ACIDENTE DE VIAÇÃO
RELAÇÃO DE COMISSÃO
PRESUNÇÃO DE CULPA
Sumário

Sumário[1]: (Elaborado pelo relator e da sua inteira responsabilidade – art. 663.º, n.º 7, do Código de Processo Civil[2])
1. O funcionamento da presunção legal prevista no art. 503.º, n.º 1, 1.ª parte, do CC, pressupõe uma relação de comissão, nos termos do art. 500.º, n.º 1, do mesmo código, que se caracteriza pelos seguintes elementos:
a) vínculo entre o comitente e o comissário;
b) relação de subordinação ou de dependência do comissário perante o comitente, que autorize este a dar ordens ou autorizações àquele;
c) o facto haja sido praticado pelo comissário no exercício das funções que lhe foram confiadas, embora seja suficiente que o ato se integre no quadro geral da competência ou dos poderes confiados ao comissário.
2. A condução por conta de outrem só por si não pressupõe uma relação de comissão, nos termos do art. 500.º, n.º 1, do CC, pois esta não se presume, não podendo resultar da propriedade (direção efetiva), uma segunda presunção no sentido de ser comissário do dono quem quer que conduza o veículo, devendo ser alegados e provados factos que tipifiquem essa comissão.
3. A relação comissário/comitente é distinta do mero interesse (económico ou moral) na utilização do veículo, cuja direção efetiva (traduzida no poder de facto sobre o veículo) pode coexistir entre o proprietário do veículo e o seu condutor, bastando recordar, entre outras, as figuras do comodato, mantendo, assim, a direção efetiva do veículo.

[1] Neste acórdão utilizar-se-á a grafia decorrente do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, respeitando-se, no entanto, em caso de transcrição, a grafia do texto original.
[2] Diploma a que pertencem todos os preceitos legais citados sem indicação da respetiva fonte.

Texto Integral

Acordam na 7.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

I – RELATÓRIO:
G instaurou a presente ação declarativa de condenação contra Z, PLC, alegando, em síntese, que no dia 12 de janeiro de 2018, cerca das 22h e 51m, no cruzamento da Rua ____ com a Avenida ____, em Lisboa, ocorreu um acidente de viação, no qual foram intervenientes:
- o motociclo com a matrícula __-SQ-__[1], pertença de R, pai do autor, e então por este conduzido;
- o veículo automóvel de passageiros, com a matrícula __-UA-__[2], pertença de A, e então conduzido pelo seu pai, M, por conta, no interesse e sob a direção efetiva daquela.
O condutor do UA foi o responsável pela produção do acidente, além de que se presume a sua culpa na ocorrência do sinistro.
À data do acidente, a responsabilidade civil decorrente da circulação do UA encontrava-se transferida para a ré através de contrato de seguro titulado pela apólice n.º ____.
Em consequência do acidente, o autor sofreu graves danos de natureza patrimonial e não patrimonial, pelos quais pretende ser indemnizado.
O autor conclui assim a petição inicial:
«Nestes termos (...), deve a presente ação ser julgada, totalmente, procedente, e provada, condenando-se a R. a pagar ao A., a quantia de € 506.957,39, acrescida de juros de mora legais, a contar da citação»
*
A ré contestou, começando por arguir a exceção perentória de prescrição do direito que o autor pretende fazer valer através desta ação.
No mais, defende-se por impugnação.
Conclui assim a contestação:
«Termos em que deve:
A) Ser julgada procedente a exceção perentória de prescrição do direito do Autor;
Ou, se assim se não entender,
B) Ser a presente ação julgada totalmente improcedente, por não provada;
Em qualquer dos casos se absolvendo a Ré do pedido, com todas as consequências legais».
*
O autor respondeu à exceção, pugnando pela sua improcedência.
*
Na subsequente tramitação dos autos, após realização da audiência final, foi proferida sentença, de cuja parte dispositiva consta o seguinte:
«Por todo o exposto o tribunal julga a presente ação improcedente e absolve a R. do pedido».
*
Inconformado, o autor interpôs recurso para este Tribunal da Relação, concluindo assim[3] as respetivas alegações:
«1. Os presentes autos têm a sua origem num acidente de viação onde foram intervenientes o motociclo do A. ora Recorrente e, o veículo seguro na R., aqui Recorrido;
2. O acidente subjúdice aconteceu num entroncamento, cujo trânsito rodoviário era regulado por sinal luminoso vertical - semáforos e, inequivocamente, um dos condutores intervenientes terá invadido a zona do entroncamento, transpondo o sinal na posição de encarnado;
3. O A. defende que esteve parado no semáforo regulador do seu sentido de trânsito, e após passar a emitir luz verde para o seu sentido e direção de trânsito, reiniciou a sua marcha;
4. Por seu turno, o condutor do veículo seguro na R. disse que vinha a circular e quando chegou ao aludido entroncamento, prosseguiu a sua marcha;
5. Relativamente à dinâmica e produção do sinistro, o A. arrolou uma testemunha, o J, que na altura se encontrava em frente, nas bombas da REPSOL, local onde trabalhava;
6. Esta foi a única testemunha que esteve no local com a polícia, e facultou os elementos de identificação ao senhor agente participante do auto de acidente viação, referindo que, no momento do acidente, não havia qualquer testemunha e, que apenas ali se encontrava uma moca (além, claro está, do motociclo do A. e o veículo seguro na R.).
