INSOLVÊNCIA
LIQUIDAÇÃO
Sumário

I – O pedido de entrega efetiva de imóvel adquirido no âmbito da liquidação dos bens da insolvente, tem lugar no próprio processo da insolvência e é tramitado enquanto incidente do mesmo, seguindo, por isso, a título subsidiário, o disposto nos arts. 292º a 295º do CPC.
II – Todas as questões suscitadas sobre a entrega do imóvel ou que visem impedi-la, devem ser analisadas neste incidente, após pronúncia do detentor sobre o requerimento do adquirente nos termos dos artigos 292º, 293º, 828º e 861º do CPC ex vi artigo 17º, do CIRE.
Elaborado pelo relator.

Texto Integral

Fazendo uso da faculdade concedida pelo artigo 656º do CPC, por se tratar de processo urgente e se nos afigurar simples a questão a decidir, profere-se

DECISÃO SUMÁRIA.
1. Por apenso ao autos de insolvência nº 971/14.078LSB  (nos quais foi declarada a insolvência de PRÉDUQUE – SOCIEDADE  IMOBILIÁRIA, S.A.), vieram MA. e marido, JA., deduzir incidente de entrega de bem ao adquirente, nos termos do disposto no artigo 828º do CPC, contra JP., pedindo que se ordenasse a entrega da fracção autónoma descrita no artigo 1º do seu requerimento, fracção essa que o Administrador de Insolvência nomeado naqueles autos havia apreendido para a massa insolvente e que posteriormente lhes havia vendido mediante escritura de compra e venda celebrada em 02/02/2024, a cuja entrega o requerido tem obstado.
Também por apenso (E) aos mesmos autos de insolvência, corre termos a acção com processo comum que o identificado Requerido, JP., propôs contra a MASSA INSOLVENTE DE PRÉDUQUE – SOCIEDADE IMOBILIÁRIA, S.A. a insolvente, PRÉDUQUE – SOCIEDADE IMOBILIÁRIA, S.A. e os credores da Insolvente, pedindo a condenação dos RR. a reconhecerem o Autor como legítimo arrendatário da identificada fracção e a absterem-se da prática de quaisquer actos que ponham em causa o direito do Autor de residir no imóvel e/ou perturbem a sua fruição do mesmo, enquanto seu legítimo arrendatário.
Entretanto, em 19/06/2024, nesse apenso E, foi proferido despacho (refª 436064205) que termina com a seguinte decisão:
“Nos termos expostos, e de harmonia com o disposto nos preceitos legais supra citados, julgo verificada a exceção dilatória de incompetência material, o que determina a incompetência absoluta deste tribunal para conhecer do presente litígio, e em consequência, absolvo os Réus da instância.
(…)”.
Posteriormente, em 24/06/2024, neste apenso, foi proferido o seguinte despacho (refª 436064343):
Considerando o teor da decisão proferida no apenso E, devem os presentes autos acompanhar o envio ao Tribunal competente, o que determino.
Dando a competente baixa.”
Por não se conformarem com este último despacho, vieram aqueles Requerentes, MA. e marido, JA., interpor recurso, cujas alegações rematam com as seguintes conclusões:
1º. Por douto despacho o tribunal “a quo” decidiu: “Considerando o teor da decisão proferida no apenso E, devem os presentes acompanhar o envio ao Tribunal competente, o que determino.”
2º. Pelo apenso “E” o tribunal “a quo”, julgou verificada a excepção dilatória de incompetência material para dirimir a acção proposta pelo aqui recorrido e determinou a incompetência absoluta do tribunal de comércio para conhecer do presente litígio, e ordenou a remessa dos autos conforme requerido pelo aí A. para o tribunal cível de Cascais.
3º. Os recorrentes não se conformam com tal decisão.
4º. O apenso “J” do proc. nº 971/14.0T8LSB – insolvência da Preduque Sociedade Imobiliária, S.A. –  consubstancia um incidente de entrega efectiva do bem ao adquirente.
5º. Incidente deduzido ao abrigo do artigo 828.º, do C. P. C., em sede de processo de insolvência, por força do disposto no artigo 17.º, n.º 1, do C. I. R. E, sendo requerido o Sr. JP., isto é o autor na acção proposta como apenso “E”.
