EXECUÇÃO
DESERÇÃO DA INSTÂNCIA
COMPETÊNCIA DO AGENTE DE EXECUÇÃO
CASO ESTABILIZADO
PODER DE CONTROLO DO JUIZ
Sumário

Sumário[1]: (Elaborado pelo relator e da sua inteira responsabilidade – art. 663.º, n.º 7, do Código de Processo Civil[2])
1. Numa ação executiva existem causas de extinção automática, como é o caso das nos arts. 748., n.º 3, 750.º, n.º 2, 799.º, n.º 6 e 794.º, n.º 4, e não automática da execução, como é o ocaso da deserção da instância, competindo, neste caso, em regra, ao agente de execução, a verificação dos pressupostos dessa causa extintiva.
2. Sendo inadmissível, no atual direito executivo português, um poder geral de controlo do juiz de execução sobre a atuação do agente de execução exercido ex post, o esgotamento do poder de atuação ou de decisão do agente de execução impede que o juiz de execução tenha uma intervenção oficiosa no sentido de anular o ato praticado ou de revogar a decisão tomada por aquele agente, salvo nos casos em que a lei especificamente o autorizar a realizar certos atos ou admitir a sua intervenção oficiosa em momento posterior à decisão do A.E. se ter tomado inimpugnável.
3. Por isso, numa situação em que a exequente foi notificada da decisão da agente de execução que declarou extinta a execução por deserção, dispunha do prazo de 10 dias (art. 149.º, n.º 1, do CPC) para reagir contra tal decisão, nos termos do art. 723.º, n.º 1, al. c) ou d), do mesmo código.
4. Não o tendo feito, sobre aquela decisão da agente de execução, formou-se o chamado «caso estabilizado», o que, manifestamente, inviabiliza a pretensão da exequente, formulada vários meses depois de ter sido notificada daquela decisão, perante o juiz de execução, no sentido:
- de ser dada sem efeito a decisão da agente de execução, extintiva da execução; e,
- de ser «dada continuidade» à ação executiva.

[1] Neste acórdão utilizar-se-á a grafia decorrente do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, respeitando-se, no entanto, em caso de transcrição, a grafia do texto original.
[2] Diploma a que pertencem todos os preceitos legais citados sem indicação da respetiva fonte.

Texto Integral

Acordam na 7.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

I – RELATÓRIO:
FC…, Lda., instaurou ação executiva para pagamento de quantia certa contra PB….
No dia 20 de dezembro de 2024, foi proferido o seguinte despacho:
«Na sequência do despacho de 21-XI-23, em 14-III-24 a A.E. apresentou uma “Conta Corrente Discriminada da Execução (Balanço Provisório)” – onde incluiu “Custas de Parte” não reclamadas, e não indica qualquer pagamento (contrariando a anteriormente alegada entrega de 6.000,00€ - conforme reclamou a exequente).
Notificados para se pronunciar quanto à reclamação da exequente de 2(e 30)-V, executado e A.E. não se pronunciaram.
Por despacho de 11-IX-24 foi determinada a notificação da A.E. para esclarecer que quantias foram pagas pelo executado (e entregues à exequente), e elaborar novo “balanço”.
Verifica-se que, em 27-XI-17, a A.E. autorizou o cancelamento da penhora (registada em 22-VIII-12) – por o gerente da exequente ter aceite receber seis mil euros da venda do imóvel (atenta a existência de uma hipoteca, e de créditos reclamados pela Segurança Social, se bem se compreende); esclareceu a A.E. que, após receber um cheque de 7.750,00€ em 27-XI-17, levantou tal montante em numerário (a pedido da exequente) – e, no dia seguinte, entregou seis mil euros ao gerente da exequente (ficando com o remanescente para pagamento de honorários, depreende-se).
A extinção da instância (por “deserção”) foi notificada à exequente em 24-IV-20, apesar de não ter sido requerida a extinção da instância (conforme notificação da A.E. de 20-X-18) – sem que se mostre assegurado o pagamento dos juros compulsórios ao Estado (artigo 21º/3 do regime anexo ao DL 269/98).
A exequente não reclamou da decisão de extinção supra, nem apresentou a “nota justificativa” de custas de Parte – pelo que se considera, por um lado, não serem devidas as “custas de parte” indicadas no ‘balanço provisório’, e, por outro, que tal decisão fez caso julgado no presente processo.
Não há, assim, motivo para renovar a instância (estando consolidado o recebimento da quantia exequenda reduzida) – devendo os juros compulsórios liquidados pela A.E. (820,00€) ser pagos com o remanescente recebido (1.750,00€), não devendo o executado ser prejudicado com o prosseguimento da execução para este efeito».
