PROCESSO DE MAIOR ACOMPANHADO
FACTOS
INSTRUÇÃO
PROVA DOCUMENTAL
PROCURAÇÃO
SENTENÇA
Sumário

I. No processo de maior acompanhado são objeto de instrução todos os factos relevantes para a apreciação do mérito da causa, independentemente do que tenha sido alegado nos articulados, decidindo o tribunal que provas devem ser produzidas, tendo em vista o apuramento daqueles.
II. No processo de maior acompanhado são admitidos todos os meios de prova previstos no C.P.C., sendo que no que respeita à prova documental, o tribunal deve diligenciar pela junção ao processo dos documentos necessários para a prolação da sentença.
III. Tendo em vista a admissibilidade da prova documental, os documentos apresentados pelas partes têm de apresentar qualquer conexão com a acção e factos constitutivos do direito invocado.
IV. Uma procuração outorgada pela Requerida antes da propositura da acção de maior acompanhado, numa altura é que as suas capacidades estariam já toldadas, não reveste relevância jurídica para a acção de maior acompanhado.
V. Na sentença a proferir nos autos de maior acompanhado não cumpre tomar posição a respeito dos actos praticados pelos familiares da mesma, nem da validade de quaisquer actos da requerida, anteriores ao anúncio do processo do acompanhante.
(Sumário elaborado pela relatora)

Texto Integral


Acordam os Juízes na 6ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa:

I. Relatório:
AA intentou, em 27-04-2022, acção especial de acompanhamento de maior de BB, pedindo:
a) se decrete as medidas de acompanhamento de representação geral e administração total dos bens da Requerida, nos termos do disposto no art.º 145.º, nºs. 1 e 2, als. b) e c) do CC;
b) se determine o suprimento da autorização do beneficiário, nos termos do disposto no art.º 141.º, nºs. 2 e 3 do CC e;
c) se nomeie como Acompanhante a Requerente, sobrinha da Requerida, nos termos do disposto no art.º 143.º do CC;
d) se determine a publicidade estritamente necessária quanto ao acompanhamento requerido, nos termos do disposto no art.º 893.º do CC.
e) se decrete a aplicação da medida cautelar de representação geral da Requerida
ou, caso assim não se entenda, a medida cautelar de representação especial da Requerida no que diz respeito a todas as decisões relacionadas com o seu estado de saúde.
Alega, em síntese, que o estado de saúde da requerida começou a deteriorar-se há cerca de 8 anos, tendo a sua saúde mental se agravado com a morte do marido em 2018, o que se acentuou com os constrangimentos causados pela pandemia Covid-19, acarretando maior confusão e perda de memória. A Requerida perdeu a noção do dinheiro, não tem qualquer autonomia, desloca-se em cadeira de rodas, tem grandes dificuldades em falar, pelo que é acompanhada por cuidadores de saúde 24h por dia/7 dias por semana. O estado de saúde da requerida impede-a de exercer os seus direitos e cumprir os seus deveres de forma cabal, plena e esclarecida. Conclui assim pela necessidade de a requerida ser submetida ao regime do maior acompanhado, com representação geral e administração total do património.
A 29-04-2022 foi proferido despacho inicial que determinou a publicidade da acção, a citação da requerida e relegou para momento posterior o conhecimento do suprimento da autorização da requerida e a aplicação de medidas provisórias.
Foi junta aos autos certidão de não citação, em razão da incapacidade da requerida de receber a mesma e se aperceber do seu conteúdo.
Foi citado o M.P. em representação da requerida, nos termos do art.º 21.º do CPC.
O M.P. apresentou contestação, alegando, em suma, que:
(i) quanto ao suprimento da autorização e aplicação de medidas urgentes e provisórias
- os autos não dispõem de elementos para tomar posição quanto a tal pedido, pelo que deverá ser designada data para inquirição de testemunhas arroladas pela requerente, assim como solicitada documentação/relatório clínico, nos termos requeridos pela requerente.
