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INVENTÁRIO
RECLAMAÇÃO CONTRA A RELAÇÃO DE BENS
IMÓVEL
REGIME IMPERATIVO DE SEPARAÇÃO DE BENS
REGIME DE BENS
DECLARAÇÃO DE VONTADE
ERRO NA DECLARAÇÃO
Sumário
Sumário: (da responsabilidade da relatora): 1 – O circunstancialismo da aquisição de um imóvel por um dos cônjuges casado no regime imperativo de separação de bens, que se encontra em erro quanto ao regime de bens, por achar que é o regime de comunhão de adquiridos, erro esse transposto para a escritura, deve levar a concluir que a sua vontade (presente na sua declaração negocial) foi no sentido de adquirir o imóvel não só para si, mas também para o seu cônjuge. 2 - Se de acordo com os demais elementos do negócio for possível concluir que a aquisição do bem foi realizada com bens de ambos os cônjuges, na proporção de 50/50, por ambos terem outorgado o mútuo com hipoteca necessário para aquela aquisição, permite convocar a doutrina do AUJ 12/2015 que pese embora se aplique a enquadramento diverso, deve ser igualmente aplicável em nome do princípio da preservação da coerência axiológica do sistema jurídico. 3 – Em conformidade, demonstrado que o bem foi adquirido com dinheiro dos dois cônjuges casados em regime de separação de bens, importa concluir que o cônjuge outorgante no negócio de aquisição do imóvel adquiriu também para o outro cônjuge, como uma espécie de representante admitido pelo AUJ.
Texto Integral
Acordam os Juízes na 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa
RELATÓRIO
1 Os apelantes são requerentes e o apelado, requerido, nos autos de inventário para partilha da herança aberta por óbito de AS que interpuseram contra o apelado.
2 AS faleceu em 16/10/1993 no estado de casado com OS.
3 AS, então com 66 anos de idade, e OS, então com 55 anos de idade, casaram no dia 31/7/1978 sob o regime imperativo de separação de bens.
4 À data do falecimento eram herdeiros de AS, OS, cônjuge e os requerentes do inventário, seus netos.
5 OS faleceu no dia 5/5/2017, no estado de viúva de AS.
6 Desde a data do falecimento de AS até ao seu falecimento, em 5/5/2017, OS desempenhou as funções de cabeça de casal.
7 MA, requerido no inventário, é filho de OS.
8 No dia 27 de maio de 1982, por escritura pública de compra e venda e mútuo com hipoteca, AS e OS figuraram como segundos outorgantes, tendo ali sido identificados nos seguintes termos:
“Segundos: AS e sua esposa, OS, casados no regime de comunhão de adquiridos, residentes (…)”
9 Na escritura fez-se ainda constar:
“(…)
Pela primeira outorgante foi dito:
Que vende ao segundo outorgante, livre de qualquer ónus e pelo preço de UM MILHÃO E QUINHENTOS MIL ESCUDOS, quantia que já recebeu do comprador, o primeiro andar esquerdo, que constitui a fração autónoma designada pela letra D, adiante identificada.
Pelo segundo outorgante foi dito:
Que aceita esta venda nos termos exarados.
Pelos segundo e terceiro outorgantes foi dito:
Que (…) ajustam um contrato de empréstimo nos termos das cláusulas constantes do documento complementar anexo que expressamente declararam conhecer e aceitar e que faz parte integrante da presente escritura e ainda das seguintes cláusulas:
Cláusula primeira: Os segundos outorgantes confessam-se solidariamente devedores à Caixa Económica de Lisboa da quantia de UM MILHÃO QUATROCENTOS E VINTE E CINCO MIL ESCUDOS que neste ato recebem a título de empréstimo para aquisição do imóvel adiante hipotecado, que se destina exclusivamente à sua habitação permanente (…).”
