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EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
CESSÃO
PRORROGAÇÃO DO PRAZO
DECISÃO FINAL
Sumário
Sumário (do relator) – artigo 663.º, n.º 7, do Código de Processo Civil I – Não deve ser admitido, por extemporâneo, o pedido de prorrogação do período de cessão formulado para além do seu terminus, depois de ter decorrido o prazo de 10 dias previsto no artigo 149º, nº 1 (ex vi artigo 17º do CIRE) para o devedor se pronunciar nos termos do disposto no artigo 244º, nº 1 do CIRE. II – Se é necessário que a prorrogação seja requerida por algum dos legitimados referidos nas várias alíneas do nº 1 do artigo 242º-A do CIRE, fica vedado ao juiz, nesta matéria, qualquer iniciativa oficiosa. III – O juiz deve recusar a exoneração do passivo restante quando se verifiquem os seguintes requisitos: a reiterada existência de negligência grave ou dolo no cumprimento das obrigações; a ocorrência de prejuízo efectivo para a satisfação dos créditos; e, a verificação de um nexo causal entre a violação das obrigações cometidas ao insolvente e a criação do dano na esfera jurídica dos credores. IV – Viola a obrigação constante da alínea c) do nº 4 do artigo 239º do CIRE, com negligência grave, o insolvente que, findo o período de cessão de 5 anos, não procedeu à entrega ao fiduciário de mais de 80% dos rendimentos auferidos durante todo esse período, apesar de lhe ter sido dada a oportunidade de os pagar em prestações.
Texto Integral
Fazendo uso da faculdade concedida pelo artigo 656º do CPC, por se tratar de processo urgente e se nos afigurar simples a questão a decidir, profere-se
DECISÃO SUMÁRIA.
1. F., devidamente identificado nos autos, requereu a sua declaração de insolvência e, simultaneamente, pedido de exoneração do passivo restante.
Declarada a sua insolvência, em 23/02/2016 foi proferido despacho a admitir liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante e fixado o rendimento indisponível no valor equivalente a um salário mínimo nacional, tendo o processo de insolvência sido encerrado.
Em 30/01/2018, ao abrigo do artigo 240º, nº 2 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (doravante CIRE), a Sra. Fiduciária informou que, entre Março de 2016 e Dezembro de 2017, o insolvente havia cedido o valor de 947,46 €, quando deveria ter cedido 1.053,49 €.
Por requerimento de 14/05/2018, veio o insolvente informar que “(…) já comunicou à Sra. Administradora Judicial que, no início do próximo mês de Junho de 2018, irá dar início ao reembolso mensal de € 30,00 - € 40,00, até perfazer o valor global indicado de € 1053,49.”
Sobre tal requerimento recaiu o seguinte despacho: “Não resultando qualquer oposição manifestada nos autos, nomeadamente da parte do Fiduciário, a quem incumbe atender ao requerido, deverá proceder em exacta consonância com o peticionado pela devedora”.
Em 07/05/2019 a Sra. Fiduciária apresentou informação da qual resulta que o insolvente havia entregue, até então, 1.351,46 €, estando em falta o valor de 5.342,56 €.
Em 23/06/2020 informou, de novo, a Sra. Fiduciária que o total cedido pelo insolvente até essa data foi de 1.707,46 €, quando deveria ter cedido o montante de 10.722,56 €.
Por fim, em 26/05/2021, mais uma vez a Sra. Fiduciária informou que, decorrido o período de 5 anos de cessão, o insolvente deveria ter entregue o total de 11.235,68 €, quando apenas havia entregue 2.067,46 €.
Notificados os credores, o devedor e a Sra. Fiduciária, em 26/05/2022, nos termos e para os efeitos do artigo 244º do CIRE, os credores, CAIXA GERAL DE DEPÓSITOS, S.A. e BANCO BPI, S.A., pronunciaram-se contra a concessão da exoneração do passivo restante ao insolvente.
O insolvente pronunciou-se em 03/06/2022 no sentido de que “estão reunidos os requisitos para o deferimento da requerida exoneração do passivo, com as legais consequências previstas no artigo 245º, nº 1, do C.I.R.E.” Requereu ainda que, “atendendo ao valor em dívida e aos actuais rendimentos do Insolvente, lhe seja concedida uma última oportunidade, e, consequentemente, seja fixado um plano de pagamentos mensal, manifestando o mesmo a sua vontade em reembolsar a massa insolvente na íntegra.”
Em 13/06/2022 a Sra. Fiduciária veio informar que o período de cessão já havia terminado em Fevereiro de 2021, estando em dívida o montante de 8.778,22 €. Por isso, concluía que o devedor ou pagava aquele montante, de forma a poder ser-lhe concedida a exoneração, ou, então, requeria “a prorrogação do prazo do período de cessão pelo tempo necessário para o efeito”.
Em 27/09/2022 foi proferido o seguinte despacho: “Em 13.6.2022, a Sra. Fiduciária informou que falta o insolvente entregar o montante de € 8.778,22. Assim, notifique o insolvente para fazer a entrega à Fiduciária da referida quantia, não se admitindo o pedido de fixação de um plano de pagamentos mensal uma vez que essa possibilidade não está legalmente prevista.”
Notificado desse despacho, por requerimento de 13/10/2022 o insolvente veio dizer “Em face do exposto, requer-se a V. Exa. que, atendendo ao valor em dívida e aos actuais rendimentos do Insolvente, lhe seja concedida uma última oportunidade, e, consequentemente, seja prorrogado o período de cessão, pelo prazo de três anos.”
Por despacho de 21/11/2022 (refª 420752432) foi tal pedido indeferido, por extemporaneamente deduzido.
Inconformado com tal despacho, a 09/12/2022 (refª 44104903) veio o insolvente interpor recurso de apelação, o qual não foi admitido conforme despacho de 10/01/2023 (refª 421980800). Ma mesma data foi proferido despacho final de exoneração do passivo restante que terminou pela sua recusa.
Notificado de ambos os despachos, em 26/01/2023 veio o insolvente apresentar reclamação do despacho de não admissão de recurso (refª 44520180), bem como recorrer do despacho final de exoneração do passivo restante e do despacho proferido em 21/11/2023 (44520346), recurso esse que foi admitido por despacho de 22/02/2023 (refª 423326480), como de apelação, a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.
