (proferido no processo 609/19.9T8FND.C1.S1, disponível em www.dgsi.pt), e de 17-06-2021 (processo nº 309/19.0T8VRL.G1.S1, disponível em www.dgsi.pt); o Acórdão da Relação de Coimbra de 15-12-2020 (proferido no processo nº 281/13.0TBPCV.C2, disponível em www.dgsi.pt).
Porém, nos autos está em causa o exercício de um específico direito de preferência conferido a um ente público, relativamente ao qual, numa ótica de desformalização e simplificação, foi legalmente conferida a possibilidade do alienante efetuar a comunicação ao preferente no Portal Casa Pronta. Embora tal específica forma de comunicação não seja obrigatória e corresponda a uma simples faculdade, ocorrendo nos termos previstos em tal regime legal, não pode a sua eficácia ficar afetada por se mostrarem suprimidas as menções relativas à forma e ao momento do pagamento do preço, sob pena de incoerência sistemática do regime legal da preferência. Na realidade, seria incoerente e até contraditório que o legislador permitisse o recurso a uma comunicação em plataforma digital para, de seguida, lhe retirar cabal eficácia.
Consequentemente, julgamos ser de alterar a decisão no segmento em que aponta deficiências à comunicação para preferência, designadamente quando ali se afirma:
“Alegam os RR, inter alia, que o mencionado Portal não contempla os campos essenciais para a introdução de alguns dos elementos essenciais do negócio. Se assim é, lícito é concluir que, não satisfazendo aquele (Portal) os requisitos legais para o exercício do direito de preferência, é o algoritmo do Portal que terá que ser adaptado de molde a incluir todos os elementos essenciais à concretização do negócio e em conformidade com a legislação em vigor. Salvo melhor entendimento, não pode considerar-se como legalmente válida, uma notificação efetuada, com recurso àquele mecanismo, porquanto aquela omite informações essenciais que têm que ser, necessariamente, comunicadas ao beneficiário do direito de preferência. Ora, a utilização do Portal em causa é legalmente inadequada à prossecução dos mencionados fins porque, na prática, inviabiliza o exercício pleno e informado de um direito legalmente protegido - o exercício do direito de preferência por parte do Município. Recorrendo os RR a um mecanismo de notificação, nestas condições, então, deverão ser estes a suportar o “risco dessa sua opção”. Nesta medida, não tendo os RR comunicado ao preferente a nova data para a celebração da escritura de compra e venda nunca o Município poderia ter concretizado o seu direito de preferir na aquisição, consequentemente, não se iniciou o decurso do prazo de caducidade a que se alude no art. 416º, nº2 do CC. Face ao exposto, improcede a alegada exceção declarando-se a ação procedente”
Reitera-se que o recurso a tal específica forma de comunicação, expressamente conferida por lei ao alienante, não pode ter a sua eficácia abalada por não ter sido concebida com a expressa menção da data e da forma de pagamento. Deverá até concluir-se que a menção da “data provável do negócio” constante do Portal Casa Pronta poderá permitir ao preferente perspetivar o momento da exigibilidade do preço, tendo por base o critério legal consagrado no artigo 885º, CC, ou seja, vencendo-se “no momento e no lugar da entrega da coisa”, ocorrendo tais “efeitos essenciais” no momento da celebração da escritura - cfr. artigo 879º, CC. Ou seja, a previsão no Portal “Casa Pronta” da data provável do negócio, embora não correspondendo a um elemento essencial a inserir na comunicação do projeto de venda, pode contribuir para que o preferente apreenda o momento em que deverá pagar o preço que, em regra, ocorrerá em simultâneo com a entrega das chaves, no momento da celebração da escritura. Neste sentido, veja-se o parecer junto aos autos pela ré, já citado, referindo-se na sua página 17: “(…) a ausência de qualquer referência na comunicação ao momento do pagamento do preço significa, muito simplesmente, que nada foi especialmente acordado entre as partes nessa matéria, pelo que, no caso da venda de imóveis, o preço deverá ser pago contra a entrega das chaves (art. 885º do Código Civil), entrega esta que ocorre por norma no momento da celebração do contrato”. Em sentido similar, considerou o subscritor do parecer apresentado pelo autor em 08-09-2024 (José Lebre de Freitas), a fls. 29: “Nada disseram sobre a data da entrega do prédio, nem sobre a do pagamento do preço, mas admitamos que a data previsível da escritura de compra e venda era suficiente para se poder presumir que a data de vencimento dessas duas obrigações, ligadas entre si pelo vínculo do sinalagma, seria a data da escritura”.