7. Não obstante, por seu turno, a R. indica duas testemunhas, o V, e o B porém, nenhuma destas duas testemunhas, estiveram no local com a polícia mas, os seus nomes aparecem como testemunhas...;
8. Francamente, com todo o respeito, estas duas testemunhas arroladas pela R. não nos mereceu qualquer credibilidade, desde logo, porque não falaram com o senhor agente autuante, os seus nomes apareceram, sabe-se lá como, no auto de participação...;
9. Por outro lado, além deste mistério, estas duas testemunhas são de uma conveniência e, coincidência, excecionais... pelo que, por tudo isto, não acreditamos que estas testemunhas tivessem presenciado o acidente em crise;
10. E, se dúvidas houvesse, os seus depoimentos foram um autêntico desastre, que passaram por hesitações, contradições, e com uma memória tremenda e convenientemente seletiva, onde nada batia certo, muito menos, com o depoimento do condutor do veículo seguro na R., ora se esqueciam, ora reformulavam as respostas... Enfim, pior era impossível...;
11. A verdade é que, o Tribunal “o quo” assim o não entendeu e até referiu que os “esquecimentos” destas testemunhas não era importante (?!...);
12. O A. tem a legítima e fundada convicção de que estas duas testemunhas não se encontravam presentes no momento do acidente;
13. Em relação à testemunha e condutor do veículo seguro na R., também ele, apresentou declarações dúbias e controversas aliás, nem sequer conseguiu apresentar uma versão lógica e possível do acidente;
14. Sem nos alongarmos, apenas um pequeno grande pormenor:
- Como é que se explica ou, quem é que acredita, que um veículo circulando a uma velocidade de 40/50 Kms/hora, após o acidente, apenas se imobiliza a mais de 300 metros?... IMPOSSÍVEL;
15. O A. defende ainda que o único e exclusivo culpado pela produção do sinistro foi o condutor do veículo seguro na R. que entrou no entroncamento com o semáforo a emitir- lhe luz encarnada;
16. O A. não se conforma com a decisão do Tribunal “a quo” pois, salvo todo o devido respeito, não é pelo facto de a R. apresentar um maior número de testemunhas (e que testemunhas...) que tem de ter êxito na causa;
17. Deste modo, o A. entende, salvo o devido respeito, que ocorreu uma incorreta apreciação da prova produzida, resultado dos depoimentos destas duas testemunhas, influenciando a matéria de facto dada como provada, e que levou à improcedência total da ação;
18. Atento o exposto, a decisão, objeto do presente recurso deveria ter sido no sentido de julgar a presente ação procedente, o que aqui se invoca para todos os devidos efeitos e legais consequências,
19. Caso assim se não entenda, em virtude de não existir uma certeza sobre quem impende a culpa pela produção do sinistro então, o Tribunal deveria utilizar uma das várias ferramentas previstas na Lei para o efeito.
Artigo 640° do Código de Processo Civil (“CPC”):
20. Mediante a prova dúbia, inexata e controversa jamais o Tribunal poderia dar como provados os “Pontos 15 e 17” dos “Factos Provados”, pelo que, foram incorretamente julgados;
21. A decisão proferida jamais poderia ser pela improcedência total da ação, antes a procedência, ainda que parcial;
22. No mínimo, deveria aceitar que subsiste uma dúvida legítima e fundada;
23. E, assim, deveria aplicar ou:
1.º A presunção legal de culpa, que impende sobre o condutor do veículo seguro na R. - Artigo 503°. n° 3 do CC;
2o. Ou então, o Artigo 506°, n° 2 do CC, quando determina em caso de dúvida, contribui em igual proporção cada um dos condutores intervenientes.
Do Direito /Artigo 639° do CPC:
24. Sempre, salvo o devido respeito também a douta decisão é merecedora de censura, no que respeita à aplicação do Direito pois, perante a prova produzida nos presentes autos, conforme explanado nas motivações do presente recurso, é impossível alguém ter a certeza de qual dos dois intervenientes prevaricou, entrado no entroncamento com o semáforo a emitir luz vermelha;
25. Neste cenário de dúvida legítima, a lei prevê soluções para esta situação, quando não existe uma certeza, ou quando as testemunhas não permitem convencer, ou fazer crer o que na realidade se passou;
26. De facto, o CC prevê a aplicação de uma presunção de culpa que impende sobre o condutor que faz uso de um veículo, que não é de sua propriedade - Artigo 503°. n° 3 do CC. como era o caso do veículo seguro na R.;
27. A lei prevê ainda que. em caso de dúvida (dúvida é coisa que aqui não falta quanto à culpa pela produção do sinistro subjúdice) considera-se igual a medida da contribuição de cada um dos veículos, para os danos, bem como, a contribuição da culpa de cada um dos condutores - Artigo 506°. n° 2 do CC;
28. Atento o exposto, em virtude da dúvida sobre a culpa pela produção do sinistro o Tribunal “a quo’’ deveria ter feito uso da presunção de culpa prevista no artigo 503. n° 3 do CC e julgada a ação procedente;
29. Caso assim se não entenda, em alternativa, deveria ter-se socorrido do artigo 506°. n° 2 do CC que determina em caso de dúvida, considerando-se igual a medida de contribuição da culpa de cada um dos condutores;
30. O A. confia plenamente, na Justiça e no sistema judicial, acreditando que o Venerando Tribunal da Relação irá emendar a douta decisão recorrida, permitindo que se faça Justiça».
Remata assim:
«Nestes termos e nos demais de Direito aplicáveis, deverá ser dado pleno provimento ao presente recurso, conforme o alegado, pelas razões de facto, e de Direito invocadas e, em consequência, alterada a douta Decisão recorrida, em conformidade com o defendido, aplicando a presunção legal de culpa invocada, que pende sobre a R. - Art° 503°. n° 3 do CC. e assim ser condenada, conforme e nos termos peticionados.
Caso assim se não entenda então, deverá ser aplicado o regime consagrado no artigo 506°. n° 2 do CC. considerando-se igual a medida de contribuição da culpa de cada um dos condutores».
