LEVANTAMENTO DE SIGILO
ADVOGADO
Sumário

- O Estatuto da Ordem dos Advogados consagra a obrigação do advogado guardar segredo profissional no que respeita a todos os factos cujo conhecimento lhe advenha do exercício das suas funções ou da prestação dos seus serviços.
- Esse segredo profissional abrange ainda documentos ou outras coisas que se relacionem, direta ou indiretamente, com os factos sujeitos a sigilo.
- Quando a própria cliente, por meio do requerimento de interposição do recurso extraordinário de revisão, desautoriza por completo a actuação do seu advogado, referindo que este agiu sem estar munido de poderes especiais para tanto, tendo subjacente a ideia de infidelidade quanto à actuação deste, o princípio da confiança e a natureza social do exercício da advocacia já se mostram abalados.
- Não é de supor que a questão em julgamento possa ser cabalmente esclarecida por meio de documentos que consubstanciam comunicações escritas entre o mandatário e a mandante ou os seus representantes, sem o prévio levantamento do sigilo profissional.
- Além dos legítimos direitos das partes, é mister que o próprio advogado possa defender a sua dignidade, direitos e interesses legítimos, nas presentes circunstâncias, maxime em face da desautorização e da suspeita de deslealdade e infidelidade subjacente ao presente recurso de revisão, intentado pela sua outrora cliente.

Texto Integral

Acordam na 6.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

1. Relatório.
1.1. Os antecedentes com relevo para a presente decisão evidenciam-se com o requerimento dirigido ao Supremo Tribunal de Justiça no dia 2/5/2019, em que o Exmo. Sr. Dr. C – agindo em nome de todas as partes – declarou que os autores desistiam da instância e os réus aceitavam a desistência da instância, sendo as custas em dívida a repartir por autores e réus.
Os seus Exmos. Colegas Dr. D e – com particular destaque para a presente decisão – Dr. B, vieram aos autos declarar aderir ao antecedente requerimento.
Nesse seguimento, no dia 23/5/2019, a Exma. Conselheira Relatora deferiu o requerido e homologou o acordo em matéria de custas.
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1.2. Sucede que, no dia 29/7/2021, a autora A intentou perante o Supremo Tribunal de Justiça um recurso extraordinário de revisão da decisão que homologou o acordo celebrado nos autos, invocando a falta de poderes do seu mandatário, o Exmo. Dr. B.
Invocou para o efeito que, com a data de 12 de Setembro de 20214, a autora A havia subscrito uma declaração a constituir o Exmo. Dr. B como seu procurador e a conferir-lhe poderes os mais amplos poderes em direito permitidos.
Subsequentemente, com a data de 21 de Julho de 2021, a autora A subscreveu outra declaração a revogar o mandato ao Exmo. Dr. B.
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1.3. Por despacho proferido no dia 3/11/2021 pela Exma. Conselheira Relatora, foi notado que há controvérsia sobre a factualidade alegada pelo Exmo. Dr. B, nomeadamente quanto à comunicação à autora A do acordo celebrado entre os restantes autores e os réus, ao acordo manifestado por esta e ao momento em que tal terá acontecido. Mais considerou que o apuramento do facto depende de produção de prova.
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1.4. A revisão foi contestada, tendo os réus M & J Pestana - Sociedade de Turismo da Madeira, S.A. e Imóveis Brisa - Fundo de Investimento Imobiliário Fechado, arrolado como testemunha o Exmo. Dr. B, advogado que havia patrocinado a autora.
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1.5. Seguindo os autos os seus termos, foi proferido o despacho saneador que delimitou o objeto do litígio em face das seguintes questões:


“1. Validade da desistência da instância realizada pelo anterior mandatário da autora, Dr. B, atendendo ao fundamento do presente recurso de revisão invocado pela recorrente nos termos supra expostos;
2. Verificação da exceção de caducidade do direito de interpor recurso de revisão pelo decurso do prazo de 60 dias, previsto no art.º 697.º, n.º 2, alínea c), por referência à alínea d) do art.º 696.º, ambos do CPC;
3. Apreciação dos pressupostos de eventual litigância de má-fé da autora recorrente, atendendo à total discrepância entre a sua versão dos factos e a versão factual apresentada nos autos pelo seu anterior mandatário Dr. B”.