(ii) quanto à acção
- na ausência de conhecimento sobre a situação concreta da requerida, e consequentemente de deduzir contestação fundamentada, promoveu a realização de perícia médica psiquiátrica.
Por requerimento de 17-06-2022 veio CC dar conhecimento aos autos de informações por si consideradas relevantes, alegando que:
- é filho de DD, que faleceu em ...-...-2019 no estado de casado com a requerida;
- desde os seus 15 anos que convive com a requerida e desde a morte do seu pai que é o mesmo e os seus irmãos quem suportam as despesas da requerida e fazem face às suas necessidades;
- visita a requerida pelo menos duas vezes por semana e fala com ela telefonicamente numa base diária
- a requerida apresenta um discurso coerente ainda que com as limitações de memória e mobilidade próprias da idade;
- é consciente e consegue tomar decisões;
- inexiste qualquer necessidade de decretamento de medida de acompanhamento;
Mais alegou que em 2020 a Requerente convenceu a requerida a inseri-la na sua conta bancária, como autorizada, tendo passado a utilizar a mesma em proveito próprio;
- confrontada a requerida com tal situação a mesma pediu ao interveniente que resolvesse tal questão , outorgando a seu favor uma procuração que lhe permitiu ter acesso às informações bancárias;
- situação que deu origem a uma denúncia, correndo o processo crime na 5.ª secção do DIAP, com o número 341/22.6T9LSB;
Requereu diligências probatórias.
A 30-06-2022 veio a requerente pronunciar-se quanto ao requerimento de CC. Nesse articulado requereu, para boa decisão da causa e descoberta da verdade, a notificação do enteado da requerida para proceder à junção da procuração a que aludiu no seu requerimento, nos termos do disposto no art.º 432.º, 429.º e 436.º do CPC.
Por despacho de 26-07-2022 foi, entre outros, (i) determinada a realização de perícia médico-legal à requerida, e fixado o seu objecto, (ii) ordenada a notificação do interveniente CC para juntar aos autos documentação clínica da requerida; (iii) solicitada informação ao DIAP sobre o estado do processo crime 341/22.6T9LSB.
Por requerimento de 08-08-2022 veio o interveniente juntar aos autos documentação clínica referente à requerida e em 09-08-2022 foi solicitado ao INML a realização da perícia judicialmente determinada.
Após vicissitudes de vária ordem, realizou-se o exame pericial à requerida, tendo o relatório sido junto aos autos em 10-07-2023.
Por requerimento de 07-08-2023 veio o interveniente acidental pronunciar-se quanto ao modo como ocorreu a pericial e respectivo relatório pericial, requerendo a prestação de esclarecimentos, em caso de manutenção das conclusões, a realização de uma segunda perícia e a audição de testemunhas. Por requerimento de 21-08-2023 a Requerente pugnou pelo indeferimento do pedido de esclarecimentos e de realização de segunda perícia.
Por relatório junto aos autos em 17-10-2023 veio o Sr. Perito prestar os esclarecimentos determinados por despacho de 10-101-2023.
Por despacho de 10-04-2024 foram ordenadas diversas diligências probatórias.
Por requerimento de 26-07-2024 veio a Requerente reiterar o pedido de notificação do interveniente CC para juntar aos autos a procuração, autenticada por notário, a que alude nos arts. 60 e 61.º do requerimento de 17-06-2022.
A 04-09-2024 foi proferido o seguinte despacho (DESPACHO RECORRIDO):
“Ref. 40064212:
Atento o objecto da presente acção não se vislumbra pertinência na junção da referida procuração que terá sido emitida em nome do interveniente CC, pelo que se indefere o requerido.
Notifique.”
Devidamente notificada veio A Requerente AA interpor recurso da referida decisão, apresentando as suas Alegações, com as seguintes Conclusões:
A. O relatório da perícia médico-legal de 26.05.2023 revela que a Beneficiária já apresentava afeção de demência desde, pelo menos, outubro de 2018.
B. Resulta ainda dos presentes autos, como confessado pelo Interveniente CC, que a Beneficiária outorgou uma procuração, entre o final de 2021 e início de 2022, nos termos da qual terá conferido poderes àquele Interveniente que lhe permitiam, pelo menos, o acesso a informações das contas bancárias tituladas pela Beneficiária.