*
A ré contra-alegou, pugnando pela improcedência do recurso e, consequentemente, pela manutenção da sentença recorrida.
*
II – ÂMBITO DO RECURSO:
Como se sabe, sem embargo das questões de que o tribunal ad quem possa ou deva conhecer ex officio, é pelas conclusões com que o recorrente remata a sua alegação (aí indicando, de forma sintética, os fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão recorrida: art. 639.º, n.º 1), que se determina o âmbito de intervenção do tribunal de recurso.
Efetivamente, muito embora, na falta de especificação logo no requerimento de interposição, o recurso abranja tudo o que na parte dispositiva da sentença for desfavorável ao recorrente (art. 635.º, n.º 3), esse objeto, assim delimitado, pode vir a ser restringido (expressa ou tacitamente) nas conclusões da alegação (n.º 4 do mesmo art. 635.º).
Por isso, todas as questões de mérito que tenham sido objeto de julgamento na sentença recorrida e que não sejam abordadas nas conclusões da alegação do recorrente, mostrando-se objetiva e materialmente excluídas dessas conclusões, têm de se considerar decididas e arrumadas, não podendo delas conhecer o tribunal de recurso, ainda que, eventualmente, hajam sido suscitadas nas alegações propriamente ditas.
Por outro lado, como meio impugnatório de decisões judiciais, o recurso visa tão só suscitar a reapreciação do decidido, não comportando, assim, ius novarum, i.e, a criação de decisão sobre matéria nova não submetida à apreciação do tribunal a quo (cfr. os arts. 627.º, n.º 1, 631.º, n.º 1 e 639.º).
Ademais, também o tribunal de recurso não está adstrito à apreciação de todos os argumentos produzidos em alegação, mas apenas – e com liberdade no respeitante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito (art. 5.º, n.º 3) – de todas as “questões” suscitadas, e que, por respeitarem aos elementos da causa, definidos em função das pretensões e causa de pedir aduzidas, se configurem como relevantes para conhecimento do respetivo objeto, excetuadas as que resultem prejudicadas pela solução dada a outras (art. 608.º, n.º 2, ex vi do art. 663.º, n.º 2).
À luz destes considerandos, neste recurso importa decidir:
a) se há lugar à alteração da decisão sobre a matéria de facto;
b) se estão verificados os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual; e, em caso afirmativo,
c) da extensão do dever de indemnização por parte da ré.
***
III – FUNDAMENTOS:
3.1 – Fundamentação de facto:
3.1.1 – A sentença recorrida considerou provado que:
«1. No dia 12 de Janeiro de 2018, cerca das 22h51m, na Av. ____ em Lisboa, ocorreu um acidente de viação em que foram intervenientes o motociclo matrícula __-SQ-__ conduzido pelo A. e propriedade do seu pai R, e o veículo ligeiro seguro na R., matrícula __-UA-__ conduzido por M e propriedade da sua filha A;
2. O veículo ligeiro matrícula __-SQ-__ (“UA”) tinha a responsabilidade civil por danos causados a terceiros com o referido veículo, transferida para a R. por meio de contrato de seguro obrigatório por via da apólice n° ____;
3. No dia e hora do acidente, M ia buscar a sua filha, proprietária do veículo, ao local de trabalho desta;
4. No dia e hora do acidente, o A. conduzia o motociclo do seu pai, dirigindo-se para ir ter com os amigos;
5. Era de noite, não chovia e o local era iluminado;
6. O A. circulava na Rua ____, em Lisboa, no sentido Norte-Sul, em direção ao entroncamento na Rua ____;
7. No referido entroncamento existe sinalética semafórica a qual no momento do acidente funcionava normalmente;
8. O A. tinha intenção de virar à esquerda em direção à av. ____ e ali passar a circular;
9. Por essa razão, tomou a via mais à esquerda da Rua ____, a qual lhe permitia realizar a manobra pretendida, ou seja, virar à esquerda, atento o seu sentido de marcha;
10. Uma vez chegado ao aludido cruzamento, e conforme referido, o semáforo regulador do seu sentido, e direção, de trânsito apresentava-se-lhe a emitir luz encarnada;
11. Após percorrer a zona de confluência do referido entroncamento, entrou na Av. ____;
12. O veículo seguro na R. circulava pela Av. ____;
13. E, fazia-o pela via da esquerda, das duas ali existentes, atento o seu sentido de marcha;
14. Existe uma terceira via mais à esquerda que se prolonga por alguns metros;
15. O condutor do motociclo passou com o semáforo vermelho e foi embater no veículo automóvel segurado pela R. e na via de rodagem em que este circulava com o sinal verde;
16. Embateu a lateral direita do motociclo no lateral esquerda do veículo automóvel, apanhando uma parte da frente do mesmo;
17. O veículo segurado pela R. só veio a imobilizar-se alguns metros mais à frente, já no final da via;
18. Em virtude do acidente o A. sofreu escoriações múltiplas, a sua perna direita foi esmagada e veio a ser amputada metade do membro inferior direito (perna) do A.
19. O A. a seguir ao acidente esvaiu-se em sangue até chegar a ajuda médica.
20. Seguiram-se momentos de agonia, de grande angústia e sofrimento pois, não sabia as consequências físicas provocadas pelo acidente.
21. O A. temeu pela sua própria vida.
22. O A. nesses momentos (enquanto aguardava ajuda médica) sofreu dores;
23. Em consequência do acidente o A. ficou com as lesões que constam do relatório do IMNL de fls. 240 dos autos, nomeadamente com um défice funcional temporário total fixável em 28 dias, um défice funcional temporário parcial fixável em 272 dias, com um período de repercussão temporária na atividade profissional total fixável em 42 dias, e um período de repercussão temporária na atividade profissional parcial fixável em258 dias, um quantum doloris fixável em 6/7, dano estético 5/7; défice funcional permanente na integridade física psíquica de 30 pontos, repercussão nas atividades desportivas e lazer de 2/7, repercussão na atividade sexual de 2/7, e as demais que constam do dito relatório e que se dão por integralmente reproduzido.