Os temas da prova aí enunciados são os seguintes:
“1. Saber se a autora recorrente teve conhecimento, em maio de 2019, do requerimento de desistência da instância apresentado nos autos principais, em 02.05.2019, bem como de que o seu mandatário na altura, Dr. B, declarou nos autos aderir a tal requerimento;
2. Saber se a autora recorrente autorizou verbalmente o seu mandatário na altura, Dr. B, conferindo-lhe, ainda que a título verbal, poderes para aderir ao requerimento de desistência da instância apresentado nos autos principais, em 02.05.2019;
3. Saber se a recorrente aceitou, em maio de 2019, os termos do acordo celebrado entre os restantes autores e réus, que lhe foi transmitido pelo Dr. B, nos termos do qual os réus se obrigavam ao pagamento de uma quantia monetária a dividir por todos os autores, obrigando-se estes últimos a formalizar nos autos principais a desistência da instância;
4. Saber se a autora recorrente recebeu alguma quantia monetária, que fez sua, que lhe tenha sido entregue pelo Dr. B no âmbito do referido acordo celebrado entre autores e réus, que conduziu à apresentação do requerimento de desistência da instância em 02.05.2019”.
Mais foi decidido requisitar ao Tribunal de 1.ª instância a realização da audiência para produção de prova e a prolação de decisão sobre a matéria de facto relevante, com fixação dos factos provados e não provados e respetiva motivação, atendendo ao objeto do litígio e aos temas da prova acima enunciados.
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1.4. No dia 18/4/2024, o Exmo. Dr. B compareceu para prestar depoimento, mas em face da circunstância do seu conhecimento sobre o que nestes autos se discute estar abrangido pelo sigilo profissional, por ter sido mandatário da autora, declarou recusar prestar depoimento.
Nesse dia foi proferido despacho a determinar que se aguardasse pela decisão do Conselho Regional da Ordem dos Advogados relativamente ao pedido de levantamento do sigilo profissional.
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1.5. No dia 16/2/2024, o Conselho Regional da Ordem dos Advogados enviou ao tribunal o extracto da sua decisão, onde consta o seguinte:


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1.6. A ré M & J Pestana - Sociedade de Turismo da Madeira, S.A., veio então aos autos suscitar o incidente de levantamento do sigilo profissional da testemunha Dr. B, consignando que pretende com o depoimento deste esclarecer as seguintes questões:
“I. Se contatou ou não a recorrente, no dia 3 de maio de 2019, para lhe comunicar o acordo que tinha sido alcançado pelos Exmos. Senhores Drs. C e Dr. D?
II. Se por força desse acordo lhe comunicou ou não, o valor global que era devido aos seis Autores, e, em particular, o valor correspondente a 1/6 da quantia global que era devido à própria Recorrente?
III. Comunicou ou não à Recorrente que o recebimento da importância por cada um dos Autores estava dependente do Tribunal aceitar a desistência da instância?
IV. Se a Recorrente deu a sua anuência ao Acordo celebrado e lhe deu instruções para viabilizar tal acordo, assinando tudo o que fosse necessário?
V. Se a testemunha B lhe entregou ou não, ou enviou ou não via CTT, a quantia que lhe era devida, depois de deduzido o valor de despesas e honorários?
VI. Se foi explicado ou não à Recorrente o valor que lhe era devido, ou seja o valor do cheque que lhe foi enviado para pagamento da sua quota-parte, com indicação das quantias que foram deduzidas ao valor que lhe era devido de € 20.666,66?
Estes factos só podem ser esclarecidos por ele ou pela Recorrente, que não lhe interessa esclarecer, nem dizer a verdade”.
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1.7. A autora A respondeu que, “face às declarações da requerente, inquirida à saciedade sobre estes factos, acreditamos que o Tribunal já se encontra devidamente esclarecido em relação aos mesmos, e será através da Douta e livre apreciação do teor dessas declarações, nos termos do artigo 607.º/5 do CPC, que facilmente se concluirá pelo seu manifesto desinteresse para o objeto dos presentes autos”.