6º. Mediante escritura de compra e venda, outorgada em 02/02/2024, os recorrentes adquiriram, pelo preço global de 561.500,00€, o seguinte imóvel, que havia sido apreendido pelo Sr. Administrador da Insolvência para a massa insolvente: Fracção autónoma designada pela letra “M”, correspondente à moradia nº12 c/ 3 pisos, destinada a habitação, garagem, arrecadação e logradouro do prédio urbano constituído sob o regime da propriedade horizontal sito em Sítio das Rendas, na Rua Casal do Queimado, união de freguesias de Cascais e Estoril, concelho de Cascais, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo 14844 e descrito na Conservatória do Registo Predial de Cascais sob o n.º 3280.
7º. O Sr. A.I. procedeu à identificação e apreensão da referida fracção autónoma no apenso de apreensão de bens junto dos presentes autos.
8º. Após notificação, o recorrido recusa-se a proceder à entrega do imóvel, alegando ser legítimo arrendatário da fracção habitacional designada pela letra “M”, a que corresponde a moradia 12, sita na Rua do Casal Queimado, e obsta à entrega do imóvel.
Tudo em prejuízo dos recorrentes, pois já pagaram o preço, respectivos impostos, e não têm acesso à sua propriedade.
9º. No âmbito do processo executivo quando o adquirente dos bens não haja sido investido, de imediato, na posse dos mesmos, ele pode, com base no título de transmissão (ou do instrumento da venda), requerer na própria execução a sua entrega, pela forma prescrita nas disposições conjugadas dos artigos 828.º e 861.º, ambos do Código de Processo Civil.
Aplicam-se tais regras ao processo de insolvência, o adquirente dos bens que não haja tomado posse efetiva e imediata dos bens pode pedir a sua entrega efectiva ao abrigo do disposto nas disposições conjugadas dos artigos 828º e do 861º do CPC.
10º. O adquirente dos bens deve acionar este mecanismo formalmente, perante o tribunal da insolvência (cfr. art.º 91.º do CPC).
11º. O douto despacho recorrido ao enviar os autos, apenso J, incidente de entrega efectiva de bem, para o tribunal cível de Cascais viola o disposto nos arts. 292.º a 295º, 827º, 828º e 861º do CPC; art.º 824º do CC.; e art.17.º, n.º 1, do C.I.R.E.
Remetendo o incidente para tribunal incompetente.
12º. O pedido de entrega de imóvel (artigos 828.º e 861.º, do C. P. C.) efectuado em sede de processo de insolvência faz nascer um incidente nos autos que assim deve ser tramitado, enquadrado nos artigos 292.º a 295.º, do C. P. C., dirigido contra o detentor em que pede que o tribunal lhe entregue o bem, se necessário com recurso ao uso da força pública conforme o disposto no artigo 757.º, nºs. 2 e 3, ex vi artigo 861.º, n.º 1, ambos do C. P. C..
Daí que não assista razão ao tribunal recorrido ao decidir remeter os autos para tribunal incompetente, por violação da interpretação dada às normas supra citadas, não dispondo o tribunal de destino (Cascais) condições para tal entrega coerciva.
13º. Além disso, manter inalterada a decisão do tribunal “a quo” só beneficia o recorrido, o qual se mantém no uso de um imóvel de valor muito elevado invocando um contrato de arrendamento, do qual nunca apresentou quaisquer comprovativos de pagamento de alegadas rendas. O imóvel dos autos encontrava-se penhorado desde 22/02/2010 a favor de um dos credores dos autos, o que ocorreu em data anterior à alegada data do início do contrato de arrendamento (03/01/2011).
Atento o disposto no artigo 819º do CC. é inoponível em relação à execução e consequentemente à insolvência os actos de disposição, oneração ou arrendamento dos bens penhorado.
Mais, o contrato de arrendamento com duração superior a seis anos não registado na Conservatória (artigos 2º nº01 al. M e 5.º do Código do Registo Predial) carece de registo para ser oponível ao titular do imóvel, o que não ocorreu.