O Recorrente termina as respectivas alegações de recurso com as seguintes conclusões, que ora se transcrevem:
1. O presente recurso vem interposto dos doutos despachos de fls.___, de 21 de Novembro de 2022 (referência 420752432) e de fls.___, de 10 de Janeiro de 2023 (referência 421980800), que julgou totalmente improcedente o pedido de prorrogação do período de cessão e recusou a exoneração do passivo restante, respectivamente, e não se conformando com estas decisões judiciais, vem delas interpor recurso de Apelação, nos termos dos artigos 627º, 629º nº 1, 631º nº 1, 637º, 638º, nº 1, 639º, nºs 1 e 2, 644º nº 1, alínea a), e nº 3, 645º nº 2, 647º nº 1, todos do Código de Processo Civil (C.P.C.), e dos artigos 14º e 17º, ambos do C.I.R.E., versando o mesmo sobre toda as suas partes decisórias.
2. Sendo que tal o recurso interposto quanto ao despacho de fls.___, de 21 de Novembro de 2022 (referência 420752432) é efectuado porquanto o mesmo foi rejeitado por despacho de fls.___, de 10 de Janeiro de 2023 (referência 421980800), sem prejuízo da reclamação apresentada quanto a essa decisão judicial.
3. Com relevância para a situação em análise, importa realçar a tramitação processual consignada nas decisões judiciais sob recurso, mormente nas suas páginas 1 e 2 (despacho de 21 de Novembro de 2022) e nas páginas 2 a 5 (despacho de10 de Janeiro de 2023), que aqui se consideram como reproduzidas, evitando cansativas e desnecessárias repetições.
4. A exoneração do passivo restante, cujo regime se encontra previsto nos artigos 235º a 248º-A do C.I.R.E., representa para os insolventes pessoas singulares, uma medida de protecção capaz de se materializar tanto no perdão de poucas como de elevadas quantias e montantes, exonerando-os dos seus débitos, com a contrapartida, para os credores, da perda correspondente dos seus créditos.
5. Traduz-se, como resulta do artigo 235º do C.I.R.E., na liberação definitiva do devedor quanto ao passivo que não seja integralmente pago no processo da insolvência ou nos cinco anos posteriores ao seu encerramento (regime aplicável à data da instauração da insolvência).
6. A exoneração do passivo restante deve assim ser concedida, na base de dois pressupostos essenciais: por um lado, que a conduta do devedor, anterior à declaração de insolvência, se tenha pautado pela rectidão, ou seja, sem que o devedor haja incorrido em qualquer das situações tipificadas no artigo 238º, nº 1, C.I.R.E.; de outro lado, que o devedor venha a cumprir as suas obrigações para com os credores durante o “período de cessão”, isto é, o período de cinco anos posteriores ao encerramento do processo, nos termos dos artigos 239º e 244º, ambos do C.I.R.E..
7. No chamado período da cessão o rendimento disponível que o devedor venha a auferir considera-se cedido a fiduciário escolhido pelo tribunal, e afectado pelo referido fiduciário nos termos previstos no artigo 241º do C.I.R.E..
8. A cessão destes rendimentos futuros visa o pagamento, na medida do razoável, e naquele período de cinco anos, dos créditos referidos nas alíneas a) a d) do artigo 241º do C.I.R.E. e pela ordem nelas indicada.
9. Existindo a concessão da exoneração do passivo restante, não são permitidas execuções sobre os bens do devedor destinados à satisfação dos créditos sobre a insolvência, durante o período da cessão (cfr. artigo 233º do C.I.R.E.).
10. O encerramento do processo por insuficiência da massa insolvente deve ter em conta as restrições do nº 1 do artigo 242º do C.I.R.E., evitando dessa forma que os credores da insolvência possam, a partir do seu trânsito, exercer sem quaisquer restrições, os seus direitos contra os insolventes.
11. A referida Directiva (UE) nº 2019/1023 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de Junho de 2019 foi transposta, para o ordenamento pátrio, pela Lei nº 9/2022, de 11 de Janeiro, a qual veio consagrar a possibilidade de extensão do período de cessão por um prazo máximo de 36 meses, uma única vez, aditando ao C.I.R.E. o artigo 242º-A.
12. Isto é possível porque a Directiva em referência prevê, no seu artigo 23º, nº 2, alínea a), uma possível derrogação ao regime nela previsto (cfr. artigos 20º e 21º), permitindo aos Estados-Membros fixar um prazo mais longo para o perdão da dívida.
13. Durante o período de cessão, o devedor vincula-se a uma série de obrigações (cfr. artigo 239º, nº 4, do C.I.R.E.), cuja violação dolosa destas obrigações é fundamento, nomeadamente para a cessão [cessação] antecipada do procedimento de exoneração ou para a sua revogação (cfr. artigo 243º, nº 1, alínea a), e artigo 246º, nº 1, do C.I.R.E.).
14. Também neste período, o fiduciário notifica a cessão dos rendimentos do devedor àqueles que tenham direito a havê-los e afecta os montantes recebidos, no final de cada ano em que dure a cessão, aos pagamentos pela lei estabelecidos (cfr. artigo 241º, nº 1, do C.I.R.E.).
15. Desde que não haja lugar à cessão antecipada do procedimento de exoneração, findo o período de cessão, o juiz decidirá pela concessão da exoneração do passivo restante, salvo quando se verifique um dos fundamentos que teria permitido a cessação antecipada do procedimento (cfr. artigos 243º e 244º do C.I.R.E.).
16. E agora, nos termos destas alterações, o juiz poderá também decidir pela prorrogação do período da exoneração, mas apenas desde que tenha havido requerimento fundamentado do devedor, de algum credor da insolvência, do administrador da insolvência (se ainda estiver em funções) ou do fiduciário que tenha sido incumbido de fiscalizar o comportamento do devedor.
17. O inovador artigo 242º-A do C.I.R.E., “é imediatamente aplicável aos processos pendentes na data da sua entrada em vigor” (artigo 10º, nº 1, da Lei nº 9/2022, de 11 de Janeiro), a qual constitui norma de direito transitório.
18. Nos termos da lei, o juiz poderá então agora decidir pela prorrogação do período da exoneração, pretendendo-se naturalmente com esta prorrogação evitar que, ao fim de três anos de sacrifícios do devedor, exista uma provável decisão de recusa de exoneração do passivo restante, permitindo-se, por este meio, que um período adicional de esforço da sua parte possa conduzir à exoneração pretendida.
19. A fiduciária e os credores não se opuseram ao pedido de prorrogação do período de cessão deduzido pelo Recorrente.
20. Tal pedido de prorrogação tem de ser apresentado nos seis meses seguintes à data em que o requerente teve conhecimento dos fundamentos invocados (nos termos do disposto no nº 2 do artigo 242º-A do C.I.R.E.).
