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DOAÇÃO A CÔNJUGES
NUA PROPRIEDADE DE IMÓVEL
Sumário
I - A junção de documentos em fase de recurso exige, em primeiro lugar, a identificação dos factos que se pretendem demonstrar ou cuja comprovação se quer colocar em crise, seja por referência às alegações constantes nos articulados, seja por reporte à factualidade apurada na sentença recorrida. II - Em segundo lugar, a produção de prova documental nessa fase depende da verificação do critério da pertinência, o qual não está presente quando os documentos se reportem a matéria factual puramente acessória na economia do litígio e, ao cabo de contas, irrelevante para a decisão do recurso. III - Finalmente, essa junção de documentos está condicionada ao critério da oportunidade, devendo referir-se a factos supervenientes, ou que a parte não sabia antes da decisão que teria de provar, ou cuja junção apenas se tenha tornado necessária por virtude do julgamento proferido, maxime quando este seja de todo surpreendente relativamente ao que seria expectável em face dos elementos já constantes no processo. IV - A falta de apreciação de algum fundamento fáctico ou argumento jurídico, invocado pela parte, mesmo eventualmente susceptível de prejudicar a boa decisão da causa, apenas pode gerar um eventual erro de julgamento, mas não já um vício formal de omissão ou de excesso de pronúncia. V - Na sequência da impugnação da matéria de facto ou oficiosamente, o tribunal de recurso deve expurgar da factualidade julgada provada os pontos que não tenham sido alegados pelas partes e que dessa alegação não constituam factos instrumentais, complementares ou de concretização. VI - Sem prejuízo disso, a impugnação da matéria de facto, através da qual se pretenda aditar factualidade que a parte considera provada, apenas pode ser atendida quando os pontos de facto a acrescentar tiverem relevância para o desfecho da causa. VII - São elementos essenciais para a caracterização de um contrato como de doação, por um lado, o espírito de liberalidade, que consiste na intenção do doador de enriquecer o donatário à custa do próprio património e, por outro, a disposição gratuita de uma coisa ou de um direito ou a assunção de uma obrigação à custa do património do doador e em benefício do donatário. VIII - Este segundo elemento também está presente quando a doação seja constitutiva de um direito que não existia, como tal, na esfera jurídica do doador, como, por exemplo, quando o doador doa a nua propriedade sobre imóvel, reservando para si o seu usufruto, de que previamente não era titular. IX - A interpretação do contrato não pode cingir-se ao nomen iuris atribuído pelos outorgantes e nada obsta a que nele se conjuguem elementos da compra e venda e da doação. X - Verificando-se a existência de uma doação, que beneficiou o ex-cônjuge, após contrair casamento no regime de comunhão de adquiridos, sem declaração expressa de que a doação foi em conjunto a ambos os cônjuges ou de que o bem deve entrar na comunhão, está em causa um bem próprio do primeiro.
Texto Integral
Processo: 2197/22.0T8MAI.P1
ACORDAM OS JUÍZES QUE INTEGRAM O TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO
(3.ª SECÇÃO CÍVEL):
Relator: Nuno Marcelo Nóbrega dos Santos de Freitas Araújo
1.º Adjunto: Carlos Gil
2.º Adjunto: Ana Paula Amorim
RELATÓRIO.
AA, divorciada, titular do NIF ...64, residente na Av. ..., ..., na ..., intentou a presente acção declarativa de condenação, com processo comum, contra BB, divorciado, com o NIF ...54 e domicílio na Av. ..., ..., no mesmo concelho.
Pediu que, com a procedência da acção, seja declarado que o imóvel constituído por habitação no 4º Andar, Apartamento 4.1, do Tipo T3, com entrada pelo nº ...03 da Av. ..., lugares de garagem "BA" e arrumos "BA-1" na cave com entrada pela Rua ..., ..., é bem próprio da A., adquirido a título gratuito na constância do matrimónio, e não tem que ser partilhado com o R., requerendo ainda seja corrigida a descrição nº ...69 – Freguesia ..., da Conservatória de Registo Predial da Maia.
Para o efeito e em síntese, alegou que, embora exista uma escritura de compra e venda em 27/6/2003, do que se tratou e que foi pretendido foi uma doação feita à A. pelos seus pais, pois estes tudo pagaram do dito andar, nada tendo sido suportado pelo dissolvido casal, ficando aqueles com o usufruto e a A. com a raiz ou nua propriedade do imóvel, tanto que o então casal nem tinha dinheiro para tal, pois tinham casado em 2000.
Concluiu que o andar veio à posse e propriedade da A. AA a título gratuito e que essa doação foi só à A. AA embora, apelidada de "compra e venda" apenas por questões fiscais.
Na contestação e em resumo, o R. defendeu a total improcedência da acção, impugnou parte da matéria de facto invocada na petição inicial e afirmou que os pais da A. fizeram questão pessoal de que a raiz ou nua propriedade do imóvel em causa fosse adquirida pelo casal, que não apenas pela sua filha, tendo doado ao casal os meios financeiros para essa aquisição, nunca tendo actuado com o intuito de fugir a impostos e que, caso fosse a intenção dos pais da A. doar o valor para a referida aquisição apenas à filha, teriam pedido ao R. que no ato da escritura de compra e venda declarasse que esta era feita com dinheiros próprios da primeira.
Acresce que a A. fez propostas para a aquisição da parte que pertence ao Réu, conforme emails apresentados nos autos e que, tendo recebido cartas do condomínio em nome da sua mãe, a A. comunicou à administração de condomínio que era comproprietária e solicitou-lhe que metade da contribuição do condomínio fosse exigida à contraparte.
Findos os articulados, foi saneada a instância e selecionados os temas de prova, mediante despacho de 11/1/2023, em audiência prévia.
Todavia, o despacho de 20/6/2023 fixou o valor da causa em € 156.858,10 e determinou a remessa dos autos ao Juízo Central Cível.
Nessa sequência, foi realizada a audiência de julgamento, em duas sessões, que culminou com sentença de 9/9/2024 que, julgando a acção parcialmente procedente, decidiu reconhecer o direito de propriedade da A. sobre a fracção autónoma identificada nos autos, sendo seu bem próprio e não integrado na comunhão conjugal que formou com o réu, não tendo por isso de ser com este partilhada, e absolveu o R. do restante pedido.
De tal decisão, inconformado, o R. interpôs recurso, admitido como apelação, com subida imediata, nos próprios autos e efeito meramente devolutivo.
Rematou com as conclusões seguintes, que se transcrevem na parte que assume relevância para o recurso e evitando repetições:
(…)
Finalizou pedindo que seja revogada a decisão recorrida e substituída por outra, nos pontos concretamente impugnados, julgando-se o pedido totalmente improcedente e, com a alteração à matéria de facto, seja reconhecido que o bem imóvel em causa é bem comum da Recorrida e do Recorrente.
A A. ofereceu resposta, sem conclusões, defendendo a improcedência do recurso, com a argumentação que é justificado sintetizar com os excertos seguintes:
“A ora Apelada intentou uma acção contra o seu ex marido, para fazer prova que um andar adquirido na constância do casamento, celebrado em regime de comunhão de adquiridos, fora pago pelos seus Pais, não tendo o ex casal contribuído com qualquer quantia para a aquisição de tal andar, nem sequer as despesas com a sua aquisição, notariais, registo, IMT.
Aliás, juntou o documento da Relação de Bens, que ambos assinaram aquando do divórcio por mutuo consentimento, onde só aparece um andar que era comum ao casal e uma viatura, mas não o andar que se discute nos autos.
Juntou, também, na P.I. a escritura de compra e venda do andar, outorgada em 27/6/2003, onde se constata que os pais da A. adquiriram o usufruto do referido andar e a ora Apelada a respectiva raiz.
Mais juntou a cópia dos cheques e respectivos recibos que a empresa vendedora entregou ao seu pai, provando, assim, que o ex casal não contribuira com qualquer quantia para a aquisição do referido andar.
A Apelada teve de intentar esta acção porquanto, pese embora o divórcio datar de 4/11/2015, em 13/12/2021, a Apelada foi citada para uma acção de inventário – doc. 2 da PI., onde o Apelante se lembrou de intentar acção de partilha do referido andar”.