10 Em 6/9/2023, foi, por averbamento, retificada a escritura de 27/5/1982 “no sentido de ficar a constar que os segundos outorgantes AS e OS são casados entre si sob o regime imperativo de separação de bens e não como por lapso ficou consignado”.
11 Pela Ap. (…,) mostra-se registada na Conservatória do Registo predial de Seixal a aquisição por AS, casado com OS no regime da comunhão de adquiridos, da fração autónoma correspondente ao primeiro esquerdo do prédio sito na Rua (…).
12 Com o requerimento de inventário, em 22/3/2024, os requerentes juntaram relação de bens, qual, além do mais, relacionaram o seguinte bem
“1/2 Fração autónoma designada pela letra “D”, correspondente ao primeiro andar esquerdo do prédio sito na Rua, no Seixal (…).”
13 Com o requerimento de inventário CP juntou compromisso de honra de desempenho de funções de cabeça de casal.
14 Citado para os termos do inventário, MA reclamou da relação de bens, requerendo que a mesma considerasse o ativo e passivo respeitante à administração do imóvel.
15 Com a resposta à reclamação, a 31/7/2024, os requerentes vieram também apresentar nova relação de bens retificada relativamente ao bem imóvel passando a constar nos seguintes termos:
“Fração autónoma designada pela letra “D”, correspondente ao primeiro andar esquerdo do prédio sito na Rua, no Seixal (…).”
16 Em 10/92024, o apelado veio responder à relação de bens retificada pedindo que a Verba n.º 1 (respeitante ao imóvel) seja considerada em conformidade com a relação de bens inicialmente apresentada pelos Requerentes.
17 O tribunal de primeira instância proferiu quanto a esta questão o seguinte despacho:
“Da rectificação da relação de bens apresentada inicialmente
Vieram os Requerentes peticionar a necessária rectificação da relação de bens apresentada inicialmente no que concerne ao imóvel relacionado na Verba n.º 1 do Activo da Relação de Bens.
Para o efeito alegam em síntese que, o supra referido imóvel foi adquirido pelo Inventariado, através de contrato de compra e venda, registado em 05 de Abril de 1982, e que a sobredita compra e venda foi celebrada unicamente pelo Inventariado, o que se demonstra pelo facto de apenas ele surgir como “sujeito activo” do negócio.
E, mais invoca que se analisarmos a Escritura Pública do Contrato de Compra e Venda celebrado, verificamos que apenas o Inventariado comprou o Imóvel:
«(…) Pela primeira outorgante foi dito: Que vende ao segundo outorgante, livre de quaisquer ónus e pelo preço de UM MILHÃO E QUINHENTOS MIL ESCUDOS, quantia que já recebeu do comprador, o primeiro andar esquerdo, que constitui a fracção autónoma designada pela letra D, adiante identificada. Pelo segundo outorgante foi dito: Que aceita esta venda nos termos exarados(…)». Invocam ainda que a referência à parte compradora é sempre feita no singular e no masculino (“o” comprador, “o” segundo outorgante), e que a referência ao Inventário e à sua então mulher, com recurso ao plural (“os” segundos outorgantes), apenas surge mais adiante, na dita escritura, quando o Senhor Notário faz menção ao contrato de empréstimo celebrado entre estes e o Montepio Geral. Mais, que OS apenas interveio na dita escritura como mutuária, quando, em conjunto com o Inventariado, contratou um empréstimo ao Montepio Geral. E, portanto, pugna a final que dúvidas não podem restar de que, tendo o Imóvel relacionado como Verba n.º 1 do Activo da Relação de Bens sido adquirido unicamente pelo Inventariado na constância do casamento, o mesmo constitui um bem próprio do Inventariado. Pelo que, consequentemente, OS não tinha direito à meação do sobredito imóvel enquanto mulher do Inventariado.
Por seu turno, notificado veio o Interessado MA invocar em síntese que, a aquisição do imóvel objecto dos autos foi feita por ambos os falecidos e não apenas pelo Inventariado AS, independentemente do regime de bens que entre eles vigorasse.