C. Contudo, apesar de crucial para a boa decisão da causa, em momento algum foi ordenada a junção dessa procuração, apesar do pedido (fundamentado) da Apelante nesse sentido.
D. A junção da procuração permitirá, não apenas atestar em que data é que a mesma foi outorgada, mas também, como parece resultar da (pouca) informação disponível, que
a mesma terá sido outorgada num período em que a Beneficiária já não estava na plenitude das suas capacidades e, como tal, não estava se encontrava em condições de consentir de forma livre e consciente.
E. É igualmente importante para os presentes autos, em prol da defesa dos direitos e interesses da Beneficiária, conhecer a natureza e extensão dos poderes conferidos ao Interveniente, inclusivamente se também foram conferidos poderes para administrar e/ou dispor das suas contas bancárias e/ou de outros bens da Beneficiária.
F. A não junção da procuração impede o conhecimento completo das circunstâncias de vida da Beneficiária, assim como impede a avaliação completa dos seus interesses que passam, também, pela integridade e preservação do seu património por forma a garantir uma vida digna, especialmente em face da sua vulnerabilidade e necessidade permanente de cuidados e assistência médica.
G. O Tribunal de 1ª Instância, pese embora tenha admitido a junção de outros documentos (apresentados pelo Interveniente) que não estão (diretamente) relacionados com o objeto da presente ação, indeferiu (erradamente) o pedido da Requerente, ora Apelante, de que fosse junta a mencionada procuração, em prejuízo da proteção dos interesses da Beneficiária,
H. Na escolha de um acompanhante, é prioritário atender ao interesse da pessoa assistida, devendo a pessoa nomeada agir em defesa dos seus interesses, e não a prejudicando, pelo que a idoneidade do acompanhante implica o respeito pela lealdade, proteção dos interesses da pessoa vulnerável e a ausência de qualquer conduta em benefício próprio.
I. A apresentação da procuração permitirá verificar as condições em que a mesma foi outorgada, designadamente, o momento temporal, a extensão dos poderes conferidos, o estado de saúde em que se encontrava a Beneficiária e as circunstâncias em que terá sido assinada, o que certamente relevará para aferir se houve algum aproveitamento da situação de vulnerabilidade da Beneficiária por parte do Interveniente suscetível de comprometer a respetiva idoneidade.
Termina assim requerendo a revogação do despacho proferido em 04.09.2024 (ref.ª 437965725) pela 1ª Instância, determinando-lhe que o substitua por outro que ordene a junção da procuração pelo Interveniente.
O Ministério Público veio responder às alegações de recurso, apresentando as seguintes CONCLUSÕES:
1- O Ministério Público concorda com a decisão da Mma Juiz a quo, porquanto considera-se que não se vislumbra pertinência na junção da referida procuração;
2- Os presentes autos têm como objectivo aferir da existência de pressupostos para, eventual, aplicação do regime do maior acompanhado à Requerida e, consequentemente, o decretamento das medidas de acompanhamento que se revelem necessárias a proteger os interesses da mesma e, bem assim, designar a pessoa que estará nas melhores condições de exercer o cargo de acompanhante;
3- Não se vislumbra, tal como entendeu o Tribunal a quo, utilidade na junção da mencionada procuração, por forma a demonstrar que na data em que a mesma foi outorgada, a Requerida já se encontrava incapaz de a subscrever;
4- Ainda que o Tribunal a quo entenda fixar a data a partir da qual as medidas de acompanhamento se tornaram convenientes, em data anterior àquela em foi outorgada a mencionada procuração e, como tal, que a Requerida já se encontrava com uma incapacidade, não será no âmbito dos presentes autos que tal situação poderá ser analisada/discutida e decidida, mas sim em acção própria para tal;
5- Não se vislumbra que a não junção da mencionada procuração possa, de alguma forma, pôr em causa a salvaguarda dos interesses da Beneficiária, desde logo porque a junção e análise de tal documento não se mostra necessária para a boa decisão da causa.