“Na Contestação, o R. ensaia uma nova versão, alegando que os pais da A. “terem doado à A. e ao Réu os meios financeiros para essa aquisição.“
Para além de ser falsa esta versão, ainda que assim fosse, o que nunca se concedeu, valia o disposto no artº 1791 do C.C. e o R. ora Apelante, nunca poderia beneficiar da doação dos pais da ora Apelada.
Realizado o julgamento, face à prova documental apresentada e complementada com a prova testemunhal, o M.º Juiz a “quo“ deu como provado que foram os pais da A. que pagaram a totalidade dos preços mencionados na escritura e que o valor em causa fora com a intenção de dispor gratuitamente tal importância a favor da sua filha (ora Apelada), com vista a antecipar uma partilha com a sua irmã.
Insurgiu-se o Apelante contra essa bem estruturada Sentença, fazendo apelo à prova gravada que, na sua opinião, determinaria alteração à matéria de facto.
Desde logo, o Recorrente não dá cumprimento ao que dispõe o artº 639 nº 1 do C.P.C. “… no qual conclui de forma sintéctica, pela indicação dos fundamentos por que pede a alteração ou anulação da Sentença.
Ora, as conclusões são 109 ! e, se as Alegações e com a transcrição de depoimentos, ocupam 25 páginas, as conclusões estão vertidas em 10 páginas.
Por outro lado, salvo melhor opinião, o Recorrente não cumpre o que dispõe o nº 1 do artº 640 do C.P.C..
Quanto aos documentos juntos, uma conta corrente do condomínio, como é óbvio, não tem a virtualidade de fazer prova do que seja, muito menos que o andar em causa pertença ao Recorrente, só porque lhe é dirigida, aliás, parece mesmo ter sido feita de propósito para ser junto com o Recurso, pois até é enviado para a morada do Recorrente e não do apartamento !”.
“Mas, vejamos então, os principais depoimentos que serviram de fundamento para o M.º Juíz “a quo“ julgar a acção procedente e considerar que o andar só à A. pertence e não tem que encetar a partilha com o Recorrente”.
“ (… transcrição das declarações do R.) . Ou seja, o Recorrente confessa que tudo foi pago pelos pais da A. e foi por lapso que na relação de bens do divórcio não colocaram o andar em causa como bem comum.”
“(… transcrição do depoimento da testemunha CC) Confirma que foi o Pai da A. que pagou o apartamento e ela foi com os pais escolher os materiais”.
“(… transcrição do depoimento da testemunha DD) Confirma que os pais da A. deram uma moradia à filha EE e este apartamento à A.”.
“(… transcrição do depoimento da testemunha FF) Reitera que a moradia dos pais da A. ficou para a irmã dela EE, e o andar para AA”.
“(… transcrição do depoimento da testemunha GG) Diz que é prima da A., não tem relações com ela, conviveu com os pais da A., ainda eles viviam na Moradia, muio antes de comprarem o apartamento.
Pelos depoimentos supra trancritos se constata que a versão da A. e os factos que levaram à procedência da acção, estão bem sedimentados e apoiados nos documentos e nos depoimentos prestados.
A A. e o R. nada pagaram, foram os pais da A. que tudo pagaram.
Deram uma Moradia à filha EE e o Apartamento à A. AA e pese embora não quererem dizer, é manifesto que o valor da moradia é muito superior ao de um andar, ou seja, a doação que foi feita à outra filha da moradia é de valor muito superior ao do andar da A..
E, mesmo que fosse uma doação ao ex casal, e não foi, era aplicável o que dispõe o artigo 1791 do C.C..
Porém, e salvo melhor opinião, não foi feita qualquer doação ao ex casal.
Simplesmente, os pais da A. compraram a raiz em nome dela e o usfruto em nome deles, mas tudo foi pago com dinheiro deles, não tendo o ex-casal suportado qualquer valor. E podemos dizer que é unânime a Jurisprudência nesta concreta situação (…)”.
Nada obsta ao conhecimento do recurso, o qual foi admitido na forma e com os efeitos legalmente previstos.
*
OBJECTO DO RECURSO.
Sem prejuízo das matérias de conhecimento oficioso, o Tribunal só pode conhecer das questões que constem nas conclusões, as quais, assim, definem e delimitam o objeto do recurso (arts. 635.º/4 e 639.º/1 do CPC).
Assim sendo, importa em especial apreciar, considerando a ordem indicada na motivação do recurso:
a) se devem ser admitidos e considerados os documentos que o recorrente juntou com o recurso (conclusões 11 a 28);
b) se a sentença recorrida é nula por falta de fundamentação e por excesso de pronúncia (conclusões 29 a 37);
c) se foi validamente deduzida, é justificada e procede a impugnação da matéria de facto, seja no que toca ao facto que o recorrente pretende seja julgado provado, seja quanto ao facto da alínea f) da sentença que entende justificar resposta diversa (conclusões 45 a 63); e
d) se o imóvel em causa nos autos deve considerar-se integrante da comunhão conjugal que existiu entre a A. e o R., e não bem próprio da primeira (conclusões 69 e segs.).
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FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO.
Em sede de factos julgados provados em primeira instância, alguns foram colocados em crise no recurso, na impugnação da matéria de facto, cuja apreciação deverá ocorrer mais adiante.
Assim, sem prejuízo da subsequente consideração dessa impugnação, estão provados os seguintes factos, segundo a decisão recorrida: a) Autora e réu contraíram casamento católico, sem precedência de convenção antenupcial, no dia 30 de Abril de 2000; (art. 1.º da petição inicial) b) Por decisão da Conservatória do Registo Civil da Maia de 4 de Novembro de 2015, transitada no mesmo dia, tal casamento foi dissolvido por divórcio; (art. 1.º da petição inicial) c) A autora é titular da última inscrição de aquisição na Conservatória do Registo Predial da Maia, datada de 17 de Julho 2003, por compra, respeitante a uma fracção autónoma de prédio urbano, composta de habitação no quarto andar, apartamento 4.1., tipo T-3, com entrada pelo nº ...03, um lugar de garagem duplo ao comprido e um lugar de garagem designado por BA, e um arrumo designado por BA-1, na freguesia e concelho ..., assim descrita na supra referida Conservatória sob o n.º ...9/19950821-BA; (art. 6.º da contestação) d) Por escritura pública de 27 de Junho de 2003, exarada de fls. 49 a 50, verso, do livro n.º ...01-F do Cartório Notarial da Maia, junta como documento n.º 3-A com a petição inicial (fls. 29), cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, CC e HH, actuando em representação de A..., Lda., declarou nomeadamente vender a II e JJ, pais da autora, o usufruto da fracção autónoma descrita em c), pelo preço de €59.855,74, e à autora a raiz ou nua propriedade da mesma fracção pelo preço de €89.783,62, tendo a autora e os seus pais declarado, no mesmo acto, aceitar tal venda em tais condições; (art. 9.º da petição inicial) e) Foram os pais da autora que pagaram a totalidade dos preços mencionados em d); (arts. 10.º, 14.º e 23.º da petição inicial) f) A realizarem tal pagamento, os pais da autora fizeram-no com a intenção de dispor gratuitamente de tal importância a favor da sua filha, em vista a antecipar uma futura partilha das suas heranças entre a autora e a sua irmã, com concordância destas. (arts. 9.º, 10.º, e 12.º a 14.º da petição inicial, e 16.º da contestação).
Para além disso, a decisão recorrida não elencou qualquer facto não provado, com relevância para a decisão da causa.
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SOBRE A JUNÇÃO DE DOCUMENTOS.
Juntamente com o recurso, pretende o recorrente a junção e apreciação de documentos constituídos por cartas da administração do condomínio onde se integra a fração autónoma “BA”, nas quais é solicitado ao R., alegadamente com o conhecimento da apelada, o pagamento de 50% da quota parte daquele imóvel nas despesas comuns, por um lado e, por outro, referentes a um endereço electrónico que, segundo afirma, é de uso corrente pela A. e através do qual foi feita proposta ao R. de €90.000,00 para aquisição de metade da fracção e também para cobrar os montantes em dívida ao condomínio.