21. Ora, atendendo à tramitação processual vertida nos autos, este prazo só se iniciou com a notificação ao insolvente do relatório da Fiduciária, o que se verificou em 26 de Maio de 2022, sendo este dies a quo, e decorreu até 25 de Novembro de 2022, correspondendo esta data ao dies ad quem, e, portanto, quando apresentou o pedido de prorrogação do prazo em 13 de Outubro não tinha, ainda, decorrido o prazo legal imposto para o efeito.
22. Uma vez que os autos se encontravam pendentes e ainda não tinha sido proferido o despacho final de concessão/rejeição da exoneração, Incumbia ao Tribunal “a quo” efectuar, por motu proprio e em observância dos deveres de gestão processual, de adequação formal (artigo 6º, nº 1, do C.P.C.) e de aplicação da lei adjectiva no tempo (artigo 136º, nº 1, do C.P.C.), proceder às adaptações necessárias aos processos pendentes, ou seja, no mínimo notificar o insolvente para o exercício dos direitos conferidos pela entrada em vigor na nova lei e do novo período de prorrogação aos processos pendentes, o que não ocorreu.
23. A lei nova, no caso, cria como que um período suplementar ao período de cessão, até ao máximo de três anos. Esse período não existia e, portanto, com ele não contavam ou em função dele não se determinaram o devedor e credores. Tanto que inicialmente procederam conforme regime anterior, nomeadamente quanto à entrega do relatório anual da fiduciária referente ao último ano da cessão.
24. Neste sentido pode dizer-se que o Recorrente, enquanto sujeito da nova abrangência da exoneração o que efectivamente tem direito (desde logo pelo princípio da igualdade) é à lei nova, ou seja, à prorrogação do período temporal que a lei nova lhe concede.
25. Em suma, em casos como o presente, em que a situação (a definição do direito) não se encontra definitivamente resolvida aquando do início de vigência da lei nova, estamos perante uma situação que trata do conteúdo de relações jurídicas já constituída mas subsistentes, sendo de aplicar a lei nova, por força do disposto no artigo 12º, nº 2, 2ª parte, do Código Civil. E sendo de aplicar a lei, haveria então que conformá-la à realidade processual vigente nos autos, o que não foi levado a efeito.
26. Ao não julgar assim o Tribunal “a quo” violou, por erro de interpretação e aplicação, quanto à julgada improcedência do pedido de prorrogação do período de cessão, o disposto nos artigos 233º, 235º a 248º-A, todos do C.I.R.E., o artigo 10º da Lei nº 9/2022, de 11 de Janeiro, os artigos 20º, 21º e 23º Directiva (UE) nº 2019/1023 do Parlamento Europeu e do Conselho, o artigo 12º do Código Civil e os artigos artigo 6º, nº 1, e 136º, nº 1, ambos do C.P.C..
27. Concluindo-se, assim, que o despacho recorrido seja substituído por outra decisão judicial, que admita o pedido de prorrogação do período da exoneração do passivo restante.
28. O artigo 243º, nº 1, do C.I.R.E., aplicável por remissão do nº 2 do artigo 244º do mesmo compêndio, determina as situações em que deve ser recusada a exoneração do passivo restante, impondo, contudo, uma violação dolosa ou com negligência grave dos deveres do devedor, por um lado, e o consequente prejuízo para os credores, por outro.
29. A decisão recorrida baseia-se na circunstância constatada de que houve incumprimento da entrega de quantias à fiduciária (cfr. nº 4 do artigo 239º e alínea a) do nº 1 do artigo 243º, ambos do C.I.R.E.), por banda do Recorrente, sem fundamentar os elementos factuais objectivos e subjectivos que lhe permitam inferir pela recusa.
30. De um lado, não se mostra apurado que o comportamento do Recorrente tenha sido voluntariamente encetado, isto é, que tenha querido violar as imposições que lhe foram cominadas e consequentemente a Lei; de outro, que igualmente o tenha feito, voluntária e consciente, com a intenção de prejudicar os credores, de onde se possa extrair tal conclusão.
31. A não entrega das quantias refentes ao rendimento do Insolvente não é, por si só, suficiente para determinar a recusa da exoneração do passivo restante, pois não materializa automaticamente um comportamento doloso, nem muito menos qualquer nexo de imputação entre o dano e a conduta visada.
32. Em consequência do despacho inicial da exoneração o insolvente fica adstrito ao cumprimento das obrigações enumeradas no artigo 239º, nº 4, do C.I.R.E., podendo a violação dolosa das mesmas, entre outras, determinar a cessação antecipada do procedimento de exoneração.
33. No final do período da cessão será proferida decisão sobre a concessão ou não da exoneração e, sendo esta concedida, ocorrerá a extinção de todos os créditos que ainda subsistam à data em que for concedida, sem excepção dos que não tenham sido reclamados e verificados (cfr. artigo 241º, nº 1 e 245º, ambos do C.I.R.E.).
34. Com efeito, nem toda e qualquer violação das obrigações impostas ao insolvente como corolário da admissão liminar do pedido exoneração releva como causa de recusa do benefício: a lei é terminante em exigir, de um aspecto, que se trate de um prevaricação dolosa ou com grave negligência e, cumulativamente, de outro, que tenha prejudicado, a satisfação dos credores da insolvência (cfr. 243º, nº 1, alínea a), do C.I.R.E.).
35. A doutrina adiciona a estes dois requisitos um terceiro: o da existência de um nexo causal entre a conduta dolosa do insolvente e o dano para a satisfação daqueles créditos.
36. Acresce que, a violação, com dolo ou negligência grave da obrigação que vincula o insolvente há-de provocar um resultado: a afectação da satisfação dos créditos sobre a insolvência.
37. Na decisão recorrida nenhuma alusão se fez ao prejuízo que teria resultado para os créditos da insolvência em virtude do incumprimento do Insolvente.
38. Numa apreciação global da conduta do devedor, ressalta o reconhecimento do incumprimento e o envidar de esforços para cumprir a obrigação a que estava adstrito, o que acabou por fazer de forma significativa. O que afasta a existência de uma conduta dolosa, que pressupõe adesão da vontade à falta de cumprimento da obrigação, e que, no caso, manifestamente não se verifica.
39. Bem como a conduta negligente no grau em que a lei indica - grave - próximo ou equiparável ao dolo.
40. A actuação do Insolvente, que levou à redução significativa dos valores em dívida, evidencia que agiu de forma esforçada e diligente, o que afasta o grau de censura que a negligência grave pressupõe.