24. Sofreu os internamentos e intervenções cirúrgicas que constam descritas no dito relatório do IMNL;
25. O A., até ao acidente, gozava de boa saúde, não apresentando qualquer defeito ou incapacidade física e/ou psicológica.
26. O A. antes do acidente era uma pessoa sociável, saudável robusta, evidenciando grande alegria de viver.
27. Ia à praia.
28. Fazia desporto.
29. Socializava com os amigos e. confraternizava com os seus familiares.
30. Após o acidente ficou mais fechado, isolando-se, fala menos, socializa pouco, deixou de fazer exercício físico e sair com os amigos, tornou-se mais calado e tem vergonha de ir à praia e à piscina.
31. A seguradora do motociclo pagou ao veículo automóvel em apreço a reparação do mesmo assumindo a responsabilidade pelo evento.
32. Pelo acidente em apreço o aqui A. apresentou uma denuncia criminal contra o condutor do veículo automóvel segurado pela R., originando o processo crime nº ____/__.4T8LSB que correu termos na 13ª seção do DIAP de Lisboa e concluiu pela inexistência de elementos suficientes para acusar o arguido condutor, assim arquivando os autos, conforme despacho de fls. 211 a 213 dos autos».
3.1.2 – (...) e não provado que:
«1. Uma vez chegado ao aludido cruzamento o A imobilizou-se no semáforo vermelho e só avançou quando o semáforo passou a verde;
2. Logo que o A. entrou na Av. ____, na via mais à esquerda das três ali existentes, foi embatido, ou melhor, abalroado, violentamente, pelo veículo seguro na R. o qual passou com o sinal vermelho;
3. O qual circulava a uma velocidade superior a 120 km/h;
4. Não obstante o sinal luminoso (semáforo) regulador do seu sentido e direção de trânsito se lhe apresentar na posição de encarnado, que lhe impunha a obrigação de parar, o condutor do veículo seguro na R. prosseguiu a marcha;
5. Logo após transpor o referido semáforo, na posição de encarnado, o condutor do veículo seguro na R. passou para a via mais à esquerda, da segunda para a terceira via mais à esquerda, onde foi colher o A;
6. Assim, ao que tudo indica, o condutor do veículo seguro na R. pretendia virar à esquerda pois, logo que transpôs o entroncamento, mudou para a via mais à esquerda, que o obrigava a tal manobra de mudança de direção à esquerda;
7. Na Av. ____, por onde circulava o veículo seguro na R., não circulava qualquer outro veículo, nem à frente, nem ao lado, nem atrás;
8. O A. esteve 30 minutos no chão a esvair-se de sangue até chegar o INMEM».
*
3.2 – Fundamentação de direito:
3.2.1 – Um prévio e breve considerando quanto ao recurso interposto pelo autor:
Segundo elementos constantes dos autos[4], à data do acidente, o autor tinha 18 anos de idade.
Não pode, obviamente, deixar de lamentar-se as nefastas consequências danosas que, para um jovem com aquela idade, decorreram do acidente de viação em que foi interveniente e a que se reportam os presentes autos, nomeadamente, a descrita em 18. dos factos provados: «Em virtude do acidente o A. sofreu escoriações múltiplas, a sua perna direita foi esmagada e veio a ser amputada metade do membro inferior direito (perna) do A.»
São muitas e bastantes contundentes as críticas que o autor, pela pena do seu ilustre advogado, tece à sentença recorrida, por vezes até com alguma ironia.
A título meramente exemplificativo:
- (...) o Tribunal apegou-se ao número de testemunhas, sem considerar a qualidade, ou melhor, a veracidade desses depoimentos, as incongruências, e perdas de memória convenientes, dessas mesmas duas testemunhas»;
- «O critério do Tribunal “a quo” para decidir foi pelo número de testemunhas arroladas pelas partes»;
- «Assim, como a R. tem mais testemunhas, o Tribunal decidiu que teria de prevalecer esta versão»;
- «Enfim, é como contar espingardas”»;
- «Eventualmente, se o A. tivesse “arranjado” duas ou três testemunhas, teria sido tudo diferente...»;
- «Por outro lado, acreditamos que a última coisa que um qualquer Senhor Magistrado pretende que lhe aconteça, é condenar, ou culpar, um inocente, e absolver o verdadeiro culpado – “É preferível mil culpados em liberdade, que um inocente PRESO”»;
- «É que neste caso, não é apenas condenar, ou absolver, um indivíduo»;
- «Pode aqui suceder, fica o culpado absolvido, e o lesado “condenado”;
- «Não será certamente pelo facto de o A. apenas ter uma testemunha, e a R. ter arrolado duas, que permite a decisão pela quantidade, porque tem mais testemunhas»;
- «A douta sentença refere que o A.: “...No momento do acidente afirmou à PSP que não se lembrava da cor do semáforo... ” (Vide Douta sentença). … Sério?!... Francamente…»;
- «Perante este desastre testemunhal, o Tribunal “quo” entende que não existe qualquer dúvida que foi o A. quem passou com o vermelho, isso porque, temos três versões "‘desinteressadas” que assim o dizem...»;
- «E, já que falamos no A., as suas “declarações de parte”., se é que assim se pode designar, foi inaudito. / A verdade é que, o Tribunal “a quo ” foi perentório pois, referiu também que não valorava, minimamente, as declarações de parte. / Aliás, foi notória essa posição do Tribunal quando o A., coitado, se atreveu a prestar declarações... / Assim, sugere-se a audição da transcrição das declarações de parte do A., até porque foram muito curtas...».