6- Entende o Ministério Público que o douto despacho proferido não merece qualquer reparo, pelo que deverá ser mantido.
Admitido o recurso neste tribunal e colhidos os vistos, cumpre decidir.
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Questão a decidir:
O objecto do recurso é definido pelas conclusões do recorrente (arts. 5.º, 635.º n.º 3 e 639.º n.ºs 1 e 3, do CPC), para além do que é de conhecimento oficioso, e porque os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, ele é delimitado pelo conteúdo da decisão recorrida.
Importa assim apreciar no caso concreto:
- da pertinência para os presentes autos de maior acompanhado da junção da procuração outorgada pela Requerida a favor do interveniente acidental.
A apresentação da procuração permitirá verificar as condições em que a mesma foi outorgada, designadamente, o momento temporal, a extensão dos poderes conferidos, o estado de saúde em que se encontrava a Beneficiária e as circunstâncias em que terá sido assinada, o que certamente relevará para aferir se houve algum aproveitamento da situação de vulnerabilidade da Beneficiária por parte do Interveniente suscetível de comprometer a respetiva idoneidade.
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II. Fundamentação:
Os factos a considerar são os constantes do relatório supra.
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III. O Direito:
Antes de se entrar na análise da concreta questão da pertinência na junção do documento, requerida pela Requerente – procuração outorgada a favor do interveniente acidental – cumpre tecer algumas considerações acerca do processo de maior acompanhado e dos factos constitutivos ou impeditivos/modificativos/extintivos que relevam para o mesmo.
No contexto do processo especial do Maior Acompanhado, cumpre começar por referir, como faz Maria Inês Costa (in A audição do beneficiário no regime jurídico do maior acompanhado: notas e perspectivas), que “Numa altura em que, em virtude da evolução social e demográfica, a população tem vindo a envelhecer e a esperança média de vida a aumentar, a sociedade moderna enfrenta a complexa problemática da “desarmonia entre gerações”. E é precisamente neste desequilíbrio geracional que surgem, numa posição de especial relevância, os cidadãos adultos especialmente vulneráveis, seja em razão da idade ou de outra situação de maior vulnerabilidade (diagnóstico psiquiátrico, deficiência…), que a determinada altura das suas vidas vêem posta em causa a sua autonomia.
Esta tomada de consciência (da necessidade de cuidado acrescido com as pessoas carecidas de maior protecção) deu lugar a movimentações jurídicas, nas quais se destaca a Convenção das Nações Unidades sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e a que o nosso legislador não foi alheio.
É neste contexto, e seguindo as exigências dos novos tempos, que surge o novo regime jurídico do maior acompanhado, aprovado pela Lei n.º 49/2018, de 14 de Agosto – que abandonou o sistema dualista dos institutos da interdição/inabilitação, oriundo do Código Civil de 1966.
Sem necessidade de grandes desenvolvimentos e considerações acerca das semelhanças e diferenças que marcam estes institutos, dir-se-á que as principais alterações incidiram nos artigos 138.º a 156.º do Código Civil (interdição e inabilitação), sobre as regras do respectivo processo (artigos 891.º a 905.º do Código de Processo Civil – transformado em processo urgente e ao qual se aplicam as regras da jurisdição voluntária) e em disposições dispersas do Código Civil que estabelecem restrições à capacidade, mas sempre na perspectiva da menor limitação possível à capacidade do maior que necessita de acompanhamento.
Desta forma, com este diploma, ocorreu uma alteração de paradigma dado que se passou de um anterior sistema que assentava naqueles dois institutos - interdição e inabilitação - que limitavam a capacidade de exercício do requerido de forma estanque e pré-definida na lei para um sistema que criou a figura maleável do maior acompanhado, com um conteúdo a preencher casuisticamente pelo juiz em função da real situação, das capacidades e possibilidades da pessoa em concreto. (Ac. TRG 13.05.2021 in www.dgsi.pt ).