*
Inconformada, a exequente veio recorrer para este Tribunal da Relação de Lisboa, concluindo assim as respetivas alegações:
«A) A 19 de janeiro de 2023, a ora signatária rececionou um email por parte do Executado a referir que o valor já estava integralmente pago junto da Exequente, porquanto foi celebrado no âmbito dos presentes autos executivos contrato de compra e venda e mútuo com hipoteca, por meio de documento particular autenticado, em 27 de novembro de 2017, em Sintra, em que a Senhora Agente de Execução esteve presente no ato e rececionou um cheque sobre o Banco Santander Totta, S.A., por conta do processo, no valor de € 7.950,00.
B) A 5 de março de 2023 a ora Mandatária juntou aos autos a devida procuração forense e tomou conhecimento do seguinte:
a) A 7 de junho de 2010, por via do procedimento de injunção com o nº 202674/10.2YIPRT, foi peticionada a condenação do Executado no montante global de 4.903,15 EUR (quatro mil novecentos e três euros e quinze cêntimos).
b) A 6 de setembro de 2010 foi aposta a devida fórmula executória.
c) A 28 de outubro de 2010 foi apresentado o requerimento executivo que originou os presentes autos.
d) Na presente ação executiva, a Recorrente foi representada pelo Dr. O… (falecido posteriormente em 2012) e o mesmo nomeou a Senhora Agente de Execução F…
e) A partir de 24 de outubro de 2014, após o falecimento do Dr. O…a Exequente, ora Recorrente, passou a ser representada pela Dra. N…
f) A 22 de agosto de 2012 a Senhora Agente de Execução penhorou o imóvel sito na ... - Conceição da Abóboda, Freguesia de S. Domingos de Rana, Concelho de Cascais;
g) A Senhora Agente de Execução não concretizou mais nenhuma diligência de penhora com vista ao pagamento da quantia exequenda;
h) Nem a Senhora Agente de Execução nem a Exequente comunicaram aos autos qualquer pagamento voluntário efetuado pelo Executado;
i) A 29 de novembro de 2017, a Senhora Agente de Execução comunica aos autos “O executado no decurso da presente acção executiva, liquidou os valores em divida para com o exequente.”;
j) Em momento algum, apresentou a conta provisória do processo ou apresentou nos autos qualquer comprovativo de pagamento da quantia exequenda;
k) A 24 de abril de 2020 a Senhora Agente de Execução, extingue os autos nos termos do artigo 281º, nº 5 do CPC “No processo de execução, considera-se deserta a instância, independentemente de qualquer decisão judicial, quando, por negligência das partes, o processo se encontre a aguardar impulso processual há mais de seis meses.”.
C) Da consulta dos autos não resultou qualquer informação sobre a escritura de compra e venda do imóvel penhorado, sobre o cheque recebido pela Senhora Agente de Execução, sobre o alegado pagamento da quantia exequenda.
D) Dos autos resulta uma panóplia que incongruências, que levantadas e invocadas, terão de ser esclarecidas de forma fundamentada, o que in casu não ocorreu.
E) Não tendo sido entregue qualquer valor à Recorrente, não tendo sido a quantia exequenda devidamente liquidada, a Recorrente alegou que “Deste modo, se requer mui respeitosamente que a Ilustre Agente de Execução seja notificada pelo Ilustre Tribunal a fim de efetuar a transferência das quantias recebidas pela mesma e/ou prestar os esclarecimentos tido por convenientes, sob pena de comunicação do sucedido à CAAJ, conforme estipulado no artigo 185º nº 2 do Estatuto da Ordem dos Solicitadores e dos Agentes de Execução.”.
F) O Tribunal a quo, após os esclarecimentos da Senhora Agente de Execução decidiu no despacho proferido: “(…) Não há, assim, motivo para renovar a instância (estando consolidado o recebimento da quantia exequenda reduzida) – devendo os juros compulsórios liquidados pela A.E. (820,00€) ser pagos com o remanescente recebido (1.750,00€), não devendo o executado ser prejudicado com o prosseguimento da execução para este efeito.”.
G) Subsistem nos autos questões relativas ao montante efetivamente recebido pela Senhora Agente de Execução e à sua aplicação aos pagamentos alegadamente efetuados à Recorrente.
H) Não resulta dos autos qualquer prova dos alegados acordos efetuados entre a Recorrente, e o Executado.
I) Não resulta dos autos qualquer prova dos alegados pagamentos efetuados pelo Executado diretamente à Recorrente.
J) Não resulta dos autos qualquer prova do alegado pagamento de € 6.000,00 (seis mil euros) efetuado pela Senhora Agente de Execução à Recorrente.
K) Não se pode concordar com a decisão do Tribunal a quo já que (i) a Recorrente, não requereu, em momento algum, a renovação do processo executivo; (ii) a Recorrente requereu, sim, o óbvio: a entrega das quantias recuperadas pela Senhora Agente de Execução e que ainda se encontram na posse da mesma.
