Ups... Isto não correu muito bem. Por favor experimente outra vez.
ACÇÃO DE REIVINDICAÇÃO
2ª INSTÂNCIA
MORTE DO ARRENDATÁRIO
TRANSMISSÃO DO ARRENDAMENTO
SUCESSÃO DE LEIS NO TEMPO
Sumário
Sumário: (art.º 663º nº 7 do CPC) – Da responsabilidade exclusiva do relator) 1. Na presente ação de revindicação o imóvel reivindicado foi objeto de um contrato de arrendamento celebrado, em 1 de abril de 1970, tendo o inquilino falecido em 1978, quando a lei, por força do Art. 1110.º n.º 1 do C.C. então vigente, estabelecia que a posição contratual de inquilino não era comunicável ao cônjuge, tendo-se então transmitido o direito ao arrendamento para a sua esposa, nos termos do Art. 1111.º n.º 1, n.º 2 al. a) e n.º 3, com redação do Dec.Lei n.º 293/77 de 20/07. 2. O cônjuge do primitivo inquilino veio também a falecer em 1997, no âmbito da vigência do R.A.U., aprovado pelo Dec.Lei n.º 321-B/90 de 15/10, com as alterações introduzidas pelo Dec.Lei n.º 257/95 de 30/9, que ainda consagrava a regra de incomunicabilidade do direito ao arrendamento no seu Art. 83.º. 3. O direito ao arrendamento transmitiu-se assim, por uma segunda vez, para o filho da arrendatária, nos termos do Art. 85.º n.º 1 al. b) do R.A.U., sendo esse descendente, ao tempo, já casado, sob o regime de comunhão de adquiridos, com a ré nesta ação de reivindicação. 4. Este último mencionado inquilino veio a falecer em 2021, no estado de casado com a ré, que residia no locado com o seu marido. 5. O direito ao arrendamento não se pode transmitir, por uma terceira vez, ao cônjuge deste último falecido inquilino, nos termos do Art. 57.º e “ex vi” Art. 26.º n.º 2, ambos do NRAU, porquanto a ré é apenas nora do primitivo arrendatário e desses normativos decorre apenas ser permitida uma transmissão da posição de inquilino por contrato de arrendamento. 6. Mesmo que se sustente a aplicabilidade imediata do Art. 1068.º do C.C., por força do Art. 59.º do NRAU e Art. 12.º n.º 2, 2.ª parte, do C.C., como tem sido doutrina e jurisprudência mais dominante, o que decorre desse normativo é que o direito ao arrendamento comunica-se ao cônjuge «nos termos gerais e de acordo com o regime de bens». 7. No caso, o direito ao arrendamento transmitiu-se ao cônjuge da ré, após o casamento de ambos, mas por via de sucessão legal e, por isso, trata-se de direito próprio do inquilino, excluído da comunhão de bens (cfr. Art. 1722.º n.º 1 al. b) do C.C.), não se comunicando à ré, por força do regime de bens e nos termos do Art. 1068.º do C.C..
Texto Integral
Acordam os Juízes na 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:
I- RELATÓRIO
MR e MO intentaram a presente ação de reivindicação, em processo declarativo comum, contra MC, pedindo para serem reconhecidas como proprietárias do prédio urbano que identificaram e a condenação da R. a restitui-lo, livre de pessoas e bens.
Para tanto, alegam que a propriedade do imóvel dos autos lhes adveio por compra e sucessão hereditária, sendo a R. viúva do arrendatário que, por sua vez, havia adquirido essa posição na sequência do óbito de sua mãe, que já havia sucedido no direito ao arrendamento após o decesso do seu marido e pai do marido da demandada, tudo nos termos dos artigos 1111.º n.ºs 1 e 3 al. a) do C.C., na redação introduzida pela Lei n.º 293/77 de 20.07 e 85.º, n.º 1, al. a) e n.º 3 do Dec. Lei n.º 321-B/90 de15.10. Por esse motivo aquele arrendamento não se lhe transmitiu, por ter caducado, sendo que a R. não procedeu à entrega do imóvel com pretendido pelas A.A., nele mantendo a residência.
Citada a R. contestou, invocando a comunicabilidade do arrendamento, por virtude do regime de bens do casamento, ao abrigo do artigo do Art. 1068.º do C.C., na redação introduzida pela Lei n.º 6/2006 de 27.02, e bem assim a transmissão do contrato de arrendamento por aceitação das A.A. que, conhecedoras da morte do marido da demandada, continuaram a receber as rendas, que esta ia depositando na conta bancária indicada para o efeito. Arguiu, por fim, ter 77 anos e ser doente oncológica.
Após cumprimento do contraditório, foi proferido despacho saneador, relegando-se para final o conhecimento do pedido deduzido.
Teve lugar audiência final e, após discussão da causa, veio a ser proferida sentença que julgou a ação totalmente improcedente, absolvendo a R. do pedido.
É dessa sentença que as A.A. vieram interpor recurso de apelação, apresentando no final das suas alegações as seguintes conclusões:
I. As Autoras e aqui Recorrentes intentaram a presente ação de reivindicação pretendendo que fosse reconhecido o seu direito de propriedade do terceiro andar direito do prédio urbano destinado a habitação, composto de cave, armazém, rés do chão e três andares com lados Direito e Esquerdo, sito na Rua …., n.º 14 e 14-A, descrito na Conservatória dos Registos Predial e Comercial da Amadora sob o n.º … da freguesia da Falagueira-Venda Nova, inscrito na respetiva matriz predial urbana sob o artigo … e
II. Que a Ré e aqui Recorrida fosse condenada a restituir às Autoras e aqui Recorrentes, livre de pessoas e bens, o terceiro andar direito de tal imóvel, o qual detém sem qualquer título legitimo.
III. Tendo ficado demostrado que se encontra registada a favor das Recorrentes a aquisição da propriedade do imóvel e que, como tal, estas são proprietárias do mesmo.
IV. Tendo ainda ficado demonstrado que:
i. Em 1 de Abril de 1970 foi dado de arrendamento a BC (futuro sogro da Ré e aqui Recorrida), o 3.º andar direito daquele prédio, contra o pagamento de uma quantia mensal e que,
ii. Em 2 de Julho de 1978 este (BC – primitivo arrendatário) faleceu.
iii. Tendo o arrendamento sido transmitido para a mulher deste, FR, a qual continuou a ocupar o 3.º andar direito do prédio dos autos, juntamente com o seu filho (MC) contra o pagamento de uma quantia mensal.
iv. Em 28 de Maio de 1983, MC (filho do primitivo arrendatário) casou com a Ré e aqui Recorrida sem convenção ante nupcial.
v. Em 11 de Julho de 1997 faleceu FR (mulher do primitivo arrendatário).
vi. Em 13 de Fevereiro de 1998, foi celebrado com o filho desta e do primitivo arrendatário um aditamento ao contrato de arrendamento celebrado em 01/04/1970, havendo (novamente) transmissão por morte.
vii. Em 25 de Maio de 2021, morreu MC no estado de casado com a R.
viii. Por carta datada de 27 de Janeiro de 2022, remetida à R. e por esta recebida, a 1.ª A. comunica, através da sua advogada, que o arrendamento não se transmitiu por morte do marido daquela, por virtude de já ter sido objeto de duas idênticas alterações subjetivas, razão pela qual solicitava a devolução do imóvel por falta de título de ocupação do mesmo.
V. No que respeita à transmissão por morte do arrendatário, aos contratos de arrendamento para habitação celebrados anteriormente ou na vigência do Regime do Arrendamento Urbano (RAU) aplica-se o artigo 57.º do Novo Regime do Arrendamento Urbano (NRAU), por via da imposição do artigo 26.º, n.º 2 do mesmo diploma.
VI. O artigo 57.º, n.º 1, alínea a) do NRAU dispõe, que o arrendamento para habitação não caduca por morte do primitivo arrendatário quando lhe sobreviva cônjuge com residência no locado.
VII. Este preceito, porém, não é aplicável ao caso dos autos, como bem se fez notar na sentença recorrida, porquanto a norma apenas se aplica às situações em que está em causa a “morte do primitivo arrendatário” e o primitivo arrendatário era o sogro da Ré e ora Recorrida e não o marido desta agora falecido.