Três motivos concorrem, porém, no sentido da inadmissibilidade de tais documentos.
Em primeiro lugar, o recorrente não identifica os factos que pretende demonstrar ou cuja comprovação quer colocar em crise com a referida prova documental, seja por referência às alegações constantes nos articulados, seja por reporte à factualidade apurada na sentença recorrida.
Todavia, segundo o art. 423.º/1 do CPC, os documentos destinados a fazer prova dos fundamentos da ação ou da defesa devem ser apresentados com o articulado em que se aleguem os factos correspondentes, ao passo que, para a junção tardia ou fora do referido momento, dispõe o art. 443.º/1 do mesmo diploma que, juntos os documentos e cumprido pela secretaria o disposto no artigo 427.º, o juiz, logo que o processo lhe seja concluso, se não tiver ordenado a junção e verificar que os documentos são impertinentes ou desnecessários, manda retirá-los do processo e restitui-os ao apresentante, condenando este ao pagamento de multa nos termos do Regulamento das Custas Processuais.
Nessa fase ulterior do processo, pois, “a admissão de um documento implica a verificação de dois requisitos cumulativos: pertinência e tempestividade” (cfr. Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 23/1/2023, ao processo 2518/21.2T8VNG-A.P1, relatado por Miguel Baldaia de Morais e acessível na base de dados da DGSI em linha).
Ora, a propósito do requisito da pertinência, a jurisprudência sublinha que “os documentos serão impertinentes quando se destinarem a provar factos estranhos/alheios à matéria da causa”; e “são desnecessários quando se destinarem a provar factos sem qualquer interesse ou relevância para a decisão da causa” (cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 27/4/2021, tirado no processo 2141/18.9T8CTB-A.C1, da autoria de Isaías Pádua e disponível na citada base de dados em linha).
Identicamente, a doutrina afirma que o documento impertinente “diz respeito a factos estranhos à matéria da causa, a factos cuja prova seja irrelevante para a sorte da ação”; e “pertinente desde que se pretenda provar com o mesmo um facto relevante para a resolução do litígio, seja de um modo direto, por se tratar de um facto constitutivo, impeditivo, modificativo ou extintivo, seja de um modo indireto, por se tratar de um facto que permite acionar ou impugnar presunções das quais se extraiam factos essenciais ou ainda por se tratar de um facto importante para apreciar a fiabilidade do outro meio de prova” (cfr. A. Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e L. Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, Almedina, 2018, pp. 511-2).
Em qualquer caso, daqui resulta que a pertinência de um documento decorre de entre ele e os factos que constituem o objeto da acção se estabelecer a relação funcional indicada no art. 423.º/1 do CPC: os documentos devem ser “destinados a fazer prova dos fundamentos da ação ou da defesa”.
E é no requerimento de junção que a parte deve indicar, de forma compreensível, ainda que necessariamente concisa, os motivos susceptíveis de justificar a relevância dos documentos, por referência aos mencionados fundamentos da acção ou da defesa.
Algo que, ao não identificar os factos dos articulados ou da sentença que pretende comprovar ou negar, o recorrente omitiu, e que seria imprescindível para, conjugadamente com o teor e a forma dos documentos, o tribunal tomar a decisão sobre a pertinência da iniciativa probatória da parte quanto à matéria factual com relevo para a decisão da causa.
Para além disso e num segundo plano, crê-se que a justificação para a juntada está relacionada com matéria puramente acessória na economia do litígio e, ao cabo de contas, irrelevante para a decisão do recurso, que na verdade, como se verá, passa tão-somente pela interpretação e aplicação do disposto nos arts. 1722.º, 1723.º e 1791.º do Código Civil.
Na verdade, saber se foi reclamado com conhecimento da A. o pagamento de metade das despesas de condomínio relativas à fracção autónoma que veio reivindicar ou se, por outro lado, ela consentiu na apresentação de proposta de compra de parte do imóvel ao R., são questões que divergem dos requisitos que, nos termos das citadas normas legais, condicionam o mérito da acção.
É certo que a matéria exposta nesses documentos pode denunciar, da parte da A., uma perspectiva diversa da posição que veio defender em juízo, mas a verdade é que, para além de as pessoas serem livres de mudar de opinião, ainda que na sequência de pareceres de outrem, as referidas comunicações estão muito longe de traduzir abuso de direito, que aliás não foi invocado, ou qualquer outro instituto jurídico com pertinência para a questão de mérito.
Neste sentido, aliás, verifica-se que também ao R. e recorrente foram imputados comportamentos susceptíveis de, eventualmente, traduzir uma posição diversa daquela que vem pugnando no litígio, como sucedeu com a assinatura de uma relação de bens a partilhar omissa quanto à fracção disputada nos autos, e nem por isso tal factualidade, a nosso ver correctamente, por ausência da referida essencialidade para o mérito da acção, mereceu resposta expressa na decisão recorrida em sede de factualidade relevante.
Em terceiro lugar, importa ter em atenção que, de acordo com o disposto no art. 425.º do Código de Processo Civil, depois do encerramento da discussão só são admitidos, no caso de recurso, os documentos cuja apresentação não tenha sido possível até àquele momento.
Todavia, como salienta a doutrina, a referida junção de documentos em qualquer estado do processo “tem como limite a prolação da sentença, a não ser, quanto aos pareceres de jurisconsultos, que seja interposto recurso, caso em que a junção pode ser feita dentro do limite fixado no art. 651.º, nº2” (cfr. cfr. A. Abrantes Geraldes e Outros, Ob. cit., p. 502).
De modo que, quando se refere à possibilidade de junção em qualquer estado do processo, a referida norma legal pretende referir-se ao pressuposto essencial de não ter sido concluída ainda a discussão da causa em primeira instância.
Na verdade, a questão da atendibilidade dos documentos em fase de recurso é regida pela disposição especial do art. 651.º daquele diploma.
E que, a título excepcional, apenas admite os documentos cuja apresentação não tenha sido possível em momento anterior (primeira parte do art. 651.º/1), ou cuja junção se tenha tornado necessária por força do julgamento (segunda parte do art. 651.º/1), ou quando se trate de pareceres de jurisconsultos (art. 651.º/2).
Ora, a primeira dessas circunstâncias pressupõe que os documentos visem a prova de factos supervenientes ou que a parte não sabia antes da decisão que teria de provar, e isso não ocorre na situação em apreço, quer relativamente às propostas de aquisição do imóvel, quer à solicitação de pagamento de metade das despesas de condomínio, e que o R. já alegara de forma circunstanciada nos arts. 28 a 32 da contestação.
Ao passo que a segunda, que repousa na necessidade de junção em resultado do julgamento, também não pode considerar-se verificada.
Na verdade, como refere a doutrina, no âmbito do recurso, podem “ser apresentados documentos quando a sua junção apenas se tenha tornado necessária por virtude do julgamento proferido, maxime quando este seja de todo surpreendente relativamente ao que seria expectável em face dos elementos já constantes no processo” (cfr. A. Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, 7.ª ed., p. 286).
No entanto, no caso dos autos, as partes tiveram oportunidade de debater a referida factualidade em primeira instância e o resultado da acção, traduzindo mero acolhimento das razões da demandante, quanto à propriedade exclusiva do imóvel, nada teve de surpreendente, nem se baseou em instituto jurídico que aqueles documentos possam contrariar.
Não ocorreu, pois, qualquer resultado surpreendente na apreciação do direito e dos factos susceptível de justificar a junção documental ora requerida.
Para finalizar este ponto, deve considerar-se que, nos termos gerais do art. 423.º/2 do CPC, a apresentação de tardia de documentos deve ser sempre sancionada com multa processual, independentemente de serem pertinentes ou, ao invés, desnecessários, embora neste caso a condenação permaneça limitada ao “pagamento de uma única multa” (art. 443.º/2 do CPC).
É forçosa, pois, a imposição de tal multa processual, a fixar segundo o prudente critério do tribunal e, no caso em apreço, face ao número dos documentos que a parte pretendeu juntar, em uma unidade de conta, atenta a moldura sancionatória do art. 27.º/1 do Regulamento das Custas Processuais.