Mais, alega que tal se comprova pelo teor da Escritura de compra e venda em que
figuram como Segundos Outorgantes – AS e OS, casados no regime da comunhão de adquiridos, e que ambos assinaram a escritura de compra do imóvel na qualidade de segundos outorgantes e compradores e igualmente o documento complementar que constitui o contrato de mútuo.
Deste modo, pugnam a final que deverá prosseguir o presente Processo de Inventário para partilha de bens do Inventariado correspondendo o Activo – Bem Imóvel indicado como Verba n.º 1 em conformidade com a relação de bens inicialmente apresentada pelos Requerentes.
Vejamos.
Compulsados os autos, designadamente a Escritura Pública que se mostra junta (a qual respeita ao imóvel identificado na verba 1 da relação de bens) resulta que na mesma consta a menção «(…) segundos AS( …) e a sua esposa OS.
Acresce que, a referida escrita encontra-se igualmente assinada por OS.
Pese embora, de salientar que existem casos específicos, em que a lei exige que o casamento seja celebrado sobre o regime da separação de bens, conforme consta no artigo 1720º do Código Civil, designadamente (…) 1. Consideram-se sempre contraídos sob o regime da separação de bens:
(…) b) O casamento celebrado por quem tenha completado sessenta anos de idade. Ora, in casu, resultando do assento de casamento que o inventariado na altura em que contraiu casamento tinha 66 anos, constata-se que o mesmo e OS necessariamente contraíram matrimónio sob o regime imperativo da separação de bens (ou seja, independentemente da sua vontade real ou presumida ( sendo que esta última já não se pode aferir em virtude do falecimento de ambos). Aliás, tal resulta efectivamente do respectivo assento de casamento.
Pelo que, no caso em apreço, tendo em conta que o inventariado e OS contraíram matrimónio no regime da separação de bens , e considerando-se que efectivamente OS (face ao constante na escritura pública – que consubstancia documento autêntico com força probatória plena – cfr. artigos 369.º, e 371.º do C. Civil, ) interveio enquanto segunda outorgante , considera-se que o bem imóvel em causa foi adquirido em regime de compropriedade.
*
Nestes termos e face ao exposto, considero improcedente a reclamação à relação de bens apresentada pelo interessado MA”.
18 Inconformados, os apelantes interpuseram recurso do despacho que decidiu o incidente de reclamação à relação de bens apresentada pelo Cabeça de Casal, também apelante, CP.
19 Concluíram as alegações, em suma, da seguinte forma:
CONCLUSÕES DOS APELANTES
1) Na douta Sentença em crise, nomeadamente em seu trecho decisório, o Tribunal a quo não conheceu do pedido de retificação da relação de bens formulado pelos Apelantes em requerimento datado de 31 de julho de 2024 (Ref.ª CITIUS 40091219).
2) Assim, salvo melhor opinião, está a douta Sentença em crise inquinada pelo desvalor da nulidade, prevista no artigo 615.°, n.° 1, alínea d), do C.P.C., com fundamento em omissão de pronúncia, em sede do trecho decisório, nulidade que se argui, com as necessárias consequências.
3) Os Interessados, ora Apelantes, interpõem o presente recurso da douta Sentença de fls..., proferida pelo Tribunal de 1.a instância que considerou improcedente a reclamação à relação de bens apresentada pelo Interessado, MA, ora Apelado.
4) Com efeito, o Tribunal a quo considerou que o imóvel constante de verba n.° 1 da relação de bens tinha sido adquirido pelo Inventariado e por OS em regime de compropriedade, na proporção de 1/2.
5) À data do casamento, o Inventariado e OS encontravam-se no estado de casados sob o regime imperativo da separação de bens, em razão do cônjuge marido ultrapassar os 66 anos de idade.
