EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
INDEFERIMENTO LIMINAR
DEVER DE INFORMAR
DEVER DE COLABORAÇÃO DAS PARTES
ÓNUS DA PROVA
PRINCÍPIO DO INQUISITÓRIO
REGISTO CRIMINAL
Sumário

1. A apresentação do Certificado de Registo Criminal constitui o meio de prova adequado a aferir da verificação da previsão do art.º 238º, n.º 1, al. f) do CIRE, sendo que esta, quando se verifique, constitui fundamento objetivo de indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo.
2. Em causa está uma informação que o tribunal, no uso dos seus poderes inquisitórios (art.º 11º), caso a declaração do devedor lhe suscite dúvidas, pode obter diretamente, como resulta do disposto no art.º 8º nº 2 al. a) da Lei nº 37/2015 de 5/5. Nenhuma razão haveria para, face à particular restrição da norma do art.º 8º, o legislador prever expressamente a possibilidade de os magistrados judiciais poderem aceder à informação do registo criminal para fins “de decisão do incidente de exoneração do passivo restante do devedor no processo de insolvência de pessoas singulares”, se, de forma incoerente, se pudesse assumir que a obrigação de fornecer tal informação impende exclusivamente sobre o devedor insolvente.
3. O que seja a obrigação de prestar “informação relevante para o processo” – art.º 238º, n.º1, al. g) do CIRE - é matéria que a jurisprudência tem vindo a concretizar como correspondendo a um acervo de informação que, pela sua natureza, contende, direta ou indiretamente, com a finalidade do processo de insolvência, definida no art.º 1º, n.º1 como sendo a satisfação dos credores. Inclui-se nessa tipologia de informação toda aquela que impeça ou dificulte a identificação do património do devedor ou que tenha em vista a ocultação de atos que possam objetivamente considerar-se prejudiciais aos interesses dos credores.
4. Não será admissível ao tribunal elevar ao patamar de informação relevante para o processo um elemento documental que se destina a provar o preenchimento de um requisito negativo previsto pelo art.º 238º, n.º1, al. f), cuja não verificação não foi suscitada nos autos e que ao insolvente não compete provar, ou concluir que ao omitir a junção de um CRC atualizado o insolvente violou “com dolo ou culpa grave” deveres de informação que para ele resultam do Código.

Texto Integral

DECISÃO SUMÁRIA

Dada a simplicidade da questão a decidir no presente recurso, já apreciada de modo reiterado, o mesmo será julgado singular e sumariamente, tal como o permitem as disposições conjugadas dos artigos 652.º n.º 1, al. c) e 656.º, ambos do CPC.
*
I.
1. AA., requerente e apelante, apresentou-se à insolvência em 30-5-2024, deduzindo pedido de exoneração do passivo restante.
Alegou, em síntese, que se encontra desempregado por efeito de extinção do posto de trabalho ocorrida em 17-4-2023, ocasião em que passou a auferir o valor mensal de 509,11 € a título de prestações de desemprego; em fase anterior à situação de desemprego esteve em baixa médica entre janeiro de 2022 e abril de 2023, não tendo, por esse motivo, rendimentos tributáveis que impusessem apresentação de declaração de IRS. Vive em quarto arrendado partilhado com quatro pessoas, pagando mensalmente a quantia de 350,00 €, sem recibo, o que suporta com apoio de pessoas e instituições. Não tem bens e apenas se sustenta com a ajuda de familiares, vizinhos e ex-colegas. Não tem antecedentes criminais de relevo, nem dívidas ao Estado, não tem crédito e acumulou passivo no valor de no valor de 58.471,08 Euro, que, por sentença datada de 17.2.2024, foi condenado a pagar à seguradora Zurich – Insurance Public Limited Company Sucursal em Portugal, quantia acrescida de juros à taxa legal desde a citação, que não consegue pagar.
Refere que se encontra “absolutamente impossibilitado de suportar os custos com a publicação dos anúncios, certidões e outros, por não ter qualquer capacidade financeira para o efeito, em consequência do estado em que se encontra (e que motivou a presente instância) requer a V. Exa. que seja o Tribunal a suportar as despesas essas despesas (e certidões que se mostrem necessárias) ao abrigo do apoio judiciário já requerido”.
Conclui nos seguintes termos: “Estando reunidos os respectivos pressupostos legais, já que, se apresentou em tempo (e mesmo que assim não se entenda, o credor em nada ficou prejudicado, por estarem a receber, mensalmente, quase duzentos euros penhorados ao salário da requerente) e não tem antecedentes criminais de relevo, o requerente requer a exoneração do passivo restante (art.º 235 CIRE)”.
Anexou documentos, designadamente, procuração forense com data de 26.5.2022, atribuindo, entre outros, poderes para requisitar certificado de registo criminal; assento de nascimento emitido em 27.11.2022; documento comprovativo da concessão de apoio judiciário nas modalidades de dispensa de taxa de justiça e demais encargos do processo e atribuição de Agente de Execução; Certificado de Registo Criminal emitido com a menção de que se destina a Exoneração de Passivo Restante, constituído por boletins numerados de 1 a 5,  com informação atualizada em 2022.11.28, com validade até 2023.02.26; declaração de situação de desemprego e de situação contributiva regularizada, válida por 4 meses e datada de 2024.5.30; declaração da Segurança Social de 30.5.2024, atestando o valor auferido a título de prestações de desemprego entre 20/04/2023 a 31/12/2023, no valor diário de € 16,01 (dezasseis euros e um cêntimo), no total de € 4.019,60; declaração da situação de desemprego; declaração de rendimentos referente aos anos de 2019, 2020 e 2021; certidão da AT datada de 30.5.2024, atestando a regularização da situação tributária.