Não foram deduzidas contra-alegações.
Em 18/09/2024 foi proferido despacho a não admitir tal recurso (refª 438301874), do qual os ora Recorrente vieram reclamar, reclamação essa que foi deferida, com a consequente revogação do despacho reclamado e admissão do recurso (cf. despacho de 26/10/2024).
Cumpre agora decidir.

2. Como é sabido, o teor das conclusões formuladas pela recorrente define o objecto e delimitam o âmbito do recurso (artigos 608º, nº 2, 609º, 635º, nº 3 e 639º, nº 1 todos do Código de Processo Civil).
Assim, de acordo com as conclusões apresentadas pelos Recorrentes, impõe-se ao Tribunal responder tão somente à questão da competência material do juízo do comércio que decretou a insolvência, para tramitar um incidente de entrega efectiva de bem adquirido no âmbito da liquidação dos bens da insolvente.

3. Com relevância para a decisão, encontram-se provados os factos vertidos no relatório que antecede e cujo teor aqui se dá por reproduzido, bem como os que resultam dos documentos juntos e que ora se descrevem:
a) Mediante escritura de compra e venda, outorgada em 02/02/2024, os requerentes adquiriram, pelo preço global de 561.500,00€, o seguinte imóvel, que havia sido apreendido pelo Sr. Administrador da Insolvência para a massa insolvente: Fracção autónoma designada pela letra “M”, correspondente à moradia nº 12 c/ 3 pisos, destinada a habitação, garagem, arrecadação e logradouro do prédio urbano constituído sob o regime da propriedade horizontal, sito em Sítio das Rendas, na Rua Casal do Queimado, união de freguesias de Cascais e Estoril, concelho de Cascais, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo 14844 e descrito na Conservatória do Registo Predial de Cascais sob o n.º 3280.
b) O Sr. A.I. procedeu à identificação e apreensão da referida fracção autónoma no apenso de apreensão de bens junto dos presentes autos.
c) Por comunicação de 27 de Abril de 2023, dirigida pela sociedade ONEFIX, mas que se encontrava assinada pelo Senhor Administrador nomeado nos presentes autos, o Requerido foi informado de que: “…por deliberação da Comissão de Credores, e não tendo sido reconhecido a V. Exa. qualquer título legítimo para ocupação do imóvel em causa (…) vimos por este meio solicitar que até ao dia 15 de Maio de 2023, proceda à desocupação do imóvel em causa…
Caso não se logre esta entrega dentro do prazo concedido, desde já, informa o Administrador Judicial que será requerido o auxílio policial para tomada de posse do imóvel, através de arrombamento e troca de fechaduras…”
d) O requerido recusa-se a proceder à entrega do imóvel, alegando ser legítimo arrendatário da fracção habitacional designada pela letra “M”, a que corresponde a moradia 12, sita na Rua do Casal Queimado.
e) Até à presente data o Sr. AI não procedeu à entrega do imóvel aos requerentes.
f) O requerido propôs acção declarativa que corre por apenso aos autos sobre a letra “E”, na qual pede que seja reconhecido como legítimo arrendatário do imóvel identificado na alínea a).