VIII. Este foi também o entendimento da douta sentença de que ora se recorre, pelo que, nesta questão em nada as AA. discordam da mesma.
IX. A discordância das AA. e aqui Recorrentes situa-se no segmento da sentença que considerou aplicável ao contrato em causa o disposto no artigo 1068.º do Código Civil.
X. No caso em apreço, se fosse aplicável o artigo 1068.º do Código Civil na redação introduzida em 2006 pelo NRAU, por a transmissão do contrato de arrendamento para o falecido cônjuge da Ré, ora Recorrida, ter ocorrido em momento posterior ao casamento de ambos, celebrado sob o regime supletivo da comunhão de adquiridos, o direito ao arrendamento comunicar-se-ia ao cônjuge sobrevivo.
XI. Situação inversa ao que sucederia ao abrigo da legislação anterior dada a regra da incomunicabilidade, já que por força da conjugação do artigo 83.º do RAU e artigo 1724.º, alíneas b) do Código Civil, no regime da comunhão de adquiridos não fazem parte da comunhão os bens adquiridos pelos cônjuges na constância do matrimónio, que sejam excetuados por lei e no caso tal sucedia, conforme prescrevia o citado artigo 83.º do RAU.
XII. O artigo 1068.º do Código Civil, suscita assim problemas de aplicação da lei no tempo, pois, embora este artigo, disponha diretamente sobre o conteúdo da relação jurídica arrendatícia, não o faz “abstraindo dos factos que lhes deram origem”, conforme previsto no artigo 12.º, n.º 2, do CC, mas, antes pelo contrário, tendo em consideração tais factos.
XIII. Por isso, entende-se, salvo melhor opinião, que, atento o disposto no art.º 59.º da Lei n.º 6/2006 e no art.º 12.º do Código Civil, o art.º 1068.º do CC aplica-se, a partir da data de entrada em vigor do NRAU (28.06.2006), a todos os novos contratos de arrendamento, aplicando-se ainda aos que já existam que tenham sido celebrados por arrendatário que venha, entretanto, a contrair casamento no regime da comunhão geral de bens.
XIV. Ora, a questão vertida nos presentes autos já existia muito antes da entrada em vigor do Novo Regime do Arrendamento Urbano e o casamento do arrendatário entretanto falecido não foi celebrado no regime da comunhão geral de bens.
XV. Assim sendo, se a comunicabilidade se dá por efeito da celebração do contrato de arrendamento e do casamento, e se ambos ocorreram no domínio da lei que estabelecia imperativamente a incomunicabilidade, o direito ao arrendamento não se comunicou ao cônjuge.
Pedem assim que seja concedido provimento ao recurso e, em consequência, que seja revogada a sentença e, consequentemente, que a R. seja condenada no pedido.
A R. respondeu ao recurso, sobrelevando das suas contra-alegações as seguintes conclusões:
I. Entendem as Recorrentes que andou mal o Tribunal a quo quando decidiu a causa, subsumindo os factos ao disposto no artigo 1068.º do Código Civil, tendo seguido o entendimento da doutrina e jurisprudência maioritárias e a própria ratio legis que presidiu à alteração feita pelo legislador, que, com a entrada em vigor do NRAU, que veio aditar o artigo 1068.º ao Código Civil, o direito do arrendamento do arrendatário se comunicou à Recorrida, na sua qualidade de cônjuge, não separada de pessoas e bens.
II. Para o efeito, sustentam as Recorrentes que o artigo 1068.º do Código Civil apenas poderá ser aplicado a partir da data em vigor do NRAU a todos os novos contratos de arrendamento que sejam celebrados, ou àqueles que já tenham sido celebrados, desde que, pelo arrendatário, venha a ser contraído casamento no regime da comunhão geral de bens (entendimento defendido pela Recorrente).
III. Pelo que, tendo a Recorrida celebrado casamento, no regime geral da comunhão de adquiridos, e tendo o contrato de arrendamento sido celebrado antes da entrada em vigor do NRAU, não há lugar à aplicabilidade daquele preceito legal e, portanto, não existiu qualquer comunicabilidade do direito do arrendamento à Recorrida (entendimento defendido pela Recorrente).
IV. Mas, como se compreenderá e melhor se verá, assim não o é, nem o poderá ser! O Tribunal a quo julgou e decidiu, como seria de esperar, e em estrito rigor e cumprimento da legalidade, aplicando o artigo 1068.º, de acordo com as regras da aplicabilidade temporal também legalmente previstas.
V. O artigo 59.º, n.º 1 do NRAU, é claro quando expressamente determina que o seu regime aplica-se às situações jurídicas que subsistam à sua entrada em vigor.
VI. Por outro lado, compatibiliza-se com o artigo 12.º, n.º 2 do Código Civil, uma vez que, apesar de o artigo 1068.º se referir diretamente ao conteúdo da relação jurídica, não o faz tendo em conta os factos que lhe deram origem.
VII. Pois, na verdade, não estamos perante uma disposição legal que parte dos factos que deram origem à relação jurídica do arrendamento, mas sim, há um foco na ligação entre o arrendatário e terceiros; neste caso, entre o arrendatário e o seu cônjuge.
VIII. Pelo que, subsistindo à data da entrada em vigor do NRAU, quer o casamento da Recorrida com o arrendatário, quer o respetivo contrato de arrendamento, a situação jurídica dos presentes autos encontra-se dentro do âmbito temporal da aplicabilidade imediata do artigo 1068.º do Código Civil, nomeadamente com a entrada em vigor do NRAU.
IX. Para além disso, tendo o casamento sido celebrado em regime de comunhão de adquiridos e o direito ao arrendamento sido transmitido ao cônjuge falecido da Recorrida após a celebração do matrimónio, encontram-se verificados todos os pressupostos para operar a comunicabilidade do direito do arrendamento a esta e, bem assim, para a aplicação daquele normativo legal.
X. Com essa comunicabilidade a Recorrida passou a assumir – desde a entrada em vigor do NRAU – a posição de arrendatária, integrando, na sua esfera, o direito ao arrendamento da imóvel propriedade das Recorrentes.
XI. Neste sentido, a morte do seu marido/arrendatário não fez caducar o contrato de arrendamento, apenas tendo-se centrando, por inteiro, na esfera jurídica da Recorrida.
XII. Com efeito, a Recorrida detém título que a legitima a ocupar o imóvel nas exatas condições e termos que tem vindo a fazer.
XIII. Por tudo isto, não merecerá qualquer provimento o recurso interposto pelas Recorrentes, devendo, ao invés, ser mantida, na íntegra, a sentença recorrida.
*
II- QUESTÕES A DECIDIR
Nos termos dos Art.s 635.º n.º 4 e 639.º n.º 1 do C.P.C., as conclusões delimitam a esfera de atuação do tribunal ad quem, exercendo uma função semelhante à do pedido na petição inicial (vide: Abrantes Geraldes in “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, Almedina, 2017, pág. 105 a 106).
Assim, em termos sucintos, a única e principal questão que cumprirá decidir é a aplicação no tempo do Art. 1068.º do C.C. e do regime de comunicabilidade do direito ao arrendamento nele previsto, com vista a determinar se o contrato de arrendamento caducou e, consequentemente, saber se a ação de reivindicação deve proceder.
Corridos que se mostram os vistos, cumpre decidir.