Terminou pugnando que deve ser negado o pedido de levantamento do sigilo profissional da aludida testemunha, por uma única razão, manifesta inutilidade para o objeto do processo.
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1.6. A Mma. Juíza suscitou, ao abrigo do disposto pelo artigo 417º, n.º 3, alínea c) e n.º 4, do Código de Processo Civil, ao Tribunal da Relação de Lisboa, o presente incidente de quebra de sigilo profissional.
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1.7. Foi ouvido o Exmo. Sr. Presidente do Conselho Regional de Lisboa da Ordem dos Advogados a dizer o que se lhe oferece relativamente à prestação de testemunho pelo Exmo. Dr. B com quebra do segredo profissional.
Este enviou o douto parecer que antecede onde, em síntese, sustenta o carácter fundamental e verdadeiramente basilar que o dever de segredo profissional reveste para o exercício da Advocacia. Mas não só.
Trata-se de dever de primordial importância para o reconhecimento da plenitude do Estado do Direito Democrático, consagrado no artigo 2.º da Constituição da República Portuguesa. E que o Estado de Direito Democrático não só exige um poder judicial independente, como também pressupõe e postula o exercício de uma Advocacia livre, independente e responsável.
Contudo, tal não significa que o dever de segredo seja absoluto. Situações existem em que o levantamento do dever de guardar sigilo profissional se poderá, excecionalmente, justificar.
Com o requerimento com a Ref.ª CITIUS 39635154, o Senhor Dr. B juntou vasta prova documental da factualidade alegada no mencionado requerimento.
Analisados os elementos fácticos trazidos ao conhecimento deste Conselho, importa antes demais sublinhar que o recurso a um meio de prova sujeito ao dever de sigilo deve ser sempre encarado como um meio excecionalíssimo, sob pena de se banalizarem os deveres fundamentais desta nossa profissão.
O meio de prova sujeito a sigilo terá sempre de ser um meio de prova essencial e imprescindível prova de determinado facto ou acero de factos. O meio de prova sujeito a sigilo nunca poderá consubstanciar mais um meio de prova, ou o melhor, o mais eficaz ou o meio de prova de obtenção mais simples. Terá sempre de ser um meio de prova absolutamente necessário.
E, olhando para a posição do Senhor Dr. B vertida no requerimento com a Ref.ª CITIUS 39635154 e para a prova documental disponibilizada pelo Ilustre Causídico tendo por referência a factualidade plasmada no mencionado requerimento, bem como para prova já produzida, nomeadamente, as declarações de parte prestadas pela antiga cliente, não nos parece suficientemente fundamentado o incidente de quebra de segredo profissional, já que nunca pode ser suficiente que o pedido de audição com quebra de sigilo profissional se funde, única e exclusivamente, na sua essencialidade para a descoberta da verdade material.
E tal é suficiente para que possamos concluir que não se mostram reunidos os pressupostos para audição do Ilustre Causídico com quebra do segredo profissional.
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1.7. A questão a decidir traduz-se na justificação ou não justificação do levantamento do segredo profissional, em face das circunstâncias que se manifestam nos autos.
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2. Fundamentação.
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2.1. Os factos a considerar na presente decisão são os descritos no antecedente relatório e que se evidenciam dos autos.
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2.2. O acesso ao direito e à tutela jurisdicional efectiva consagrado no artigo 20.º, da Constituição da República Portuguesa, pressupõe, entre o mais, que o dever de cooperação para a descoberta da verdade, nomeadamente por meio da resposta das pessoas ao que lhes for perguntado – cfr. art.º 417.º, do Código de Processo Civil.
Porém, tal dever não é absoluto ou irrestrito, pois está sujeito a determinadas limitações e conflitos ou colisões. Um desses conflitos ou colisões resulta da circunstância de alguém estar igualmente obrigado ao sigilo profissional e poder legitimamente recusar a sua colaboração para a descoberta da verdade.