6) Em sede de referida escritura, o Inventariado e OS encontram-se descritos como Segundos Outorgantes. Por conseguinte, tal facto levou o Tribunal a quo a concluir que a vontade negocial das partes era a da aquisição em compropriedade.
7) Por análise da referida escritura se reporta uma clara distinção entre o contrato de mútuo e o contrato de compra e venda, senão vejamos:
8) Em sede do contrato de compra e venda, quando o notário lavra as cláusulas referentes à aquisição do imóvel, o mesmo faz uma expressa menção ao segundo outorgante, e não aos segundos outorgantes.
9) No que respeita o contrato de mútuo, quando o notário lavra as cláusulas referentes ao mútuo, o mesmo faz uma expressa menção aos segundos outorgantes, no plural.
10) Nos termos do artigo 58.°, n.° 2 do Código do Notariado (doravante, CN), na redação dada pelo Decreto-lei 47619, de 31 de Março, “A terminologia dos actos será aquela que, em linguagem jurídica, melhor traduza a vontade das partes, expressa nas suas instruções, devendo, porém, evitar-se a inserção nos documentos de tudo o que seja supérfluo.” (sublinhado e negrito de nossa autoria).
11) Assim sendo, presume-se que, por determinação legal, o referido Notário exprimiu, da melhor forma possível, as vontades das partes na realização do negócio, i.e. que a compra apenas pretendeu visar o segundo outorgante (no singular e masculino, ou seja, o Inventariado), e o mútuo pretendeu visar ambos os segundos outorgantes.
12) Mas mesmo que assim não se entendesse, o que não se concede e somente se concebe por mero dever de patrocínio, sempre se deveria entender que a vontade das partes foi a da aquisição do imóvel, em regime de propriedade total, pelo Inventariado.
13) Porquanto, e reiterando o exposto, o notário ao lavrar a escritura de compra e venda e mútuo com hipoteca estava incumbido da tarefa de exprimir a vontade negocial das partes.
14) Assim sendo, e aquando da realização da referida escritura, o Notário estaria incumbido de apresentar duplicado da escritura de compra e venda para a devida tributação do Inventariado por SISA.
15) Ora, caso a vontade exprimida das partes tivesse sido a da aquisição em compropriedade, então quer o Inventariado, quer OS teriam de constar da caderneta predial urbana como comproprietários na proporção de 1/2.
16) O que não acontece in casu.
17) Porquanto, e aquando do cumprimento das obrigações impostas pelo artigo 144.° do SISA, o Notário declarou o Inventariado como único e exclusivo proprietário do imóvel sub judice.
18) Demonstrando-se, deste modo, a vontade das partes em que o Inventariado adquirisse o imóvel em propriedade total, e não em regime de compropriedade com OS.
19) Em conformidade, andou mal o Tribunal a quo na Sentença recorrida, porquanto, atento exposto, deveria o pedido de retificação da relação de bens apresentado pelos Apelantes, em 31 de julho de 2024, ter sido declarado procedente e, em consequência, o imóvel sub judice ter sido relacionado na totalidade.
20) Mercê do exposto, e sempre com o mui douto suprimento de V/Exa., deverá revogar-se a douta Sentença recorrida, substituindo-se a mesma por douto Acórdão que aprecie, e julgue procedente, o pedido de retificação da relação de bens apresentada pelos Apelantes em 31 de julho de 2024, com as demais consequências legais.
OBJETO DO RECURSO
20 O objeto do recurso é delimitado pelo requerimento recursivo, podendo ser restringido, expressa ou tacitamente pelas conclusões das alegações, sem prejuízo das questões que sejam de conhecimento oficioso e daquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras (artigos 635.º, n.ºs 3 e 4, 639.º, n.º 1 e 608.º, n.º 2, do CPC). O tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes para sustentar os seus pontos de vista e é livre na interpretação e aplicação do direito (artigo 5.º, n.º 3, do CPC).
