- O Estatuto da Ordem dos Advogados consagra a obrigação do advogado guardar segredo profissional no que respeita a todos os factos cujo conhecimento lhe advenha do exercício das suas funções ou da prestação dos seus serviços.
- Esse segredo profissional abrange ainda documentos ou outras coisas que se relacionem, direta ou indiretamente, com os factos sujeitos a sigilo.
- Quando a própria cliente, por meio do requerimento de interposição do recurso extraordinário de revisão, desautoriza por completo a actuação do seu advogado, referindo que este agiu sem estar munido de poderes especiais para tanto, tendo subjacente a ideia de infidelidade quanto à actuação deste, o princípio da confiança e a natureza social do exercício da advocacia já se mostram abalados.
- Não é de supor que a questão em julgamento possa ser cabalmente esclarecida por meio de documentos que consubstanciam comunicações escritas entre o mandatário e a mandante ou os seus representantes, sem o prévio levantamento do sigilo profissional.
- Além dos legítimos direitos das partes, é mister que o próprio advogado possa defender a sua dignidade, direitos e interesses legítimos, nas presentes circunstâncias, maxime em face da desautorização e da suspeita de deslealdade e infidelidade subjacente ao presente recurso de revisão, intentado pela sua outrora cliente.
“1. Validade da desistência da instância realizada pelo anterior mandatário da autora, Dr. B, atendendo ao fundamento do presente recurso de revisão invocado pela recorrente nos termos supra expostos;
2. Verificação da exceção de caducidade do direito de interpor recurso de revisão pelo decurso do prazo de 60 dias, previsto no art.º 697.º, n.º 2, alínea c), por referência à alínea d) do art.º 696.º, ambos do CPC;
3. Apreciação dos pressupostos de eventual litigância de má-fé da autora recorrente, atendendo à total discrepância entre a sua versão dos factos e a versão factual apresentada nos autos pelo seu anterior mandatário Dr. B”.
Os temas da prova aí enunciados são os seguintes:
“1. Saber se a autora recorrente teve conhecimento, em maio de 2019, do requerimento de desistência da instância apresentado nos autos principais, em 02.05.2019, bem como de que o seu mandatário na altura, Dr. B, declarou nos autos aderir a tal requerimento;
2. Saber se a autora recorrente autorizou verbalmente o seu mandatário na altura, Dr. B, conferindo-lhe, ainda que a título verbal, poderes para aderir ao requerimento de desistência da instância apresentado nos autos principais, em 02.05.2019;
3. Saber se a recorrente aceitou, em maio de 2019, os termos do acordo celebrado entre os restantes autores e réus, que lhe foi transmitido pelo Dr. B, nos termos do qual os réus se obrigavam ao pagamento de uma quantia monetária a dividir por todos os autores, obrigando-se estes últimos a formalizar nos autos principais a desistência da instância;
4. Saber se a autora recorrente recebeu alguma quantia monetária, que fez sua, que lhe tenha sido entregue pelo Dr. B no âmbito do referido acordo celebrado entre autores e réus, que conduziu à apresentação do requerimento de desistência da instância em 02.05.2019”.
Mais foi decidido requisitar ao Tribunal de 1.ª instância a realização da audiência para produção de prova e a prolação de decisão sobre a matéria de facto relevante, com fixação dos factos provados e não provados e respetiva motivação, atendendo ao objeto do litígio e aos temas da prova acima enunciados.
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1.4. No dia 18/4/2024, o Exmo. Dr. B compareceu para prestar depoimento, mas em face da circunstância do seu conhecimento sobre o que nestes autos se discute estar abrangido pelo sigilo profissional, por ter sido mandatário da autora, declarou recusar prestar depoimento.
Nesse dia foi proferido despacho a determinar que se aguardasse pela decisão do Conselho Regional da Ordem dos Advogados relativamente ao pedido de levantamento do sigilo profissional.
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1.5. No dia 16/2/2024, o Conselho Regional da Ordem dos Advogados enviou ao tribunal o extracto da sua decisão, onde consta o seguinte:
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1.6. A ré M & J Pestana - Sociedade de Turismo da Madeira, S.A., veio então aos autos suscitar o incidente de levantamento do sigilo profissional da testemunha Dr. B, consignando que pretende com o depoimento deste esclarecer as seguintes questões:
“I. Se contatou ou não a recorrente, no dia 3 de maio de 2019, para lhe comunicar o acordo que tinha sido alcançado pelos Exmos. Senhores Drs. C e Dr. D?