Nesse caso, aplicar-se-á o disposto no art.º 135.º, do Código de Processo Penal, aplicável ex vi art.º 417.º, n.º 3, do Código de Processo Civil:
(…)
2 - Havendo dúvidas fundadas sobre a legitimidade da escusa, a autoridade judiciária perante a qual o incidente se tiver suscitado procede às averiguações necessárias. Se, após estas, concluir pela ilegitimidade da escusa, ordena, ou requer ao tribunal que ordene, a prestação do depoimento.
3 - O tribunal superior àquele onde o incidente tiver sido suscitado, ou, no caso de o incidente ter sido suscitado perante o Supremo Tribunal de Justiça, o pleno das secções criminais, pode decidir da prestação de testemunho com quebra do segredo profissional sempre que esta se mostre justificada, segundo o princípio da prevalência do interesse preponderante, nomeadamente tendo em conta a imprescindibilidade do depoimento para a descoberta da verdade, a gravidade do crime e a necessidade de protecção de bens jurídicos. A intervenção é suscitada pelo juiz, oficiosamente ou a requerimento.
No que diz respeito ao patrocínio forense, o artigo 208.º, da Constituição da República Portuguesa, determina que a lei assegura aos advogados as imunidades necessárias ao exercício do mandato e regula o patrocínio forense como elemento essencial à administração da justiça. No prosseguimento dessa garantia, o artigo 92.º, do Estatuto da Ordem dos Advogados, dispõe que:
1 - O advogado é obrigado a guardar segredo profissional no que respeita a todos os factos cujo conhecimento lhe advenha do exercício das suas funções ou da prestação dos seus serviços, designadamente:
a) A factos referentes a assuntos profissionais conhecidos, exclusivamente, por revelação do cliente ou revelados por ordem deste;
b) A factos de que tenha tido conhecimento em virtude de cargo desempenhado na Ordem dos Advogados;
c) A factos referentes a assuntos profissionais comunicados por colega com o qual esteja associado ou ao qual preste colaboração;
d) A factos comunicados por coautor, corréu ou cointeressado do seu constituinte ou pelo respetivo representante;
e) A factos de que a parte contrária do cliente ou respetivos representantes lhe tenham dado conhecimento durante negociações para acordo que vise pôr termo ao diferendo ou litígio;
f) A factos de que tenha tido conhecimento no âmbito de quaisquer negociações malogradas, orais ou escritas, em que tenha intervindo.
2 - A obrigação do segredo profissional existe quer o serviço solicitado ou cometido ao advogado envolva ou não representação judicial ou extrajudicial, quer deva ou não ser remunerado, quer o advogado haja ou não chegado a aceitar e a desempenhar a representação ou serviço, o mesmo acontecendo para todos os advogados que, direta ou indiretamente, tenham qualquer intervenção no serviço.
3 - O segredo profissional abrange ainda documentos ou outras coisas que se relacionem, direta ou indiretamente, com os factos sujeitos a sigilo.
4 - O advogado pode revelar factos abrangidos pelo segredo profissional, desde que tal seja absolutamente necessário para a defesa da dignidade, direitos e interesses legítimos do próprio advogado ou do cliente ou seus representantes, mediante prévia autorização do presidente do conselho regional respetivo, com recurso para o bastonário, nos termos previstos no respetivo regulamento.
5 - Os atos praticados pelo advogado com violação de segredo profissional não podem fazer prova em juízo.
6 - Ainda que dispensado nos termos do disposto no n.º 4, o advogado pode manter o segredo profissional.
7 - O dever de guardar sigilo quanto aos factos descritos no n.º 1 é extensivo a todas as pessoas que colaborem com o advogado no exercício da sua atividade profissional, com a cominação prevista no n.º 5.
8 - O advogado deve exigir das pessoas referidas no número anterior, nos termos de declaração escrita lavrada para o efeito, o cumprimento do dever aí previsto em momento anterior ao início da colaboração, consistindo infração disciplinar a violação daquele dever.
A controvérsia factual relativa ao recurso extraordinário de revisão centra-se nas duas versões em oposição, que se resumem sinteticamente no seguinte:
- A autora A sustenta que a adesão do seu mandatário, Dr. B, ao requerimento de desistência da instância foi realizada à sua revelia; e,
- A ré M & J Pestana, alicerçada nas informações do Dr. B, sustenta que este agiu no seguimento de instruções da mandante e que esta sempre esteve conhecedora do acordo subjacente ao desfecho do processo.