A este propósito refere António Pinto Monteiro, in R.L.J., Ano 148 nº 4013, pág. 79: “Em suma (…) de um modelo, do passado, rígido e dualista, de tudo ou nada, em que prepondera a substituição, deve partir-se para um modelo flexível e humanista, baseado em medidas adoptadas casuisticamente e periodicamente revistas, prioritariamente destinadas a apoiar quem delas necessite, mas sem prejuízo de elas poderem vir a suprir a incapacidade em situações excepcionais, sempre com respeito pelos princípios da adequação, da proporcionalidade e da dignidade da pessoa humana”. E, na pág. 77: ““Proteger sem incapacitar” constituiu, hoje, a palavra de ordem (…)”. (realce nosso).
Miguel Teixeira de Sousa, in O Regime do Acompanhamento de Maiores: Alguns Aspectos Processuais, e-book do CEJ subordinado ao tema “O Novo Regime Jurídico do Maior Acompanhado”, p. 51, refere: «A medida de acompanhamento de maior só é decretada se estiverem preenchidas duas condições:
- Uma condição positiva (orientada por um princípio de necessidade): tem de haver justificação para decretar o acompanhamento do maior e, designadamente, uma das medidas enumeradas no art.º 145.º, n.º 2 do CC; isto significa que, na dúvida, não é decretada nenhuma medida de acompanhamento;
- Uma condição negativa (norteada por um princípio de subsidiariedade): dado que a medida de acompanhamento é subsidiária perante deveres gerais de cooperação e assistência (nomeadamente, de âmbito familiar) (art.º 140.º, n.º 2, CC), o tribunal não deve decretar aquela medida se estes deveres forem suficientes para acautelar as necessidades do maior.».
O artigo 892.º do C.P.C. indica qual o conteúdo que o requerimento inicial do processo de maior acompanhado deve observar.
Dispõe este normativo que:
“1 - No requerimento inicial, deve o requerente, além do mais:
a) Alegar os factos que fundamentam a sua legitimidade e que justificam a proteção do maior através de acompanhamento;
b) Requerer a medida ou medidas de acompanhamento que considere adequadas;
c) Indicar quem deve ser o acompanhante e, se for caso disso, a composição do conselho de família;
d) Indicar a publicidade a dar à decisão final;
e) Juntar elementos que indiciem a situação clínica alegada.
2 - Nos casos em que for cumulado pedido de suprimento da autorização do beneficiário, deve o requerente alegar os factos que o fundamentam.”
É importante, ainda, que esse articulado contenha outros elementos, que, posteriormente, serão necessários para a prolação da sentença: a identificação completa do beneficiário (naturalidade, data de nascimento, filiação, residência, estado civil, descendência); se o beneficiário outorgou testamento vital, procuração para cuidados de saúde ou outra manifestação prévia de vontade com relevo para a ação, como o mandato com vista ao acompanhamento; a situação pessoal, familiar e social do beneficiário; para além da razão justificadora do acompanhamento, a necessidade de nomear acompanhante (explicando, designadamente, porque é que o acompanhamento não é assegurado através do instituto da assistência ou dos deveres de cooperação); os motivos da escolha do acompanhante.
Quanto à instrução da causa, importa salientar que vigora no Processo do Maior Acompanhado o princípio da liberdade de investigação dos factos, previsto no n.º 2 do artigo 986.º do C.P.C. (cf. o artigo 891.º, n.º 1), pelo que o tribunal ordenará as diligências probatórias que considere convenientes (cf. o n.º 1 do artigo 897.º).
Assim, são objeto de instrução todos os factos relevantes para a apreciação do mérito da causa, independentemente do que tenha sido alegado nos articulados, e o tribunal decide que provas devem ser produzidas, tendo em vista o apuramento daqueles.
São admitidos todos os meios de prova previstos no C.P.C., mas importa tecer algumas considerações mais detalhadas sobre a prova documental. Assim, quanto à prova documental, o tribunal deve diligenciar pela junção ao processo dos documentos que, posteriormente, vão ser necessários para a prolação da sentença, na parte atinente à fundamentação de facto.