41. Em suma, em relação à obrigação dos devedores prevista no artigo 239º, nº 4, alínea c), do C.I.R.E., não se verifica concretizado no caso em apreço o requisito previsto no nº 1 da alínea a) do artigo 243º, por remissão do artigo 244º, do C.I.R.E., ou seja, o comportamento doloso ou com grave negligência dos devedores.
42. Ao não julgar assim o Tribunal “a quo” violou, por erro de interpretação e aplicação, quanto à julgada recusa do pedido de exoneração do passivo restante, o disposto nos artigos 1º, 239º, 243º, e 244º, todos do C.I.R.E..
43. Concluindo-se, assim, que o despacho recorrido seja substituído por outra decisão judicial, que admita a exoneração do passivo restante.
Não foram apresentadas contra-alegações.
Cumpre decidir.
2. Como é sabido, o teor das conclusões formuladas pelo recorrente define o objecto e delimitam o âmbito do recurso (artigos 608º, nº 2, 609º, 635º, nº 3 e 639º, nº 1 todos do Código de Processo Civil).
Assim, atendendo ao teor das alegações apresentadas pelo Recorrente, cumpre apurar:
¾ se era admissível a prorrogação do período de cessão; e
¾ se a factualidade dada por assente preenche os requisitos legais para a recusa definitiva da exoneração do passivo restante, tal como concluído pelo tribunal recorrido, ou se, contrariamente, não existe fundamento válido para tal, como sustenta o Recorrente.
3. Para além dos factos descritos no relatório, que aqui se consideram reproduzidos, na decisão final de recusa da exoneração do passivo restante deram-se por assentes os seguintes factos:
1) Por sentença de 27.10.2014, transitada em julgado, foi declarada a insolvência do requerente.
2) Por decisão de 23.2.2016 foi admitido o pedido de exoneração do passivo restante e fixado o rendimento indisponível no equivalente a um salário mínimo nacional, tendo o processo de insolvência sido encerrado.
3) No despacho liminar consignou-se, além do mais, que: “4 - Determino que o rendimento disponível que a devedora venha a auferir durante o período da cessão, que é de cinco anos contados da data de encerramento do processo, se considere cedido ao fiduciário ora nomeado – 239 nº 2, al. a) do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas; 5 - Consigna-se que integram o rendimento disponível do devedor todos os rendimentos que lhe advenham a qualquer título, com excepção dos enumerados nas alíneas a) e b) do nº 3 do art.º 239 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, fixando-se para os efeitos previstos na al. b), subalínea i), no caso, e tendo em conta a composição do agregado, o equivalente a um salário mínimo nacional; 6 - Durante o período da cessão, e sob pena de não lhe ser concedida, a final, a exoneração do passivo restante, durante o período da cessão, o devedor fica obrigado a – 239 nº4 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas: a) Não ocultar ou dissimular quaisquer rendimentos que aufira, por qualquer título, devendo informar este Tribunal e o fiduciário, ora nomeado, sobre os seus rendimentos e património na forma e prazo que tais informações lhe sejam requisitadas; b) Exercer uma profissão remunerada, não a abandonando sem motivo legítimo; c) Entregar imediatamente ao fiduciário, quando por si recebida, a parte dos seus rendimentos objecto de cessão; d) Informar este Tribunal e o fiduciário de qualquer mudança de domicílio ou de condições de emprego, no prazo de 10 dias após a respectiva ocorrência, bem como, quando solicitado, sobre as diligências com vista à obtenção de emprego; e) Não fazer quaisquer pagamentos aos credores da insolvência a não ser através do fiduciário e a não criar especial vantagem para algum deles.”
4) O despacho liminar foi notificado ao insolvente na morada fixada na sentença por ofício de 17.3.2016.
5) Em 28.3.2016 foi afixado na porta da morada fixada na sentença, edital referente ao despacho inicial do procedimento de exoneração do passivo restante.
6) Em 30.1.2018, ao abrigo do art.º 240º, n.º 2 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, a Sra. Fiduciária informou que entre Março de 2016 e Dezembro de 2017 o insolvente cedeu o valor de € 947,46 e devia ter cedido € 1.053,49.
7) Por requerimento de 14.5.2018 veio o insolvente dizer que “o Requerente/Insolvente já comunicou à Sra. Dra. Administradora Judicial que, no início do próximo mês de Junho de 2018, irá dar início ao reembolso mensal de €30,00-€40,00, até perfazer o valor global indicado de €1.053,49.”
8) Sobre o mesmo recaiu o seguinte despacho “Não resultando qualquer oposição manifestada nos autos, nomeadamente da parte do Fiduciário, a quem incumbe atender ao requerido, deverá proceder em exacta consonância com o peticionado pela devedora.”
9) Em 7.5.2019 a Sra. Fiduciária apresentou informação da qual resulta que o insolvente havia entregue até então € 1.351,46, mostrando-se em falta o valor de € 5.342,56.
10) Em 23.6.2020 a Sra. Fiduciária informou que o total cedido pelo insolvente até essa data foi de € 1.707,46, devendo ter cedido o montante de € 10.722,56.
11) Em 26.5.2021 a Sra. Fiduciária informou que, decorrido o período de 5 anos de cessão, o insolvente deveria ter entregue o total de € 11.235,68, mas apenas entregou € 2.067,46. 12) (Repete o 11).
13) O insolvente pronunciou-se em 3.6.2022 alegando, além do mais, que “Durante o período de cessão o Insolvente cumpriu com os deveres que lhe foram impostos, designadamente os consignados no douto despacho de fls.___, bem como assim os previstos nos nºs 2 e 4 do artigo 239º do C.I.R.E., tal qual resulta da informação prestada pela Sra. Dra. Administradora Judicial em 26-05-2021. 2º - Acresce que, no caso concreto não existem verificadas quaisquer das situações previstas no nº 1 do artigo 243º do C.I.R.E.. 3º - Ao acabado de salientar excepciona-se somente os valores que deveriam ter sido entregues no âmbito dos presentes autos, por virtude da cessão de rendimentos fixada a fls.___. 4º - O que efectivamente não se verificou por vários problemas de ordem pessoal e de saúde do Insolvente, completamente inesperados, excepcionais e supervenientes à prolação do despacho inicial de exoneração do passivo restante.”
