DECLARAÇÃO DE INSOLVÊNCIA
FALECIMENTO
GERENTE
RESIDÊNCIA
HERDEIRO
Sumário

I – A obrigação de fixação de residência prevista na alínea c) do nº 1 do artigo 36º do CIRE, impõe-se ao devedor que seja pessoa singular ou, não o sendo, aos administradores de direito ou de facto do devedor.
II – O falecimento do único sócio e gerente produz a extinção da relação de gerência, sem prejuízo da transmissão da quota aos herdeiros, nos termos dos artigos 2025º, nº 1 do Código Civil e 225º e ss. do Código das Sociedades Comerciais.
III – Caso a sociedade de que aquele era gerente venha a ser declarada insolvente, os herdeiros da quota social de que era titular, não sendo administradores para efeitos do disposto no artigo 6º, nº 1, alínea a) do CIRE, não são abrangidos pela obrigação constante do artigo 36º, nº 1, alínea c) do CIRE.
Da responsabilidade do relator.

Texto Integral

Fazendo uso da faculdade concedida pelo artigo 656º do CPC, por se tratar de processo urgente e se nos afigurar simples a questão a decidir, profere-se
DECISÃO SUMÁRIA.

1. Por sentença proferida a 31/08/2024 (refª 161980926) foi declara a insolvência da sociedade, BESTFRIGER – SISTEMAS DE REFRIGERAÇÃO COMERCIAL E INDUSTRIAL, UNIPESSOAL, LIMITADA, pessoa colectiva nº 510634583, com sede na Rua Horta dos Bacelos, nº 5, Santa Iria da Azóia.
No dispositivo da sentença ficou a constar, entre o mais, o seguinte:
“2- Atento o falecimento do sócio e gerente único, AP, intestado e no estado de divorciado e o repúdio por parte dos filhos, o único herdeiro sucessível, conforme menção na escritura de repúdio, é o seu neto JP, nascido a 5/11/202l, filho do repudiante PP e de AR, por direito de representação. Assim, fixo a residência ao menor, para efeitos de eventuais notificações neste processo, na qualidade de sucessível à herança que integra a totalidade das quotas desta sociedade, na morada dos seus progenitores constante do registo civil - art.º 36, nº 1, al. c) do C.I.R.E..”
Por não se conformar com a sentença, veio o menor, JP – representado por seus pais, (…), interpor recurso em que pede a revogação da sentença, na parte decisória referente ao menor (ponto 2), cujas alegações remata com as seguintes conclusões:
1. O Art.º 36º, nº 1, al, c) do CIRE não tem aplicação direta para designar o menor recorrente para efeitos de eventuais notificações neste processo, na qualidade de sucessível à herança que integra a totalidade das quotas desta sociedade, na morada dos seus progenitores constante do registo civil.
2. Tenha-se presente a diversidade das notificações que podem estar em causa.
3. Não foi, em momento algum, dado cumprimento ao disposto no nº 1 do art.º 2049º do CC.
4. O menor em momento algum aceitou a herança e, mais, tendo sido decidido pelos seus pais requerer o repúdio da mesma.
5. Não pode assim, nem está o mesmo em condições de dar cumprimento a quaisquer eventuais notificações. Não obstante o repúdio ainda não estar decidido, há, evidentemente, uma incompatibilidade latente na ocupação do cargo de representante da empresa dado que a sua vontade é desvincular-se da herança e, consequentemente, da empresa que integra a mesma, a ora insolvente.
6. Em qualquer caso, e mesmo que o recurso venha a ser julgado improcedente, este não pode deixar de ser tido para todos os efeitos, enquanto expressa e inequívoca manifestação de vontade de repudiar a herança, não se podendo admitir qualquer aceitação expressa ou tácita de aceitação da mesma.
Não foram deduzidas contra-alegações.
O recurso foi admitido como de apelação, com subida imediata, em separado e efeito devolutivo.
Cumpre decidir.
2. Como é sabido, o teor das conclusões formuladas pelos recorrentes define o objecto e delimita o âmbito do recurso (artigos 608º, nº 2, 609º, 635º, nº 3 e 639º, nº 1 todos do Código de Processo Civil).
Assim, atendendo ao teor das alegações apresentadas pelo Recorrente, a única questão a apreciar é a de saber se, para efeitos do disposto no artigo 36º, nº 1, alínea c) do CIRE, se pode fixar residência a um menor, de forma a poder ser notificado no âmbito de processo de insolvência, na qualidade de sucessível à herança que integra a totalidade das quotas da sociedade declarada insolvente, cujo sócio e gerente único faleceu.
3. Na sentença recorrida foram dados como provados os seguintes factos:
1. A Requerida tem como objeto social a comercialização, venda e instalação de sistemas frigoríficos comerciais e industriais, máquinas e equipamentos consultoria técnica na área de refrigeração.
2. A Requerente é trabalhadora da Requerida, não auferindo a sua remuneração desde Janeiro de 2024, pelo que os seus créditos laborais são superiores a 13.000,00 €.
3. A Requerida cessou a sua atividade em Janeiro de 2024 com o falecimento do sócio e gerente único, AP, intestado e no estado de divorciado.
4. Os filhos repudiaram a herança, tendo o falecido um neto, de nome JP, nascido a 05/11/2021, filho de um dos repudiantes.
5. A sociedade não paga salários aos 11 trabalhadores desde Janeiro de 2024.