*
III- FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
A sentença sob recurso considerou como provada a seguinte factualidade:
1. Encontra-se descrito na Conservatória do Registo Predial e Comercial da Amadora, sob o n.º … da freguesia da Falagueira-Venda Nova, o prédio urbano com área total de 272,8m2, composto por cave, rés-do-chão, 1.º, 2.º e 3.º andares, com lado esquerdo e direito, inscrito na respetiva matriz predial sob o artigo …, sito na Rua …, n.ºs 14 e 14-A;
2. Pela Ap. 15 de 1997/12/10 à descrição referida em 1., encontra-se registada aquisição do direito de propriedade sobre o prédio acima melhor identificado, a favor de AG e das A.A., na proporção de 4/8 e 2/8, respetivamente, por compra;
3. Pela Ap. 222 de 2015/08/26 à descrição referida em 1., encontra-se registada aquisição das quotas de 2/8 do direito de propriedade sobre o prédio acima melhor identificado, a favor de cada uma das A.A., por partilha da herança aberta por óbito de AG;
4. A 01-04-1970, o à altura proprietário do prédio descrito em 1., declarou dar de arrendamento, para sua habitação, a BC, que declarou receber em arrendamento, o 3.º andar direito daquele prédio, contra o pagamento de uma quantia mensal;
5. BC, a mulher, FR e o filho de ambos, MC, passaram desde então a ocupar o 3.º andar direito do prédio em causa;
6. BC faleceu a 02.07.1978;
7. FR e MC continuaram a ocupar o 3.º andar direito do prédio dos autos, contra o pagamento de uma quantia mensal;
8. MC casou com a R. no dia 28.05.1983, sem precedência de convenção antenupcial;
9. Desde então, a R. passou a residir no referido 3.º direito, juntamente com o marido e a sogra;
10. FR faleceu a 11.07.1997;
11. A fls. 10 verso e seguintes, consta escrito assinado por MC e pela 1.ª A. a 13.02.1998, que designaram por Contrato de Arrendamento Aditamento, no qual se reconhece ter existido transmissão por morte do arrendamento referido em 4. a favor do marido da R., fixando-se a renda em 41.200$00 (quarenta e um mil escudos);
12. MC e a R. continuaram a residir no 3.º andar direito do prédio descrito em 1.;
13. A 25.05.2021, morreu MC no estado de casado com a R.;
14. À data, o valor da renda mensal ascendia a 310,89€, que a R. continuou a pagar por transferência bancária para conta titulada pela 1.ª A.;
15. A R. não comunicou às A.A. o óbito do marido, mas estas dele tiveram conhecimento no mês de Junho subsequente;
16. As A.A. não emitiram recibos relativos às rendas pagas após o decesso de MC;
17. Por carta datada de 27.01.2022, remetida à R. e por esta recebida, a 1.ª A. comunica, através da sua advogada, que o arrendamento não se transmitiu por morte do marido daquele, por virtude de já ter sido objeto de duas idênticas alterações subjetivas, razão pela qual solicitava a devolução do imóvel por falta de título de ocupação do mesmo;
18. A R. nasceu a 09.03.1945 e é doente oncológica.
*
Foram ainda julgados por não provados os seguintes factos:
19. As A.A. aceitaram a continuação do arrendamento após a morte do marido da R.
*
Tudo visto, cumpre apreciar.
*
IV- FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
As A.A. intentaram a presente ação de reivindicação sustentadas na ocupação pela R. do imóvel reivindicado, invocando que esta não teria título legítimo para esse efeito, porquanto a mesma é viúva do anterior arrendatário, que por sua vez já havia sucedido nessa posição contratual por óbito de sua mãe, a qual também já havia sucedido no direito ao arrendamento por óbito do seu marido, que foi o primitivo arrendatário dessa casa. Consideram assim que não é legalmente possível qualquer nova transmissão do direito ao arrendamento, tendo pois o contrato caducado por óbito do marido da R..
A R., por sua vez, sustenta que o direito ao arrendamento, que se havia transmitido para o seu marido, por óbito da sua sogra, por força do regime de bens do seu casamento e do disposto no Art. 1068.º do C.C., na redação introduzida pela Lei n.º 6/2006 de 27 de fevereiro, está sujeito à regra da comunicabilidade e, consequentemente, continua a ser a legítima arrendatária do imóvel reivindicado.
A sentença recorrida veio a expressar o entendimento de que o disposto no Art. 1068.º do C.C. se aplica a todos os contratos de arrendamento em execução à data da sua entrada em vigor, atento ao disposto no Art. 12.º n.º 1 e n.º 2, 2.ª parte, do C.C. e, consequentemente, o direito ao arrendamento comunicou-se à R., integrando a sua esfera jurídica (cfr. Art.s 1688.º, 1717.º e 1721.º do C.C.), sendo por isso legítima a sua ocupação do imóvel reivindicado.
As A.A., aqui Recorrentes, continuam a sustentar que o Art. 1068.º do C.C. não se aplica ao caso e, por isso, recorrem da sentença, tendo a R. pugnado pela manutenção da decisão recorrida.
Apreciando, temos de começar por salientar que as A.A. lançaram mão duma ação de reivindicação, tal como a mesma é estabelecida no Art. 1311.º do C.C..
Conforme temos vindo a sustentar de forma reiterada, no quadro da lei atual é completamente indiferente o recurso, nestas situações, à ação de despejo ou à ação de reivindicação.
Como já o dissemos no acórdão de 8 de fevereiro de 2022 (Proc. n.º 19864/15.7T8LSB.L1), em repetição do que também já havíamos dito no acórdão de 23 de outubro de 2018 (Proc. n.º 657/14.5TBFUN.L1), atualmente já não importa discutir se este tipo de pretensões deveria ser sempre configurado como uma ação de despejo, como resultava dos revogados Art.s 55.º e 56.º do R.A.U., ou como uma ação de reivindicação, pois o que agora releva é apenas que não está em causa o procedimento especial de despejo (regulado nos Art.s 15º e ss. da Lei n.º 6/2006 de 27/2 - NRAU), dado que qualquer uma daquelas outras duas ações segue sempre os termos do processo declarativo comum (cfr. Art. 14.º n.º 1 do NRAU, para a ação de despejo, e Art. 546.º n.º 1 e n.º 2 do C.P.C., para as ações de reivindicação). Na prática, o propósito final desses dois tipos de ações (despejo ou reivindicação) acaba por ser fundamentalmente o mesmo, embora fundados em causas de pedir diversas e com pedidos distintos, nada impedindo que numa ação de reivindicação se possa discutir a subsistência duma relação jurídica locatícia como facto impeditivo da pretensão reivindicatória.
Dito isto, estabelece o Art. 1311.º do C.C. que: «1. O proprietário pode exigir judicialmente de qualquer possuidor ou detentor da coisa o reconhecimento do seu direito de propriedade e a consequente restituição do que lhe pertence. 2. Havendo reconhecimento do direito de propriedade, a restituição só pode ser recusada nos casos previstos na lei».
No caso, não se discute que as A.A. sejam as legítimas proprietárias do imóvel reivindicado, até por beneficiarem da presunção registral de titularidade desse direito (cfr. Art. 7.º do C.R.P.), tendo em atenção os factos provados nos pontos 1, 2 e 3 da sentença recorrida. No entanto, a procedência desta ação está dependente de saber se existe motivo legal para recusar a pretendida restituição da coisa reivindicada. Sendo que, a existência de contrato de arrendamento, válido e eficaz, em benefício da R. obsta necessariamente à procedência do pedido, pois os proprietários estão obrigados a proporcionar o gozo da coisa aos inquilinos (cfr. Art.s. 1022.º e 1031.º al. b) do C.C.), não podendo praticar atos que possam impedir ou diminuir esse direito pessoal de gozo (cfr. Art. 1037.º n.º 1 do C.C.), assistindo aos inquilinos o direito a recorrerem aos meios de tutela da posse, previstos nos Art.s 1276.º e ss. do C.C., mesmo contra o locador (cfr. Art. 1037.º n.º 2 do C.C.).
Em suma, a procedência desta ação depende do reconhecimento de que a R. não é a arrendatária do imóvel propriedade das A.A..
Ora, está assente que o imóvel era objeto de um contrato de arrendamento que foi celebrado, em 1 de abril de 1970, entre um anterior proprietário e BC, este último na qualidade de inquilino (cfr. facto provado 4).
Ao tempo, a posição contratual de inquilino não era comunicável ao cônjuge, como resultava do Art. 1110.º n.º 1 do C.C., na sua redação original, que rezava o seguinte: «1. Seja qual for o regime matrimonial, a posição do arrendatário não se comunica ao cônjuge e caduca por sua morte, sem prejuízo do disposto no artigo seguinte».
A regra da incomunicabilidade da posição de arrendatário estava há muito assente na nossa tradição jurídica. De facto, desde o mui afamado “Parecer da Câmara Corporativa” de 4 de fevereiro de 1947, que veio a dar lugar ao disposto no Art. 44.º da Lei 2:030 de 22 de junho de 1948, que se entendia que, embora o direito ao arrendamento tivesse uma índole de direito patrimonial, reconhecia-se que muitas vezes era constituído intuitu personae, o que se adaptava mal ao mecanismo da contitularidade entre marido e mulher. Escreveu-se então nesse parecer que: «Podem surgir, e tem efetivamente surgido, embaraços graves de construção a quem, vendo nele um elemento patrimonial comum, procura regular a sua transmissão nos casos de morte de um dos cônjuges ou do divórcio ou separação. / É, pois, preferível, por todos os títulos, proclamar a incomunicabilidade do direito e regular a sua transmissão, por forma a satisfazer os interesses atendíveis dos cônjuges».