14) E no mesmo requerimento solicita “7º - Em face do exposto, requer-se a V. Exa. que, atendendo ao valor em dívida e aos actuais rendimentos do Insolvente, lhe seja concedida uma última oportunidade, e, consequentemente, seja fixado um plano de pagamentos mensal, manifestando o mesmo a sua vontade em reembolsar a massa insolvente na íntegra.”
15) Em 13.6.2022 a Sra. Fiduciário veio dizer “(…) 2 - O período de cessão de rendimentos teve início em Março de 2016 e o seu términus em Fevereiro de 2021. 3 - Decorridos os cinco anos do período de cessão o devedor deveria ter entregado a quantia de €11.235,68, tendo apenas cedido a quantia de €2.4257,46, pelo que permanece em dívida a quantia de €8.778,22. 4 - Desde Agosto de 2018 até à presente data, o devedor tem vindo a efetuar mensalmente transferências no valor de €30,00, para regularização da quantia em dívida. 5 - Assim, e para que lhe possa ser concedida a exoneração do passivo restante, o devedor deverá entregar, de imediato, o montante em falta - € 8.778,22 ou, nos termos do disposto no artigo 242.º-A do CIRE, requerer a prorrogação do prazo do período de cessão pelo tempo necessário para o efeito.”
16) Em 27.9.2022 foi proferido o seguinte despacho “Em 13.6.2022, a Sra. Fiduciária informou que falta o insolvente entregar o montante de €8.778,22. Assim, notifique o insolvente para fazer a entrega à Fiduciária da referida quantia, não se admitindo o pedido de fixação de um plano de pagamentos mensal uma vez que essa possibilidade não está legalmente prevista.” 17) Notificado desse despacho, por requerimento de 13.10.2022 o insolvente veio dizer “Em face do exposto, requer-se a V. Exa. que, atendendo ao valor em dívida e aos actuais rendimentos do Insolvente, lhe seja concedida uma última oportunidade, e, consequentemente, seja prorrogado o período de cessão, pelo prazo de três anos.”
18) Por despacho proferido em 21.11.2022 foi indeferido o pedido de prorrogação do período de cessão e ordenada a notificação do insolvente para, em 10 dias, depositar o valor devido à fidúcia - €8.778,22. 19) Em 28.12.2022 a Sra. Fiduciária informou que “1 - O devedor tem vindo a efetuar, mensalmente, transferências no valor de €30,00, tendo entregado desde Julho de 2022 até à presente data a quantia de € 180,00. 2 - Permanece em dívida a quantia de € 8.598,22.”
4. Fixada a matéria de facto, por não ter sido objecto de impugnação por parte do Recorrente, cumpre agora conhecer das questões deste recurso supra enunciadas.
4.1. Da prorrogação do prazo de cessão.
O presente recurso visa, em primeiro lugar, o despacho de 21/11/2022 (ref.ª 420752432) que indeferiu o pedido de prorrogação do período de cessão, formulado no requerimento do ora Recorrente de 13/10/2022, por ser extemporâneo.
Com efeito, consignou-se no despacho recorrido que: “Ora, em face do todo o exposto devemos concluir que o pedido é extemporâneo. Com efeito, admitindo-se que no caso concreto tal pedido podia ser formulado depois de estar findo o período de cessão (uma vez que quando este terminou – Fevereiro de 2021 – o regime legal que o viria a prever não estava publicado, nem em vigor, mas já estava em vigor na data de notificação do insolvente nos termos e para os efeitos do art.244º), a verdade é que mal se compreende que tendo tal notificação ocorrido em 26.5.2022 (estando a lei em vigor desde 11.4.2022) apenas em Outubro de 2022 o insolvente tenha lançado mão dessa possibilidade. Nessa data, há muito que havia decorrido o prazo de 10 dias – prazo geral nos termos do art.º 149º, n.º 1 do Código de Processo Civil, aplicável ex vi art.17º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas – contado daquela notificação, durante o qual o insolvente podia e devia ter apresentada tal solicitação, pois sabia que estava em incumprimento das suas obrigações e devia saber que essa possibilidade estava legalmente prevista, ao contrário do plano de pagamento em prestações que solicitou. De resto, importa esclarecer que para nós a prorrogação do período de cessão não visa permitir ao insolvente relapso pagar os valores que não entregou em prestações, antes implica a continuidade de sujeição do devedor aos deveres fixados no despacho inicial, ou que vierem a ser fixados na decisão que defira o pedido de prorrogação. Portanto, pedir o pagamento em prestações não pode equivaler, nem pode ser entendido, como um pedido de prorrogação do período de cessão, por um não estar contido, nem pressupor o outro. Face a todo o exposto, por extemporaneamente deduzido, indefere-se o pedido de prorrogação do período de cessão.”
Contrariamente, entende o Recorrente que em 13/10/2022 ainda não tinha decorrido o prazo legal de 6 meses previsto no nº 2 do artigo 242º-A do CIRE para apresentar o pedido de prorrogação, que, segundo referiu, se havia iniciado com a notificação ao insolvente do relatório da fiduciária em 26/05/2022. E como ainda não tinha sido proferido despacho final de concessão/rejeição da exoneração, “incumbia ao tribunal a quo efectuar, por motu proprio e em observância dos deveres de gestão processual, da adequação formal (artigo 6º, nº 1 do CPC) e de aplicação da lei adjectiva no tempo (artigo 136º, nº 1, do CPC), proceder às adaptações necessárias aos processos pendentes, ou seja, no mínimo notificar o insolvente para o exercício dos direitos conferidos pela entrada em vigor da nova lei e do novo período de prorrogação aos processos pendentes, o que não ocorreu.” (cf. conclusão 22.)
Salvo o devido respeito, não tem razão o Recorrente.
Como é sabido, foi através da Lei nº 9/2022, de 11 de Janeiro que se transpôs para o Direito Português a Directiva (EU) 2019/1023 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de Junho de 2019 (Directiva sobre os regimes de reestruturação preventiva, o perdão de dívidas e as inibições, e sobre as medidas destinadas a aumentar a eficiência dos processos relativos à reestruturação, à insolvência e ao perdão de dívidas). Entre as várias alterações introduzidas pela Lei nº 9/2022 na disciplina da exoneração do passivo restante, sobressaem duas: a redução do período de cessão de cinco para três anos (cfr. artigos 235º, 237º, alínea b) e 239º, nº 2 todos do CIRE); e, a possibilidade de prorrogação do período de cessão (cfr. artigos 242º-A e 244º, nºs 1 e 2 ambos do CIRE).