Que documentos são esses?
a) certidão de assento de nascimento comprovativa da identificação do beneficiário;
b) certidão de assento de óbito comprovativa do falecimento dos familiares mais próximos (pais, cônjuge ou filhos), quando seja indicada outra pessoa para exercer o cargo de acompanhante;
c) certidões do registo civil adequadas a provar a relação de parentesco entre o acompanhante e o acompanhado, quando a haja;
d) certidões do registo civil adequadas a provar a capacidade do próprio acompanhante (isto porque o tribunal tem de verificar se o acompanhante é maior de idade, se ele próprio não foi declarado interdito ou inabilitado, se não foi declarado insolvente culposamente, se não foi declarado cônjuge culpado em ação de divórcio ou se, sendo o acompanhante pai do acompanhado, não esteve inibido do exercício do poder paternal relativamente a este — cf. o artigo 1933.º do Código Civil);
e) certidão do Registo Nacional de Testamento Vital (RENTEV) sobre o testamento vital ou procuração para cuidados de saúde outorgados pelo beneficiário, quando aplicável.1
No fundo, são os documentos idóneos a provar factos essenciais que devem ser alegados no requerimento inicial (cf., supra, o ponto 4.4), pelo que devem ser juntos em anexo a esse articulado (nos termos previstos no n.º 1 do artigo 423.º do C.P.C.). Caso contrário, tais documentos devem ser pedidos pelo tribunal ao requerente ou a quem os tenha em seu poder.
Dispõe o art.º 342.º, do CC, que àquele «que invocar um direito cabe fazer a prova dos factos constitutivos do direito alegado» (n.º 1), sendo que a «prova dos factos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito invocado compete àquele contra quem a invocação é feita» (n.º 2).
Inerente ao estabelecimento deste ónus probatório está o “reconhecimento do direito à prova” ( neste sentido ver J. P. Remédio Marques, Acção Declarativa à Luz do Código Revisto, 2.ª edição, Coimbra Editora, 2009, pág. 207).
Conforme se refere no Ac. da R.C. de 14-07-2010, o direito à prova pode ser genericamente definido como o «direito da parte de utilizar todas as provas de que dispõe, de forma a demonstrar a verdade dos factos em que a sua pretensão se funda. Do seu conteúdo essencial constam, portanto, os seguintes aspectos: o direito de alegar factos no processo; o direito de provar a exactidão ou inexactidão desses factos, através de qualquer meio de prova», o que implica a proibição de um elenco taxativo de meios de prova; e «o direito de participação na produção das provas».
Efectivamente, sem o direito à prova, as garantias constitucionais do acesso ao direito e ao processo equitativo seriam meramente formais: se não fosse facultada às partes a possibilidade de apresentarem os meios de prova legalmente admissíveis, obtidos de forma lícita, e pertinentes para a prova dos factos que previamente alegaram e cujo ónus de prova lhes compete, não conseguiriam obter o reconhecimento das respectivas pretensões – neste sentido ver Ac. R. G. de 12-10-2023.
Daí a afirmação de que, sendo o direito à prova um direito necessariamente instrumental da realização de um outro, substantivo, «uma restrição incomportável da faculdade de apresentação de prova em juízo pode impossibilitar a parte de fazer valer o direito de acesso aos tribunais e a uma tutela jurisdicional efectiva» (Ac. do STJ, de 17.12.2009, Hélder Roque, Processo n.º 159/07.6TVPRT-D.P1.S1).
Uma das modalidades de prova prevista no Código Civil é a prova documental, lendo-se no seu art.º 362.º que prova «documental é a que resulta de documento; diz-se documento qualquer objecto elaborado pelo homem com o fim de reproduzir ou representar uma pessoa, coisa ou facto».
Está-se perante uma noção ampla de documento, abrangendo um escrito, «uma fotografia, um disco granofónico, uma fita cinematográfica, um desenho, uma planta, um simples sinal convencional, um marco divisório, etc., etc.». O que se exige, porém, como essencial «à noção de documento é a função representativa ou reconstitutiva do objecto» (neste sentido Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Volume I, 4.ª edição revista e actualizada, Coimbra Editora, Limitada,1987, pág. 321).