Menezes Cordeiro (in “Tratado de Direito Civil”, Vol. XI, pág. 904) sumaria assim as razões que levaram a estabelecer a regra da incomunicabilidade do direito ao arrendamento desde a Lei 2:030 de 22 de junho de 1948: «(a) o vinculismo: perante ele, admitir transmissões entre cônjuges contribuiria, ainda mais, para perpetuar a situação arrendatícia; (b) a inadequação: um arrendamento para farmácia, para advocacia ou para consultório médico não se deveria comunicar ao cônjuge que não tivesse as inerentes habilitações; (c) a possibilidade, depois usada (vide o artigo 45.º da Lei n.º 2:030) de regular, em termos pensados, as situações de transmissibilidade entre cônjuges, por morte ou nos casos de separação de pessoas e bens ou de divórcio; (d) a resolução de fortes dúvidas anteriores, surgidas no âmbito da Lei n.º 1:662, de 4 de setembro de 1924. É certo que a natureza intuitu personae da locação apontaria, só por si, para a incomunicabilidade, todavia, as dúvidas eram evidentes, pelo que a boa política legislativa esteve do lado do legislador de 1948».
Esta solução passou depois para o Art. 1110.º do C.C., como já atrás evidenciámos, e veio a ser consagrada, de novo, e nos mesmos termos, no Art. 83.º do R.A.U..
Regressando aos factos, o primitivo arrendatário veio a falecer em 2 de julho de 1978 (cfr. facto provado 6), tendo o seu direito ao arrendamento sido transmitido para a sua esposa, por força do óbito daquele, e ainda na vigência do Código Civil de 1966, mas já com as alterações decorrentes do Dec.Lei n.º 293/77 de 20/07.
Estabelecia então o Art. 1111.º do C.C., na versão vigente em 1978, que: «1. O arrendamento não caduca por morte do arrendatário, ou daquele a quem tiver sido cedida a sua posição contratual, se lhe sobreviver cônjuge não separado judicialmente de pessoas e bens ou de facto, ou deixar parentes ou afins na linha recta que com ele vivessem, pelo menos, há um ano; mas os sucessores podem renunciar à transmissão, comunicando a renúncia ao senhorio no prazo de trinta dias. «2. A transmissão da posição do inquilino, estabelecida no número anterior, defere-se pela ordem seguinte: «a) Ao cônjuge sobrevivo; «b) Aos parentes ou afins da linha recta, preferindo os primeiros aos segundos, os descendentes aos ascendentes e os de grau mais próximo aos de grau ulterior. «3. A transmissão a favor dos parentes ou afins também se verifica por morte do cônjuge sobrevivo quando, nos termos deste artigo, lhe tenha sido transmitido o direito ao arrendamento».
Deu-se assim a primeira transmissão do direito ao arrendamento, que passou de BC para FR, sua mulher, sendo certo que, ao tempo, MC, filho desse casal, já residia nesse locado (cfr. facto 7).
Entretanto, a nova inquilina, FR, também veio a falecer em 11 de julho de 1997, já no âmbito da vigência do R.A.U., aprovado pelo Dec.Lei n.º 321-B/90, de 15 de outubro, com as alterações introduzidas pelo Dec.Lei n.º 257/95 de 30/9.
Então ainda era estabelecida a regra geral da incomunicabilidade do direito a arrendamento no Art. 83.º do R.A.U., que estipulava o seguinte: «Seja qual for o regime matrimonial, a posição do arrendatário não se comunica ao cônjuge e caduca por morte, sem prejuízo do disposto nos dois artigos seguintes».
A transmissão do direito ao arrendamento vinha depois regulada no Art. 85.º do R.A.U., onde se estabelecia que: «1 - O arrendamento para habitação não caduca por morte do primitivo arrendatárioou daquele a quem tiver sido cedida a sua posição contratual, se lhe sobreviver: «a) Cônjuge não separado judicialmente de pessoas e bens ou de facto; «b) Descendente com menos de um ano de idade ou que com ele convivesse há mais de um ano; «c) Ascendente que com ele convivesse há mais de um ano; «d) Afim na linha recta, nas condições referidas nas alíneas b) e c); «e) Pessoa que com ele viva há mais de cinco anos em condições análogas às dos cônjuges, quando o arrendatário não seja casado ou esteja separado judicialmente de pessoas e bens. «2 - Nos casos do número anterior, a posição do arrendatário transmite-se, pela ordem das respectivas alíneas, às pessoas nele referidas, preferindo, em igualdade de condições, sucessivamente, o parente ou afim mais próximo e mais idoso. «3 - A transmissão a favor dos parentes ou afins também se verifica por morte do cônjuge sobrevivo quando, nos termos deste artigo, lhe tenha sido transmitido o direito ao arrendamento».
Deu-se assim a segunda transmissão do direito ao arrendamento, agora de FR para o seu filho, MC, que ao tempo já era casado com a R., desde 28 de maio de 1983 (cfr. facto provado 8).
No momento em que ocorreu esta segunda transmissão do direito ao arrendamento, como vimos, a regra era a da incomunicabilidade da posição contratual de inquilino, tal como então era estabelecido no Art. 83.º do R.A.U. e de acordo com uma longa tradição da nossa lei.
Em todo o caso, não podemos deixar de realçar que o novo inquilino, MC, casou a R. em 1983, sem convenção antenupcial (cfr. facto provado 8). Consequentemente, esse casamento estava sujeito ao regime de bens da comunhão de adquiridos (cfr. Art. 1717.º do C.C.).
O princípio geral subjacente ao regime de bens da comunhão de adquiridos é que, por regra, apenas os bens adquiridos pelos cônjuges a título oneroso e após o casamento é que integram o comunhão de bens do casal (vide, a propósito: Guilherme Oliveira in “Manual de Direito da Família”, 2.ª Ed., pág. 247). Pelo contrário, os bens ou direitos adquiridos antes do matrimónio ou os adquiridos depois deste, por um dos cônjuges, mas a título meramente gratuito, são em princípio bens próprios do cônjuge adquirente.
Portanto, nesse regime de bens, existem bens próprios e bens comuns.
Os bens comuns são os referidos no Art. 1724.º do C.C., onde se estabelece que: «Fazem parte da comunhão: a) O produto do trabalho dos cônjuges; b) Os bens adquiridos pelos cônjuges na constância do matrimónio, que não sejam excetuados por lei».
Depois a lei prevê quais os bens que devem ser excetuados da comunhão do casal no Art. 1722.º do C.C., ao definir quais os bens que devem ser considerados apenas como bens próprios de cada cônjuge.
Assim, é aí dito que: «1. São considerados próprios dos cônjuges: «a) Os bens que cada um deles tiver ao tempo da celebração do casamento; «b) Os bens que lhes advierem depois do casamento por sucessão ou doação; «c) Os bens adquiridos na constância do matrimónio por virtude de direito próprio anterior. «2. Consideram-se, entre outros, adquiridos por virtude de direito próprio anterior, sem prejuízo da compensação eventualmente devida ao património comum: «a) Os bens adquiridos em consequência de direitos anteriores ao casamento sobre patrimónios ilíquidos partilhados depois dele; «b) Os bens adquiridos por usucapião fundada em posse que tenha o seu início antes do casamento; «c) Os bens comprados antes do casamento com reserva de propriedade; «d) Os bens adquiridos no exercício de direito de preferência fundado em situação já existente à data do casamento».
Se considerarmos apenas as regras decorrentes do regime de bens do casamento, teríamos de considerar que o direito ao arrendamento havia sido adquirido pelo marido da R. “mortis causa”, ou seja, por via de sucessão imposta por lei (v.g. Art. 85.º n.º 1 al. b) do R.A.U.). Logo, essa transmissão da posição contratual de arrendatário sempre haveria de preencher a previsão da al. b) do n.º 1 do Art. 1722.º do C.C., devendo o direito ao arrendamento ser considerado um “bem próprio” do cônjuge da R., filho da anterior arrendatária, não integrando, por isso, a comunhão do casal.