21 À luz do exposto, o objeto deste recurso consubstancia-se em analisar e decidir o seguinte:
- Nulidade por omissão de pronúncia;
- Erro de julgamento relativamente ao bem imóvel relacionado.
FUNDAMENTOS DE FACTO
22 Para decidir, o tribunal leva em consideração o que consta do relatório.
CONHECIMENTO DO OBJETO DO RECURSO Nota prévia
23 Na análise das questões objeto de recurso, todas as referências jurisprudenciais respeitam a acórdãos publicados em www.dgsi.pt, exceto quando expressamente mencionada publicação diferente. Enquadramento legal
24 O enquadramento legal relevante a considerar na análise e solução deste caso é o seguinte: Artigo 615.º, do Código de Processo Civil
1 - É nula a sentença quando:
a) Não contenha a assinatura do juiz;
b) Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão;
c) Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível;
d) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento;
Artigo 1720.º, n.º 1, al. b) do Código Civil
Consideram-se sempre contraídos sob o regime da separação de bens:
b) o casamento celebrado por quem tenha completado sessenta anos de idade.
Conservam a qualidade de bens próprios:
Artigo 1723.º do Código Civil
Conservam a qualidade de bens próprios:
a) Os bens sub-rogados no lugar de bens próprios de um dos cônjuges por meio de troca direta;
b) O preço dos bens próprios alienados;
c) Os bens adquiridos ou as benfeitorias feitas com dinheiro ou valores próprios de um dos cônjuges, desde que a proveniência do dinheiro ou valores seja devidamente mencionada no documento de aquisição, ou em documento equivalente, com intervenção de ambos os cônjuges.
Artigo 1724.º, al. b) do Código Civil
Fazem parte da comunhão, os bens adquiridos pelos cônjuges na constância do matrimónio que não sejam exetuados por lei.
Artigo 1736.º, n.º 2,do Código Civil
2. Quando haja dúvidas sobre a propriedade exclusiva de um dos cônjuges, os bens móveis ter-se-ão como pertencentes em compropriedade a ambos os cônjuges.
Artigo 527º, nº 1 do Código de Processo Civil
A decisão que julgue a ação ou algum dos seus incidentes ou recursos condena em custas a parte que a elas houver dado causa ou, não havendo vencimento da ação, quem do processo tirou proveito.
1. Nulidade – artigo 615.º, n.º 1, al. d)m do Código de Processo Civil, por omissão de pronúncia
25 O artigo 615.º, nº1, alínea d) do Código de Processo Civil, comina com a nulidade a sentença (ou um despacho) – artigo 613.º, n.º 3, do Código de Processo Civil) proferida sem que o juiz se pronuncie sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento. Trata-se de um vício formal, em sentido lato, traduzido em error in procedendo ou erro de atividade que afeta a validade da sentença. Isto é, ocorre quando na decisão é desrespeitada uma norma que impõe um determinado um sentido de atuação processual, do que se distingue do error in judicando, em que o juiz não integra de forma juridicamente correta os factos no direito. Não aplica o direito da forma certa.
26 O artigo 608.º, n.º 2, do Código de Processo Civil determina o que deve balizar a verificação da nulidade ao impor ao juiz “resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras; não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras.”
27 De acordo com ALBERTO DOS REIS, Código de Processo Civil Anotado, V Vol., p. 143, “ São, na verdade, coisas diferentes: deixar de conhecer de questão de que devia conhecer-se, e deixar de apreciar qualquer consideração, argumento ou razão produzida pela parte. Quando as partes põem ao tribunal determinada questão, socorrem-se, a cada passo, de várias razões ou fundamentos para fazer valer o seu ponto de vista; o que importa é que o tribunal decida a questão posta; não lhe incumbe apreciar todos os fundamentos ou razões em que elas se apoiam para sustentar a sua pretensão.”