L) Direito que assiste à Recorrente, nos termos do artigo 795º e ss. do CPC e que não foi respeitado pela Senhora Agente de Execução.
M) Afigura-se, assim, incompreensível e ilógico que com meia dúzia de palavras por parte da Senhora Agente de Execução, sem qualquer prova, se considere a Recorrente, ressarcida e não se ordene à Senhora Agente de Execução a entrega do montante recebido pela mesma e que se encontra na sua posse desde o ano de 2017.
N) Em face do exposto, forçoso será concluir pela ilegalidade do despacho em apreço, devendo o mesmo ser substituído por um que ordene a Senhora Agente de Execução a esclarecer o invocado pela recorrente e efetuar o devido pagamento da quantia devida, não fazendo assim o douto despacho caso julgado, não decidindo desta facie a questão levantada pela Recorrente».
Remata assim:
«Termos em que deve o presente recurso de apelação ser considerado procedente e, em consequência, o despacho recorrido ser alterado, nos termos e com os fundamentos supra expostos e com as necessárias consequências legais, no sentido de que seja dado sem efeito o despacho recorrido e dar continuidade aos presentes, assim se fazendo a costumada JUSTIÇA!»
*
Não foram apresentadas contra-alegações.
***
II – ÂMBITO DO RECURSO:
Nos termos dos arts. 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1, do CPC, é pelas conclusões do recorrente que se define o objeto e se delimita o âmbito do presente recurso, sem prejuízo das questões de que este tribunal ad quem possa ou deva conhecer oficiosamente, apenas estando adstrito à apreciação das questões suscitadas que sejam relevantes para conhecimento do objeto do recurso.
Assim, perante as conclusões da alegação da apelante, a única questão que se coloca consiste em saber o despacho recorrido deve ser revogado e substituído por outro que determine o prosseguimento da execução.
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III – FUNDAMENTOS:
3.1 – Fundamentação de facto:
A factualidade relevante para a decisão do recurso é a que decorre do relatório que antecede, a que se aditam os seguintes factos processuais:
1. No dia 24 de outubro de 2014 a exequente constituiu sua mandatária judicial nestes autos, a ilustre advogada, Dr.ª N…;
2. No dia 29 de novembro de 2017, a Senhora Agente de Execução notificou a exequente, na pessoa da sua ilustre mandatária, identificada em 1., nos seguintes termos:
“O executado no decurso da presente acção executiva, liquidou os valores em divida para com o exequente.
Pelo que, os presentes autos seguem para extinção quanto ao processo principal, sendo notificados todos os interessados».
3. Tal notificação não mereceu qualquer reação da exequente, nem no prazo de dez dias, nem posteriormente.
4. No dia 20 de outubro de 2018, a Senhora Agente de Execução notificou a exequente, na pessoa da sua ilustre mandatária, identificada em 1., nos seguintes termos:
“Fica v.ª Exa. notificada para no prazo de 10 dias requerer aos autos a extinção do processo».
5. Tal notificação não mereceu qualquer reação da exequente, nem no prazo de dez dias, nem posteriormente.
6. No dia 24 de abril de 2020, a Senhora Agente de Execução notificou a exequente, na pessoa da sua ilustre mandatária, identificada em 1., nos seguintes termos:
“F…, Agente de Execução no processo em epigrafe, vem com a presente notificar V.Exa., da extinção da instância.
Ao abrigo do artigo 281, nº 5º do Código do Processo Civil declaro extinta a execução».
7. Tal notificação não mereceu qualquer reação da exequente, nem no prazo de dez dias, nem posteriormente.
3.2 – Fundamentação de direito:
Afirma-se no despacho recorrido que a decisão transcrita em 3.1.6. «fez caso julgado no presente processo».
Não é, porém, o que ocorre na situação em apreço, pois em vez de caso julgado, o que está em causa é uma situação de «caso estabilizado», o que, como veremos, não torna a apelação procedente, antes determinando a sua improcedência.
Numa ação executiva existem causas de extinção automática[1] e não automática da execução.
Nos casos de extinção não automática da execução, compete ao agente de execução elaborar decisão fundamentada sobre a verificação dos pressupostos da respetiva causa de extinção[2].
É o caso da extinção da execução por deserção da respetiva instância (art. 281.º, n.º 5).
Tal como afirmado no Ac. da R.C. de 07.06.2016, Proc. n.º 302/13.6TBLSA.C1 (Maria João Areias), in www.dgsi.pt, na ação executiva, a verificação da extinção da instância por deserção incumbe, em regra, ao agente de execução, pois, não obstante tal modo de extinção da instância não necessitar, naquele tipo de processo, de ser declarada por decisão judicial, não prescinde de uma apreciação prévia sobre a verificação dos seus pressupostos e que serão a negligência do exequente em promover o respetivo andamento.