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SOBRE A NULIDADE DA SENTENÇA.
O recorrente aponta a existência do vício da nulidade através de uma dupla via: por um lado, por omissão de pronúncia, na medida em que a decisão recorrida deveria ter apreciado o “negócio oneroso de compra e venda, o que não aconteceu” e, por outro, por excesso de pronúncia, dado que “em momento algum, foi pedido ao tribunal para apreciar a proveniência dos meios financeiros para aquisição da fração autónoma”.
Mal se compreende, em face disso, a referência no recurso às als. c) e e) do art. 615.º/1 do CPC, pois não se verificam e a arguição aponta, diversamente, para a previsão da al. d) desse preceito legal, nos termos do qual a sentença é nula sempre que o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento.
Trata-se da consequência legalmente prevista para a infração ao disposto no artigo 608.º/2, do mesmo diploma legal, segundo o qual, o juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras; não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras.
Na interpretação dessa causa da nulidade da decisão, a jurisprudência e a doutrina são consensuais no sentido de que as questões cuja falta de apreciação pelo tribunal é susceptível de a gerar identificam-se com os pedidos formulados, com a causa de pedir ou com as excepções invocadas, desde que não prejudicadas pela solução de mérito encontrada para o litígio (cfr. Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 23/5/2022, processo nº588/14.9TVPRT, relator Pedro Damião e Cunha, disponível na base de dados da Dgsi em linha).
Está em causa, pois, noutra terminologia, mas com idêntico significado, a necessidade de conhecimento pelo tribunal das questões temáticas centrais, as quais importa não confundir com factos, argumentos, razões ou considerações (cfr. Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 20/5/2024, relativo ao processo nº3489/22.3T8VFR e disponível no mesmo sítio).
Na verdade, diferentes das questões a decidir, relevantes para a sentença, são os argumentos e as considerações alegados pelas partes em defesa dos seus pontos de vista, que não constituem questões no sentido do art. 608.º/2 do Código de Processo Civil.
Desta forma, a falta de apreciação de algum fundamento fáctico ou argumento jurídico, invocado pela parte, mesmo eventualmente susceptível de prejudicar a boa decisão sobre o mérito das questões suscitadas, apenas pode determinar um eventual erro de julgamento, mas não já um vício (formal) de omissão de pronúncia.
Há que distinguir, pois, as verdadeiras questões dos meros “raciocínios, razões, argumentos ou considerações”, invocados pelas partes e de que o tribunal não tenha conhecido ou que o tribunal tenha aduzido sem invocação das partes.
Num caso como no outro não está em causa omissão ou excesso de pronúncia, mas um possível erro de julgamento.
É precisamente, segundo pensamos, o que se passa quanto às objecções suscitadas pelo recorrente: se acaso o tribunal deu atenção à entrega do valor monetário, quando deveria ter cuidado da análise da compra e venda, apenas pode ter incorrido em erro de julgamento, posto que a questão que lhe foi posta em apreciação, e à qual respondeu, diz respeito a saber se, no enquadramento jurídico que é livre de usar, a fracção autónoma identificada nos autos é bem próprio da A. ou integra o património conjugal.
Note-se em acréscimo que, para além de, no plano lógico, a falta de fundamentação ser incompatível com o excesso de pronúncia, a suposta nulidade apontada pelo recorrente, na primeira parte, está relacionada com a interpretação do contrato, como compra e venda e/ou como doação, celebrado pelos pais da A., pois entende que a qualificação correcta é a primeira.
Algo que, sem dúvida, está no âmbito da livre actividade do tribunal, na indagação e interpretação dos factos e da lei, nos termos do art. 5.º/3 do CPC e de acordo com a máxima de que iura novit curia.
Enquanto, na outra parte, a arguição prende-se com a impugnação da matéria de facto, quanto à proveniência dos meios financeiros para aquisição da fração autónoma, pelo que, na verdade, o que o apelante pretende é que esse facto não seja considerado.
Em qualquer caso, a ter o recorrente razão neste plano, ocorreu erro de julgamento.
Todavia, como se disse, embora a não apreciação de algum fundamento jurídico ou fáctico invocado pela parte, possa, eventualmente, prejudicar a boa decisão sobre o mérito das questões suscitadas, daí apenas pode decorrer um eventual erro de julgamento (“error in iudicando”), mas não já um vício (formal) de omissão/excesso de pronúncia.
Improcedem, por isso, as conclusões 29 a 37 do recurso.
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SOBRE A IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO:
Como se sabe, a admissibilidade do recurso em matéria de facto depende do cumprimento de alguns ónus.
De acordo com o disposto no artigo 640º/1 do Código de Processo Civil, é imposto ao recorrente que especifique:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados; b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida; c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas
Enquanto o número 2 prevê que quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes.
Por outro lado, nos termos do art. 663.º/2 do CPC, o acórdão principia pelo relatório, em que se enunciam sucintamente as questões a decidir no recurso, expõe de seguida os fundamentos e conclui pela decisão, observando-se, na parte aplicável, o preceituado nos artigos 607.º a 612.º.
Ao passo que, segundo o disposto no art. 607.º do mesmo diploma legal, deve o juiz discriminar os factos que considera provados (nº3) e toma ainda toma ainda em consideração os factos que estão admitidos por acordo, provados por documentos ou por confissão reduzida a escrito (nº4).
Finalmente, dispõe o art. 662º/1 que a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.
Daqui resulta que certas patologias da decisão da matéria de facto podem ser conhecidas oficiosamente pelo tribunal de recurso, ao passo que, no caso de erro de julgamento sobre factos relevantes, a apreciação factual a empreender pela segunda instância depende da devida impugnação da parte.
De acordo com a doutrina, na presença de erros de valoração dos meios de prova, “a Relação, limitando-se a aplicar regras vinculativas extraídas do direito probatório material, deve integrar na decisão o facto que a primeira instância considerou não provado ou retirar dela o facto que ilegitimamente foi considerado provado (…), alteração que nem sequer depende da iniciativa da parte” (A. Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, 7.ª ed., pp. 335-6).
No caso dos autos, porém, a distinção não se afigura relevante, visto que, como se verá e fundamentará de seguida, a matéria factual que justifica a intervenção e a correcção deste Tribunal da Relação do Porto foi igualmente objecto de impugnação por parte dos recorrentes.
Na verdade, a análise do recurso evidencia, segundo entendemos, que o recorrente cumpriu as exigências previstas no art. 640.º do CPC, indicando os concretos pontos de facto que, a seu ver, foram incorretamente julgados, os meios probatórios que, na mesma óptica, justificariam outra decisão e a concreta resposta que considerara ser justificada para a referida factualidade.
Sendo certo que, entre os pontos impugnados da factualidade julgada provada, está incluído o facto provado na alínea f), que reza assim: a realizarem tal pagamento, os pais da autora fizeram-no com a intenção de dispor gratuitamente de tal importância a favor da sua filha, em vista a antecipar uma futura partilha das suas heranças entre a autora e a sua irmã, com concordância destas.
De acordo com a decisão recorrida, este facto foi extraído dos artigos 9.º, 10.º, e 12.º a 14.º da petição inicial e 16.º da contestação.
Todavia, vistas essas alegações, nada se vislumbra quanto à disposição do dinheiro e à mencionada antecipação da futura partilha das heranças.
Como decorre, muito claramente, da citação desses textos:
· Artigo 9: Pese embora na sua aquisição existir uma escritura de compra e venda em 27/6/2003 – doc. 3-A, a verdade é que se tratou duma doação que os pais da Requerida lhe fizeram;
· Artigo 10: Pois tudo foi pago por eles e a A. e o R., ex casal, nada pagaram do dito andar;
· Artigo 12: E tanto quanto se lembra, na altura a sisa que os pais pagaram na compra do dito andar, era muito inferior ao valor que seria devido se porventura declarassem que era uma doação e, por isso, a opção por uma compra e venda só para efeitos fiscais;
· Artigo 13: Pois, o que eles queriam era doar o andar em causa à filha e ora A.;
· Artigo 14: Daí que a A. nada pagou pelo imóvel pois foram os pais que pagaram tudo;
· Artigo 16 da contestação: Razão pela qual fizeram questão pessoal de que a raiz ou nua propriedade do imóvel em causa fosse adquirida pelo casal e não apenas pela sua filha, tendo doado à Autora e ao Réu os meios financeiros para essa aquisição.