A única presunção legal de comunicabilidade dos bens é a que resulta do Art. 1725.º do C.C., mas esta reporta-se apenas a bens móveis, o que evidentemente não se aplica ao direito ao arrendamento que incide sobre bens imóveis, como era o caso dos autos.
Conforme deixaram escrito Pires de Lima e Antunes Varela (in “Código Civil Anotado”, Vol. IV, 2.ª Ed., pág. 429), o Art. 1725.º do C.C. estabelece uma presunção de comunicabilidade relativa a bens móveis que se destina a favorecer os interesses, não só dos cônjuges, como de terceiros numa qualificação, tão segura quanto possível, dos bens do casal. No entanto, os mesmos autores acrescentam: «No caso dos imóveis, como a aquisição se fará normalmente por documento, ou por sucessão ou usucapião, a sua natureza não levantará, em princípio, nenhumas dúvidas perante os critérios fixados nas disposições legais anteriores e subsequentes» (…) «a presunção do artigo 1725.º pode ser ilidida por qualquer meio de prova».
O Art. 1730.º do C.C. também não tem qualquer peso relativamente às considerações até agora feitas, porque se limita a consagrar a “regra da metade” (vide: Guilherme Oliveira in “Manual de Direito da Família”, 2.ª Ed., pág. 251), que pressupõe a conclusão prévia de que determinado bem integra, ou não, a comunhão de bens do casal.
Fica assim claro que o direito ao arrendamento, quando transmitido por decorrência do óbito do anterior arrendatário, só por força do regime de bens previsto para a comunhão de adquiridos, não permite a conclusão de que o mesmo integrará a comunhão de bens comuns do casal.
Chegamos assim ao óbito do inquilino MC, ocorrido em 25 de maio de 2021 (cfr. facto provado 13), que já era o terceiro inquilino no âmbito do mesmo contrato, por força de duas sucessões legais nessa posição contratual.
Inquestionavelmente que esse inquilino faleceu no estado de casado com a R. (cfr. factos provado 13) e que ambos residiam no locado à data do óbito do primeiro (cfr. facto provado 12).
Nesse momento, já era vigente o Art. 1068.º do C.C., na versão aprovada pela Lei n.º 6/2006, de 27 de fevereiro, que alterou por completo a regra da “incomunicabilidade” do direito ao arrendamento.
De facto, estabelece-se agora nesse preceito, que: «O direito do arrendatário comunica-se ao seu cônjuge, nos termos gerais e de acordo com o regime de bens vigente».
Esta alteração legislativa mereceu uma chuva de críticas, nomeadamente por desconsiderar a natureza pessoal do arrendamento, o facto de a proteção da casa de morada de família não se compadecer com regimes de bens, por existirem dificuldades de adaptação ao estatuto patrimonial dos cônjuges, dessa regra continuar a não prescindir do estabelecimento de regras de transmissão no caso de divórcio ou por morte e das dúvidas sobre a aplicação desta regra aos arrendamentos comerciais ou para profissões liberais (vide: Rita Lobo Xavier in “O NRAU e a perspetiva do Direito da Família”, pág. 325-327). Ainda assim, como realça Menezes Cordeiro (in “Tratado de Direito Civil”, Vol. XI, pág. 906), o legislador pesou nessa alteração: «(a) a natureza não-vinculística do arrendamento, que então se propunha, permitia uma certa latitude de movimento; (b) a comunicabilidade era limitada ao arrendamento habitacional; (c) os cônjuges moram, por definição, juntos: logo o intuitu personae alarga-se, ex rerum natura, ao casal, correndo o senhorio o risco da nupcialidade; e (d) as regras sobre a tutela da morada de família eram expressamente ressalvadas».
A regra é assim agora a da comunicabilidade do direito ao arrendamento, desde que nos termos gerais do regime de bens do casamento puder ser integrado na comunhão conjugal como um bem comum do casal.
Laurinda Gemas, Albertina Pedroso e João Caldeira Jorge (in “Arrendamento Urbano Novo Regime Anotado e Legislação Complementar”, 2.ª ed., Quid Juris, pág. 233), resumem assim o regime aplicável:
«- no regime da separação de bens, o direito do arrendatário não se comunica ao seu cônjuge, pois não há património comum do casal (cfr. art.º 1735.º do CC);
«- no regime da comunhão de adquiridos, o direito do arrendatário comunica-se ao seu cônjuge, ingressando no património comum, se o contrato for celebrado na constância do casamento (cfr. art.ºs 1724.º, al. b), 1725.º e 1730.º do CC);
«- no regime da comunhão geral, o direito do arrendatário comunica-se ao seu cônjuge, integrando o património comum do casal, mesmo que o contrato de arrendamento seja anterior ao casamento (cfr. art.º 1732.º do CC)».
Na mesma ordem de ideias, Menezes Cordeiro (in Ob. Loc. Cit., pág. 907) também resume o regime da regime da comunicabilidade nos seguintes termos: «Em rigor, a ideia de “comunicação” do arrendamento significa “transmissão” e não “ingresso na comunhão”. A aproximação feita pelo artigo 1068.º ao regime de bens permite falar numa evolução semântica, em direção à comunicação. O panorama será, assim o que se segue:
«Separação: não há património comum, pelo que o arrendamento não se comunica (1735.º). Ou os cônjuges outorgam juntos ou, tratando-se de arrendamento que dê corpo à casa de morada de família: operam os artigos 1682.º-B e 1793.º, que permitem uma tutela especial. Esses preceitos são, de resto, dobrados pelo artigo 1105.º, versão atual;
«Comunhão de adquiridos: sendo o arrendamento concluído na constância do casamento, há comunhão: artigos 1724.º, b) e 1730.º, operando, no caso de dúvida, o 1730.º; já o arrendamento anterior ao casamento, concluído por um dos cônjuges, não se comunica – 1722.º/1, a)
– podendo operar o regime da casa de morada de família, se esse for o caso;
«Comunhão geral: o arrendamento comunica-se, ingressando no património comum (1732.º)» (sublinhados nossos).
Ainda o mesmo autor não deixa de realçar que: «O artigo 1068.º aplica-se aos contratos de arrendamento celebrados após a entrada em vigor do NRAU de 2006. Estamos claramente, no domínio dos efeitos do contrato, pelo que funciona o artigo 12.º/2, 1.ª parte, do Código Civil» (Ob. Cit., pág. 908). No mesmo sentido escreve igualmente Pinto Furtado (in “Comentário ao Regime do Arrendamento Urbano”, Almedina, 2019, págs. 293 a 296).
Ora, esse é precisamente o tema da discórdia neste recurso.
Menezes Leitão (in “Arrendamento Urbano”, 6.ª Ed., pág. 185), por exemplo, defende a aplicação ao caso do Art. 59.º do NRAU, que manda aplicar as normas do NRAU aos contratos vigentes, sem prejuízo do disposto nas normas transitórias, o que se harmoniza com o disposto no Art. 12.º n.º 2 do C.C., de acordo com o qual, quando se dispuser sobre o conteúdo de certas relações jurídicas, abstraindo-se dos factos que lhe deram origem, entende-se que a lei abrange as relações já constituídas que subsistam à data da sua entrada em vigor. Assim, como o novo regime de arrendamento dispõe sobre o conteúdo das relações jurídicas deve aplicar-se imediatamente aos arrendamentos existentes.
Rita Lobo Xavier (in “Concentração” ou Transmissão do Direito ao Arrendamento Habitacional em caso de divórcio ou de morte - em Estudos em Honra do Professor Doutor José de Oliveira Ascensão, Vol. II, pág. 1027 e 1028), na mesma linha de raciocínio defende que: «A aplicação da lei nova aos contratos de arrendamento já em curso está em conformidade com o princípio formulado no art. 12º, nº 2. Na verdade, as disposições do NRAU constituem manifestamente normas que versam o conteúdo das relações jurídicas, abstraindo do facto que lhe deu origem e, por isso, na falta de disposição em contrário, sempre se aplicariam aos contratos de arrendamento já existentes» (idem: Maria Olinda Garcia (in “O arrendatário invisível – A comunicabilidade do direito ao cônjuge do arrendatário no arrendamento para habitação, SCIENTIA IVRIDICA, Setembro/Dezembro 2016, tomo LXV, n.º 342, pág. 418; e Baltazar Coelho, “O art. 1068º do CC segundo o NRAU”, Scientia Ivridica, Tomo LVII, nº 317, Janeiro/Março, 2009, pág. 62).