Segundo o artigo 242º-A, nºs 1 e 2, aditado ao CIRE pela referida Lei, o período de cessão poderá ser prorrogado uma única vez, até ao máximo de três anos, mediante requerimento fundamentado, do devedor, de algum credor da insolvência ou ainda do fiduciário que tenha sido incumbido de fiscalizar o cumprimentos das obrigações do devedor, requerimento esse a ser apresentado dentro dos seis meses seguintes à data em que o requerente teve ou poderia ter tido conhecimento dos fundamentos invocados, sendo oferecida logo a respectiva prova.
Para além do artigo 242º-A, também o artigo 244º do CIRE prevê a possibilidade de o juiz, após prévia audição do devedor, do fiduciário e dos credores da insolvência, decidir, no prazo de 10 dias subsequentes ao termo do período de cessão, sobre a prorrogação, nos termos previstos no mencionado artigo 242º-A, ou, em alternativa, sobre a concessão ou não da exoneração do passivo restante do devedor.
Apesar de em ambas as normas se prever a prorrogação do período de cessão, desde logo na jurisprudência, e designadamente nesta Relação, passou a distinguir-se as duas situações, para efeito de saber quando é que o devedor pode formular o pedido de cessão.[1]
Tal como se sintetizou no citado Acórdão desta Relação de 06/12/2022, “o devedor pode formular o pedido de prorrogação:
- Durante o período de cessão e antes do seu terminus, devendo apresentar o requerimento dentro dos seis meses seguintes à data em que o requerente teve ou poderia ter tido conhecimento dos fundamentos invocados (nº 2 do art.º 242.ºA), nos casos em que a prorrogação tem por finalidade evitar a cessação antecipada do procedimento de exoneração; assinale-se a similitude entre o nº 2 do art.º 242.º-A e o nº 2 do art.º 243.º;
- Findo o período de cessão, quando é ouvido pelo juiz, com vista à prolação de decisão final da exoneração e no prazo de 10 dias que tem para esse efeito, com vista a evitar a não concessão da exoneração.”
Assim, se já houver cessado o período de cessão, o pedido de prorrogação terá de ser formulado até ao momento em que o devedor, o fiduciário e os credores da insolvência tenham de se pronunciar sobre a decisão final de exoneração. Após tal pronúncia, o juiz decidirá, no prazo de 10 dias, sobre o pedido de prorrogação.
No caso dos autos, verifica-se que, tendo o período de cessão terminado em Fevereiro de 2021, o ora Recorrente apenas formulou pedido de prorrogação em 13/10/2022, portanto, muito depois de ter sido notificado para os efeitos previstos no artigo 244º, nº 1 do CIRE, que foi em 26/05/2022. Nesta data, como bem se diz no despacho recorrido, já estava em vigor a Lei nº 9/2022, pelo que bem poderia o devedor ter formulado atempadamente o pedido de prorrogação, o que não aconteceu.
Contrariamente ao defendido pelo Recorrente nas suas alegações, não tinha o tribunal “de notificar o insolvente para o exercício dos direitos conferidos pela entrada em vigor da nova lei e do novo período de prorrogação aos processos pendentes”. Tal dever, não está previsto na Lei nº 9/2022, nem decorre da observância dos deveres de gestão processual. É certo que o juiz tem o dever de dirigir activamente o processo e de providenciar pelo seu andamento célere, promovendo oficiosamente as diligências necessárias ao normal prosseguimento da acção, recusando o que for impertinente ou meramente dilatório e adoptando, depois de ouvir as partes, mecanismos de simplificação e agilização processual que garantam a justa composição do litígio em prazo razoável (artigo 6º, nº 1 do CPC). Mas já não poderá, sob pena de violar o princípio do dispositivo, iniciar um processo ou de continuá-lo, sem o inerente impulso das partes. Acresce que incumbe igualmente às partes – em especial ao autor e ao réu reconvinte – delimitar e fixar livremente o pedido (artigos 552º, nº 1, alínea e) do CPC). Daí a razão de a sentença não poder condenar em quantidade superior ou em objecto diverso do que foi peticionado pela parte (artigo 609º, nº 1 do CPC), sob pena de ser nula (artigo 615º, nº 1, alínea e) do CPC). Por fim, não pode o juiz notificar uma das partes para exercer um determinado direito previsto numa lei recente, sob pena de violar o princípio da igualdade das partes. Como referem ABRANTES GERALDES, PAULO PIMENTA e PIRES DE SOUSA, em comentário ao artigo 4º do CPC, o “estatuto de igualdade substancial das partes” não permite “atitudes subjetivistas conotadas com um certo paternalismo relativamente a determinados sujeitos processuais”, nem tal desiderato “pode ser alcançado através de um automático e generalizado suprimento das falhas processuais imputáveis às partes, o que colidiria com os padrões de imparcialidade, de equidistância do juiz e da autorresponsabilidade das partes.”[2] Ou seja, se o juiz tivesse notificado o devedor para, porventura, exercer o seu direito de pedir a prorrogação do período de cessão, estaria, sem dúvida, a favorecer uma das partes, em detrimento da outra, nomeadamente os credores da insolvência. Além do mais, se é necessário que a prorrogação seja requerida por algum dos legitimados referidos nas várias alíneas do nº 1 do artigo 242º-A, fica vedada ao juiz, nesta matéria, qualquer iniciativa oficiosa.[3]
É também destituída de qualquer fundamento a alegação do Recorrente de que, em 13/10/2022, ainda estaria em tempo para apresentar o pedido de prorrogação, por o prazo de seis meses previsto no nº 2 do artigo 242º-A ter decorrido até 25/11/2022.
Quanto a esta questão, volta-se a recordar que o requerimento a apresentar dentro dos seis meses seguintes à data em que o requerente teve ou poderia ter tido conhecimento dos fundamentos invocados vale se tal apresentação ocorrer antes do terminus do período de cessão (artigo 242º-A, nº 1 do CIRE). Ora, quando o requerimento a pedir a prorrogação foi apresentado em 13/10/2022, há muito que havia cessado o período de cessão.
Em suma, quando a 13/10/2022 o devedor veio pedir a prorrogação do período de cessão, o prazo geral de 10 dias – previsto no artigo 149º, nº 1 do CPC, aplicável aos processos de insolvência por força do artigo 17º do CIRE – há muito que estava esgotado, tendo em conta a notificação para se pronunciar nos termos do artigo 244º, nº 1 do CIRE, ocorrida em 26/05/2022.
Improcede, pois, a apelação, na parte em que se recorre do despacho proferido a 21/11/2022, com a refª nº 420752432.