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2.3. A posição da Ordem dos Advogados.
A posição da Ordem dos Advogados é, em abstracto, irrepreensível e conforme aos princípios que regem esta matéria, nomeadamente quanto à defesa exercício de uma Advocacia livre, independente e responsável.
Porém, o parecer da Ordem dos Advogados é fundamentalmente orientado em face da posição do Senhor Dr. B vertida no requerimento com a Ref.ª CITIUS 39635154 e restante documentação.
Afigura-se que a prova documental apontada pela Ordem dos Advogados poderá ser muito relevante para a decisão da matéria de facto e, pelo menos, em parte até poderá pender no sentido da menor necessidade de ouvir o Exmo. Dr. B para esclarecer os factos controvertidos.
Não obstante, lendo os documentos em causa, nota-se que a documentação com maior relevo que o Exmo. Dr. B apresentou com o requerimento com a Ref.ª CITIUS 39635154 se traduz em várias mensagens de correio electrónico que o mesmo – na qualidade de mandatário – supostamente trocou com a mandante e com o filho desta… Ou seja, o dever de sigilo servirá de impedimento a que o (outrora) mandatário preste declarações em tribunal para esclarecer que contactos manteve com a mandante e que instruções recebeu desta, ficando assim salvaguardada a relação profissional de confiança entre o advogado e a cliente. Mas as considerações que motivam o segredo profissional já não serão atendíveis quando esses factos são revelados por meio da exposição das comunicações escritas entre ambos!
Como parece evidente, não se afigura que o advogado apenas esteja obrigado a guardar segredo profissional no que respeita à exposição verbal de todos os factos cujo conhecimento lhe advenha do exercício das suas funções ou da prestação dos seus serviços. E que a partilha pública de comunicações escritas entre o advogado e o cliente possa ser aceite livre e acriticamente. A lei não faz essa distinção, nem a mesma é minimamente compatível com as finalidades prosseguidas pelo legislador. Pelo contrário, o citado artigo 92.º, n.º 3, do Estatuto da Ordem dos Advogados, expressamente desautoriza tal interpretação.
A partir do momento em que a Ordem dos Advogados considera e releva as comunicações escritas entre o advogado e a cliente, dir-se-á que o segredo profissional já cedeu. O subsequente depoimento em tribunal do advogado servirá apenas para corroborar, completar ou esclarecer um segredo que já está comprometido. E isso deverá ser assumido de forma completa e responsável.
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2.4. A posição da autora A.
A mesma considera que, face às suas próprias declarações sobre os factos, o tribunal já se encontra devidamente esclarecido em relação aos mesmos.
Esta posição está completamente desencontrada dos princípios gerais quanto ao direito à prova e quanto à quebra do sigilo profissional. A autora assenta a sua posição de negação do levantamento do segredo profissional no monólogo da verdade: apenas a autora poderá falar e relatar o que sucedeu no âmbito da relação de patrocínio judiciário que estabeleceu com o Sr. Dr. B. Segundo a autora, à partida e independentemente de qualquer outro interesse ou direito, deverá ser negado às outras partes o direito à prova ou à contraprova – cfr. art.º 346.º, do Código Civil.
Não se aceita tal entendimento expresso pela autora e que desconsidera a mencionada prevalência do interesse preponderante, nomeadamente tendo em conta a imprescindibilidade do depoimento para a descoberta da verdade e a defesa da dignidade, direitos e interesses legítimos do próprio advogado.
Apenas se nota que a autora (cliente) revela total abertura para expor perante o tribunal os factos referentes à relação com o mandatário (advogado), nomeadamente os que estão em julgamento. Só pretende que seja negada a este qualquer abertura para expor a sua versão dos acontecimentos… Trata-se de uma visão puramente unilateral e que suprime por absoluto a possibilidade do contraditório ou da verdadeira discussão.
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2.5. A posição da ré M & J Pestana - Sociedade de Turismo da Madeira, S.A., e da testemunha Dr. B.