No regime adjectivo, diz-nos o art.º 423.º do CPC, no que ora nos interessa, que os documentos destinados a fazer prova dos fundamentos da acção ou da defesa devem «ser apresentados com o articulado em que se aleguem os factos correspondentes» (n.º 1).
Assim, e da conjugação do regime substantivo e adjectivo, podemos fazer a primeira afirmação de que as provas têm por função a demonstração da realidade dos factos (art.º 342.º do CC), destinando-se a prova documental a comprovar os fundamentos da acção ou da defesa (art.º 423.º do CPC).
O que nos remete para uma segunda afirmação: os documentos apresentados ou cuja junção por terceiro se requer, com vista à sua admissibilidade, não têm de ver directamente com a factualidade expressamente alegada e genericamente abrangida pela questão a decidir. Não obstante é mister – para a sua admissibilidade – que apresente qualquer conexão com ela.
É, assim, nesta óptica que se terá de apreciar a pretensão da Requerente/Recorrente de junção aos autos da procuração a que o interveniente alude nos arts. 60.º e 61.º do seu requerimento de 17-06-2022.
A este respeito refere a recorrente nas suas alegações de recurso que “Sucede ainda que, até à presente data, nunca a mencionada procuração foi junta aos presentes autos – o que se impunha, e impõe.
Com efeito, poderá ter-se dado o caso de que a Beneficiária, além de não possuir faculdades mentais, também não deter a capacidade motora para outorgar, pela sua própria mão, a referida procuração e que tal era visível mediante a simples exibição de tal documento, o que, por si só, tem toda a relevância para os presentes autos.
Como também poderá ter-se dado o caso de o referido instrumento ter sido outorgado numa data coincidente com um período de internamento hospitalar da Beneficiária, o que também terá toda a relevância nos presentes autos.
Considerando o fim último da presente ação, que tem como principal objetivo proteger a Beneficiária e zelar pelos seus interesses, incluindo patrimoniais, é essencial para os presentes autos a junção da referida procuração, de onde resultará não só a data em que foi outorgada, como os concretos poderes conferidos ao Interveniente e a extensão dos mesmos.
O acompanhamento centra-se, assim, na pessoa e na promoção do bem-estar.
A situação financeira da Beneficiária e a preservação do seu património são factores importantes para garantir que a Beneficiária mantém os recursos financeiros necessários para ter uma vida digna, cómoda e com o apoio adequado às suas necessidades.
A preservação do património de uma pessoa vulnerável, como é o caso da Beneficiária, é um direito que tem de ser protegido; o património da Beneficiária não é apenas uma questão de propriedade material, mas também uma garantia de que terá meios financeiros para sustentar uma vida com dignidade, conforto e cuidados – o que se torna especialmente relevante numa fase da vida em que a Beneficiária necessita de assistência médica frequente e de outros cuidados permanentes.
Constando dos presentes autos que a Beneficiária terá outorgado uma procuração a favor de terceiros, é essencial compreender, desde logo, quais os poderes conferidos e a extensão dos mesmos.
Seria, aliás, conveniente que a procuração fosse junta na medida em que o Ministério Público poderá, no exercício da defesa dos direitos da Beneficiária, requerer a anulabilidade daquele negócio jurídico, nos termos e para os efeitos do disposto no art.º 287.º do CC.”
Não podemos deixar de discordar desta posição de princípio da Requerente/Recorrente.
É um facto que, em tese e no plano das hipóteses, a outorga de uma procuração, a data e condições em que a mesma foi efectuada poderá ter relevância jurídica.
Mas, a revestir relevância jurídica, será certamente para uma acção com um objecto diverso da presente, como a própria requerente acaba por admitir no último parágrafo do trecho supra citado.
Na sentença a proferir nos presentes autos não cumpre tomar posição a respeito da validade de quaisquer actos de familiares da requerida, sendo certo que, quanto aos actos anteriores ao anúncio do início do processo do acompanhante, se aplica o regime da incapacidade acidental previsto no art.º 257.º do CC – cf. art.º 154.º do CC.