Deve dizer-se que o Supremo Tribunal de Justiça, sempre que foi chamado a decidir sobre esta questão, praticamente em todos os acórdãos que se mostram publicados no sítio “www.dgsi.pt”, defendeu por unanimidade que o Art. 1068.º do C.C. se aplica aos contratos com vigência anterior à sua entrada em vigor.
Assim, no acórdão de 17 de outubro de 2023 (Proc. n.º 4184/21.6T8FNC.L1.S1 – Relator: António Barateiro Martins) pode ler-se no respetivo sumário:
«I – O art. 1068.º do C. Civil na redação dada pela Lei 6/2006 (NRAU) – que estabelece a comunicabilidade do arrendamento – é de aplicação imediata às relações jurídicas (situações jurídicas) constituídas antes da sua entrada em vigor, mas subsistentes ou em curso à data do seu início de vigência.
«II – Significa a remissão final do art. 1068.º do C. Civil para o “regime de bens vigentes” que, no regime de separação de bens, não há comunicabilidade; e que, no regime da comunhão de adquiridos, há comunicabilidade se a posição jurídica de arrendatário do cônjuge se iniciar em data posterior à celebração do casamento.
No acórdão de 11 de maio de 2023 (Proc. n.º 1309/20.2T8OER.L1.S1 – Relator: Manuel Capelo):
«I - Com a publicação da Lei nº 6/2006, que aditou ao Código Civil o art. 1068º, instituiu-se a regra da comunicabilidade para todos os arrendamentos de prédios urbanos para fins habitacionais ou não habitacionais e do art. 59 do NRAU resulta a aplicação do art. 1068 a contratos anteriores, que subsistam, e não apenas aos constituídos após a sua entrada em vigor».
No acórdão de 13 de abril de 2021 (Proc. n.º 5958/18.0T8FNC.L1.S1 - Relator: José Rainho):
«III - Com a Lei n.º 6/2006, que aditou ao CC o art. 1068.º, instituiu-se a regra da comunicabilidade ao cônjuge, de acordo com o regime de bens vigente, do direito do arrendatário habitacional.
«IV - Tal comunicabilidade opera relativamente a contratos estabelecidos anteriormente à entrada em vigor do RAU, que subsistam, e não apenas relativamente aos constituídos após a entrada em vigor da Lei n.º 6/2006».
No acórdão de 1 de março de 2018 (Proc. n.º 4685/14.2T8FNC.L1.S1 – Relatora: Rosa Ribeiro Coelho – citado na decisão recorrida):
«I – Um contrato de arrendamento para habitação celebrado nos anos 60 está sujeito às normas transitórias que integram o regime estabelecido no Título II, Capítulo II, da Lei nº 6/2006, de 27/2, com as alterações introduzidas pela Lei nº 31/2012, de 14/8, nomeadamente as constantes da Secção I – “Disposições gerais”, arts. 27º a 29º –, da Secção II – “Arrendamento para habitação”, arts. 30º a 49º – e da Secção IV, comum a arrendamentos habitacionais e não habitacionais – “Transmissão”, arts. 57º e 58º -; está igualmente sujeito ao NRAU na parte não abrangida por aquelas.
«II – Nenhuma, de entre este conjunto de normas, rege especificamente a questão da comunicabilidade do direito ao arrendamento ou exclui a aplicação do art. 1068º do CC, pelo que se impõe, em princípio, concluir pela aplicabilidade desta norma aos contratos coevos do aqui contemplado.
«III – A tradição jurídica portuguesa era no sentido de que o direito ao arrendamento se não comunicava ao cônjuge do arrendatário e caducava por morte deste.
«IV – Com a publicação da Lei nº 6/2006, que aditou ao Código Civil o art. 1068º, instituiu-se a regra da comunicabilidade para todos os arrendamentos de prédios urbanos.
«V – Do art. 59º do NRAU resulta a aplicação do art. 1068º a contratos anteriores, que subsistam, e não apenas aos constituídos após a sua entrada em vigor.
«VI – Não se trata de uma aplicação retroativa, antes sendo uma aplicação imediata da lei nos termos previstos no art. 12º, nº 1 e 2, 2ª parte do CC, pressupondo a vigência da relação jurídica em causa.
«VII – Mas, para tal, será necessário que exista um casamento atual do arrendatário, pois se não concebe que, de outra maneira, este possa comunicar ao cônjuge o seu direito ao arrendamento.
«VIII – Vigorando, à data da morte do primitivo arrendatário, os arts. 1110º, nº 1 e 1111º, nºs 1 e 2, al. a) do CC, o direito ao arrendamento era um bem próprio seu e transmitiu-se nessa data para o seu cônjuge.
«IX – Daí que, com a entrada em vigor do NRAU e do referido art. 1068º, não possa ter ocorrido a comunicação do direito ao arrendamento, porque:
a) sendo já a ex-mulher do falecido arrendatário, enquanto transmissária, titular desse direito, não podia comunicar-se-lhe o que já detinha;
b) à data do início da vigência do art. 1068º não se mantinha, nem o casamento, nem o direito ao arrendamento na esfera jurídica do primitivo arrendatário.
«X – Ainda que tivesse sido determinada a eficácia retroativa do art. 1068º, a comunicação do arrendamento ao cônjuge seria, no caso, impedida pela presunção de ressalva dos efeitos já produzidos constante da segunda parte do citado nº 1 do art. 12º do CC, já que não poderia ficar sem efeito a transmissão já ocorrida.
«XI – Falecida a transmissária, o arrendamento caduca, não podendo operar-se uma outra transmissão a favor de um seu filho».
Ligeiramente dissonante é apenas o acórdão de 4 de dezembro de 2018 (Proc. n.º 6371/15.7T8SNT.L1.S2 - Relator: Alexandre Reis), de cujo sumário se pode ler:
«I - Por força do disposto no art. 12.º, n.º 2, do CC, o regime da transmissão do arrendamento (para habitação), não obstante celebrado em 1951, é o vigente à data do facto potencialmente idóneo a determiná-la – ou seja, na situação em apreço, do falecimento (em 14-08-2014) da então arrendatária, a mãe da ré –, em que já vigorava a Lei que aprovou o NRAU (Lei n.º 6/2006, de 27-02, com as alterações conferidas pela Lei n.º 31/2012, de 14- 08), cujo art. 59.º determina a aplicação deste novo regime do arrendamento urbano às relações contratuais anteriormente constituídas, sem prejuízo do estabelecido nas normas transitórias.
«II - De entre tais normas transitórias, a do art. 57.º, que para o caso relevaria, não confere à ré o direito à (re)transmissão do arrendamento, uma vez que, em 14-08-2014, a sua mãe não era a primitiva arrendatária nem se verificava em relação a ela própria qualquer das hipóteses subsumíveis à previsão de tal norma.
«III - Com efeito, apenas a partir da referida Lei n.º 6/2006, ao aditar ao CC o art. 1068.º, se instituiu a regra da comunicabilidade ao cônjuge do arrendatário do direito ao arrendamento de prédios urbanos e daí que a mãe da ré já fosse transmissária do arrendamento, desde 1972, na sequência do divórcio com o primitivo arrendatário e pai da ré.
«IV - Uma vez aplicado o regime em vigor ao tempo da ocorrência do facto determinante da transmissão ou da caducidade do contrato, não tem cabimento a alusão à violação do princípio da não retroatividade da lei, configurada pela ré como sendo restritiva de direitos, liberdades e garantias (arts. 17.º e 18.º da CRP).
«V - O regime mais restritivo da transmissibilidade do arrendamento que passou a vigorar com o NRAU para os contratos de arrendamento já anteriormente constituídos também não contende com a norma do art. porque esta não regula, muito menos em termos absolutos, os relacionamentos intersubjetivos privados, antes encerra, uma injunção dirigida ao Estado no sentido de dever programar a sua atividade de modo a assegurar a todos os cidadãos «uma habitação de dimensão adequada, em condições de higiene e conforto e que preserve a intimidade pessoal e a privacidade familiar».