Assim, onde a A. alega que a vontade real dos seus pais correspondia à doação do imóvel à filha, o tribunal recorrido alterou o objecto da intenção, passando a incidir sobre a disposição da importância monetária, e aditou outra parte que, em termos factuais, é nova e diversa, a partilha da herança em vida, fazendo-o sem correspondência com qualquer alegação das partes.
Segundo pensamos, mercê desta alteração e aditamento, as respostas do tribunal recorrido afastam-se claramente da forma como a A. estruturou a acção e fundamentou o seu pedido, em suma, perdem a indispensável conexão com a causa de pedir.
Não sendo possível, por outro lado, considerar as referidas intenção e antecipação da herança como factos instrumentais, complementares ou concretizadores que o art. 5.º/2 do CPC legitimaria, sob certos requisitos, a considerar na factualidade relevante.
Em consequência, é justificado eliminar o facto da alínea f) da matéria provada, o que se decide.
*
Por outro lado, como tem sustentado a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, “nada impede a Relação de apreciar se a factualidade indicada pelos recorrentes é ou não relevante para a decisão da causa, podendo, no caso de concluir pela sua irrelevância, deixar de apreciar, nessa parte, a impugnação da matéria de facto, por se tratar de ato inútil” (cfr. Acórdão de 09/02/2021, tirado no processo 27069/18.3T8PRT.P1.S1, da autoria de Maria João Vaz Tomé e disponível em texto integral, em linha, no sítio jurisprudencia.pt).
Entendimento que, aliás, tem sido repetidamente defendido, mesmo em arestos mais recentes, destacando-se que “de acordo com os princípios da utilidade e pertinência a que estão sujeitos todos os atos processuais, o exercício dos poderes de controlo sobre a decisão da matéria de facto só é admissível se recair sobre factos com interesse para a decisão da causa, segundo as diferentes soluções plausíveis de direito que a mesma comporte”.
Para concluir, em conformidade, que “o dever de reapreciação da prova por parte da Relação apenas existe no caso de o recorrente respeitar os ónus previstos no art. 640.º, n.º 1 do CPC, e, para além disso, a matéria em causa se afigurar relevante para a decisão final do litígio” (cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 3/11/2023, relatado por Mário Belo Morgado, no processo 835/15.0T8LRA e acessível na base de dados da Dgsi em linha).
É a esta luz, em nossa perspectiva, que devem ser analisadas as alterações à matéria de facto pretendidas pelo recorrente.
Assim, em primeiro lugar, pretende o aditamento do seguinte ponto: o Réu, mesmo não tendo assinado a escritura pública de compra e venda, assistiu e esteve presente no momento da sua celebração.
Para além disso, requer a alteração do facto da alínea f) para a redacção que se segue: os pais da autora, a realizarem tal pagamento, e não fazendo menção na escritura pública à propriedade do bem pertencer exclusivamente à autora, como bem próprio, fizeram-no com a intenção de que a fração autónoma “BA” fosse compropriedade quer da Autora, quer do Réu.
Todavia, salvo o devido respeito, não se vislumbra interesse ou relevância nas indicadas modificações.
Por um lado, a factualidade em causa é, novamente aqui, estranha à presença dos requisitos legais que condicionam o mérito da acção e que estão previstos nos arts. 1722.º, 1723.º e 1791.º do Código Civil.
Por outro, porque não nos parece que assuma importância a questão da presença do R. na escritura pública de compra e venda, nem a matéria relativa à intenção que presidiu ao acto em causa, nem tão-pouco a uma vontade de uma compropriedade a beneficiar também o R.
Neste sentido, a nosso ver, não interessa saber o que os pais da A. quiseram fazer; importa, isso sim, verificar o que eles realmente fizeram.
E para o mérito do recurso também não importa indagar se os pais quiseram dispor de forma gratuita da importância empregue ou do imóvel a favor da A., até porque é evidente que isso sucedeu; antes, o que é relevante e mesmo decisivo para o desfecho da causa é averiguar se, com a sua conduta, e face à lei, os pais excluíram ou não o R. dessa disposição gratuita.
Em consequência, deve considerar-se inútil e irrelevante no âmbito do recurso a impugnação da matéria de facto.
Com efeito, vistos os factos que se pretende alterar, de um lado, e aqueles que têm de manter-se inalterados, por não terem sido objecto de qualquer censura, nem merecerem intervenção oficiosa, de outro, deve concluir-se pela irrelevância das alterações propostas para a apreciação do mérito da causa.
Como de seguida, em sede de apreciação jurídica, se irá fundamentar de modo mais detalhado, no sentido de confirmar a irrelevância da averiguação dos factos pretendidos aditar a que se reportava a impugnação da matéria de facto empreendida pelo recorrente.
Improcede, assim, também quanto à matéria de facto, o presente recurso, sem prejuízo da correcção da factualidade acima operada na sequência da impugnação do recorrente.
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O DIREITO: SOBRE A NATUREZA DE BEM COMUM OU BEM PRÓPRIO DO IMÓVEL EM CAUSA NOS AUTOS.
Em tema de apreciação de direito, a primeira circunstância que cumpre considerar, em resultado da análise do facto provado na alínea a), é o regime de bens do casamento que anteriormente uniu A. e R. e que, na falta de convenção antenupcial, era o de comunhão de adquiridos (cfr. art. 1717.º do CC).
Recorde-se que o regime de bens no casamento é constituído por um acervo de normas destinadas a vigorar no plano patrimonial enquanto perdura a comunhão conjugal e, igualmente, para a partilha dos bens quando da cessação das relações patrimoniais entre os cônjuges, como sucede no caso do divórcio, litigioso ou por mútuo consentimento.
Neste sentido, refere a doutrina que “a função primacial do regime de bens em sentido estrito é a de definir a repartição dos bens por várias massas patrimoniais. No caso dos regimes de comunhão, realiza-se uma distinção entre os bens integrados no património comum e os bens integrados nos patrimónios próprios de cada um dos cônjuges, regras que, em princípio, vão ser aplicadas no momento da partilha”, cuja “finalidade última é a dissolução do património comum e a atribuição dos bens nele incluídos a cada um dos ex-cônjuges” (cfr. Rita Lobo Xavier, Regime da Comunhão Geral e Partilha Subsequente ao Divórcio, in Estudos de Homenagem ao Prof. Doutor José Lebre de Freitas, Vol. I, pág. 538).
Por outro lado, várias das regras inerentes a cada um dos regimes de bens do casamento assumem natureza imperativa, seja quanto ao seu teor, seja no tocante ao seu momento de aplicação, de tal modo que não podem ser alteradas nem antecipadas pelas partes.
Sob essa perspectiva, a jurisprudência tem sentenciado que “os cônjuges não podem modificar o seu estatuto patrimonial depois da celebração do casamento, não podendo, designadamente, bens comuns ser atribuídos, em propriedade exclusiva, a qualquer deles, ou os bens próprios entrar na comunhão ou ser transmitidos, onerosa ou irrevogavelmente, de um para o outro, com excepção do regime das doações entre casados, não havendo lugar à alteração do valor das massas patrimoniais do casal”.
Acrescentando que “sendo a partilha dos bens do casal uma consequência da cessação das relações patrimoniais entre os cônjuges, a que, obviamente, só se procede, após esta cessação, por mútuo acordo, é, porém, nula quando realizada, na pendência do casamento e antes de findas as relações patrimoniais” (cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 2/11/2010, tirado no processo 726/08.0TBESP-D, da autoria de Hélder Roque e disponível em texto integral em www.dgsi.pt).
Vigorando entre os ex-cônjuges, no caso dos autos, quando casados, o regime de comunhão de adquiridos, a resolução do litígio, segundo pensamos, terá de depender de modo decisivo da interpretação e aplicação do disposto nos arts. 1722.º/1, 1723.º e 1791.º do Código Civil.