2. Por decisão datada de 4.6.2024 foi declarada a insolvência do requerente, sem convocação da realização da Assembleia para apreciação do relatório a que alude o art.º 155º do CIRE, face à previsível dimensão da massa insolvente.
Na parte final da sentença consigna-se o seguinte: “Desde já se relembra o requerente que a exoneração do passivo restante não abrange as indemnizações devidas por factos ilícitos dolosos praticados pelo devedor, que hajam sido reclamadas nessa qualidade – art.º 245 nº 2 alínea b) do CIRE”.

3. Em 31.7.2024 o Sr. Administrador de Insolvência apresentou o relatório a que alude o art.º 155º do CIRE, em que identifica três créditos reclamados, num valor total de 74.088,84 €.
Refere terem sido notificados o insolvente e o seu mandatário com vista à junção de documentação e prestação de informações, designadamente em relação ao paradeiro de veículos registados em nome do insolvente tendo, em resposta, o ilustre mandatário dito que “As viaturas que refere foram entregues, pelo insolvente, no ferro velho, há quase 20 anos, para peças. Nunca ninguém lhe deu qualquer documento, nem mesmo o necessário para abate”.
Acrescenta que não são conhecidos direitos ou bens suscetíveis de apreensão, fazendo ainda constar que:
“i) O Insolvente tem 63 anos de idade, tendo nascido a 28/10/1960;
ii) O Insolvente recebe, neste momento, prestação de desemprego no valor mensal de 509,11€;
iii) O Insolvente vive num mini quarto situado numa cave sem janelas pagando mensalmente o valor de 350,00€;
iv) Os cerca de 160,00€ que lhe sobram são insuficientes para pagar a sua alimentação e restantes despesas com necessidades básicas, pelo que tem necessidade de recorrer à ajuda de amigos, vizinhos e familiares.
v) O montante global dos créditos ascende a 74.089,84€.
vi) O Insolvente não dispõe de condições que lhe permitam gerar meios financeiros para fazer face às suas despesas essenciais e garantir o pagamento aos Senhores Credores.
(…) no cumprimento do disposto do nº 4 do artigo 236º do CIRE, por se encontrarem preenchidos todos os requisitos necessários, é o Administrador de Insolvência de opinião da exoneração do passivo restante, nos termos do artigo 235º e seguintes do CIRE”.
Conclui propondo que “sejam ouvidos os Senhores Credores, em concordância com o disposto no n.º 4 do artigo 236.º do CIRE, para que o Tribunal se pronuncie sobre o pedido de exoneração do passivo restante” e que “seja encerrado o presente processo por insuficiência de bens nos termos do artigo 232º do CIRE, atento o limite previsto no n.º 9 do artigo 39º do CIRE”.
Anexa documentos.