«VI - À luz do regime pregresso, entre a vigência da versão original do CC de 1966 e a entrada em vigor do citado art. 57.º do NRAU, a invocada expectativa a uma segunda transmissão do arrendamento só teria tido solidez no período em que vigorou o DL n.º 293/77, de 20- 07, durante o qual a morte de qualquer arrendatário, mesmo que não fosse o “primitivo”, facultava a ilimitada transmissão da posição contratual, já que o DL 328/81, de 04-12, veio, de novo, restringir aos casos de morte do “primitivo” arrendatário a ressalva posta à caducidade do arrendamento pela sua transmissão, o que o RAU (DL n.º 321-B/90, de 15- 10) manteve, tal como a lei atualmente vigente.
«VII - De todo o modo, a alegada expectativa não seria merecedora da tutela equivalente à da confiança na manutenção do direito que na esfera jurídica da ré eventualmente se tivesse desencadeado com o óbito da mãe e no momento deste, o único em que seria possível aferir do preenchimento, ou não, dos requisitos da pretendida transmissibilidade.
«VIII - E não tem fundamento o apelo à tutela da “posição de confiança na previsibilidade do direito”, porquanto a mera expectativa fundada na não alteração da lei só é legítima quando esta consubstancie uma violação da segurança jurídica e da confiança legítima, enquanto emanação da ideia de Estado de direito democrático (art. 2.º da CRP), por constituir uma modificação da ordem jurídica com que, razoavelmente, os respetivos destinatários não possam contar e não inspirada pela necessidade de salvaguardar outros direitos ou interesses também constitucionalmente protegidos.
Este tema é longamente discutido nas alegações de recurso, tendo a sentença tomado partido pela posição claramente dominante no Supremo Tribunal de Justiça.
Importa, portanto, considerar que, nos termos do Art. 12.º do C.C.: «1. A lei só dispõe para o futuro; ainda que lhe seja atribuída eficácia retroativa, presume-se que ficam ressalvados os efeitos já produzidos pelos factos que a lei se destina a regular. 2. Quando a lei dispõe sobre as condições de validade substancial ou formal de quaisquer factos ou sobre os seus efeitos, entende-se, em caso de dúvida, que só visa os factos novos; mas, quando dispuser diretamente sobre o conteúdo de certas relações jurídicas, abstraindo dos factos que lhes deram origem, entender-se-á que a lei abrange as próprias relações já constituídas, que subsistam à data da sua entrada em vigor».
Ora, o Art. 1068.º do C.C. resultou de alterações introduzidas pela Lei n.º 6/2006 de 27/2, que se autointitulou como “NRAU” (v.g. o seu Art. 1.º), tendo estabelecido normas especiais sobre a aplicação da lei no tempo.
Assim, no seu Art. 59.º n.º 1 ficou explicitamente dito que: «1- O NRAU aplica-se aos contratos celebrados após a sua entrada em vigor, bem como ás relações contratuais constituídas que subsistam nessa data, sem prejuízo do previsto nas normas transitórias».
Entre as normas transitórias está o Art. 26.º do NRAU (já versão atualmente vigente, depois das alterações da Lei n.º 79/2014, de 19/12), que prevê que: «1 - Os contratos para fins habitacionais celebrados na vigência do Regime do Arrendamento Urbano (RAU), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 321-B/90, de 15 de outubro, bem como os contratos para fins não habitacionais celebrados na vigência do Decreto-Lei n.º 257/95, de 30 de setembro, passam a estar submetidos ao NRAU, com as especificidades dos números seguintes. «2 - À transmissão por morte aplica-se o disposto nos artigos 57.º e 58.º». «3 - Quando não sejam denunciados por qualquer das partes, os contratos de duração limitada renovam-se automaticamente no fim do prazo pelo qual foram celebrados, pelo período de dois anos ou, quando se trate de arrendamento não habitacional, pelo período de três anos, e, em ambos os casos, se outro prazo superior não tiver sido previsto. «4 - Os contratos sem duração limitada regem-se pelas regras aplicáveis aos contratos de duração indeterminada, com as seguintes especificidades: «a) Continua a aplicar-se o disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 107.º do RAU; «b) Para efeitos das indemnizações previstas no n.º 1 do artigo 1102.º e na alínea a) do n.º 6 e no n.º 9 do artigo 1103.º do Código Civil, a renda é calculada de acordo com os critérios previstos nas alíneas a) e b) do n.º 2 do artigo 35.º da presente lei; «c) O disposto na alínea c) do artigo 1101.º do Código Civil não se aplica se o arrendatário tiver idade igual ou superior a 65 anos ou deficiência com grau comprovado de incapacidade igual ou superior a 60 /prct.. «5 - Em relação aos arrendamentos para habitação, cessa o disposto na alínea a) do número anterior após transmissão por morte para filho ou enteado ocorrida depois da entrada em vigor da presente lei. «6 - (Revogado.) «7 - Os direitos conferidos nos números anteriores ao arrendatário podem ser invocados pelo subarrendatário quando se trate de subarrendamento autorizado ou ratificado nos termos da lei».
Portanto, foi intenção explicita do legislador aplicar a todos os contratos vigentes, mesmo aos celebrados antes da entrada em vigor do R.A.U., como é o caso do “sub judice”, todas as normas que resultaram das alterações introduzidas pelo NRAU, incluindo as que vieram a ser incorporadas no Código Civil, subordinando-os ao regime dos contratos de arrendamento “sem duração limitada”. Não há como negar que entre essas normas está o Art. 1068.º do C.C., como decorre da sua inclusão no Código Civil pelo Art. 3.º do NRAU.
De referir ainda que, tendo em conta a remissão feita pelo Art. 26.º n.º 2 do NRAU, o Art. 58.º regula apenas a transmissão por morte de arrendamentos não habitacionais. Pelo que, relevaria apenas o Art. 57.º do NRAU, onde se estabelece o seguinte: «1 - O arrendamento para habitação não caducapor morte do primitivo arrendatárioquando lhe sobreviva: «a) Cônjuge com residência no locado; «b) Pessoa que com ele vivesse em união de facto há mais de dois anos, com residência no locado há mais de um ano; «c) Ascendente em 1.º grau que com ele convivesse há mais de um ano; «d) Filho ou enteado com menos de 1 ano de idade ou que com ele convivesse há mais de 1 ano e seja menor de idade ou, tendo idade inferior a 26 anos, frequente o 11.º ou o 12.º ano de escolaridade ou estabelecimento de ensino médio ou superior; «e) Filho ou enteado, que com ele convivesse há mais de um ano, com deficiência com grau comprovado de incapacidade igual ou superior a 60 /prct.. «f) Filho ou enteado que com ele convivesse há mais de cinco anos, com idade igual ou superior a 65 anos, desde que o RABC do agregado seja inferior a 5 RMNA. «2 - Nos casos do número anterior, a posição do arrendatário transmite-se, pela ordem das respetivas alíneas, às pessoas nele referidas, preferindo, em igualdade de condições, sucessivamente, o ascendente, filho ou enteado mais velho. «3 - O direito à transmissão previsto nos números anteriores não se verifica se, à data da morte do arrendatário, o titular desse direito tiver outra casa, própria ou arrendada, na área dos concelhos de Lisboa ou do Porto e seus limítrofes ou no respetivo concelho quanto ao resto do País. «4 - Sem prejuízo do disposto no número seguinte, quando ao arrendatário sobreviva mais de um ascendente, há transmissão por morte entre eles. «5 - Quando a posição do arrendatário se transmita para ascendente com idade inferior a 65 anos à data da morte do arrendatário, o contrato fica submetido ao NRAU, aplicando-se, na falta de acordo entre as partes, o disposto para os contratos com prazo certo, pelo período de 2 anos. «6 - Salvo no caso previsto na alínea e) do n.º 1, quando a posição do arrendatário se transmita para filho ou enteado nos termos da alínea d) do mesmo número, o contrato fica submetido ao NRAU na data em que aquele adquirir a maioridade ou, caso frequente o 11.º ou o 12.º ano de escolaridade ou cursos de ensino pós-secundário não superior ou de ensino superior, na data em que perfizer 26 anos, aplicando-se, na falta de acordo entre as partes, o disposto para os contratos com prazo certo, pelo período de 2 anos».