De acordo com o primeiro, são considerados próprios dos cônjuges: a) Os bens que cada um deles tiver ao tempo da celebração do casamento; b) Os bens que lhes advierem depois do casamento por sucessão ou doação; c) Os bens adquiridos na constância do matrimónio por virtude de direito próprio anterior.
Por outro lado, prescreve o referido art. 1723.º do CC, com o propósito de densificar a estatuição dal. c) do preceito legal anterior, que conservam a qualidade de bens próprios: a) Os bens sub-rogados no lugar de bens próprios de um dos cônjuges por meio de troca directa; b) O preço dos bens próprios alienados; c) Os bens adquiridos ou as benfeitorias feitas com dinheiro ou valores próprios de um dos cônjuges, desde que a proveniência do dinheiro ou valores seja devidamente mencionada no documento de aquisição, ou em documento equivalente, com intervenção de ambos os cônjuges.
Finalmente, já no âmbito dos efeitos da dissolução do casamento por divórcio, e mercê do art. 1791.º/1 do CC, cada cônjuge perde todos os benefícios recebidos ou que haja de receber do outro cônjuge ou de terceiro, em vista do casamento ou em consideração do estado de casado, quer a estipulação seja anterior quer posterior à celebração do casamento.
É neste quadro legal, e sem olvidar as presunções resultantes do registo predial (art. 7.º do CReg.Predial) e a regra geral de que, no regime da comunhão de adquiridos, fazem parte do património conjugal todos os bens adquiridos pelos cônjuges na constância do matrimónio que não sejam exceptuados por lei (art. 1724.º/al. b) do CC), que se movem as partes.
O que fazem, deve destacar-se, sem prejuízo do respeito devido, num quadro de acentuada dúvida e contradição, no qual ninguém parece saber ao certo a quem pertence o imóvel, certo que a A., que pretende o reconhecimento em juízo da propriedade exclusiva sobre o bem, parece ter anteriormente reclamado da contraparte o pagamento de metade das respectivas despesas de condomínio, e que o R., que defende a compropriedade sobre a fracção, terá assinado em momento prévio uma relação de bens onde ela não consta.
Para resolver o diferendo, o tribunal recorrido convocou o regime previsto no art. 1723.º/al. c) do CC, mas, a nosso ver, fê-lo de forma desacertada.
Sobre esse preceito legal, a doutrina e a jurisprudência, durante muito tempo, manifestaram divergências a respeito da função da declaração relativa à proveniência do dinheiro ou valores utilizados na aquisição (desde que a proveniência do dinheiro ou valores seja devidamente mencionada no documento de aquisição, ou em documento equivalente, com intervenção de ambos os cônjuges).
Estava em questão saber se aquela menção constituía uma “exigência cuja finalidade é provar a sub-rogação de direitos próprios, a qual, nesta sede, não resulta de uma conexão objectiva, como sucede com a sub-rogação directa? Ou, diferentemente, aquela declaração deve ser tida como um elemento substancial da própria sub-rogação?” (Adriano M. Ramos de Paiva, A Comunhão de Adquiridos, Das Insuficiências do Regime, p. 166).
A discordância de entendimentos, que era muito significativa (elencada na doutrina, entre outros, por J. P. Remédio Marques, Direito da Família, Estudos, Gestlegal, pp. 129 e 130), foi resolvida, pelo menos por ora, através do Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 12/2015 (publicado no DR n.º 200/2015, Série I, de 2015-10-13).
Nos termos dessa decisão, “a jurisprudência maioritária deste Supremo Tribunal vem acolhendo o entendimento que o artigo 1723.º, c) do Código Civil, ao determinar que no regime de comunhão de adquiridos, os bens adquiridos com dinheiro ou valores próprios de um dos cônjuges só conservam a qualidade de bens próprios, desde que a proveniência do dinheiro ou dos meios seja devidamente mencionada no documento da aquisição, ou em documento equivalente com intervenção de ambos os cônjuges, só tem aplicação quando estiverem em jogo interesses de terceiros, circunstancialismo que não ocorre, nem no Acórdão-fundamento, nem no Acórdão recorrido”.
Para concluir que, “estando em causa apenas os interesses dos cônjuges, que não os de terceiros, a omissão no título aquisitivo das menções constantes do art. 1723.º, c) do Código Civil, não impede que o cônjuge, dono exclusivo dos meios utilizados na aquisição de outros bens na constância do casamento no regime supletivo da comunhão de adquiridos, e ainda que não tenha intervindo no documento aquisitivo, prove por qualquer meio, que o bem adquirido o foi apenas com dinheiro ou seus bens próprios; feita essa prova, o bem adquirido é próprio, não integrando a comunhão conjugal”.
Estabeleceu-se, assim, não obstante a admissão de uma presunção de integração dos bens no património conjugal, que aliás sempre resultaria das regras do registo (art. 7.º do CReg.Predial), a permissão de qualquer prova, ao cônjuge que invoque a propriedade exclusiva do bem, no sentido de demonstrar a titularidade do dinheiro ou valores empregues na aquisição, desde que apenas no confronto com o outro ex-cônjuge e sem envolver terceiros.
Ou seja, como explica Remédio Marques, “a circunstância de a doutrina (e a jurisprudência) maioritária sustentar uma interpretação restritiva da citada alínea c) apenas significa que o convencimento do tribunal acerca da proveniência do dinheiro ou valores não está submetido a uma prova tarifada ou fixa” (Ob. cit., p. 131).
Todavia, no caso dos autos, esse convencimento não é possível visto que, face ao facto provado na alínea e), está assente que foram os pais da autora quem pagou a totalidade dos preços relativos à aquisição da nua propriedade e do usufruto sobre a fracção autónoma reivindicada.
Assim sendo, impõe-se concluir que o dinheiro ou valores utilizados na aquisição do bem não pertenciam à A. nem nunca entraram na sua esfera jurídica, pois pertenciam a pessoas diversas, os seus pais, o que, forçosamente, impede a aplicação ao caso do disposto no art. 1723.º/al. c) do CC.
Neste sentido, em nossa perspectiva, e salvo o devido respeito por outra, não é legítima a elaboração de um raciocínio que coloque na titularidade da A., porque a compra da nua propriedade sobre o imóvel foi a seu favor, os valores pecuniários empregues na aquisição do imóvel.
Na verdade, pensamos que para a aplicação do regime previsto no art. 1723.º/al. c) do CC seria indispensável a verificação de matéria factual denunciando que, em momento prévio à aquisição do imóvel, o valor económico correspondente ao preço já pertencia à demandante.
No mesmo sentido, aponta a circunstância de todas as quitações (reforços de sinal e liquidação, apresentadas juntamente com a petição inicial) terem sido emitidas a favor do pai da A., para além de estar comprovado de que foram os pais quem fez o pagamento.
De igual forma, nada autoriza a afirmar que os pais da A. dispuseram ou ofereceram à filha o valor pecuniário correspondente ao preço, atenta a óbvia razão de ele ter sido entregue ao vendedor e porque sobre a quantia em causa a A. nunca teve disponibilidade ou o poder de dispor.
Finalmente, verifica-se que a própria A. reconhece que não teve acesso aos indicados meios pecuniários, ao referir que “nada pagou pelo imóvel pois foram os pais que pagaram tudo” (art. 14 da petição inicial).
Em suma, entendemos que a verificação da sub-rogação real indirecta, a que alude o referido preceito legal, está inviabilizada porque os valores monetários jamais entraram na esfera jurídica da requerente.
Acresce que o recurso à referida norma do art. 1723.º/al. c) do CC implica a verificação de outros requisitos, um dos quais também não está presente na situação em apreço, pois “a intervenção do cônjuge do adquirente no negócio aquisitivo é uma exigência cujo não cumprimento impede o funcionamento da sub-rogação real indirecta de bens próprios nos regimes de comunhão” (cfr. Adriano Ramos Paiva, Ob. cit., p. 170).
Todavia, no caso dos autos, está igualmente verificado que o R. não interveio na escritura de aquisição e não expressou concordância atendível relativa à circunstância de nela ter sido utilizado dinheiro da propriedade do outro cônjuge.