4. Em 18-10-2024 foi proferido o seguinte despacho:
“A fim de se proferir despacho liminar no que concerne ao pedido de exoneração do passivo restante, deverá o devedor juntar aos autos:
- O seu certificado de registo criminal.
Prazo: dez dias.
Notifique”.
O despacho foi notificado ao mandatário do requerente em 18.10.2024.

5. Em 4.12.2024 foi proferido o seguinte despacho:
Despacho de 18-10-2024 e notificação da mesma data:
Não tendo sido dada resposta ao solicitado e nem sequer justificada a omissão, concedo ao devedor o derradeiro prazo de dez dias para dar cumprimento ao determinado no despacho de 18-10-2024:
- Juntando aos autos o seu certificado do registo criminal.
Notifique, sendo o devedor, na sua própria pessoa e na pessoa do seu Ilustre mandatário, com a advertência de que o incumprimento do determinado constitui fundamento de indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante (art.º 238.º, n.º 1, al. g), do CIRE)”.
O despacho foi notificado ao insolvente e ao mandatário por si constituído em 5-12-2024.

6. Em 5-12-2024 foi apresentado requerimento pelo ilustre mandatário do insolvente (ref.ª Citius 26884058), com o seguinte teor:
“Exmo. Senhor Doutor Juiz de Direito,
Tendo o seu Certificado de Registo Criminal acompanhado a PI (V. Ficheiro identificado como Documento 2, que inclui também, antes daquele, o assento de nascimento, apoio judiciário e depois do dito, declaração de situação de desemprego, certificado de trabalho e tantos outros) AA., requer se profira Despacho que julgue válida a respectiva junção.
Quando assim se não entenda, não tendo o devedor qualquer capacidade financeira - nem mesmo um tostão furado - para pagar a emissão de outro (sem prejuízo sério para a sua sobrevivência), tendo o Tribunal acesso aos CRC, em linha, sem custos, de forma imediata (aliás, utilizaria menos tempo a mandar extraí-lo, para ser junto, do que a proferir os últimos Despacho e a cumpri-los), este mesmo insolvente Requer, ainda, se extraia o dito, para que fique no processo”.

7. Em 13-1-2025 foi proferido o seguinte despacho:
Requerimento de 05-12-2024:
O devedor apresentou-se à insolvência em 30-05-2024 e o certificado do registo criminal que juntou à petição era válido até 26-02-2023, o que significa que, já então, se encontrava manifestamente desactualizado.
Ora, sendo a exoneração do passivo restante um procedimento que o devedor voluntariamente requereu, cabe-lhe juntar o certificado do registo criminal a fim de se apreciar liminarmente o referido pedido, não cabendo ao Tribunal realizar, em sua substituição, tal diligência, tanto mais que, beneficiando o insolvente de apoio judiciário, ficará isento da respectiva taxa.
Acresce que, ainda que se trate da obtenção de documento que se reveste de manifesta simplicidade, no caso, o devedor está representado nos autos por Ilustre mandatário que, de resto, tem poderes para requerer o certificado em falta (conforme decorre da procuração junta).
Em consequência, sendo destituída de fundamento legal, vai a pretensão do devedor indeferida, devendo o mesmo juntar aos autos, no derradeiro prazo de dez dias, o seu certificado do registo criminal actualizado, com a advertência de que o incumprimento do determinado constitui fundamento de indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante (art.º 238.º, n.º 1, al. g), do CIRE).
Notifique, sendo o devedor na sua pessoa e na pessoa do seu Ilustre mandatário”.

O despacho foi notificado ao insolvente e ao seu mandatário em 14.1.2025.