Posto isto, é evidente que a R. não tem direito à transmissão do direito ao arrendamento por morte, por força do Art. 57.º do NRAU, porque é apenas nora do “primitivo arrendatário” que, relembre-se, foi o Sr. BC. Pessoa que talvez nem sequer tenha chegado a conhecer pessoalmente, pois faleceu em 1978 (cfr. facto provado 6) e a R. só veio a casar com o filho do mesmo em 1983 (cfr. facto provado 8).
Aliás, é muito claro que o Art. 57.º n.º 1 do NRAU alterou propositadamente a regra que vinha do Art. 85.º n.º 1 e n.º 3 do R.A.U., pois antes previa-se a possibilidade de 2 transmissões do arrendamento para habitação, ao estabelecer-se que «1 - O arrendamento para habitação não caduca por morte do primitivo arrendatárioou daquele a quem tiver sido cedida a sua posição contratual (…)», passando agora a restringir-se essa possibilidade apenas ao caso da «morte do primitivo arrendatário».
Dito isto, a R. apenas pode sustentar a sua posição de arrendatária no efeito legal novo, introduzido “a posteriori” pelo Art. 1068.º do C.C., que determinou que o direito ao arrendamento passou a comunicar-se ao cônjuge se o regime de bens o permitisse.
Ocorre que, no caso concreto, pelas razões que já deixámos atrás expedidas, o direito ao arrendamento, de que o marido da R. era titular, transmitiu-se depois do casamento celebrado com a R., mas por sucessão imposta por lei (v.g. Art. 85.º n.º 1 al. b) do R.A.U.), não resultando duma aquisição de direito a título oneroso e após o matrimónio. Logo, preenche a previsão do Art. 1722.º n.º 1 al. b) do C.C., devendo considerar-se um direito integrado na esfera patrimonial própria e exclusiva do cônjuge que legalmente sucedeu na posição contratual de inquilino, excluída, portanto, da comunhão de bens do casal.
Estranha-se que toda a doutrina já citada, bem como a jurisprudência, seja lesta a excluir da comunhão de bens os arrendamentos constituídos antes do casamento, apelando à regra estabelecida na al. a) do Art. 1722.º do C.C., mas depois não tire a mesma conclusão quanto às formas de transmissão do arrendamento por via “mortis causa”, por decorrência da al. b) do mesmo Art. 1722.º do C.C.. É que, não podemos deixar de vincar que o Art. 1068.º consagrou a regra da comunicabilidade «nos termos gerais e de acordo com o regime de bens», o que pressupõe a conclusão de que, “nos termos gerais” e “de acordo com o regime de bens” esse direito possa integrar efetivamente a comunhão de bens do casal.
Nesse pressuposto, a consideração da aplicação da lei no tempo é, a nosso ver, completamente irrelevante para a solução do caso autos, pois mesmo que se considere que o Art. 1068.º do C.C., na redação dada pela Lei n.º 6/2006 de 27 de fevereiro, se aplicaria imediatamente por força do Art. 12.º n.º 2, 2.ª parte, do C.C. – entendimento que não é uniforme, mas colhe a larga maioria das opiniões favoráveis –, ainda assim sempre se deveria considerar que o direito ao arrendamento, neste caso, não se comunica ao cônjuge.
Pinto Furtado (in “Comentário ao Regime do Arrendamento Urbano”, 2019, págs. 295 a 296), vai de encontro ao raciocínio atrás exposto – ainda que para defender a tese de que a lei não se desinteressa por completo pelos factos que deram origem à relação jurídica –, pois, como constata, a nova lei não se limitou a consagrar a comunicabilidade do direito ao arrendamento, fazendo depender ao comunicação ao cônjuge dos «termos gerais e de acordo com o regime de bens vigente». Ora, como refere este autor: «segundo consta do art. 1714-1 CC, “fora dos casos previstos na lei, não é possível alterar, depois da celebração do casamento, nem as convenções antenupciais nem os regimes de bens legalmente fixados”.
«Celebrado um contrato de arrendamento habitacional e fixado nessa altura, de harmonia com a lei então vigente, que o direito ao arrendamento é incomunicável, parece evidente que este direito, assim configurado se radicou na esfera jurídica do seu titular. Já há um efeito produzido pelos factos que a lei se destina a regular, e que é, assim, ressalvado ainda que à lei nova fosse “atribuída eficácia retroativa” (art. 12-1- CC).
«Se certa dívida, à luz de determinada legislação, é incomunicável e depois de contraída, uma nova lei a passa a considerar comunicável, não poderá o outro cônjuge vir a ser responsabilizado por ela, quando não o era, à data da sua constituição».
De facto, são evidentes as dificuldades de compatibilizar das regras gerais do regime de bens do casamento com a regra da comunicabilidade do arrendamento especificamente prevista no Art. 1068.º do C.C., que na nossa perspetiva tem um âmbito de aplicação muito restrito, mesmo partindo do pressuposto que se aplica imediatamente aos arrendamentos pretéritos à entrada em vigor do NRAU.
Julgamos assim que o contrato de arrendamento efetivamente caducou por óbito do inquilino (cfr. Art. 1051.º al. d) do C.C.), não tendo a R. título legítimo oponível às A.A. que permita concluir pela recusa da restituição do imóvel às suas proprietárias, nos termos do Art. 1311.º n.º 2 do C.C..
A R. ainda invocou que as A.A. reconheceram a sua posição de arrendatária, simplesmente assentou essa alegação em factos que foram julgados por não provados (cfr. facto 19 - único facto não provado na sentença recorrida), sendo que nem sequer se verificam os pressupostos legais do Art. 1056.º do C.C., nomeadamente os temporais.
Sobreleva ainda a consideração de que o NRAU visou limitar o número de vezes que é possível a sucessão legal na posição de arrendatário, não admitindo que esse efeito jurídico seja possível ocorrer mais que uma vez por cada contrato, seja relativamente aos contratos celebrados depois da sua entrada em vigor (cfr. Art. 1106.º do C.C.), seja relativamente aos contratos celebrados antes da vigência do R.A.U. (cfr. Art. 57.º n.º 1 supra transcrito).
Aliás, não deixa de ser algo contraditório que o legislador tenha consagrado a regra da comunicabilidade no Art. 1068.º do C.C., sopesando que a nova lei abandonou o vinculismo que decorria da lei antiga, e pudesse agora, por via da aplicação dessa norma, permitir que a relação locatícia se perpetuasse subordinada ao regime vinculístico.
Entendemos que não foi intenção da lei tutelar estas situações com a regra da comunicabilidade (mitigada) que consagrou no Art. 1068.º do C.C.. A comunicabilidade do arrendamento foi essencialmente pensada em contrabalanço da possibilidade de funcionamento das regras que permitem ao locador fazer cessar a relação locatícia, sem ficarem sujeitos ao princípio da prorrogação forçada.
Julgamos assim que procedem as conclusões do recurso conforme ao exposto, devendo a sentença ser revogada e substituída por decisão que julgue a ação procedente por provada.
As custas do recurso são pela Recorrida, por ser a parte vencida (cfr. Art. 527.º n.º 1 e 2 do C.P.C.).
*
V- DECISÃO
Pelo exposto, acorda-se em julgar a apelação procedente por provada, revogando a sentença recorrida que julgou a ação improcedente, absolvendo a R. do pedido, sendo essa decisão substituída pelo julgamento da procedência da ação e consequente reconhecimento do direito de propriedade das A.A. sobre o prédio urbano destinado a habitação, composto de cave, armazém, rés do chão e três andares com lados direito e esquerdo, sito na Rua …, n.º 14 e 14-A, descrito na Conservatória dos Registos Predial e Comercial da Amadora sob o número … da freguesia da Falagueira-Venda Nova, inscrito na respetiva matriz predial urbana sob o artigo …, e condenando a R. a restituir às A.A., livre de pessoas e bens, o terceiro andar direito desse imóvel, que detém sem qualquer título legitimo, uma vez que caducou o contrato de arrendamento celebrado em 1 de Abril de 1970 e transmitido (em segunda transmissão), em 13 de Fevereiro de 1998, por morte do locatário, para o seu falecido marido.
- Custas pela Apelada (Art. 527º n.º 1 e n.º 2 do C.P.C.).
*
Lisboa, 29 de abril de 2025
Carlos Oliveira
Ana Mónica Mendonça Pavão
Diogo Ravara