4.2. Da recusa definitiva da exoneração do passivo restante.
Cumpre agora conhecer da questão fundamental deste recurso, qual seja a de saber se o comportamento do devedor durante o período de cessão justifica ou não a exoneração do passivo restante.
4.2.1. O CIRE, aprovado pelo DL nº 43/2004, de 18 de Março, introduziu, pela primeira vez, na ordem jurídica interna, medidas específicas para o tratamento da insolvência das pessoas singulares, sendo uma delas a exoneração do passivo restante. Apesar de ter como referência a discharge da legislação norte-americana, a disciplina da exoneração do passivo restante constante da lei portuguesa inspirou-se no modelo alemão, e, tal como nesta, consiste, genericamente, “na afectação, durante certo período após a conclusão do processo de insolvência, dos rendimentos do devedor à satisfação dos créditos remanescentes, produzindo-se, no final, a extinção daqueles que não tenha sido possível cumprir, por essa via, durante esse período.”[4] Pode ser solicitada pelo insolvente quando se apresenta à insolvência, quando é citado no caso de o processo ser iniciado por outro legitimado ou até à assembleia de apreciação do relatório do administrador de insolvência (art.º 236º do CIRE). Requerida a exoneração do passivo restante, caso não haja motivo para indeferimento liminar, caberá ao juiz, após audição dos credores e do administrador de insolvência (art.º 238º, nº 2 do CIRE), emitir o despacho inicial de exoneração, (art.º 239º do CIRE). Findo o período de cessão, (que é de três anos contados a partir do encerramento do processo de insolvência), e caso o procedimento não tenha terminado de forma antecipada, o juiz profere despacho final, depois de ouvidos o devedor, o fiduciário e os credores da insolvência, cujo objecto é a apreciação do comportamento do devedor durante o período de cessão, e que poderá concluir pela recusa de concessão da exoneração do passivo restante, o que, na verdade, aconteceu nos presentes autos.
É precisamente deste despacho que o Recorrente se insurge, pretendendo com o presente recurso que lhe seja concedido o que o tribunal a quo lhe recusou. Com efeito, consta da decisão recorrida que o devedor, ora Recorrente, “notificado das obrigações decorrentes da admissão liminar do pedido de exoneração do passivo restante, não entregou à Fiduciária as quantias que excederam o rendimento indisponível fixado, no valor apurado de € 8.598,22” e, em vez de requerer “a alteração do valor a entregar”, deixou “arrastar e aumentar o valor devido e não entregue anualmente, reiterando o seu incumprimento e propondo-se entregar o valor que entendeu e não o valor devido, o que redundou na falta de entrega do valor final supra indicado”. Consequentemente, conclui o tribunal que “estão preenchidos os pressupostos de que depende a recusa de exoneração do passivo restante”.
Na verdade, de acordo com o disposto no artigo 243º, nº 1, alínea a) do CIRE (ex vi artigo 244º, nº 2), o juiz deve recusar a exoneração (não se tratando aqui do exercício de um poder discricionário) nomeadamente, quando “o devedor tiver dolosamente ou com grave negligência violado alguma das obrigações que lhe são impostas pelo artigo 239º, prejudicando por esse facto a satisfação dos créditos sobre a insolvência;”. Para tanto, e de acordo com a norma supra citada, deve verificar-se o cumprimento dos seguintes requisitos: a reiterada existência de negligência grave ou dolo no cumprimento das obrigações; a ocorrência de prejuízo efectivo para a satisfação dos créditos; e, a verificação de um nexo causal entre a violação das obrigações cometidas ao insolvente e a criação do dano na esfera jurídica dos credores.
Ora, uma das obrigações impostas ao devedor insolvente, durante o período de cessão, é a de entregar imediatamente ao fiduciário, quando por si recebida, a parte dos seus rendimentos objecto de cessão (artigo 239º, nº 4, alínea c) do CIRE). Esta obrigação abrange todos os rendimentos que não se incluam no rendimento indisponível, independentemente da sua natureza ou da circunstância de serem recebidos de forma esporádica ou periódica[5], sendo certo que não depende de qualquer ordem ou intervenção prévias do tribunal ou do administrador da insolvência.[6]
4.2.2. Voltando ao caso dos autos, verifica-se que, efectivamente, o que está em causa é a violação por parte do devedor do inerente dever de entrega ao fiduciário da parte dos seus rendimentos objecto de cessão.
Com efeito, resulta da factualidade dada por assente que, ao longo de todo o período de cessão, terminado este, o insolvente ficou a dever à fidúcia o montante global de 8.598.22 € e que foi notificado, pelo menos uma vez, para regularizar a situação. Contudo, notificado sucessivamente, ao longo dos cinco anos do período de cessão, dos vários relatórios elaborados pela fiduciária verifica-se que o devedor nunca pagou na totalidade os rendimentos disponíveis auferidos em cada ano, nem apresentou qualquer justificação razoável para esse comportamento omissivo.[7]
Contudo, apesar de reconhecer da sua parte a existência de um incumprimento no que concerne à entrega, por conta da fidúcia dos valores fixados pelos tribunal, veio alegar que “a não entrega das quantias referentes ao rendimento do insolvente não é, por si só, suficiente para determinar a recusa da exoneração do passivo restante, pois não materializa automaticamente um comportamento doloso, nem muito menos qualquer nexo de imputação entre o dano e a conduta visada” (cfr. conclusão 31.).
Contudo, também aqui não lhe assiste razão.
Na verdade, entendemos que a posição assumida pelo devedor consubstancia um incumprimento, pelo menos com negligência grave, da obrigação de entregar o rendimento disponível à fiduciária, uma vez que estava ciente dessa sua obrigação legal, para cujo incumprimento não adiantou qualquer justificação plausível. Não se trata de um descuido, imprevidência, ou desconhecimento, mas antes de uma conduta que, claramente, viola o dever de entregar à fiduciária o rendimento disponível, logo que por si recebido, nada fazendo o devedor para impedir tal violação. Nem se justifica, que terminado o período de cessão de cinco anos ainda estivesse em dívida mais de 80% de todo o rendimento disponível auferido, num valor global significativamente elevado (9.168,22 €), o que, sem dúvida, como se refere no despacho recorrido, prejudicou a satisfação do interesse dos credores sobre a insolvência. Por isso, só podemos concluir que a factualidade dada por assente e acima transcrita demonstra, pelo menos, uma actuação gravemente negligente.[8]
4.2.3. Em suma, da factualidade dada por assente, conclui-se que ocorreu por parte do ora Recorrente uma flagrante violação das suas obrigações de devedor, ao não entregar de imediato ao fiduciário todos os seus rendimentos objecto de cessão. Esta conduta do devedor, imputável a título de negligência grave, prejudicou a satisfação dos créditos dos credores da insolvência. Por isso, não merece o benefício da exoneração do passivo restante e o fresh start.º que este instituto em si encerra.