8. Em 18.2.2025 foi proferida a decisão ora recorrida que, considerando provadas as notificações dirigidas ao insolvente e a ausência de junção de CRC atualizado, concluiu nos seguintes termos:
“(…) Tudo para concluir, sem necessidade de mais considerações, que, estando assente a violação gravemente culposa dos deveres de informação e colaboração que recaem sobre o insolvente, tem o pedido de exoneração de ser liminarmente indeferido (art.º 238.º, n.º 1, al. g), do CIRE).
Tendo ficado vencido, é o devedor responsável pelo pagamento das custas do incidente, fixando-se a taxa de justiça em 2 UCs, sem prejuízo do benefício do apoio judiciário que lhe foi concedido (art.º 7.º, n.º 4, do Regulamento das Custas Processuais e tabela II anexa ao mesmo).
Notifique.
IV – Face ao exposto, indefiro liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante deduzido pelo devedor insolvente AA. e, em consequência, condeno-o nas custas do incidente, fixando a taxa de justiça em 2 UCs, sem prejuízo do benefício do apoio judiciário que lhe foi concedido.
Notifique.
Publicite e registe nos termos do disposto no art.º 247.º do CIRE”.

Foi ainda declarado encerrado o processo por insuficiência da massa insolvente.
A decisão foi notificada em 19.2.2025.

9. Em anexo a formulário que deu entrada em 19.2.2025 – ref.ª Citius 27362561 – o insolvente juntou aos autos CRC atualizado até 2025.1.24, constituído por boletins numerados de 1 a 6.
Em 24.2.2025 foi proferido despacho com o seguinte teor:
“Face à prolação da decisão de 18-02-2025, mostra-se esgotado o poder jurisdicional do Tribunal quanto à matéria da causa (art.º 613.º, n.º 1, do CPC), sendo certo que também nada foi requerido.
Notifique”.

10. Inconformado com a decisão de 18.2.2025, referida em I.8, veio o insolvente interpor o presente recurso, pedindo a revogação da decisão recorrida e a sua substituição por outra que julgue procedente o pedido de exoneração do passivo restante formulado pelo insolvente.
Invoca fundamentos que sintetiza nas seguintes conclusões:
1. Ao ter indeferido o pedido de exoneração do passivo restante formulado pelo recorrente, um insolvente que pleita com apoio judiciário (um desgraçado que sobrevivia e sobrevive com uma prestação social diária de €16,01 - muito abaixo do IAS e correspondente a metade do salário mínimo nacional), nas condições em que o fez, quando o próprio recorrente pediu ao tribunal que o extraísse, para ser junto aos autos (alegando não ter capacidade bastante para pagar o preço da respectiva aquisição), quando é hoje sabido que os serviços da administração publica não reconhecem a isenção prevista no art.º 9 da LAJ, quando o insolvente acabou por juntá-lo aos autos em 19.02.2025, sendo certo que a Sentença recorrida apenas se mostra notificada aos intervenientes em 24.02.2025, o Tribunal recorrido violou os Princípios Constitucionais da Proporcionalidade, da Dignidade da Pessoa Humana, da Confiança, do Acesso ao Direito e da Igualdade, e bem assim do disposto nos artigos 1º, 2º, 13º e 20º da Constituição da Republica Portuguesa.
2. Perante a alegação e prova de pobreza extrema de um insolvente (que pleita com apoio judiciário e aufere uma prestação social diária de €16,01) que pediu ao Tribunal que mandasse extrair e juntar aos autos o seu certificado de registo criminal, a Sentença recorrida deveria ter interpretado o disposto nos artigos 83, 235, 236, 238, 239 e 245 todos do CIRE, em plena conformidade com os Princípios Constitucionais da Dignidade da Pessoa Humana da Confiança, do Acesso ao Direito e da Igualdade, e bem assim do disposto nos artigos 1º, 2º, 13º e 20º da Constituição da Republica Portuguesa, julgando válidas as razões (de incapacidade financeira) tempestivamente alegadas pelo recorrente, julgando procedente o seu pedido de exoneração do passivo restante, sem nunca qualificar a sua conduta como gravemente culposa, por violação dos deveres de informação e colaboração, levando também em conta, quer o CRC junto com a PI em 30.05.2024, quer o CRC junto em 19.02.2025.

Não foram apresentadas contra-alegações.

O recurso foi admitido por despacho de 7-4-2025 como apelação, com subida imediata nos próprios autos e efeito devolutivo.

Cumpre apreciar.