A ré M & J Pestana - Sociedade de Turismo da Madeira, S.A., suscitou o incidente de levantamento do sigilo profissional da testemunha Dr. B e indicou as questões que pretende ver esclarecidas com a sua inquirição. Manifestamente, as indicadas questões são pertinentes em face do objeto do litígio e dos temas da prova enunciados no despacho saneador.
As questões contendem com o segredo profissional, na medida em que a ré pretende ver esclarecido diversos aspectos próprios da relação entre um advogado (O Exmo. Dr. B) e a sua então cliente (A autora A), nomeadamente factos cujo conhecimento adveio àquele do exercício das suas funções (se contatou a cliente para lhe comunicar o acordo que tinha sido alcançado; o valor global que era devido aos seis autores; que o recebimento da importância por cada um dos autores estava dependente do Tribunal aceitar a desistência da instância; se a cliente deu a sua anuência ao acordo celebrado e lhe deu instruções para o viabilizar; se lhe entregou ou enviou a quantia que lhe era devida; se lhe explicou o valor que lhe era devido). Em vista da sua natureza e contexto, não é expectável que existam outros meios de prova - validamente admissíveis -, para esclarecer todas estas questões, que não as declarações do advogado e da cliente. A generalidade da prova documental existente e com especial relevo para o esclarecimento destas questões assenta nas comunicações entre o advogado e a cliente. Não são do domínio público, nem estão excluídas do segredo profissional. Não nos compete antecipar o julgamento sobre as questões de facto, mas perspectiva-se a contradição entre as posições da cliente e do seu então advogado. Tais circunstâncias militam no sentido de se considerar a inquirição do Exmo. Dr. B – uma vez dispensado do segredo profissional – como necessária para o esclarecimento das questões sub judice. A par das declarações prestadas pela própria autora A, claro está.
O artigo 4.º, n.º 1, do Regulamento n.º 94/2006, de 12 de Junho (Dispensa de Segredo Profissional), refere que a dispensa do segredo profissional tem carácter de excepcionalidade. Porém, a excepcionalidade da dispensa do segredo profissional não deve ser interpretada, nem incutir a ideia de facilidade, no sentido é que é mais fácil proferir uma decisão que se refugia na regra do segredo, ao invés de justificar a sua excepcional dispensa.
Como foi salientado no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 15/2/2018: “O dever de guardar segredo profissional tem as suas raízes no princípio da confiança, no dever de lealdade do advogado para com o constituinte, mas também na dignidade da advocacia e na sua função de manifesto interesse público.
Nas palavras de António Arnauld, o fundamento ético-jurídico do sigilo profissional de advogado radica no princípio da confiança e na natureza social da função forense.
A obrigação de segredo transcende, por consequência, a mera relação contratual, assumindo-se como princípio de ordem pública e representando uma obrigação do advogado não apenas para com o seu constituinte, mas também para com a própria classe, a Ordem dos Advogados e a comunidade em geral.
Isso mesmo foi afirmado no acórdão da Relação de Lisboa de 23.02.2017:
“A par dos interesses individuais da preservação do segredo sobre determinados factos, protegem-se igualmente valores ou interesses de índole supra-individual e institucional que, por razões de economia, poderemos reconduzir à confiança sobre que deve assentar o exercício de certas profissões”.
Por isso, consideram-se abrangidas pelo segredo profissional todas as situações que sejam susceptíveis de significar a violação da relação de confiança entre o advogado e o seu patrocinado e também todas as situações que possam representar quebra da dignidade da função social que a advocacia prossegue. O segredo profissional não é só, em rigor, um dever do advogado por pertencer a uma classe, mas é, e sobretudo, um dever de toda essa classe e, por isso, vinculativo e obrigatório para cada membro dela.
Saliente-se que, além dos factos, o sigilo profissional abrange ainda quaisquer documentos ou outras coisas que se relacionem, directa ou indirectamente, com os factos sujeitos a sigilo – cfr. n.º 3 do artigo 92º” – disponível na base de dados da DGSI; processo n.º 1130/14.7TVLSB.L1.S1.
O citado artigo 92.º, do Estatuto da Ordem dos Advogados, admite expressamente a revelação de factos abrangidos pelo segredo profissional, desde que tal seja absolutamente necessário para a defesa da dignidade, direitos e interesses legítimos do próprio advogado ou do cliente ou seus representantes, mediante prévia autorização do presidente do conselho regional respetivo, com recurso para o bastonário, nos termos previstos no respetivo regulamento.