Verificados que estão todos os pressupostos que determinam a recusa do procedimento de exoneração do passivo restante, improcedem, na totalidade, as conclusões do recurso.
5. Pelo exposto, julgo totalmente improcedente a presente apelação, assim se mantendo ambos os despachos recorridos.
Custas pelo apelante (artigo 527º, nº 1 do CPC).
Lisboa, 23/04/2025
Nuno Teixeira
_______________________________________________________ [1] Cf. TRL, Ac. de 06/12/2022 (proc. 35/13.3TBPVC.L1), disponível em https://www.direitoemdia.pt/search/show/2eea99de0252faa581483401446840143ca0ccdbdb69b103352bc613aafeec47. Segundo este aresto, justifica-se a distinção, porque “do art.º 242.º-A nº1, proémio resulta expressamente que a hipótese de prorrogação aí contemplada só pode ser colocada durante o período de cessão – “antes de terminado aquele período e por uma única vez” –, logo, em alternativa à cessação antecipada do procedimento de exoneração; ao invés, o art.º 244.º, nº1 refere que o juiz decide, findo que esteja o período de cessão – “nos 10 dias subsequentes ao termo do período da cessão” –, sobre a respetiva prorrogação, ou sobre a concessão ou não da exoneração do passivo restante do devedor, salientando-se a utilização da disjuntiva “ou”, que implica alternatividade entre uma de três hipóteses possíveis quanto ao juízo valorativo (prorrogar/conceder/recusar).” CATARINA SERRA também considera que a distinção entre as duas situações faz sentido, na medida em que, se “um dos pressupostos da norma [artigo 244º, nº 1] é o de que não tenha havido lugar à cessação antecipada, a prorrogação desempenha necessariamente uma função diferente da de evitar a cessação antecipada” (cfr. Lições de Direito da Insolvência, 3ª Edição, Coimbra, 2025, pág. 792). [2] Cfr. Código de Processo Civil Anotado, 2ª Edição, Coimbra, 2020, pág. 24. [3] Cfr. neste sentido, GONÇALO GAMA LOBO, “A exoneração do passivo restante depois da Diretiva 2019/1023: a Lei nº 9/2022”, in Revista de Direito da Insolvência, nº 7, 2023, pág. 93, que, em seu abono, cita o Ac. do TRG de 19/01/2023 (proc. 5708/16.6T8GMR), disponível em https://www.direitoemdia.pt/search/show/121335a796fdd4ee74609bc244c95522e3d26e78165731524af3239bb27ef6ea.
No mesmo sentido, ver da mesma Relação, o Ac. de 11/05/2023 (proc. 3718/15.0T8VNF.G1), disponível emhttps://www.direitoemdia.pt/search/show/d5194586c024e6c71cfab7a9ad49387f26590dfbf0d80d98d21a5fe59be343d3, em cujo sumário se consignou que “o Tribunal não tem legitimidade para, oficiosamente, proferir uma decisão de prorrogação do período de cessão, nos termos do nº 1 do artigo 242º-A do CIRE, pelo que, caso o faça, viola o princípio do dispositivo e a respectiva decisão é ilegal. [4] Cfr. CATARINA SERRA, Ob. Cit., pág. 772. [5] Cfr. neste sentido, TRC, Ac. de 22/06/2020 (proc. 6137/18.2T8CBR-B.C1), disponível em https://www.direitoemdia.pt/search/show/3e328e5e4d5b1f694d108ffb72da4ede77e51ff8b92391eea34b62d4538214ea. [6] Cfr. TRC, Ac. de 15/01/2022 (proc. 1249/16.0T8CBR.C1), disponível em https://www.direitoemdia.pt/search/show/ca62c88a1e1202d5b4a376035767e1c4b14a13a78a32fb3dd23524d87576daba, em cujo sumário se consignou que “A obrigação de entrega do rendimento mensal disponível não se encontra dependente de qualquer interpelação ou liquidação anual por parte do fiduciário ou do tribunal, sendo o devedor obrigado a, mensalmente e imediatamente, assim que lhe é processado o vencimento desse mesmo mês, proceder à entrega da parte que exceda o valor que foi autorizada a reter para a sua subsistência.” [7] Apenas aquando do requerimento de 13/10/2022, em que pediu a prorrogação do período de cessão, veio o devedor alegar que é doente cardíaco e diabético, doenças que se agravaram nos últimos tempos, que o impediram de trabalhar e que causaram a sua reforma. Em resultado dessa situação, diz que perdeu rendimentos necessários às suas despesas correntes, pese embora não quantifique nem as receitas, nem as despesas. [8] Para a doutrina civilística, a negligência caracteriza-se pela “violação de um dever objectivo de cuidado”, podendo assumir a forma de negligência consciente ou de negligência inconsciente, sendo que em ambas o agente viola o dever de diligência a que estava obrigado. Na primeira, “o agente previu o resultado lesivo e, confiando na não-produção dele, não conformou a sua conduta de acordo com o padrão exigível de cuidado”, na segunda, “o agente nem sequer previu o resultado, sendo, no entanto censurado porque o homem médio, naquelas circunstâncias, tê-lo-ia previsto” (cfr. ELSA VAZ DE SEQUEIRA, “Anotação ao artigo 483º” in Comentário Código Civil. Direito das Obrigações. Das Obrigações em Geral (coord. de JOSÉ BRANDÃO PROENÇA, Universidade Católica Editora, Lisboa, 2018, pág. 272 e ss.; MAFALDA MIRANDA BARBOSA, Lições de Responsabilidade Civil, Principia, Lisboa, 2017, pág. 237).
Ora, quando no artigo 243º, nº 1, alínea a) do CIRE o legislador se refere a negligência grave estará a afastar implicitamente a simples imprudência, irreflexão, o impulso leviano, pretendendo referir-se à conduta do agente que se mostre altamente reprovável, à luz do mais elementar senso comum. A negligência grave diz respeito a um grau de diligência em que foram ignorados todos os padrões, todos os devidos deveres de cuidado, correspondendo a uma negligência grosseira, por manifesto desleixo do agente.