Conclui-se, pois, que a comunicação em questão, com o teor descrito no facto provado nº 16º, contendo os requisitos legalmente estabelecidos para o efeito, é adequada para desencadear o decurso do prazo de caducidade do direito de preferência do autor. E não tendo o autor manifestado a intenção de exercer a sua preferência no prazo de 8 dias (resultante da conjugação do artigo 19º do Dl 263-A/2007, de 23 de julho com o artigo 416º, nº 2, CC), o seu direito (de preferência no negócio anunciado no Portal Casa Pronta, com “Data previsível do negócio: 05-04-2019”) extinguiu-se por caducidade.
Porém, daí não resulta a improcedência da ação de preferência instaurada pelo autor.
Na realidade, importa ainda apreciar qual o impacto a atribuir à dilação (6 meses e 11 dias) entre a comunicação do anúncio (20-03-2019, que publicitou como “data previsível do negócio” a de 5 de abril de 2019) e a realização do negócio (em 01-10-2019).
Ora, ainda que a data previsível do negócio não constitua um elemento que deva ser comunicado ao preferente, como defende o subscritor do parecer apresentado pelo autor, a compra que veio a ser realizada “(…) difere da projetada por esta deslocação no tempo da sua celebração e do cumprimento das obrigações nela definitivamente contraídas. Estava decorrido desde a data anunciada um período significativo suficiente para que a primeira notificação devesse ser tida por caducada, pelo que uma nova notificação para preferência deveria ter sido feita” – (páginas 30 e 31 do parecer). Efetivamente, o negócio que veio a ser realizado mais de seis meses após a comunicação inicial, constituindo claramente um negócio diverso do que foi anunciado no Portal Casa Pronta no dia 20-03-2019, gerou para o alienante o ónus de efetuar uma nova comunicação, por forma a permitir o exercício do direito de preferência pelo autor. Veja-se que é diferente o exercício de tal direito no mês seguinte à comunicação para preferência ou o seu exercício mais de seis meses após tal comunicação, sendo manifesto que ao longo de tal prazo podem ocorrer alterações ao nível da capacidade financeira do preferente, que permitiriam realizar a aquisição do imóvel em causa. Afigura-se, aliás, que o regime da preferência está configurado para que o preferente exerça o seu direito em data próxima à do negócio comunicado. A este propósito, veja-se o artigo 416º, nº 2, CC que estipula o prazo de 8 dias para que o preferente, após a comunicação, exerça o seu direito. Também o artigo 1028º CPC obriga o preferente a declarar, no prazo que lhe foi fixado, se pretende ou não exercer a preferência e, decorridos 20 dias, pode requerer que o negócio se realize nos 10 dias subsequentes. Veja-se ainda a obrigação do preferente proceder ao depósito do preço em 15 dias, nos termos do artigo 1410º, nº 1, CC.
Nestes termos, o regime do direito de preferência está configurado para que seja exercido com a celebração do negócio projetado e anunciado em data próxima à da comunicação. Na realidade, a disponibilidade financeira apenas em momento próximo ao do negócio pode ser cabalmente aferida pelo preferente, pelo que a realização do negócio mais de seis meses após a comunicação sempre exigiria a sua repetição, por forma a que o preferente, naquele concreto momento, avaliasse as suas condições financeiras e a conjuntura existente, e o próprio valor e interesse do imóvel.
Conclui-se, pois, que a dilação entre a comunicação para a preferência, em 20-03-2019, e a efetiva realização do negócio, em 01-10-2019, impunha a sua repetição, por se tratar de negócio diverso do inicialmente comunicado e anunciado, a qual, não tendo ocorrido, confere ao autor o direito de ser admitido a preferir, por via da presente ação de preferência.