II.
Dado que o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação da recorrente, sem prejuízo das questões passíveis de conhecimento oficioso (artigos 608º, n.º 2, parte final, ex vi do art.º 663º, n.º 2 e art.º 639º, n.º 1, todos do Código de Processo Civil), a questão a decidir consiste em aferir se estão verificados os pressupostos para indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante por preenchimento da previsão do art.º 238º, n.º 1, al., g) do CIRE e se a interpretação da lei pelo tribunal recorrido contraria princípios constitucionais.

III.
Os factos relevantes para apreciação do objeto do recurso correspondem aos sintetizados em I.

IV.
A síntese do processado que reconstitui os passos que vieram a culminar na conclusão do tribunal recorrido de que o apelante havia violado os deveres de informação e colaboração que para ele resultam do CIRE no decurso do processo de insolvência, referindo que se impõe ao devedor insolvente a obrigação de fornecer todas as informações relevantes para o processo que lhe sejam solicitadas pelo administrador da insolvência, pela assembleia de credores, pela comissão de credores ou pelo Tribunal, obrigação essa que, em concreto, foi considerada incumprida, reconduz-nos a um único elemento essencial de apreciação: saber se a omissão de junção de um CRC atualizado (já que a petição inicial foi acompanhada da junção de tal documento, com validade expirada), mantida após lhe terem sido dirigidas notificações para o efeito que cominavam a omissão de apresentação do documento com indeferimento liminar do incidente, constitui fundamento bastante para produzir este mesmo efeito.
Adiantando conclusões, consideramos que não, resultando dos próprios fundamentos da decisão recorrida o sentido e alcance da previsão da al. g) do art.º 238º do CIRE [diploma a que se reportarão todas as normas citadas sem indicação de proveniência], que, no caso concreto, não se poderá ter por preenchida.
O art.º 238º, n.º 1 prevê um elenco taxativo de causa de indeferimento liminar do pedido de exoneração, compreendendo, com relevância para o caso concreto, as seguintes situações:
- alínea f): O devedor tiver sido condenado por sentença transitada em julgado por algum dos crimes previstos e punidos nos artigos 227.º a 229.º do Código Penal nos 10 anos anteriores à data da entrada em juízo do pedido de declaração da insolvência ou posteriormente a esta data;
- alínea g): O devedor, com dolo ou culpa grave, tiver violado os deveres de informação, apresentação e colaboração que para ele resultam do presente Código, no decurso do processo de insolvência.