No seguimento desse Estatuto, o artigo 4.º, n.º 2, do Regulamento n.º 94/2006, de 12 de Junho (Dispensa de Segredo Profissional), prevê que a autorização para revelar factos abrangidos pelo segredo profissional apenas é permitida quando seja inequivocamente necessária para a defesa da dignidade, direitos e interesses legítimos do próprio advogado, cliente ou seus representantes.
Já vimos que as questões são pertinentes e há necessidade de ouvir a testemunha para esclarecer os factos sujeitos a segredo. Mas essa necessidade é absoluta ou inequívoca? Afigura-se que a resposta deverá ser afirmativa, pois não se perspectivam, nem foram apresentadas alternativas válidas (não se aceitando a sugestão do parecer da Ordem dos Advogados quanto à consideração da prova documental subscrita pela própria mandante e seus representantes ou do mandatário), nem objecções invencíveis em face da posição adoptada pelo advogado e pela sua cliente.
O tribunal não põe em causa o princípio da confiança e a natureza social do exercício da advocacia. Porém, não pode deixar de considerar que, no caso concreto, essas preocupações já foram totalmente abaladas e ultrapassadas pela própria postura da cliente por meio do requerimento de interposição do recurso extraordinário de revisão em que desautoriza por completo a actuação do seu advogado, referindo que agiu sem estar munido de poderes especiais para tanto. Não o disse expressamente, mas do teor do requerimento é patente a acusação de infidelidade quanto à actuação do advogado.
Por outro lado, o Exmo. Advogado já veio aos autos manifestar o propósito de justificar a sua actuação, sujeito à obtenção da dispensa do segredo profissional - cfr. requerimento do dia 4/11/2021 e acta da sessão de julgamento do dia 18/4/2023. Afigura-se que as respostas do advogado às questões colocadas pela ré e as que poderão emergir no confronto com a documentação trocada com a cliente justificam a necessidade absoluta ou inequívoca da sua inquirição.
À partida, o propósito manifestado pela testemunha Dr. B é honroso, pois pretende justificar a sua actuação como advogado e como cumpridor da vontade da mandante. É mister que o próprio advogado possa defender a sua dignidade, direitos e interesses legítimos, nas presentes circunstâncias, maxime em face da desautorização e da suspeita de deslealdade e infidelidade subjacente ao presente recurso de revisão intentado pela sua outrora cliente. Perante o Tribunal, os seus Colegas e, eventualmente, no confronto com a autora. Importa igualmente considerar a questão da litigância de má fé que possa estar subjacente à actuação da parte ou do mandatário.
A prevalência do segredo profissional, em face do que foi supra evidenciado, consubstanciaria uma injustiça para a ré e uma indignidade para o advogado. Não se encontra, assim, justificação para permitir que a cliente exponha perante o tribunal a relação com o seu advogado e este seja totalmente amordaçado e silenciado, a pretexto da salvaguarda do segredo profissional.
Em suma, deve prevalecer a descoberta da verdade e a defesa da dignidade, direitos e interesses legítimos do próprio advogado ou da cliente, por meio da inquirição do Exmo. Dr. B e resposta às identificadas questões.
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3. Decisão:
3.1. Pelo exposto, acordam em determinar o levantamento do segredo profissional, por forma que o Exmo. Dr. B preste depoimento às questões que foram supra indicadas pela ré M & J Pestana - Sociedade de Turismo da Madeira, S.A., e às demais que sejam conexas ou pertinentes, nomeadamente em termos de estabelecimento da razão de ciência.
3.2. As custas são a suportar pela autora e recorrente A, que saí vencida, sem prejuízo da decisão quanto ao benefício de apoio judiciário.
3.3. Notifique as partes, o Exmo. Dr. B e o Exmo. Sr. Presidente do Conselho Regional de Lisboa da Ordem dos Advogados.

Lisboa, 8 de Maio de 2025
Nuno Gonçalves
Nuno Luís Lopes Ribeiro
Elsa Melo