28 A omissão de pronúncia cominada com nulidade circunscreve-se às questões/pretensões formuladas de que o tribunal tenha o dever de conhecer para a decisão da causa e de que não haja conhecido, realidade distinta da invocação de um facto ou invocação de um argumento pela parte sobre os quais o tribunal não se tenha pronunciado, que não integram o conceito de questão a decidir.
29 Neste mesmo sentido ver entre outros, Acórdãos do STJ 12.1.2021, Graça Amaral, 7693/19, de 6.1.2020, Bernardo Domingos, de 7.7.94, Miranda Gusmão, BMJ nº 439, p. 526 e de 22.6.99, Ferreira Ramos, CJ 1999 – II, p. 161, da Relação de Lisboa de 10.2.2004, Ana Grácio, CJ 2004 – I, p. 105, de 4.10.2007, Fernanda Isabel Pereira, de 6.3.2012, Ana Resende, 6509/05, acessíveis em www.dgsi.pt/jtrl.
30 A nulidade também não se verifica quando a questão que deveria ter sido decidida se mostra prejudicada pela decisão dada a outras questões. O conhecimento de uma questão pode fazer-se tomando posição direta sobre ela, ou resultar da ponderação ou decisão de outra conexa que a envolve ou a exclui. Não ocorre nulidade da sentença por omissão de pronúncia quando nela não se conhece de questão cuja decisão se mostra prejudicada pela solução dada anteriormente a outra - cf. Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 8.3.2001, Ferreira Ramos e de 3.10.2002, Araújo de Barros, acessíveis em www.dgsi.pt.
31 Não há omissão de pronúncia quando a matéria, tida por omissa, ficou implícita ou tacitamente decidida no julgamento da matéria com ela relacionada, competindo ao tribunal decidir questões e não razões ou argumentos aduzidos pelas partes – Ac. TRP, de 9/6/2011, processo 5/11, Filipe Caroço - O juiz não tem que esgotar a análise da argumentação das partes, mas apenas que apreciar todas as questões que devem ser conhecidas, ponderando os argumentos na medida do necessário e suficiente – Ac. STJ, de 30/4/2014, processo 391/10, Mário Morgado.
32 Os apelantes não têm razão na afirmação que fazem de que o tribunal não conheceu do pedido de retificação da relação de bens no seu trecho decisório.
33 A decisão visou apreciar a reclamação deduzida pelo apelado MA à relação de bens inicialmente apresentada pelos apelantes e, incidentalmente, apreciou a questão da retificação da relação de bens relativamente à qual concluiu não ter interferência na relação de bens apresentada. Ou seja, o tribunal decidiu manter a relação de bens inicialmente apresentada.
34 Assim, no segmento decisório, a menção apenas à manutenção da primeira reclamação de bens, na sequência de não ter sido considerada a retificação, deve considerar-se que implicitamente está a indeferir a rejeição da retificação, com ela relacionada.
35 Demonstração de que a questão foi apreciada e decidida, é que os apelantes recorreram precisamente da decisão do tribunal quanto à apreciação que fez do seu pedido de retificação. O tribunal de primeira instância não deu razão aos apelantes e decidiu manter a relação inicial.
36 Improcede assim este fundamento de recurso.
2. Erro de julgamento
37 Importa analisar e decidir se o imóvel que constitui a verba 1 da relação de bens era bem próprio do inventariado, ou bem detido em compropriedade com o cônjuge, como entendeu o tribunal de primeira instância.
38 De acordo com os elementos dos autos, designadamente do teor da escritura, podemos com segurança afirmar que os intervenientes agiram convencidos de que o inventariado e a OS eram casados no regime de comunhão de adquiridos. Na própria escritura assim se declara, pese embora o regime de casamento esteja errado, já que o casamento foi celebrado sob o regime imperativo da separação de bens. Esse erro estendeu-se ao registo da aquisição no registo predial.