II. Se por força desse acordo lhe comunicou ou não, o valor global que era devido aos seis Autores, e, em particular, o valor correspondente a 1/6 da quantia global que era devido à própria Recorrente?
III. Comunicou ou não à Recorrente que o recebimento da importância por cada um dos Autores estava dependente do Tribunal aceitar a desistência da instância?
IV. Se a Recorrente deu a sua anuência ao Acordo celebrado e lhe deu instruções para viabilizar tal acordo, assinando tudo o que fosse necessário?
V. Se a testemunha B lhe entregou ou não, ou enviou ou não via CTT, a quantia que lhe era devida, depois de deduzido o valor de despesas e honorários?
VI. Se foi explicado ou não à Recorrente o valor que lhe era devido, ou seja o valor do cheque que lhe foi enviado para pagamento da sua quota-parte, com indicação das quantias que foram deduzidas ao valor que lhe era devido de € 20.666,66?
Estes factos só podem ser esclarecidos por ele ou pela Recorrente, que não lhe interessa esclarecer, nem dizer a verdade”.
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1.7. A autora A respondeu que, “face às declarações da requerente, inquirida à saciedade sobre estes factos, acreditamos que o Tribunal já se encontra devidamente esclarecido em relação aos mesmos, e será através da Douta e livre apreciação do teor dessas declarações, nos termos do artigo 607.º/5 do CPC, que facilmente se concluirá pelo seu manifesto desinteresse para o objeto dos presentes autos”.
Terminou pugnando que deve ser negado o pedido de levantamento do sigilo profissional da aludida testemunha, por uma única razão, manifesta inutilidade para o objeto do processo.
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1.6. A Mma. Juíza suscitou, ao abrigo do disposto pelo artigo 417º, n.º 3, alínea c) e n.º 4, do Código de Processo Civil, ao Tribunal da Relação de Lisboa, o presente incidente de quebra de sigilo profissional.
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1.7. Foi ouvido o Exmo. Sr. Presidente do Conselho Regional de Lisboa da Ordem dos Advogados a dizer o que se lhe oferece relativamente à prestação de testemunho pelo Exmo. Dr. B com quebra do segredo profissional.
Este enviou o douto parecer que antecede onde, em síntese, sustenta o carácter fundamental e verdadeiramente basilar que o dever de segredo profissional reveste para o exercício da Advocacia. Mas não só.
Trata-se de dever de primordial importância para o reconhecimento da plenitude do Estado do Direito Democrático, consagrado no artigo 2.º da Constituição da República Portuguesa. E que o Estado de Direito Democrático não só exige um poder judicial independente, como também pressupõe e postula o exercício de uma Advocacia livre, independente e responsável.
Contudo, tal não significa que o dever de segredo seja absoluto. Situações existem em que o levantamento do dever de guardar sigilo profissional se poderá, excecionalmente, justificar.
Com o requerimento com a Ref.ª CITIUS 39635154, o Senhor Dr. B juntou vasta prova documental da factualidade alegada no mencionado requerimento.
Analisados os elementos fácticos trazidos ao conhecimento deste Conselho, importa antes demais sublinhar que o recurso a um meio de prova sujeito ao dever de sigilo deve ser sempre encarado como um meio excecionalíssimo, sob pena de se banalizarem os deveres fundamentais desta nossa profissão.
O meio de prova sujeito a sigilo terá sempre de ser um meio de prova essencial e imprescindível prova de determinado facto ou acero de factos. O meio de prova sujeito a sigilo nunca poderá consubstanciar mais um meio de prova, ou o melhor, o mais eficaz ou o meio de prova de obtenção mais simples. Terá sempre de ser um meio de prova absolutamente necessário.
E, olhando para a posição do Senhor Dr. B vertida no requerimento com a Ref.ª CITIUS 39635154 e para a prova documental disponibilizada pelo Ilustre Causídico tendo por referência a factualidade plasmada no mencionado requerimento, bem como para prova já produzida, nomeadamente, as declarações de parte prestadas pela antiga cliente, não nos parece suficientemente fundamentado o incidente de quebra de segredo profissional, já que nunca pode ser suficiente que o pedido de audição com quebra de sigilo profissional se funde, única e exclusivamente, na sua essencialidade para a descoberta da verdade material.
E tal é suficiente para que possamos concluir que não se mostram reunidos os pressupostos para audição do Ilustre Causídico com quebra do segredo profissional.