A apresentação do Certificado de Registo Criminal constitui o meio de prova adequado a aferir da verificação da previsão da al. f), sendo que esta, quando se verifique, constitui fundamento objetivo de indeferimento liminar.
Questão diversa será a de apurarmos se a omissão da apresentação do documento – no caso, de uma versão válida e atualizada do documento –, pela via de uma atuação omissiva subsequente a notificações que para o efeito lhe sejam dirigidas, pode inverter o sentido da norma, transformando a ausência de prova adequada à verificação de um pressuposto de indeferimento liminar no preenchimento de um pressuposto alternativo de rejeição do incidente, in casu na violação, dolosa ou com culpa grave, dos devedores de informação que resultam para o devedor no decurso do processo de insolvência.
A doutrina e a jurisprudência são unânimes na aceitação do entendimento de que não impende sobre o devedor o ónus de prova dos requisitos previstos no n.º1 do art.º 238º, cabendo aos credores ou aos interessados a demonstração de que tais requisitos não se verificam [ver, por todos, na doutrina, Carvalho Fernandes e João Labareda, CIRE Anotado, 3ª edição, p.855 e, na jurisprudência, Acórdão do TRP de 25.02.2025, proc.º 1252/24.6T8STS.P1, rel. Márcia Portela, disponível na base de dados da DGSI, que cita basta jurisprudência no sentido indicado].
Ao impor ao devedor (que havia requerido a colaboração do tribunal na obtenção de certidões) a obrigação de juntar aos autos o documento em questão, o tribunal indiretamente concluiu que recaía sobre o devedor o ónus de provar que a sua conduta anterior não era de molde a vedar o acesso à exoneração do passivo, elevando a informação pretendida ao estatuto de informação relevante para o processo a que alude o art.º 83º. Ora, na realidade, a informação só é relevante para eventual preenchimento da al. f) do n.º1 do art.º 238º, sendo que a não verificação desta, como se disse, não corresponde a facto que caiba ao devedor provar.
O que seja a obrigação de prestar “informação relevante para o processo” é matéria que a jurisprudência tem vindo a concretizar como correspondendo a um acervo de informação que, pela sua natureza, contende, direta ou indiretamente, com a finalidade do processo de insolvência, definida no art.º 1º, n.º 1 como sendo a satisfação dos credores. Inclui-se nessa tipologia de informação toda aquela que impeça ou dificulte a identificação do património do devedor ou que tenha em vista a ocultação de atos que possam objetivamente considerar-se prejudiciais aos interesses dos credores.
Como se refere no Ac. do TRL de 21-12-2023 (Processo:3511/14.7TBVFX.L1-1, relatora Fátima Reis Silva, acessível nesta ligação), “valoráveis para os efeitos da al. g) do nº1 do art.º 238º do CIRE e da apreciação liminar são apenas os deveres previstos no art.º 83º do CIRE. A amplitude da formulação da al. a) do nº1 do art.º 83º do CIRE (fornecer todas as informações relevantes para o processo) é suficiente para permitir, abstratamente, o enquadramento da devedora que, pura e simplesmente, não responde ao tribunal, numa situação de falta de prestação de informações e de colaboração (…) Sem se arredar completamente a avaliação da conduta dos devedores nos autos quando respeitem a deveres de informação específicos para a exoneração do passivo restante em casos extremos, antes da sua apreciação liminar, o que releva como incumprimento dos deveres de informação, colaboração e apresentação para o efeito previsto, na al. g) do nº1 do art.º 238º do CIRE é o incumprimento que crie entraves à realização dos fins imediatos do processo e não os que criam dificuldades à concessão de um benefício ao próprio devedor”.
No caso concreto, não só não ocorreu omissão de informação – contrariamente ao que o primeiro despacho parece sugerir, o devedor não omitiu a junção do documento, apenas omitiu a junção da sua versão atualizada -, como se trata de documento que se destina a contrariar a verificação de um requisito previsto no art.º 238º, n.º1 – cujo ónus de prova não recai sobre o devedor, que já afirmou reunir todos os pressupostos para que lhe seja concedida a exoneração do passivo, declarando no processo o motivo pelo qual não diligenciava diretamente pela obtenção do documento (custos em que incorreria, não obstante o apoio judiciário de que beneficia).
Em causa está uma informação que o tribunal, no uso dos seus poderes inquisitórios (art.º 11º), caso a declaração do devedor lhe suscite dúvidas, pode obter diretamente, como resulta do disposto no art.º 8º nº 2 al. a) da Lei nº 37/2015 de 5/5. Nenhuma razão haveria para, face à particular restrição da norma do art.º 8º, o legislador prever expressamente a possibilidade de os magistrados judiciais poderem aceder à informação do registo criminal para fins “de decisão do incidente de exoneração do passivo restante do devedor no processo de insolvência de pessoas singulares”, se, de forma incoerente, se pudesse assumir que a obrigação de fornecer tal informação impende exclusivamente sobre o devedor insolvente.