Não está em causa, nunca poderá estar em causa, como é elementarmente óbvio e evidente, num estado de direito democrático, o direito de qualquer cidadão criticar, e criticar contundentemente, as decisões dos seus tribunais.
Por conseguinte, e independentemente do acerto ou desacerto, do rigor ou da falta dele, da adequação ou inadequação, quanto à terminologia utilizada numa alegação recursiva, naturalmente dirigida a um tribunal superior, não está aqui em causa o direito à critica, mesmo severa, com razão ou sem razão, justificada ou injustificada, do autor/apelante, à sentença recorrida.
O que aqui se equaciona é a circunstância de o autor/recorrente, que tão duramente critica a decisão da 1.ª instância, ter apresentado uma peça recursiva, por assim dizer, de todo inconsequente, isto é, um recurso relativamente ao qual, uma primeira leitura, ainda que perfunctória, bastaria para imediatamente se concluir no sentido da sua improcedência.
3.2.2 – Da impugnação da decisão sobre a matéria de facto:
Diz o autor, no cabeçalho da alegação, que por não se conformar com a sentença proferida em 1.ª instância, dela «vem interpor o respetivo recurso que é de Apelação, com reapreciação de prova gravada (art. 644.º do Código do Processo Civil)[5] […].
Ainda que se considere ter o autor/recorrente impugnado a decisão sobre a matéria de facto, o desfecho dessa impugnação só pode ser um: a sua rejeição!

«1 - Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
2 - No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:
a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;
b) […].
3 - [...]».
Em anotação a este artigo, afirma Abrantes Geraldes que «a rejeição total ou parcial do recurso respeitante à impugnação da decisão da matéria de facto deve verificar-se em algumas das seguintes situações:
a) Falta de conclusão sobre a impugnação da decisão da matéria de facto (arts. 635.º, n.º 4, e 641.º, n.º 2, al. b));
b) Falta de especificação, nas conclusões, dos concretos pontos de facto que o recorrente considera incorretamente julgados (art. 640.º, n.º 1, al. a));
c) Falta de especificação, na motivação, dos concretos meios probatórios constantes do processo ou nele registados (v.g. documentos, relatórios periciais, registo escrito, etc.);
d) Falta de indicação exata, na motivação, das passagens da gravação em que o recorrente se funda;
e) Falta de posição expressa, na motivação, sobre o resultado pretendido relativamente a cada segmento da impugnação»[6].Dispõe o art. 640.º:
As referidas exigências, prossegue o citado Autor, «devem ser apreciadas à luz de um critério de rigor. Trata-se, afinal, de uma decorrência do princípio da autorresponsabilidade das partes, impedindo que a impugnação da decisão da matéria de facto se transforme numa mera manifestação de inconsequente inconformismo»[7], sempre temperado pela necessária proporcionalidade e razoabilidade, sendo que, basicamente, o essencial que tem de estar reunido é «a definição do objeto da impugnação (que se satisfaz seguramente com a clara enunciação dos pontos de facto em causa), com a seriedade da impugnação (sustentada em meios de prova indicados e explicitados e com a assunção clara do resultado pretendido)»[8].
Em caso de impugnação da decisão sobre a matéria de facto, o recorrente deve identificar os pontos de facto que considera incorretamente julgados, não podendo limitar-se a indicar os depoimentos prestados e a listar documentos, sem fazer a indispensável referência àqueles pontos de facto, especificando os concretos meios de prova que impunham para cada um desses pontos de facto fosse julgado provado ou não provado. A apresentação das transcrições globais dos depoimentos das testemunhas não satisfaz a exigência determinada pela al. a) do n.º 2 do art. 640.º[9].
O ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto, consagrado no art. 640.º, impõe, sob pena de rejeição, a identificação, com precisão, nas conclusões da alegação do recurso, os pontos de facto que são objeto de impugnação[10].
Tal como se assinala no Ac. do S.T.J. de 27.09.2018, Proc. n.º 2611/12.2TBSTS.L1.S1 (José Sousa Lameira), in www.dgsi.pt, para que o ónus impugnatório da decisão sobre a matéria de facto, que impende sobre o recorrente, e a que se reporta o art. 640.º, seja cabalmente cumprido, impõe-se-lhe que faça, também ele, uma análise crítica da prova invocada, em confronto com o que consta da motivação da sentença, de modo a justificar a alteração da decisão proferida sobre os factos.
Na verdade, tal como é imposto ao tribunal que faça a análise crítica das provas (de todas as provas que se tenham revelado decisivas), também o recorrente, ao enunciar os concretos meios de prova que devem conduzir a uma decisão diversa, deve fundar tal pretensão numa análise crítica dos respetivos meios probatórios.
Ou seja, exige-se do recorrente a explicitação da sua discordância fundada nos concretos meios probatórios ou pontos de facto que considera incorretamente julgados, ónus que não se compadece com a mera alusão aos meios de prova, no caso concreto, a documentos, sem indicação concreta das insuficiências, discrepâncias ou deficiências de apreciação da prova produzida, em confronto com o resultado que pelo tribunal recorrido foi declarado.
Por outras palavras, ainda, exige-se que o recorrente faça o confronto dos elementos probatórios que indica, e que em seu entender impõem, relativamente a cada ponto de facto que impugna, com os restantes que serviram de suporte para a formulação da convicção do tribunal[11].
Por conseguinte, o recorrente deverá, em sede de impugnação da decisão sobre a matéria de facto, apresentar «um discurso argumentativo onde, em primeiro lugar, alinhe as provas, identificando-as, ou seja, localizando-as no processo e tratando-se de depoimentos a respectiva passagem e, em segundo lugar, produza uma análise crítica relativa a essas provas, mostrando minimamente por que razão se “impunha” a formação de uma convicção no sentido pretendido»[12].