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1.7. A questão a decidir traduz-se na justificação ou não justificação do levantamento do segredo profissional, em face das circunstâncias que se manifestam nos autos.
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2. Fundamentação.
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2.1. Os factos a considerar na presente decisão são os descritos no antecedente relatório e que se evidenciam dos autos.
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2.2. O acesso ao direito e à tutela jurisdicional efectiva consagrado no artigo 20.º, da Constituição da República Portuguesa, pressupõe, entre o mais, que o dever de cooperação para a descoberta da verdade, nomeadamente por meio da resposta das pessoas ao que lhes for perguntado – cfr. art.º 417.º, do Código de Processo Civil.
Porém, tal dever não é absoluto ou irrestrito, pois está sujeito a determinadas limitações e conflitos ou colisões. Um desses conflitos ou colisões resulta da circunstância de alguém estar igualmente obrigado ao sigilo profissional e poder legitimamente recusar a sua colaboração para a descoberta da verdade.
Nesse caso, aplicar-se-á o disposto no art.º 135.º, do Código de Processo Penal, aplicável ex vi art.º 417.º, n.º 3, do Código de Processo Civil:
(…)
2 - Havendo dúvidas fundadas sobre a legitimidade da escusa, a autoridade judiciária perante a qual o incidente se tiver suscitado procede às averiguações necessárias. Se, após estas, concluir pela ilegitimidade da escusa, ordena, ou requer ao tribunal que ordene, a prestação do depoimento.
3 - O tribunal superior àquele onde o incidente tiver sido suscitado, ou, no caso de o incidente ter sido suscitado perante o Supremo Tribunal de Justiça, o pleno das secções criminais, pode decidir da prestação de testemunho com quebra do segredo profissional sempre que esta se mostre justificada, segundo o princípio da prevalência do interesse preponderante, nomeadamente tendo em conta a imprescindibilidade do depoimento para a descoberta da verdade, a gravidade do crime e a necessidade de protecção de bens jurídicos. A intervenção é suscitada pelo juiz, oficiosamente ou a requerimento.
No que diz respeito ao patrocínio forense, o artigo 208.º, da Constituição da República Portuguesa, determina que a lei assegura aos advogados as imunidades necessárias ao exercício do mandato e regula o patrocínio forense como elemento essencial à administração da justiça. No prosseguimento dessa garantia, o artigo 92.º, do Estatuto da Ordem dos Advogados, dispõe que:
1 - O advogado é obrigado a guardar segredo profissional no que respeita a todos os factos cujo conhecimento lhe advenha do exercício das suas funções ou da prestação dos seus serviços, designadamente:
a) A factos referentes a assuntos profissionais conhecidos, exclusivamente, por revelação do cliente ou revelados por ordem deste;
b) A factos de que tenha tido conhecimento em virtude de cargo desempenhado na Ordem dos Advogados;
c) A factos referentes a assuntos profissionais comunicados por colega com o qual esteja associado ou ao qual preste colaboração;
d) A factos comunicados por coautor, corréu ou cointeressado do seu constituinte ou pelo respetivo representante;
e) A factos de que a parte contrária do cliente ou respetivos representantes lhe tenham dado conhecimento durante negociações para acordo que vise pôr termo ao diferendo ou litígio;
f) A factos de que tenha tido conhecimento no âmbito de quaisquer negociações malogradas, orais ou escritas, em que tenha intervindo.
2 - A obrigação do segredo profissional existe quer o serviço solicitado ou cometido ao advogado envolva ou não representação judicial ou extrajudicial, quer deva ou não ser remunerado, quer o advogado haja ou não chegado a aceitar e a desempenhar a representação ou serviço, o mesmo acontecendo para todos os advogados que, direta ou indiretamente, tenham qualquer intervenção no serviço.
3 - O segredo profissional abrange ainda documentos ou outras coisas que se relacionem, direta ou indiretamente, com os factos sujeitos a sigilo.
4 - O advogado pode revelar factos abrangidos pelo segredo profissional, desde que tal seja absolutamente necessário para a defesa da dignidade, direitos e interesses legítimos do próprio advogado ou do cliente ou seus representantes, mediante prévia autorização do presidente do conselho regional respetivo, com recurso para o bastonário, nos termos previstos no respetivo regulamento.
5 - Os atos praticados pelo advogado com violação de segredo profissional não podem fazer prova em juízo.
6 - Ainda que dispensado nos termos do disposto no n.º 4, o advogado pode manter o segredo profissional.