6. A Requerida não tem activo suficiente para assegurar o passivo vencido.
4. Fixados os factos com interesse, cumpre agora responder à questão colocada pelo recurso.
4.1. Como decorre do artigo 36º, nº 1, alínea c) do CIRE, a sentença que declare a insolvência do devedor, deve, entre o mais, identificar e fixar residência aos administradores, de direito ou de facto, do devedor, bem como ao próprio devedor, se este for pessoa singular.[1]
Segundo MARIA DO ROSÁRIO EPIFÂNIO, a fixação de residência ao insolvente e aos seus administradores  “importa a proibição de mudança de residência ou de saída temporária dela sem que para tal exista prévia autorização do tribunal, ainda que a mudança de residência seja feita dentro da mesma freguesia ou da mesma rua.”[2] Também para CATARINA SERRA, com o dever de respeitar a residência fixada – consistente na proibição de mudar de residência e dela se ausentar sem autorização (ou comunicação) ao Tribunal – visa-se “garantir a segurança do processo, designadamente evitando o risco de fuga do insolvente ou dos seus administradores”.[3] Por sua vez, MARIA JOSÉ COSTEIRA entende que a fixação de residência visa facilitar a localização do administrador do devedor sempre que a celeridade desse contacto seja essencial para a obtenção de informações ou de esclarecimentos.[4]
4.2. Deduz-se ainda da norma em análise que a obrigação de fixação de residência se impõe ao devedor que seja pessoa singular ou, não o sendo, aos administradores de direito ou de facto do devedor.
E se, entretanto, o sócio e gerente único da sociedade declarada insolvente morre, os herdeiros da quota poderão assumir a função de administradores para efeito da fixação de residência?
Cremos que não, desde logo porque o cargo de gerente não é transmissível “mortis causa”. Com efeito, preceitua o artigo 2025º, nº 1 do Código Civil que “não constituem objecto de sucessão as relações jurídicas que devam extinguir-se por morte do respectivo titular, em razão da sua natureza ou por força da lei”. Assim, segundo este preceito, são três as causas de inereditabilidade: natural, legal ou negocial. A primeira diz respeito aos direitos que se extinguem em razão da sua própria natureza (por ex. os direitos familiares pessoais); a segunda abarca as causas que resultam da lei; e, a terceira resulta da vontade do autor da sucessão, ao estipular que determinados direitos de que ele era titular venham a extinguir-se à sua morte, mas desde que sejam direitos renunciáveis, como por exemplo o direito de o autor da herança, em testamento, renunciar a um direito de servidão (artigo 1569º, nº 1, alínea d) do Código Civil).[5]
Ora, o caso de morte do gerente enquadra-se, precisamente no artigo 2025º, nº 1 do Código Civil. Na verdade, o “carácter estritamente pessoal da relação estabelecida entre a sociedade e o gerente, alicerçada na confiança que determinou a escolha deste para as funções de administração e representação da sociedade (…) impede que a posição jurídica de gerente se transmita quer mortis causa, quer por ato entre vivos, e quer isoladamente, quer juntamente com a quota.”[6] Daí o legislador ter consagrado a intransmissibilidade da posição de gerente no nº 4 do artigo 252º do Código das Sociedades Comerciais.
Conclui-se, assim, como os comentadores citados, que “o falecimento do sócio-gerente produz a extinção da relação de gerência, sem prejuízo da transmissão da quota aos herdeiros (nos termos dos artigos 2025º, 1, CCiv. e 225, s., CSC); pelo modo automático como opera, constitui, aliás, uma causa de caducidade daquela relação.”[7]
Transpondo o exposto para o caso dos autos, podemos afirmar, sem quaisquer dúvidas, que, independentemente de se saber se a herança foi ou não aceite pelo menor, ora Recorrente, o cargo de gerente da sociedade declarada insolvente extinguiu-se com o morte do seu único sócio e gerente. Por essa razão, nunca tal posição jurídica poderia ser transmitida aos seus herdeiros, pelo simples facto de o menor poder ter a qualidade de “sucessível à herança que integra a totalidade das quotas da sociedade”, desde logo por ser vedada por lei (artigo 252º, nº 4 do Código das Sociedades Comerciais). Note-se que o legislador teve “o cuidado de precisar que a proibição abrange tanto os casos em que se pretendesse transmitir isoladamente a gerência (rectius, a posição contratual decorrente do contrato de gerência), como aqueles outros em que a quota seja transmitida e se pretenda que, por isso, aquela posição contratual foi também transmitida”.[8]
Assim, atendendo ao conceito plasmado no artigo 6º, nº 1, alínea a) do CIRE[9], podemos afirmar que, à data da prolação da sentença, o ora Recorrente não era administrador, nem de direito, nem de facto, da sociedade por quotas declarada insolvente. Como tal, não tendo aquela qualidade, não lhe poderia ter sido fixada residência, para efeitos do disposto no artigo 36º, nº 1, alínea c) do CIRE.
Por esta razão, deve ser revogada a sentença, na parte decisória referente ao menor (ponto 2), procedendo, assim, a apelação.