No sentido da inviabilidade de aplicação do referido preceito legal, aliás, verifica-se também a ausência de qualquer referência a respeito dele, para fundamentar o pedido, em toda a petição inicial.
Com efeito, vista detalhadamente aquela peça processual, constata-se que a A., para além de reconhecer que “nada pagou pelo imóvel pois foram os pais que pagaram tudo” (art. 14), apenas invoca, a título de respaldo legal da sua pretensão, a norma do art. 1791.º do Código Civil.
No entanto, segundo se crê, também essa invocação carece de acerto para a resolução jurídica do litígio.
Inicialmente consagrada como uma sanção para o cônjuge considerado culpado no divórcio, a estatuição do art. 1791.º foi alterada com a Lei 61/2008, de 31/10, passando a dispor, em consequência do desaparecimento da culpa como fundamento da dissolução conjugal, que ambos os ex-cônjuges perdem todos os benefícios recebidos ou que haja de receber do outro cônjuge ou de terceiro, em vista do casamento ou em consideração do estado de casado, quer a estipulação seja anterior quer posterior à celebração do casamento.
Com o art. 1790.º do CC, aquela norma legal partilha o desígnio de impedir que o casamento seja uma forma de aquisição de bens, mas dele se aparta por ser apenas aplicável aos casamentos dissolvidos por divórcio que, como no nosso caso, haviam sido estabelecidos no regime de comunhão de adquiridos.
Já à luz da anterior redacção, aliás, a doutrina especializada salientava que as preocupações inerentes ao art. 1791.º do CC não se limitavam à fixação de uma sanção para o ex-cônjuge culpado pelo divórcio, estendendo-se também à ideia de evitar, de uma forma expedita e sem necessidade de invocação de justa causa, o enriquecimento ilegítimo como mero resultado do casamento.
Referindo, nesse sentido, que “não se trata só de castigar o cônjuge que contribuiu para o malogro da comunhão de vida”.
Para acrescentar: “é que, se os benefícios concedidos ocorreram por ocasião e por causa da existência de uma relação conjugal, é óbvio que a sua manutenção, para além da dissolução desta, constituiria um enriquecimento injustificado. E se tais benefícios tivessem de ser revogados pelo cônjuge inocente, poder-se-ia pôr em risco a realização da equidade nas recíprocas relações patrimoniais. Daí a possibilidade de tais benefícios caducarem sem terem de ser expressamente postos em causa pelo cônjuge que os concedeu” (cfr. Rita Lobo Xavier, Limites à Autonomia Privada na Disciplina das Relações Patrimoniais Entre os Cônjuges, p. 417).
Assim sendo, qual ou quais os motivos para considerar que é errada a convocação do art. 1791.º do CC ao caso dos autos?
Por um lado, e numa primeira aproximação, porque os elementos dos autos são extremamente parcos e, por isso, insuficientes, a nosso ver, para concluir que está em causa um “benefício recebido em vista do casamento ou em consideração do estado de casado”.
É certo, não obstante, que a jurisprudência e a doutrina têm preconizado um sentido particularmente amplo para o referido conceito de benefícios.
Nestes termos, segundo a jurisprudência, estão abrangidos nessa realidade jurídica “as doações entre esposados, entre vivos ou por morte, feitas em vista do futuro casamento, e as doações feitas por terceiro em vista do casamento; as doações entre cônjuges, as doações feitas a ambos os cônjuges por familiar de um deles em consideração do estado de casado do beneficiário e as deixas testamentárias, em forma de instituição de herdeiro ou de legado, com que um cônjuge tenha beneficiado o outro cônjuge” (cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12/12/2023, processo 2800/20.6T8FAR.E, sendo relatora Maria João Vaz Tomé e disponível na citada base de dados).
Enquanto a doutrina, de forma equivalente, refere que “por benefícios pretende-se abranger as liberalidades recebidas ou a receber de outro cônjuge ou de terceiro tendo em vista o casamento ou o seu estado de casado. Assim, nele se incluem as doações entre esposados, entre vivos ou por morte, as doações feitas por terceiros em vista do casamento, nomeadamente as efectuadas por familiares dos esposados (…), as deixas testamentárias em forma de legado ou de instituição de herdeiro” (cfr. Tomé d´Almeida Ramião, O Divórcio e Questões Conexas, Regime Jurídico Actual, pp. 160-1).
No entanto, quer por força da associação que o art. 1791.º do CC tinha e continua a ter com o art. 1766.º do mesmo diploma, que persiste a referir-se à culpa (cfr. Rita Lobo Xavier, Limites… cit., p. 406), quer por consideração ao elemento literal da norma, quer ainda pela injustificada amplitude que ela teria noutra interpretação, deve entender-se, segundo pensamos, que os benefícios que nele estão em causa têm de limitar-se aos que foram concedidos por causa do casamento e enquanto ele perdurar.
Exigindo, pois, no plano factual, a presença de alguma circunstância que evidencie com segurança estarem em causa liberalidades atribuídas especificamente em atenção ao casamento ou ao estado de casados dos beneficiários ou, pelo menos, donativos entregues enquanto perdurar o casamento deles.
Algo que, no caso dos autos, face à exiguidade dos factos provados, não pode, a nosso ver, dar-se por verificado.
Por outro lado, e decisivamente, o art. 1791.º do CC não serve de amparo legal à pretensão da A. porque o seu regime, para além da automaticidade, vale apenas a favor do doador.
Um exemplo de aplicação dessa norma no âmbito da jurisprudência vem demonstrar isso mesmo.
Assim, de acordo com o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 12/7/2017, “a doação efetuada a um dos cônjuges após a celebração do casamento, para integrar a comunhão conjugal da donatária, recai no âmbito das liberalidades previstas no artigo 1791º do CC”.
De maneira que “tal doação caduca por força da dissolução do casamento, por força do artigo 1791º, revertendo automaticamente ao património do doador” (cfr. processo nº2884/16.1T8CBR.C1, relator Maria João Areias, disponível em dgsi.pt).
Todavia, sendo evidente, no caso dos autos, que os doadores foram os pais da A., daí necessariamente resulta a falta de legitimidade da A., por si e no seu exclusivo interesse, requerer a reversão do imóvel, que apenas poderia ser reconhecida, se fosse caso disso, à herança dos pais.
Para além do exposto, parece-nos ainda destituída de qualquer sentido, salvo o devido respeito, a tese ensaiada na petição inicial respeitante a uma suposta simulação, alegadamente por questões fiscais, com base na alegação de que “na altura a sisa que os pais pagaram na compra do dito andar, era muito inferior ao valor que seria devido se porventura declarassem que era uma doação” (art. 12 da petição inicial).
Na verdade, à vista dos factos provados, sem embargo da sua singeleza, tudo leva a crer que os pais da A. pretenderam exactamente o que lograram fazer: através da compra (necessariamente onerosa) do imóvel, adquirir o respectivo usufruto e, ao mesmo tempo, oferecer (forçosamente de forma gratuita) a nua propriedade à A., uma das suas duas filhas.
E aqui vamos encontrar, em nossa opinião e salvo o devido respeito por outra, o ponto essencial para a resolução jurídica do litígio, centrado no devido enquadramento normativo do contrato celebrado pelos pais da A., na parte atinente à sua relação com a filha.
De acordo com o disposto no art. 940.º do Código Civil, doação é o contrato pelo qual uma pessoa, por espírito de liberalidade e à custa do seu património, dispõe gratuitamente de uma coisa ou de um direito, ou assume uma obrigação, em benefício do outro contraente.
Ora, debruçando-se sobre a mencionada noção legal, a doutrina tem destacado os dois elementos que, dentre outros com menor importância, servem para verdadeiramente caracterizar a doação.
Assim, em primeiro lugar, o espírito de liberalidade, que “consiste na intenção do doador de beneficiar o donatário ou até, mais precisamente, na intenção do doador de enriquecer o donatário à custa do próprio património (…), em rigor, partilhada pelas partes”.