7 - O dever de guardar sigilo quanto aos factos descritos no n.º 1 é extensivo a todas as pessoas que colaborem com o advogado no exercício da sua atividade profissional, com a cominação prevista no n.º 5.
8 - O advogado deve exigir das pessoas referidas no número anterior, nos termos de declaração escrita lavrada para o efeito, o cumprimento do dever aí previsto em momento anterior ao início da colaboração, consistindo infração disciplinar a violação daquele dever.
A controvérsia factual relativa ao recurso extraordinário de revisão centra-se nas duas versões em oposição, que se resumem sinteticamente no seguinte:
- A autora A sustenta que a adesão do seu mandatário, Dr. B, ao requerimento de desistência da instância foi realizada à sua revelia; e,
- A ré M & J Pestana, alicerçada nas informações do Dr. B, sustenta que este agiu no seguimento de instruções da mandante e que esta sempre esteve conhecedora do acordo subjacente ao desfecho do processo.
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2.3. A posição da Ordem dos Advogados.
A posição da Ordem dos Advogados é, em abstracto, irrepreensível e conforme aos princípios que regem esta matéria, nomeadamente quanto à defesa exercício de uma Advocacia livre, independente e responsável.
Porém, o parecer da Ordem dos Advogados é fundamentalmente orientado em face da posição do Senhor Dr. B vertida no requerimento com a Ref.ª CITIUS 39635154 e restante documentação.
Afigura-se que a prova documental apontada pela Ordem dos Advogados poderá ser muito relevante para a decisão da matéria de facto e, pelo menos, em parte até poderá pender no sentido da menor necessidade de ouvir o Exmo. Dr. B para esclarecer os factos controvertidos.
Não obstante, lendo os documentos em causa, nota-se que a documentação com maior relevo que o Exmo. Dr. B apresentou com o requerimento com a Ref.ª CITIUS 39635154 se traduz em várias mensagens de correio electrónico que o mesmo – na qualidade de mandatário – supostamente trocou com a mandante e com o filho desta… Ou seja, o dever de sigilo servirá de impedimento a que o (outrora) mandatário preste declarações em tribunal para esclarecer que contactos manteve com a mandante e que instruções recebeu desta, ficando assim salvaguardada a relação profissional de confiança entre o advogado e a cliente. Mas as considerações que motivam o segredo profissional já não serão atendíveis quando esses factos são revelados por meio da exposição das comunicações escritas entre ambos!
Como parece evidente, não se afigura que o advogado apenas esteja obrigado a guardar segredo profissional no que respeita à exposição verbal de todos os factos cujo conhecimento lhe advenha do exercício das suas funções ou da prestação dos seus serviços. E que a partilha pública de comunicações escritas entre o advogado e o cliente possa ser aceite livre e acriticamente. A lei não faz essa distinção, nem a mesma é minimamente compatível com as finalidades prosseguidas pelo legislador. Pelo contrário, o citado artigo 92.º, n.º 3, do Estatuto da Ordem dos Advogados, expressamente desautoriza tal interpretação.
A partir do momento em que a Ordem dos Advogados considera e releva as comunicações escritas entre o advogado e a cliente, dir-se-á que o segredo profissional já cedeu. O subsequente depoimento em tribunal do advogado servirá apenas para corroborar, completar ou esclarecer um segredo que já está comprometido. E isso deverá ser assumido de forma completa e responsável.
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2.4. A posição da autora A.
A mesma considera que, face às suas próprias declarações sobre os factos, o tribunal já se encontra devidamente esclarecido em relação aos mesmos.
Esta posição está completamente desencontrada dos princípios gerais quanto ao direito à prova e quanto à quebra do sigilo profissional. A autora assenta a sua posição de negação do levantamento do segredo profissional no monólogo da verdade: apenas a autora poderá falar e relatar o que sucedeu no âmbito da relação de patrocínio judiciário que estabeleceu com o Sr. Dr. B. Segundo a autora, à partida e independentemente de qualquer outro interesse ou direito, deverá ser negado às outras partes o direito à prova ou à contraprova – cfr. art.º 346.º, do Código Civil.
Não se aceita tal entendimento expresso pela autora e que desconsidera a mencionada prevalência do interesse preponderante, nomeadamente tendo em conta a imprescindibilidade do depoimento para a descoberta da verdade e a defesa da dignidade, direitos e interesses legítimos do próprio advogado.