Acontece que, como é facilmente constatável, o apelante não cumpre os ónus que, cumulativamente, lhe são impostos pelo art. 640.º!
Na verdade, o autor/apelante:
a) não indica, na extensa, confusa e prolixa motivação do recurso, um único facto que considera incorretamente julgado;
b) limita-se a afirmar, nas conclusões do recurso, que «mediante a prova dúbia, inexata e controversa jamais o Tribunal poderia dar como provados os “Pontos 15 e 17” dos “Factos Provados”, pelo que, foram incorretamente julgados»;
c) não especifica, na motivação do recurso, quais os concretos meios de prova constantes do processo ou nele registados, que impunham, relativamente a qualquer facto impugnado, decisão diversa da proferida pelo tribunal a quo;
d) não indica as passagens da gravação em que funda, relativamente a qualquer concreto ponto de facto, a sua impugnação.
Relativamente a este ónus:
i) o apelante junta, com a alegação de recurso, um documento composto por 102 (cento e duas) páginas, contendo transcrições de gravações de depoimentos e declarações prestados em audiência;
ii) transcreve, de forma espartilhada na motivação do recurso, e sem referência a qualquer concreto ponto de facto, excertos daquelas transcrições;
e) não especifica a decisão que, em seu entender, devia ser proferida sobre qualquer concreta questão de facto impugnada.
Termos em que, sem necessidade de mais considerandos, por desnecessários, se rejeita a (pretensa) impugnação da decisão sobre a matéria de facto.
3.2.3 – Do enquadramento jurídico:
O autor faz assentar a sua pretensão indemnizatória contra a ré com base na presunção de culpa que, a seu ver, recai sobre o condutor do UA, nos termos do art. 503.º, n.º 1, 1.ª parte, do CC, onde se dispõe que «aquele que conduzir o veículo por conta de outrem responde pelos danos que causar, salvo se provar que não houve culpa da sua parte; (...)».
Conforme se afirma no Ac. do S.T.J. de 04.06.2024, Proc. n.º 1625/19.6T8CBR.C1.S1 (Jorge Arcanjo), in www.dgsi.pt, o funcionamento dessa presunção legal de culpa pressupõe uma relação de comissão, nos termos do art. 500.º, n.º 1, do CC, que, segundo orientação jurisprudencial e doutrinária, se caracteriza pelos seguintes elementos:
a) vínculo entre o comitente e o comissário;
b) relação de subordinação ou de dependência do comissário perante o comitente, que autorize este a dar ordens ou autorizações àquele;
c) o facto haja sido praticado pelo comissário no exercício das funções que lhe foram confiadas, embora seja suficiente que o ato se integre no quadro geral da competência ou dos poderes confiados ao comissário.
Tem-se entendido que a comissão do art. 500.º, n.º 1, do CC, não tem aqui o sentido preciso que reveste nos arts. 266.º ss. do Cód. Comercial, mas o sentido amplo de serviço ou atividade realizado por conta e sob a direção de outrem, podendo traduzir-se num ato isolado ou numa atuação duradoura.
No entanto, a condução por conta de outrem só por si não pressupõe uma relação de comissão, nos termos do art. 500.º, n.º 1, do CC, pois esta não se presume, não podendo resultar da propriedade (direção efetiva), uma segunda presunção no sentido de ser comissário do dono quem quer que conduza o veículo, devendo ser alegados e provados factos que tipifiquem essa comissão, conforme se afirma no Assento de 30 de Abril de 1996, publicado no DR, 1.ª Série, de 24 de Junho de 1996 (hoje com o valor de Acórdão de Uniformização de Jurisprudência: «O dono do veículo só é responsável, solidariamente, pelos danos causados pelo respectivo condutor, quando se aleguem e provém factos que tipifiquem uma relação de comissão, nos termos do artigo 500.º, n.º 1 do Código Civil, entre o dono do veículo e o condutor do mesmo».
Assim sendo, a comissão reclama uma relação de dependência entre o comitente e o comissário (aquele dando, ou podendo dar instruções ou ordens a este), que permita responsabilizar o primeiro pela atuação do segundo, exigindo-se a necessária a prova da referida relação de dependência.
Deste modo, a relação comissário/comitente é distinta do mero interesse (económico ou moral) na utilização do veículo, cuja direção efetiva (traduzida no poder de facto sobre o veículo) pode coexistir entre o proprietário do veículo e o seu condutor, bastando recordar, entre outras, as figuras do comodato, mantendo, assim, a direção efetiva do veículo.
Em síntese: para que se estabeleça a presunção de culpa prevista no art. 503.º, n.º 3, 1.ª parte, do CC, impõe-se a alegação e prova a direção efetiva do veículo e a relação de comissão entre o titular dessa direção efetiva e o condutor.
No mesmo sentido, escreve Raul Guichard que «(...) será necessária a demonstração da existência de uma relação de comissão entre o condutor e o proprietário, não se presumindo a qualidade de comissário de qualquer condutor que conduza um veículo alheio»[13].
No caso destes autos, o autor limita-se a alegar que «o veículo seguro na R., era, na altura do acidente subjúdice, propriedade de A (...).
Todavia, era M quem conduzia o veículo seguro na R. (...).
O M, na altura, conduzia o veículo seguro na R., no exercício das suas funções, por conta, no interesse e, sob a direção efetiva da respetiva proprietária.
Tanto assim é que, segundo o condutor do veículo seguro na R., deslocava-se para o local de trabalho da sua filha (proprietária do veículo) para ali deixar o veículo, ou seja, dúvidas não há que, o condutor do veículo seguro na R. conduzia-o no interesse da proprietária, conforme ele referiu, levava-o com destino ao trabalho da filha, para que esta o viesse a utilizar:
Assim, verifica-se a existência de uma relação comitente – comissário entre a proprietária do veículo seguro na R., e o seu condutor, invocando-se desde já, e para os devidos efeitos legais, a presunção de culpa no art.º 503º, n.º 3 do CC».