Assim, deve concluir-se que o direito de preferência do autor, relativo ao negócio realizado no dia 01-10-2019, não se extinguiu por caducidade. Da alegada inconstitucionalidade
A recorrente aponta à interpretação da legislação que confere a preferência inconstitucionalidade, considerando que viola o direito à propriedade privada, na sua componente do direito à transmissão, e põe em causa a segurança e certezas jurídicas se tais normas forem interpretadas no sentido de que:
- constitui elemento essencial a data do negócio;
- a discrepância entre a data concreta do negócio e a data previsível constante da comunicação gera a sua deficiência/invalidade;
- é inválida a comunicação quando não coincide com a data previsível indicada no portal Casa Pronta e esta não contenha indicação expressa da forma e data de pagamento preço.
É manifesto que o direito de propriedade privada goza de tutela constitucional, dispondo o nº 1 do artigo 62º da CRP: “1. A todos é garantido o direito à propriedade privada e à sua transmissão em vida ou por morte, nos termos da Constituição.”
Como se referiu anteriormente, o direito de preferência não deixa de comprimir o direito do proprietário à livre transmissão do bem, não quanto ao momento e ao seu valor, mas quanto à livre escolha do adquirente. De todo o modo, tal grau de compressão ocorre apenas na configuração subjetiva do negócio, estando o vendedor obrigado a contratar com o preferente, mas mantendo total autonomia quanto à decisão de vender ou não, e quanto aos elementos essenciais do negócio. Tal específica forma de conformação do direito de preferência visa a concordância prática dos vários valores envolvidos – autonomia do proprietário e interesse em manter na esfera do município bens classificados que, consequentemente, poderão ficar acessíveis à generalidade dos cidadãos – e, in casu, não impõe ao alienante um sacrifício desproporcionado. Ao invés, a venda nas mesmas condições que havia acordado com a ré constitui solução que respeita o direito legal de preferência que os autores sabiam estar obrigados a observar, não se revelando desproporcional ou desrazoável. Aliás, os próprios alienantes, conformando-se com a existência deste direito de preferência, efetuaram a devida comunicação no primeiro negócio projetado (anunciado em março de 2019 no Portal Casa Pronta), mas omitiram-na no segundo (e efetivo) negócio translativo concretizado.
Por fim, salienta-se que o deferimento da pretensão de preferência reconhecida ao autor não resulta, nos termos expostos, da ponderação de que constitui elemento essencial a comunicação da data do negócio, ou a forma e data de pagamento do preço quando a comunicação haja sido efetivada no Portal Casa Pronta. Tal deferimento resulta da necessidade de adequar temporalmente a realização do negócio à comunicação, por forma a que o preferente reúna os elementos necessários à decisão de preferir.
A ação de preferência deve, pois, ser jugada procedente, tendo em conta os pedidos formulados, retificando-se os termos da condenação pelo tribunal recorrido, nos termos do artigo 665º CPC.
Embora julgada procedente a arguição da nulidade da sentença, a supressão de tal vício não inverte o sentido da decisão do tribunal recorrido, reafirmando-se, em sede de recurso de apelação, a procedência da ação de preferência. Consequentemente, as custas serão suportadas pela ré/recorrente, por ter ficado vencida– cfr. artigo 527º, nº 1, CPC.
*
III – DECISÃO
Julgando parcialmente procedente o recurso, por forma a retificar a decisão recorrida que se mantém quanto à procedência da ação, acorda-se em:
- Reconhecer o direito de preferência do autor no negócio formalizado por escritura pública de compra e venda celebrada em 01-10-2019, mencionada no facto provado nº 15, determinando a substituição do comprador pelo autor, que passará a ocupar a sua posição;
- Ordenar a entrega do prédio objeto de tal negócio ao autor.
Custas da apelação pela ré/recorrente - cfr. artigo 527º, CPC.
D.N.
Lisboa, 8 de maio de 2025
Rute Sobral
Susana Mesquita Gonçalves
Pedro Martins