39 No contexto do referido erro, o argumento dos apelantes de que o inventariado é o único que surge como sujeito ativo do negócio não pode ser valorado e é mesmo irrelevante. É que o negócio de aquisição de bem para a comunhão conjugal apenas requer a intervenção de um dos cônjuges – artigo 1724.º, al. b) do Código Civil. Ora, estando o declarante convencido (em erro) de que, tendo casado sem convenção antenupcial, vigorava o regime supletivo de comunhão de adquiridos – tal como declarou na escritura pública –, dever-se-á concluir que a sua vontade (presente na sua declaração negocial) foi no sentido de adquirir o imóvel não só para si, mas também para o seu cônjuge. Tudo está, assim, em saber se esta vontade pode ou deve ser respeitada”.
40 Pelos mesmos motivos, o argumento da SISA não é válido. Sendo certo que não é por este que se demonstra a propriedade, também não indicia o que foi a vontade das partes. O pagamento da SISA apenas seguiu quem na escritura figurou como adquirente.
41 Não podendo a vontade das partes na outorga da escritura ser acertada à luz do argumento invocado pelos apelantes, há que olhar para os demais elementos do negócio.
42 Consideramos, em particular, que a aquisição foi feita com recurso ao crédito, tendo, portanto, sido celebrado no mesmo instrumento, contrato de mútuo com hipoteca. E, neste negócio intervieram os dois cônjuges. Ora, sem uma justificação adicional, que não foi apresentada, dificilmente se concebe que o cônjuge do inventariado aceitasse assumir os encargos de um mútuo relativamente a um imóvel que sabia estar a ser adquirido em exclusivo pelo inventariado.
43 O erro que a escritura evidencia, e a circunstância do cônjuge ter assumido a posição de principal devedora do empréstimo, na mesma posição que o inventariado, são fortes indícios de que o casal estava convencido de que a aquisição era feita para a comunhão conjugal, que afinal era impossível existir.
44 No descrito enquadramento, e à luz das declarações que os cônjuges assumiram na escritura, a solução que melhor tutela a posição jurídica patrimonial de cada um dos cônjuges à luz do que foi a sua vontade, deve considerar que o valor do imóvel foi pago com dinheiro pertencente a ambos os cônjuges, na proporção de 50% para cada (evidenciado pela circunstância do empréstimo para a aquisição do imóvel ter sido assumido por ambos, nos mesmos termos). Isto, é, podemos ter por certo que a aquisição do imóvel foi feita com dinheiro dos dois cônjuges, na proporção de 50/50 para cada.
45 Aliás, não fosse esse o pressuposto, não haveria o cônjuge de assumir o mútuo como principal devedora. Pelo menos, não de acordo com as regras de lógica e coerência. Ainda que fosse necessário ao banco assegurar o risco do seu crédito, poderia o cônjuge ter assumido a posição de garante do empréstimo.
46 É, pois, inegável concluir-se que tendo o inventariado outorgado no pressuposto (ainda que errado) de que comprava para comunhão conjugal e a aquisição sido realizada com dinheiro emprestado a ambos, pelo qual ambos pagaram capital e juros, foi pelo casal pretendido adquirir o imóvel para essa comunhão.
47 Aliás, a realidade das coisas mostra que, mesmo no regime de separação de bens, pesem embora existam duas massas patrimoniais autónomas, numa relação de casamento dificilmente não se verificará uma cooperação e uma economia comum conjugal, em que, na prática, os bens são adquiridos e utilizados para a economia comum do casal e nesse pressuposto. A propósito dos bens móveis, o legislador no nº 2 do art.º 1736.º do Código Civil, estabeleceu mesmo uma presunção legal aplicável de compropriedade.