Apenas se nota que a autora (cliente) revela total abertura para expor perante o tribunal os factos referentes à relação com o mandatário (advogado), nomeadamente os que estão em julgamento. Só pretende que seja negada a este qualquer abertura para expor a sua versão dos acontecimentos… Trata-se de uma visão puramente unilateral e que suprime por absoluto a possibilidade do contraditório ou da verdadeira discussão.
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2.5. A posição da ré M & J Pestana - Sociedade de Turismo da Madeira, S.A., e da testemunha Dr. B.
A ré M & J Pestana - Sociedade de Turismo da Madeira, S.A., suscitou o incidente de levantamento do sigilo profissional da testemunha Dr. B e indicou as questões que pretende ver esclarecidas com a sua inquirição. Manifestamente, as indicadas questões são pertinentes em face do objeto do litígio e dos temas da prova enunciados no despacho saneador.
As questões contendem com o segredo profissional, na medida em que a ré pretende ver esclarecido diversos aspectos próprios da relação entre um advogado (O Exmo. Dr. B) e a sua então cliente (A autora A), nomeadamente factos cujo conhecimento adveio àquele do exercício das suas funções (se contatou a cliente para lhe comunicar o acordo que tinha sido alcançado; o valor global que era devido aos seis autores; que o recebimento da importância por cada um dos autores estava dependente do Tribunal aceitar a desistência da instância; se a cliente deu a sua anuência ao acordo celebrado e lhe deu instruções para o viabilizar; se lhe entregou ou enviou a quantia que lhe era devida; se lhe explicou o valor que lhe era devido). Em vista da sua natureza e contexto, não é expectável que existam outros meios de prova - validamente admissíveis -, para esclarecer todas estas questões, que não as declarações do advogado e da cliente. A generalidade da prova documental existente e com especial relevo para o esclarecimento destas questões assenta nas comunicações entre o advogado e a cliente. Não são do domínio público, nem estão excluídas do segredo profissional. Não nos compete antecipar o julgamento sobre as questões de facto, mas perspectiva-se a contradição entre as posições da cliente e do seu então advogado. Tais circunstâncias militam no sentido de se considerar a inquirição do Exmo. Dr. B – uma vez dispensado do segredo profissional – como necessária para o esclarecimento das questões sub judice. A par das declarações prestadas pela própria autora A, claro está.
O artigo 4.º, n.º 1, do Regulamento n.º 94/2006, de 12 de Junho (Dispensa de Segredo Profissional), refere que a dispensa do segredo profissional tem carácter de excepcionalidade. Porém, a excepcionalidade da dispensa do segredo profissional não deve ser interpretada, nem incutir a ideia de facilidade, no sentido é que é mais fácil proferir uma decisão que se refugia na regra do segredo, ao invés de justificar a sua excepcional dispensa.
Como foi salientado no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 15/2/2018: “O dever de guardar segredo profissional tem as suas raízes no princípio da confiança, no dever de lealdade do advogado para com o constituinte, mas também na dignidade da advocacia e na sua função de manifesto interesse público.
Nas palavras de António Arnauld, o fundamento ético-jurídico do sigilo profissional de advogado radica no princípio da confiança e na natureza social da função forense.
A obrigação de segredo transcende, por consequência, a mera relação contratual, assumindo-se como princípio de ordem pública e representando uma obrigação do advogado não apenas para com o seu constituinte, mas também para com a própria classe, a Ordem dos Advogados e a comunidade em geral.
Isso mesmo foi afirmado no acórdão da Relação de Lisboa de 23.02.2017:
“A par dos interesses individuais da preservação do segredo sobre determinados factos, protegem-se igualmente valores ou interesses de índole supra-individual e institucional que, por razões de economia, poderemos reconduzir à confiança sobre que deve assentar o exercício de certas profissões”.
Por isso, consideram-se abrangidas pelo segredo profissional todas as situações que sejam susceptíveis de significar a violação da relação de confiança entre o advogado e o seu patrocinado e também todas as situações que possam representar quebra da dignidade da função social que a advocacia prossegue. O segredo profissional não é só, em rigor, um dever do advogado por pertencer a uma classe, mas é, e sobretudo, um dever de toda essa classe e, por isso, vinculativo e obrigatório para cada membro dela.
Saliente-se que, além dos factos, o sigilo profissional abrange ainda quaisquer documentos ou outras coisas que se relacionem, directa ou indirectamente, com os factos sujeitos a sigilo – cfr. n.º 3 do artigo 92º” – disponível na base de dados da DGSI; processo n.º 1130/14.7TVLSB.L1.S1.