Não deixamos de notar que o requerimento que o devedor dirigiu ao processo requerendo que o tribunal obtivesse diretamente o documento que aquele havia sido notificado para juntar – reproduzido no ponto I.6 do relatório – faz uso de comentários laterais desajustados à luz do trato respeitoso exigível na relação entre os vários intervenientes processuais (atuação que repete na fundamentação do recurso).
Contudo, a realidade é que o tribunal pode obter essa informação – se entender que a mesma é relevante -, ou condenar o notificado em multa, se entender que a omissão ao dever de cooperação atinge um grau elevado e merecedor de censura (art.º 417º, n.º1 3 n.º2 do Código de Processo Civil, aplicável ex vi do art.º 17º, n.º1 do CIRE).
O que já não será admissível ao tribunal será elevar ao patamar de informação relevante para o processo um elemento documental que se destina a provar a verificação de um requisito negativo previsto pelo art.º 238º, n.º1 (cuja não verificação não foi suscitada nos autos), que ao insolvente não compete provar, ou concluir que ao omitir a junção de um CRC atualizado o insolvente violou “com dolo ou culpa grave” deveres de informação que para ele resultam do Código.
Tal como em situação similar se decidiu no Ac. do TRP de 25.02.2025 (proc.º 1252/24.6T8STS.P1, rel. Márcia Portela, acessível nesta ligação, que acompanha o decidido no mesmo sentido pelo acórdão da Relação do Porto, de 16.01.2024, rel. Maria da Luz Seabra, proc. n.º 2163/23.8T8OAZ.P1), “(…) Os certificados de registo criminal que não foram juntos reportam-se a previsão da alínea f) do n.º 1 do artigo 238.º CIRE, uma vez que constitui fundamento de indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante não ter o requerente praticado nenhum dos crimes aí enunciados. Tendo o legislador configurado a prática desses crimes como facto impeditivo da concessão da exoneração do passivo restante, e impendendo sobre o administrador da insolvência ou dos credores que deduziram oposição a esse incidente o ónus da prova desses factos, a falta de junção dos certificados de registo criminal nunca poderia levar ao indeferimento liminar do pedido. A cominação estabelecida pelo Tribunal não tem a virtualidade de criar uma nova causa de indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante, sendo a enumeração do artigo 238.º, n.º 1, CIRE, taxativa, como é consensual na doutrina e na jurisprudência. Não impendendo sobre os apelantes o ónus de provar que não cometeram os crimes enunciados no n.º 1 da alínea f), não se lhes pode impor a junção dos certificados de registo criminal, sob pena de inversão do ónus da prova. Reconduzir a falta de resposta dos apelantes a notificação do Tribunal à previsão da alínea g) afigura-se abusivo, por ser uma forma enviesada de indeferir liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante à margem do elenco taxativo do n.º 1 do artigo 238.º CIRE Os deveres de informação não incidem, naturalmente, sobre elementos que podem ser facilmente obtidos, designadamente pelo Tribunal. Recorde-se que, nos termos do artigo 8.º, n.º 1, alínea a), da Lei n.º 37/2015, de 5 de Maio ─ Lei da Identificação Criminal ─ os magistrados judiciais podem aceder directamente à informação do registo criminal, para decisão do incidente de exoneração do passivo restante do devedor no processo de insolvência de pessoas singulares. Por outra palavras, não se justifica o dispêndio de actividade em notificar o devedor para juntar certificado de registo criminal quando o Tribunal pode obter directamente essa informação” – no mesmo sentido, Ac. da Relação de Évora de 19-12-2019, proc.º221/19.2T8PSR.E1, rel. Mário Coelho (acessível nesta ligação), onde se refere «quanto ao registo criminal do Requerente, importa recordar que, nos termos do art.º 8.º, n.º 1, al. a), da Lei de Identificação Criminal – Lei 37/2015, de 5 de Maio – o próprio magistrado judicial pode aceder directamente à informação do registo criminal, para “decisão do incidente de exoneração do passivo restante do devedor no processo de insolvência de pessoas singulares”. Logo, podendo o próprio Juiz a quo aceder directamente a essa informação, não tem sentido que a exija ao Requerente da insolvência».
O que consta da fundamentação do despacho recorrido é coerente com o que fica dito, ao referir que “a par da obrigação principal de cedência do seu rendimento disponível, são ainda impostas ao devedor uma série de obrigações acessórias decorrentes da dita obrigação principal, às quais preside, genericamente, a preocupação de assegurar a efectiva prossecução dos fins a que é dirigida. Para estes fins, importa que o tribunal e o fiduciário tenham conhecimento dos rendimentos efectivamente auferidos pelo devedor e daí que este não deva ocultá-los ou dissimulá-los, estando ainda obrigado a prestar todas as informações que lhe sejam solicitadas, não só quanto aos rendimentos, mas também quanto ao seu património”. Esses exemplos correspondem, de facto, a elementos relevantes para o processo, abarcados pelos deveres de informação do devedor.