48 Neste enquadramento, podemos concluir que caso não estivessem em erro acerca do regime de bens do casamento, e soubessem que era impossível adquirirem o bem para a comunhão conjugal, teriam declarado textualmente adquiri-lo em regime de compropriedade, pois só esse é o que, no contexto da sua separação de bens imperativa, melhor tutelaria os interesses comuns do casal pela forma como o comportamento destes evidencia que terão pretendido.
49 Notamos mesmo que quando interpuseram a ação, os apelantes relacionaram apenas 1/2 do imóvel na convicção, certamente, de que se tratava de bem detido pelos dois cônjuges. Isto é, até ao pedido de retificação, os apelantes sempre atuaram nos autos manifestando que o bem em causa pertencera ao seu avô e à cônjuge deste, em igual proporção.
50 Admitir de forma diversa, que a OS, cônjuge, apenas seria responsável por pagar, sem adquirir, e na ausência de outra causa justificativa para tal, sempre poderíamos estar perante uma situação de enriquecimento sem causa a ser tutelado nos termos da lei.
51 Ainda em reforço deste entendimento, e atenta a proximidade das posições jurídicas visadas tutelar, importa convocar a aplicação do AUJ 12/2015, segundo o qual “[e]stando em causa apenas os interesses dos cônjuges, que não os de terceiros, a omissão no título aquisitivo das menções constantes do artigo 1723.º, al. c) do Código Civil, não impede que o cônjuge, dono exclusivo dos meios utilizados na aquisição de outros bens na constância do casamento no regime supletivo da comunhão de adquiridos, e ainda que não tenha intervindo no documento aquisitivo, prove por qualquer meio, que o bem adquirido o foi apenas com dinheiro ou seus bens próprios; feita essa prova, o bem adquirido é próprio, não integrando a comunhão conjugal”.
52 É objetivo desta doutrina integrar os cônjuges na sua posição jurídica patrimonial, quando não tenham sido consideradas no título aquisitivo as menções constantes do artigo 1723.º, al. c) do Código Civil e o bem tenha sido adquirido com bens próprios do cônjuge não interveniente no título de aquisição no âmbito de um regime de comunhão de adquiridos.
53 A situação dos autos, que reconhecemos não se enquadra diretamente no AUJ, apresenta, no entanto, contornos que justificam a aplicação da doutrina daquele, em nome do princípio da preservação da coerência axiológica do sistema jurídico.
54 Não existem dúvidas de que na situação dos autos apenas estão em causa os interesses dos cônjuges (nas quais os herdeiros ingressaram nos precisos termos). De resto, o ensino que podemos aproveitar do AUJ é que este visa tutelar a posição do cônjuge, cujos bens próprios foram utilizados pelo outro cônjuge para a aquisição de um bem na constância do casamento (em regime de comunhão de adquiridos), em negócio em que o titular dos bens que serviram para a aquisição não interveio, e no negócio foi omitida a natureza própria dos bens que serviram para a aquisição.
55 Ora, neste caso, a posição jurídica visada tutelar não é diversa, demonstrado que está que o bem foi adquirido com dinheiro dos dois cônjuges casados em regime de separação de bens. Neste contexto, e aplicando a doutrina daquele AUJ, só podemos concluir que o inventariado adquiriu também para a OS, como uma espécie de representante admitido pelo AUJ, que, neste caso, deve considerar-se por maioria de razão, pelas razões que já mencionámos.
56 Em conclusão, deve manter-se a decisão recorrida que manteve a relação de bens inicialmente apresentada.
3. Custas
57 Nos termos do artigo 527.º, do Código de Processo Civil, os apelantes deverão suportar as custas (na modalidade de custas de parte), porque vencidos, face à decisão proferida na presente apelação.
DECISÃO
Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação em julgar improcedente o presente recurso, confirmando a decisão impugnada.
Custas pelos apelantes.
O presente acórdão mostra-se assinado e certificado eletronicamente.
Lisboa, 29 de abril de 2025
Rute Lopes
Ana Rodrigues da Silva
Paulo Ramos de Faria