O citado artigo 92.º, do Estatuto da Ordem dos Advogados, admite expressamente a revelação de factos abrangidos pelo segredo profissional, desde que tal seja absolutamente necessário para a defesa da dignidade, direitos e interesses legítimos do próprio advogado ou do cliente ou seus representantes, mediante prévia autorização do presidente do conselho regional respetivo, com recurso para o bastonário, nos termos previstos no respetivo regulamento.
No seguimento desse Estatuto, o artigo 4.º, n.º 2, do Regulamento n.º 94/2006, de 12 de Junho (Dispensa de Segredo Profissional), prevê que a autorização para revelar factos abrangidos pelo segredo profissional apenas é permitida quando seja inequivocamente necessária para a defesa da dignidade, direitos e interesses legítimos do próprio advogado, cliente ou seus representantes.
Já vimos que as questões são pertinentes e há necessidade de ouvir a testemunha para esclarecer os factos sujeitos a segredo. Mas essa necessidade é absoluta ou inequívoca? Afigura-se que a resposta deverá ser afirmativa, pois não se perspectivam, nem foram apresentadas alternativas válidas (não se aceitando a sugestão do parecer da Ordem dos Advogados quanto à consideração da prova documental subscrita pela própria mandante e seus representantes ou do mandatário), nem objecções invencíveis em face da posição adoptada pelo advogado e pela sua cliente.
O tribunal não põe em causa o princípio da confiança e a natureza social do exercício da advocacia. Porém, não pode deixar de considerar que, no caso concreto, essas preocupações já foram totalmente abaladas e ultrapassadas pela própria postura da cliente por meio do requerimento de interposição do recurso extraordinário de revisão em que desautoriza por completo a actuação do seu advogado, referindo que agiu sem estar munido de poderes especiais para tanto. Não o disse expressamente, mas do teor do requerimento é patente a acusação de infidelidade quanto à actuação do advogado.
Por outro lado, o Exmo. Advogado já veio aos autos manifestar o propósito de justificar a sua actuação, sujeito à obtenção da dispensa do segredo profissional - cfr. requerimento do dia 4/11/2021 e acta da sessão de julgamento do dia 18/4/2023. Afigura-se que as respostas do advogado às questões colocadas pela ré e as que poderão emergir no confronto com a documentação trocada com a cliente justificam a necessidade absoluta ou inequívoca da sua inquirição.
À partida, o propósito manifestado pela testemunha Dr. B é honroso, pois pretende justificar a sua actuação como advogado e como cumpridor da vontade da mandante. É mister que o próprio advogado possa defender a sua dignidade, direitos e interesses legítimos, nas presentes circunstâncias, maxime em face da desautorização e da suspeita de deslealdade e infidelidade subjacente ao presente recurso de revisão intentado pela sua outrora cliente. Perante o Tribunal, os seus Colegas e, eventualmente, no confronto com a autora. Importa igualmente considerar a questão da litigância de má fé que possa estar subjacente à actuação da parte ou do mandatário.
A prevalência do segredo profissional, em face do que foi supra evidenciado, consubstanciaria uma injustiça para a ré e uma indignidade para o advogado. Não se encontra, assim, justificação para permitir que a cliente exponha perante o tribunal a relação com o seu advogado e este seja totalmente amordaçado e silenciado, a pretexto da salvaguarda do segredo profissional.
Em suma, deve prevalecer a descoberta da verdade e a defesa da dignidade, direitos e interesses legítimos do próprio advogado ou da cliente, por meio da inquirição do Exmo. Dr. B e resposta às identificadas questões.
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3. Decisão:
3.1. Pelo exposto, acordam em determinar o levantamento do segredo profissional, por forma que o Exmo. Dr. B preste depoimento às questões que foram supra indicadas pela ré M & J Pestana - Sociedade de Turismo da Madeira, S.A., e às demais que sejam conexas ou pertinentes, nomeadamente em termos de estabelecimento da razão de ciência.
3.2. As custas são a suportar pela autora e recorrente A, que saí vencida, sem prejuízo da decisão quanto ao benefício de apoio judiciário.
3.3. Notifique as partes, o Exmo. Dr. B e o Exmo. Sr. Presidente do Conselho Regional de Lisboa da Ordem dos Advogados.
Lisboa, 8 de Maio de 2025
Nuno Gonçalves
Nuno Luís Lopes Ribeiro
Elsa Melo