E numa segunda posição, mas não menos importante, “a disposição gratuita de uma coisa ou de um direito ou a assunção de uma obrigação à custa do património do doador e em benefício do donatário”, elemento no qual, sem prejuízo do “papel nuclear a hipótese da doação translativa, isto é, da doação pela qual se transmite a propriedade de uma coisa ou a titularidade de um direito”, também se reconhece que “a doação possa ser constitutiva de um direito que não existia, como tal, na esfera jurídica do doador”, como, “por exemplo, quando o doador doa um usufruto sobre uma coisa, reservando-se a propriedade nua da mesma” (cfr. Júlio Vieira Gomes, Comentário ao Código Civil, Direito das Obrigações, Contratos em Especial, pp. 233-7).
Segundo nos parece, estas duas características estão manifestamente verificadas no caso presente, no contrato celebrado pelos pais da A., na parte em que ele se relaciona com a sua filha, vertente na qual, tanto se surpreende a intenção de beneficiar a destinatária, em detrimento do património dos doadores, como também a efectivação de tal atribuição mediante a constituição de um direito (de nua propriedade) na esfera jurídica dela.
Daqui resultando que, afinal, os pais da A. doaram a fração autónoma à filha, por uma via indirecta mas inequívoca, em virtude da potencial expansão da nua para a propriedade plena no momento de extinção do usufruto.
E que é sobre o direito da nua propriedade, primeiro, e sobre o imóvel, depois – e não sobre o dinheiro – que a A. passou a beneficiar do poder de livremente dispor, como é típico da propriedade.
O que, inevitavelmente, nos conduz à aplicação da regra do art. 1722.º/1, al. b), do CC, segundo o qual, são considerados próprios dos cônjugesos bens que lhes advierem depois do casamento por sucessão ou doação.
Verificando-se, identicamente e em pleno, neste caso, o fundamento material que, segundo a doutrina, explica a opção legal de incluir o bem ou direito na esfera patrimonial de um dos cônjuges, apesar da aquisição em momento posterior ao casamento e do regime de comunhão de adquiridos.
Como afirma J. P. Remédio Marques, “compreende-se que estes bens ingressem na massa dos bens próprios do cônjuge adquirente, uma vez que não resultam do esforço partilhado dos cônjuges que está na génese da afetação à massa dos bens comuns no regime de comunhão de adquiridos” (cfr. Direito da Família cit., p. 121).
Não subsistindo qualquer dúvida que a aquisição do imóvel em disputa, no caso dos autos, não resultou do esforço comum dos cônjuges.
A nosso ver, não pode limitar-se a análise e interpretação do contrato outorgado pelos pais da A. ao nomen iuris de compra e venda e apenas ao facto (que a alínea d) da matéria provada reflecte) de na escritura pública de 27 de Junho de 2003, a firma A..., Lda. ter declarado vender a II e JJ, pais da A., o usufruto da fracção autónoma, e à A. a nua propriedade do mesmo imóvel, tendo a A. e seus pais declarado, aceitar tal venda em tais condições.
É necessário igualmente, no encalço do melhor enquadramento jurídico desse contrato, tomar em conta o facto (reflectido na al. e) da matéria provada), contemporâneo do contrato e importante para a sua qualificação, de que foram os pais da autora quem pagou a totalidade dos preços relativos à constituição do usufruto e da nua propriedade.
Desenhando-se, neste quadro global, a constituição de um contrato misto, permitido pela lei (cfr. art. 405.º/1 do CC), que conjuga elementos da compra e venda, a favor dos pais, e da doação, em benefício da filha.
Acresce que, se a assunção de uma obrigação de outrem, nos termos do art. 940.º do CC, integra doação, e o mesmo sucede, por maioria de razão, com a satisfação dessa obrigação, é indiscutível a existência de uma componente própria desse contrato na compra e venda ajuizada nos autos, na parte relativa à A., visto que os pais satisfizeram a obrigação do pagamento do preço para que a filha beneficiasse da nua propriedade sobre o imóvel.
Tudo se passa, ao cabo de contas, como um contrato de compra e venda e doação, apenas se saltando ou omitindo a parte da aquisição da raiz a favor dos pais da A. a fim de legitimar o simples uso do nomen juris de compra e venda.
Em suma, enquanto o dinheiro empregue na aquisição passou directamente da esfera jurídica dos pais da A. para a do vendedor, sem passar pela A., já a nua propriedade e o imóvel passaram a integrar a esfera jurídica dela por único efeito da accão dos pais dela, no que, globalmente, é justificado configurar como uma doação do bem.
Não há, pois, segundo pensamos, como fugir a esta realidade, quer no plano legal, face a todo o exposto, quer a nível do entendimento comum: a de que, na vertente respeitante à relação entre a A. e os seus pais, o contrato por eles celebrado implicou a doação à primeira da nua propriedade, primeiro, e da propriedade plena, depois, sobre o imóvel em causa nos autos.
Sendo certo que, neste enquadramento, deve reconhecer-se à A. a propriedade exclusiva do bem, por aplicação do disposto no referido art. 1722.º/1, al. b), do Código Civil.
E só assim não seria face à possibilidade de, como reconhece a doutrina, os bens recebidos por doação ou sucessão integrarem a “categoria dos bens comuns quando forem deixados ou doados conjuntamente a ambos os cônjuges ou quando, deixados ou doados apenas a um, o testador ou o doador declarar que devem entrar na comunhão” (cfr. Remédio Marques, Ob. cit., p. 121-2).
É igualmente o que resulta do regime previsto na disposição legal do art. 1729.º/1 do CC.
Todavia, na espécie em análise, é manifesto, a nosso ver, que essa norma não tem aplicação, pois apenas a A. interveio na escritura e os seus pais não fizeram qualquer declaração no sentido de beneficiar a comunhão conjugal com o referido bem.
Improcedem, por isso, as restantes conclusões expostas pelo R. nas alegações de recurso.
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DECISÃO: Pelo exposto, julga-se improcedente o recurso e, ainda que com diversa fundamentação, confirma-se a decisão recorrida.
Custas do recurso, atento o seu decaimento, pelo R., a quem se condena ainda na multa de 1 UC pela impertinente junção de documentos em fase de recurso.
(o texto desta decisão não segue o Novo Acordo Ortográfico)
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Carlos Gil (*) [Declaração de voto: Concordo com o reconhecimento de que a fração autónoma é bem próprio da recorrente, mas com fundamentos diversos da posição que fez vencimento e mais próximos dos da decisão recorrida.
A meu ver, os pais da autora não lhe doaram o imóvel e nem o podiam fazer porque nunca foram donos dele. O negócio titulado por escritura pública em que os pais da autora intervieram, na qualidade de adquirentes, é uma compra e venda, não constando desse negócio qualquer declaração de doação do que quer que seja.
A doação de imóveis está sujeita a prova documental (artigo 947º, nº 1, do Código Civil) e não existe nos autos qualquer documento que titule tal negócio (artigo 238º, nº 1, do Código Civil), nem foi produzida qualquer prova de uma qualquer patologia negocial que ilidisse a necessidade dessa prova.
O pai da autora, através de saques de cheques de uma conta solidária, pagou a totalidade do preço correspondente à plena propriedade do imóvel e, aquando da celebração da compra e venda, certamente com base em indicação dos pais da autora, a sociedade vendedora vendeu o usufruto desse prédio aos pais da autora e a nua propriedade do mesmo à autora, beneficiando a autora do preço que havia sido antecipadamente pago.
Esta pagamento antecipado do preço permitiu à autora intervir desacompanhada do então cônjuge numa compra e venda da nua propriedade do imóvel sem arcar com o pagamento do preço.
As circunstâncias em que o negócio foi celebrado são bastantes, a nosso ver, para concluir que os progenitores da autora a quiseram beneficiar com a parte do preço do imóvel que já havia sido pago e correspondente à nua propriedade do mesmo.
Daí que, na nossa perspetiva, este caso ainda se enquadre na previsão da alínea c) do artigo 1723º do Código Civil, que não exige a intervenção de ambos os cônjuges no ato aquisitivo, mas apenas no documento equivalente ao título de aquisição em que se indica a proveniência do dinheiro ou valores usados na aquisição.
Estas, em súmula, as razões porque confirmaria a decisão recorrida.]