Facilmente se constata, à luz do que antecede, que o autor não alega factos concretos suscetíveis de, uma vez provados, demonstrarem a existência de uma relação comitente-comissário entre a proprietária do UA e o seu condutor à data do acidente.
Não tendo sido alegada, não poderia, obviamente, resultar provada aquela relação de comissão.
Com efeito, provou-se apenas:
- que no momento do acidente, o UA, conduzido por M, era propriedade da sua filha A; e,
- que, então, M ia buscar a sua filha, proprietária do veículo, ao local de trabalho desta.
Em síntese: não foi alegada, e muito menos resultou provada, uma relação comitente-comissário entre a proprietária do UA e o seu condutor à data do acidente.
Acontece que, além de não resultar demonstrada essa relação de comissão, suscetível de fazer presumir a culpa do condutor do UA, aquilo que a factualidade provada demonstra é a culpa exclusiva do autor na produção do acidente.
Vela-se:
i. «Era noite, não chovia e o local era iluminado» - ponto 5;
- «O A. circulava na Rua ____, em Lisboa, no sentido Norte-Sul, em direção ao entroncamento na Rua ____» - ponto 6.;
ii. «No referido entroncamento existe sinalética semafórica a qual no momento do acidente funcionava normalmente» - ponto 7.;
iii. «O A. tinha intenção de virar à esquerda em direção à av. ____ e ali passar a circular» - ponto 8.;
iv. «Por essa razão, tomou a via mais à esquerda da Rua ____, a qual lhe permitia realizar a manobra pretendida, ou seja, virar à esquerda, atento o seu sentido de marcha» - ponto 9.;
v. «Uma vez chegado ao aludido cruzamento, e conforme referido, o semáforo regulador do seu sentido, e direção, de trânsito apresentava-se-lhe a emitir luz encarnada» - ponto 10.;
vi. «Após percorrer a zona de confluência do referido entroncamento, entrou na Av. ____» - ponto 11.;
vii. «O veículo seguro na R. circulava pela Av. ____» - ponto 12.;
viii. «E, fazia-o pela via da esquerda, das duas ali existentes, atento o seu sentido de marcha» - ponto 13.;
ix. «Existe uma terceira via mais à esquerda que se prolonga por alguns metros» - ponto 14.;
x. «O condutor do motociclo passou com o semáforo vermelho e foi embater no veículo automóvel segurado pela R. e na via de rodagem em que este circulava com o sinal verde» - ponto 15.;
xi. «Embateu a lateral direita do motociclo no lateral esquerda do veículo automóvel, apanhando uma parte da frente do mesmo» - ponto 16.
Uma tal factualidade revela que a conduta do autor, foi violadora dos seguintes preceitos estradais:
a) Art. 7.º, n.º 1, do Cód. da Estrada, aprovado pelo Dec. Lei n.º 11/94, de 03.05[14], com as alterações introduzidas pelo Dec. Lei n.º 2/98, de 03.01, pelo Dec. Lei n.º 44/2005, de 23.02 e pela Lei n.º 72/2013, de 03.09: «As prescrições resultantes dos sinais prevalecem sobre as regras de trânsito»;
b) art. 11.º, n.º 2, do CE, com as alterações introduzidas pelos diplomas referidos em a) e ainda pelo Dec. Lei n.º 265-A/2001, de 28.09: «Os condutores devem, durante a condução, abster-se da prática de quaisquer atos que sejam suscetíveis de prejudicar o exercício da condução com segurança;
c) art. 12.º, n.º 1, do CE, com alterações introduzidas pelos Decs. Lei n.ºs 2/98, de 03.01, e 265-A/2001, de 28.09: «Os condutores não podem iniciar ou retomar a marcha sem assinalarem com a necessária antecedência a sua intenção e sem adotarem as precauções necessárias para evitar qualquer acidente»;
d) art. 35.º, n.º 1, do CE, com alterações introduzidas pelos Decs. Lei n.ºs 2/98, de 03.01, 265-A/2001, de 28.09, e 44/2005, de 23.02: «O condutor só pode efetuar as manobras de ultrapassagem, mudança de direção ou de via de trânsito, inversão do sentido de marcha e marcha atrás em local e por forma que da sua realização não resulte perigo ou embaraço para o trânsito»;
e) art. 69.º, n.º 1, al. a) do Decreto Regulamentar n.º 22-A/98, de 01.10, com a redação que lhe foi dada pelo Decreto Regulamentar n.º 6/2019, de 22.10, vigente à data do acidente: «A sinalização luminosa constituída por um sistema de três luzes circulares, não intermitentes, designado por S1 - sinal tricolor circular, destina-se a regular o trânsito de veículos e tem as cores vermelha, amarela e verde, a que correspondem os significados seguintes:
a) Luz vermelha - passagem proibida: obriga os condutores a parar antes de atingir a zona regulada pelo sinal»[15].
Perante a factualidade provada, transcrita em i. a xi. supra, à luz dos preceitos legais acabados de citar, não se vê que possam subsistir dúvidas de que a culpa do acidente deve ser imputada ao autor, condutor do motociclo.
Mas culpa exclusiva, pois os elementos factuais apurados não permitem outra conclusão que não seja a de que o acidente apenas ocorreu devido ao comportamento do autor, que não respeitou o sinal semafórico que se lhe apresentava pela frente, e que então emitia luz vermelha, proibindo-o de efetuar a manobra efetivamente que efetuou, ou seja, de virar à esquerda, atento o seu sentido de marcha.