É óbvio que, na presente ação, não cumprirá decidir nem tomar posição a respeito da validade de quaisquer actos do acompanhado – seja a procuração outorgada a favor do interveniente acidental (como alega a Requerente), seja a inserção da requerente como autorizada na conta da Requerida (como alega o interveniente), sendo certo que, quanto aos actos anteriores ao anúncio do início do processo se aplica o regime da incapacidade acidental previsto no art.º 257.º do CC, a discutir e julgar numa acção distinta e autónoma da presente acção de maior acompanhado.
Não obstante o dissenso familiar e a circunstância de Requerente e interveniente acidental convocarem para os presentes autos questões absolutamente espúrias aquilo que importa decidir nos presentes autos – e que é a necessidade ou não de acompanhamento da requerida em virtude da sua eventual incapacidade – esse não é o objecto da acção de maior acompanhado.
Depois de fixados os factos nos presentes autos e decretado o acompanhamento da Requerida – e caso a mesma venha a ser decretada – poderá ter pertinência a questão da incapacidade acidental da requerida no momento da outorga da procuração, para efeitos anulatórios da mesma., sendo que esta exige que, no momento da prática do acto, haja uma incapacidade de entender o sentido da declaração negocial ou falte o livre exercício da vontade e que a incapacidade natural existente seja notória ou conhecida do declaratário.
Entende-se, assim, que nem mesmo remotamente tem a referida procuração a virtualidade de fazer prova dos factos essenciais à presente acção.
Por esta razão concorda-se com o despacho recorrido no juízo de impertinencia do referido documento, que a Requerente pretende se notifique o interveniente para juntar aos autos.
E nem se diga que o Tribunal recorrido teve duas bitolas na admissibilidade de documentos probatórios, como o faz a recorrente. Pois o facto é que relativamente aos documentos bancários juntos pelo interveniente no seu requerimento de 17-06-2022 o Tribunal ainda não os admitiu, tendo proferido o seguinte despacho a 26-07-2022: “4) Desentranhamento dos documentos bancários juntos pelo interveniente acidental em 17/06/2022: a apreciar oportunamente. “.
Se:
(i) a requerida outorgou procuração a favor do interveniente num momento em que as suas capacidades mentais estavam já afectadas,
(ii) a Requerente convenceu a Requerida a colocá-la como autorizada numa conta bancária da sua titularidade (num momento em que as capacidades desta já se encontravam tolhidas),
(iii) a Requerente fez um uso indevido, em seu proveito ou de terceiros, da posição de autorizada na conta da requerida,
São situações que não são passíveis de ser apreciadas no âmbito dos presentes autos e que não têm nos mesmos o seu lugar de eleição para conhecimento e decisão. Só a crispação entre Requerente e interveniente acidental justificam a escolha do processo de maior acompanhado para palco dos seus abundantes dissensos sobejamente evidenciados nos autos.
Pelo que concluímos, tal como o despacho recorrido, pela impertinência da junção da referida procuração outorgada pela requerida ao interveniente acidental.
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No que à matéria da responsabilidade tributária respeita, tendo a Recorrente ficado vencida as custas ficarão a seu cargo, nos termos do disposto nos n.ºs 1 e 2 do artigo 527.º do Código de Processo Civil.
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IV. Decisão:
Por todo o exposto, acorda-se em julgar improcedente o recurso de apelação interposto pela Recorrente AA e, consequentemente, confirmar a decisão recorrida.
Custas da apelação pela Recorrente (art.º 527.º, n.ºs 1 e 2, do CPC.
Registe e notifique.
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Lisboa, 08 de Maio de 2025
Maria Teresa F. Mascarenhas Garcia
João Manuel Cordeiro Brasão
Teresa Pardal
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1. Neste sentido ver Ana Luísa Santos Pinto, “O regime processual do acompanhamento do maior”, in Julgar On line - https://julgar.pt/wp-content/uploads/2020/05/JULGAR41-07-ALSP.pdf.