5. Pelo exposto, julga-se procedente a apelação, e, consequentemente, revoga-se a sentença, na parte decisória referente ao menor (ponto 2).
Custas da apelação a cargo da massa insolvente (artigos 303.º e 304.º do CIRE).

Lisboa, 14 de Abril de 2025
Nuno Teixeira
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[1] Não se trata de um poder discricionário do juiz em alterar a residência do administrador, mas tão somente de determinar, entre as moradas existentes, qual a relevante para efeitos do processo (cf. MARIA JOSÉ COSTEIRA, “A insolvência de pessoas colectivas. Efeitos no insolvente e na pessoa dos administradores”, in Julgar, nº 18, 2012, pp. 165 e 166.
[2] Cf. Manual de Direito da Insolvência, 7ª Edição, Coimbra, 2020, pág. 103.
[3] Cf. Lições de Direito da Insolvência, 2ª Edição, Coimbra, 2021, pp. 146-147.
[4] Cf. “A insolvência de pessoas colectivas. Efeitos no insolvente e na pessoa dos administradores”, Ob. Cit., pp. 165 e 166.
[5] Cf. PEREIRA COELHO, Direito das Sucessões (Lições ao curso de 1975-1974, actualizadas em face da legislação posterior), policopiado, Coimbra, 1992, pp. 160-162; CRISTINA ARAÚJO, Anotação ao artigo 2025º, in Código Civil Anotado, Livro V – Direito das Sucessões [coord. CRISTINA ARAÚJO DIAS], 2ª Edição, Coimbra, 2022, pp. 16-19.
[6] Cf. RICARDO COSTA/CAROLINA CUNHA, Anotação ao artigo 252º, in Código das Sociedades Comerciais em Comentário [coord. COUTINHO DE ABREU], Volume IV, 2ª Edição, Coimbra, 2017, pp. 84-85.
[7] Cf. RICARDO COSTA/CAROLINA CUNHA, Ibidem. No mesmo sentido, ver ainda COUTINHO DE ABREU, Curso de Direito Comercial, Volume II, Das Sociedades, 7ª Edição, Coimbra, 2021, pág. 584.
[8] Cf. RAÚL VENTURA, Sociedade por Quotas, volume III, Coimbra, 1996, pág. 25.
[9] As pessoas prioritariamente abarcadas na definição legal são as que, legal ou voluntariamente, estão investidas nas funções correspondentes ao exercício da administração. Mas também poderão considerar-se aqui envolvidos todos os que as desempenham de facto, nomeadamente quando o fazem com carácter de permanência, mesmo que falte, para tanto, o apoio em determinação legal ou em acto voluntário do titular do património a gerir. (cf. CARVALHO FERNANDES e JOÃO LABAREDA, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, Lisboa, 2008, pág. 86).