Foi na sequência desta sua proibida manobra que o autor foi embater no UA, «na via de rodagem em que este circulava com o sinal verde», sobre cujo condutor os factos provados não permitem viabilizar um juízo de censura quanto à produção do sinistro.
Nos termos do art. 487.º, n.º 2, do CC, «a culpa é apreciada, na falta de outro critério legal, pela diligência de um bom pai de família, em face das circunstâncias de cada caso».
No dizer de António Barroso Rodrigues, «a culpa não se reporta à pessoa do agente. Não se trata, portanto, de um juízo sobre a personalidade do eventual responsável (qualidades, defeitos, código moral, etc.), antes sobre a sua conduta, exteriorizada, por ação ou omissão. Este aspeto é sensível. A existência do presente juízo normativo de desvalor subjetivo não converte a responsabilidade civil num instituto normativo de censura do agente. A imputação de danos baseia-se no evento determinante de responsabilidade (o facto, grosso modo), embora para o apuramento de responsabilidade não se prescinda de elementos subjetivos, particularmente relevantes neste requisito e no nexo de causalidade.
A culpa é apreciada (...), na falta de outro critério legal, segundo a “diligência de um bom pai de família, em face das circunstâncias de cada caso” (487.º/2 […]), de forma próxima à locução romana do bonus pater familias. A culpa é, nestes termos, apreciada em abstrato ou de forma objetiva. Contudo, não se baseia apenas num puro critério estatístico, sensível a todos os sujeitos que integrem a amostra (de média), antes por um qualitativo, relativo ao homem médio diligente, representativo das boas práticas no meio (próximo do conceito de mediana), tendo em conta os circunstancialismos do evento (entre os quais se contam os elementos de facto relativos ao agente, tal como a respetiva idade, profissão, etc.)[16].
Na situação sub judice, é evidente a exclusiva culpa negligente do autor na ocorrência do acidente, consistente num claro juízo de censura que lhe deve ser dirigido por falta do mais elementar cuidado interno, ou seja, por ter praticado um grave ilícito estradal, que podia e devia ter evitado.
Esse cuidado interno, afirma Mascarenhas de Ataíde, compreende «a identificação das circunstâncias que impõem o dever de comportamento e a preparação das decisões conducentes ao seu cumprimento»[17].
É, manifestamente, o caso do procedimento adotado pelo autor no caso concreto.
O tal homem médio diligente, representativo das boas práticas estradais, colocado nas concretas circunstâncias em que se encontrava o autor, não adotaria o procedimento que este adotou.
O dito bom pai de família respeitaria o sinal semafórico que se lhe apresentava pela frente, que então emitia luz vermelha, proibindo-o de efetuar a manobra efetivamente que efetuou, ou seja, de virar à esquerda, atento o seu sentido de marcha, e esperaria que a luz passasse de vermelha a verde, para, então, efetuar a pretendida manobra.
Concluindo-se, como se conclui, que a efetiva culpa do acidente é exclusivamente imputada ao autor, outra coisa não resta do que julgar a apelação improcedente e manter a decisão recorrida.
***
IV – DECISÃO:
Pelo exposto, acordam os juízes que integram a 7.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa, em julgar a apelação improcedente, mantendo, em consequência, a sentença recorrida.
As custas do recurso, na vertente de custas de parte, são a cargo do apelante (arts. 527.º, n.ºs 1 e 2, 607.º, n.º 6 e 663.º, n.º 2)

Lisboa, 29 abril de 2025
(Acórdão assinado eletronicamente)
José Capacete
Ana Mónica Mendonça Pavão
Paulo Ramos de Faria
_______________________________________________________
[1] Doravante referido apenas por “SQ”.
[2] Doravante referido apenas por “UA”.
[3] Após convite ao aperfeiçoamento.
[4] Cfr. auto de participação do acidente, relatório da perícia de avaliação do dano corporal em direito penal e atestado médico de incapacidade.
[5] Trata-se de um evidente lapso do autor/recorrente que, em vez de «(art. 644.º do Código do Processo Civil), por certo pretenderia escrever (art. 640.º do Código do Processo Civil)».
[6] Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, 7ª Ed., Almedina, 2022, pp. 200-201
[7] Recursos cit., pp. 201-202.
[8] Recursos cit., p. 208.
[9] Cfr. Acs. do S.T.J. de 19.02.2015, Proc. n.º 299/05.6TBMGD.P2.S1 (Tomé Gomes) e Proc. n.º 405/09.1TMCBR.C1.S1 (Maria dos Prazeres Pizarro Beleza), in www.dgsi.pt.
[10] Cfr. Ac. do S.T.J. de 01.10.2015, Proc. n.º 824/11.3TTLRS.L1.S1 (Ana Luísa Geraldes), in www.dgsi.pt.
[11] Cfr. Ana Luísa Geraldes, Impugnação e reapreciação da decisão da matéria de facto, in http://www.cjlp.org/materias/Ana_Luisa_Geraldes_Impugnacao_e_Reapreciacao_da_Decisao_da_Materia_de_Facto.pdf
[12] Cfr. o Ac. da RP, de 17.03.2014, Proc. n.º 3785/11.5TBVFR.P1 (Alberto Ruço), in www.dgsi.pt.
[13] Comentário ao Código Civil – Direito das Obrigações – Das Obrigações Geral, Universidade Católica Editora, 2018, p. 409.
[14] Doravante referido apenas por “Coimbra Editora”.
[15] Esta conduta é sancionada nos termos do art. 76.º, al. a) i) do mesmo Decreto Regulamentar, ou seja, com coima de € 120,00 a € 600,00.
[16] O Concurso de Responsabilidade Civil, 2.ª Edição, Almedina, 2024, pp. 178-179.
[17] Direito da Responsabilidade Civil, Gestlegal, 2023, p. 334.