4. Fixada a matéria de facto, cumpre agora responder à questão colocada pelos Recorrentes nas suas alegações.
4.1. Concluem os Recorrentes que o despacho recorrido de enviar os autos, (apenso J, incidente de entrega efectiva de bem), para o tribunal cível de Cascais, viola o disposto nos artigos 292º a 295º, 827º, 828º e 861º do CPC, 824º do Código Civil e 17º, nº 1 do CIRE, em virtude de ser admissível no processo de insolvência o pedido de entrega de imóvel, nos termos do artigo 828º do CPC, como incidente enquadrado pelos artigos 292º a 295º do CPC.
E, na verdade, as alegações dos Recorrentes têm fundamento.
4.2. Com efeito, o artigo 828º do CPC permite ao adquirente de bens em execução –fundamentado no título de transmissão referido no artigo 827º do CPC – requerer o prosseguimento dessa execução, formulando nos próprios autos pedido de entrega deduzido contra o detentor, nos termos prescritos no artigo 861º devidamente adaptados.
Como já havíamos referido aquando da admissão do presente recurso, o despacho impugnado não se limitou a replicar o despacho proferido no apenso “E”, (que, por assim ter sido requerido pelo Autor daquela acção, em cumprimento do nº 2 do artigo 99º do CPC, ordenou a remessa daquele apenso para o tribunal onde a acção deveria ter sido proposta), mas determinou igualmente a remessa do apenso J para o mesmo tribunal, sem que alguém o tivesse requerido.
Tal como acontece no âmbito da execução singular – cujo regime, aliás, é subsidiariamente aplicável ao processo de insolvência (artigo 17º, nº 1 do CIRE) – o adquirente de bens pode, com base no título de transmissão, emitido pelo administrador da insolvência, requerer contra o detentor a entrega efectiva dos bens, recorrendo ao expediente previsto nos artigos 828º e 861º do CPC.[1] Como refere MARCO CARVALHO GONÇALVES, alicerçado na jurisprudência[2], “o pedido de entrega efetiva dos bens tem lugar no próprio processo da insolvência e é tramitado enquanto incidente do mesmo, seguindo, por isso, a título subsidiário, o disposto nos arts. 292º a 295º do CPC.”[3]
Desta feita, ao determinar que o incidente de entrega de bens passasse a correr os seus trâmites no tribunal para onde foi remetida a acção com processo comum em que se discute o alegado direito ao arrendamento do aí Autor e aqui Requerido, o tribunal a quo acabou por proferir despacho que não cumpre a tramitação legalmente prescrita para tal incidente.
Acresce que a impossibilidade de entrega de um prédio adquirido no âmbito de um processo de insolvência, quando está em discussão a existência e validade de um contrato de arrendamento que teve por objecto o prédio adquirido[4], não invalida que o incidente continue a correr por apenso ao processo de insolvência. Assim, todas as questões colocadas sobre a entrega do imóvel ou que visem impedi-la devem ser analisadas neste incidente, após pronúncia do detentor sobre o requerimento do adquirente nos termos dos artigos 292º, 293º, 828º e 861º do CPC ex vi artigo 17º, do CIRE.
Desta feita, procedem as alegações de recurso.

5. Pelo exposto, julgo procedente a apelação e, consequentemente, decido:
1) revogar a decisão recorrida; e
2) determinar o prosseguimento do incidente até final, devendo, antes demais, notificar-se o Requerido para se pronunciar sobre o requerimento dos Requerentes, nos termos dos artigos 292.º, 293.º, 828.º, 861.º, do C. P. C., ex vi artigo 17.º, do CIRE,
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Custas da apelação a cargo da massa insolvente (artigos 303.º e 304.º do CIRE).

Lisboa, 10 de Abril de 2025
Nuno Teixeira
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[1] Cfr. neste sentido, TRP, Ac. de 12/02/2019 (proc. 6017/17.9T8VNG-E.P1) e TRG, Ac. de 13/06/2019 (proc. 641/18.0T8VNF-C.G1), ambos publicado em www.direitoemdia.pt. No sumário deste último acórdão consignou-se o seguinte: “Tal como no processo executivo (artigo 828º do CPC), também na liquidação em insolvência, mesmo que esta já se encontre finda, é de admitir que o adquirente venha aos autos exigir a entrega de coisa adquirida contra quem a detenha.”
[2] Cfr. TRP, Ac. de 11/03/2021 (proc. 983/15.6T8AMT-F.P1), publicado em www.direitoemdia.pt.
[3] Cfr. Processo de Insolvência e Processos Pré-Insolvenciais, Coimbra, 2023, pág. 511.
[4] Conforme decidiu o TRP, no Ac. de 11/03/2021, já referido na nota 2.