Aliás, essa mesma ideia emerge do acórdão citado pelo tribunal recorrido em apoio do decidido - acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 11-06-2015, processo n.º 3546/11.1TBGMR-H.G1 (disponível nesta ligação) -, em que a violação do dever de informação que ali se considerou ser fundada razão para justificar o indeferimento liminar correspondia à omissão de uma doação feita à filha do devedor, ou seja, informação relevante para o processo e para os interesses dos credores, que não era passível de obtenção direta.
Como se refere no muito recente acórdão desta secção do TRL – processo n.º1168/15.7T8SNT.L1, de 08.04.2025, rel. Isabel Fonseca, acessível nesta ligação -, “não evidenciando os autos qualquer facto pertinente nesta sede, não está ainda assim o tribunal impedido, se entender que tal se justifica, de diligenciar oficiosamente com vista à recolha da informação que entenda oportuna sobre o requerente, atento o princípio do inquisitório, com a especial configuração que resulta do art.º 11.º e que aqui é aplicável considerando que estamos perante um incidente tramitado no próprio processo de insolvência, sendo que, no caso, o tribunal também não deu cumprimento a esse poder/dever, o que, acrescente-se, no caso do certificado do registo criminal – elemento pertinente para a aferição da alínea f), como mencionado no despacho recorrido –, era particularmente simples; assim sendo, não tem qualquer cabimento o indeferimento liminar do pedido de exoneração pela circunstância do devedor não ter junto o certificado de registo criminal atualizado (…) o interesse juridicamente relevante que o legislador quis proteger com a previsão da referida alínea g), ao sancionar a atuação do devedor insolvente é, em primeira linha, o interesse dos credores, atenta a finalidade do processo de insolvência (art.º 3.º, n.º 1); assim, a violação dos deveres de informação, apresentação e colaboração previstos no CIRE, no decurso do processo é fundamentalmente aquela que tiver repercussão, ou for suscetível de ter repercussão, na satisfação dos créditos, como usualmente acontece, por exemplo, quando está em causa aferir do património do devedor com vista à respetiva apreensão e liquidação”.
No caso citado, como no caso em apreço, não está em causa uma ocultação de informação (o documento foi junto, mas não na sua versão atualizada, pretendendo o insolvente que o tribunal obtivesse diretamente o CRC para obviar a custos), nem essa informação é relevante para os fins do processo, sendo destinada a comprovar factos cujo ónus probatório não recai sobre o devedor.
Inexiste, por isso, violação do dever de informação justificativa do declarado indeferimento liminar do incidente.
Essa conclusão não reclama a apreciação da invocada ofensa a princípios constitucionais, solucionando-se no plano direto da aplicação e correta interpretação da lei, motivo pelo qual se tem por inútil a apreciação das questões suscitadas pelo apelante em torno da violação de direitos tutelados pela Constituição da República Portuguesa que, sem concretização e em listagem genérica, são mencionados nas suas conclusões.
Impõe-se, em consequência, revogar a decisão recorrida.
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No que concerne os efeitos da revogação, contrariamente ao que constitui pretensão do apelante, não poderá este tribunal substituir-se ao tribunal recorrido e decidir no sentido de conceder ao apelante a exoneração do passivo, antecipando a procedência do incidente.
A revogação é resultado da reapreciação estrita do fundamento considerado pelo tribunal a quo para suportar a decisão de indeferimento liminar – art.º 238º, n.º 1, al. g). Na referida decisão não foram apreciadas quaisquer outras circunstâncias que eventualmente pudessem motivar o indeferimento liminar do incidente e que, consequentemente, não poderão ser apreciadas nesta sede, do mesmo modo que a decisão recorrida não contém elementos que autorizem a apreciação da medida em que exoneração deve ser definida, o que ocorre numa fase necessariamente subsequente.
A produção do efeito pretendido pelo apelante colocaria este tribunal a decidir em 1ª instância, atuando fora do seu leque de competências e contrariando o propósito do recurso, que, excluídos os casos em que se encontra perante questões de conhecimento oficioso, é limitado à reapreciação de questões que foram já objeto de decisão.
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V.
Nos termos e fundamentos expostos, julgo procedente a apelação e, em consequência, revogo a decisão recorrida, que deve ser substituída por outra que determine a admissão liminar do pedido de exoneração, sem prejuízo de outras causas de indeferimento liminar que o tribunal de 1ª instância entenda julgar verificadas.

Sem custas.

Lisboa, 22-04-2025
Ana Rute Costa Pereira