Decorre do art. 849.º, n.ºs 2 e 3, a decisão de extinção:
- é notificada ao exequente, ao executado, apenas nos casos em que este já tenha sido pessoalmente citado, e aos credores reclamantes;
- é comunicada, por via eletrónica, ao tribunal.
Conforme pertinentemente afirma Delgado Carvalho, «a estabilização no processo dos atos praticados ou das decisões tomadas pelo agente de execução é uma questão incontornável, não só por razões de segurança jurídica e de certeza, mas também por razões de prestígio do sistema de justiça. Ou seja: o agente de execução não pode alterar um ato praticado ou uma decisão por si já tomada, e tão-pouco o juiz de execução o pode revogar, declarar nulo ou corrigir quando esse ato ou essa decisão não tiver sido objeto de oportuna reclamação ou impugnação por qualquer das partes ou por terceiros intervenientes.
(...)
Não se caracterizando a relação entre o juiz e o agente de execução pela subordinação hierárquica do segundo ao primeiro - que impede a aplicação de critérios de conveniência ou de oportunidade -, o exercício pelo juiz de execução do poder de revogação dos atos e decisões do agente de execução corresponde apenas à revogação anulatória.
Quando o poder de revogação exercido pelo juiz sobre a atividade do agente de execução se destina a sindicar a legalidade de um ato ou de uma decisão deste agente, o juiz determina, mediante reclamação ou impugnação da parte, a cessação dos efeitos desse ato ou decisão e destrói retroativamente a eficácia dos mesmos quando os pressupostos de facto que o agente de execução deveria atender e os princípios e regras jurídicas a eles aplicáveis não podiam ter conduzido ao ato praticado ou à decisão tomada, restabelecendo a solução legal que decorreria desses princípios ou regras.
No domínio da atividade discricionária do agente de execução, o juiz limita-se a apreciar a razoabilidade da decisão tomada por este agente e a corrigir a sua atuação de acordo com os princípios da boa-fé, da confiança, da necessidade, da adequação e da proporcionalidade em sentido estrito. Este poder de correção judicial da atividade discricionária do agente de execução ainda é um poder de controlo jurisdicional por razões de legalidade.
O poder de controlo jurisdicional por razões de legalidade encontra-se previsto na al. c) do n.º 1 do art. 723.º, do nCPC. É um poder dirigido ao controlo da competência decisória do agente de execução, quer no domínio da atividade vinculada, quer no âmbito dos atos e decisões discricionárias deste agente. No domínio da atividade vinculada do agente de execução, o poder de correção do juiz abrange ainda a conformidade da atuação deste agente com normas processuais imperativas, ou seja, com normas processuais que definem o rito do procedimento que se deve adotar na tramitação do processo e que refletem a ponderação apriorística do legislador sobre o modo de exercício dos direitos das partes e dos terceiros intervenientes, em termos de garantir a maior igualdade e equilíbrio entre si.
Concluindo-se pela inadmissibilidade, face ao direito positivo, de um poder geral de controlo do juiz de execução sobre a atuação do agente de execução exercido ex post, há que entender que o esgotamento do poder de atuação ou de decisão do agente de execução impede que o juiz de execução tenha uma intervenção oficiosa no sentido de anular o ato praticado ou de revogar a decisão tomada por aquele agente, salvo nos casos em que a lei especificamente autorizar o juiz a realizar certos atos ou admitir a sua intervenção oficiosa em momento posterior à decisão se ter tomado inimpugnável[3].
Ainda segundo o mesmo Autor, «para o que aqui interessa saber – quais as características do caso estabilizado dos atos e decisões do agente de execução -, parece dever analisar-se em separado o efeito da incontestabilidade e o efeito da intangibilidade. Se, por um lado, é mais compreensível a estabilização, num processo pendente, dos atos ou decisões do agente de execução, que decorre da falta da sua impugnação tempestiva (no prazo geral previsto no art. 149.º, n.º 1, do nCPC), por outro, é menos defensável a intangibilidade desses atos ou decisões no sentido de inviabilizar em termos absolutos a sua revogação, suspensão ou substituição.
Para uma melhor delimitação do tema, cumpre precisar que a ilegalidade de que possa padecer o ato ou a decisão do agente de execução, entretanto convalidado por ter decorrido o prazo perentório para a sua impugnação ou reclamação, nada tem que ver com as nulidades processuais, dado que, apenas no caso particular de se verificarem vícios de procedimento por ter sido praticado um ato não admitido por lei, por ter sido omitido um ato que a lei designa ou por terem sido preteridas formalidades exigidas para determinado ato processual, o seu regime jurídico deve corresponder ao regime específico previsto para as nulidades processuais em geral (cf. art.os 186.º a 202.º, do nCPC). Nenhuma particularidade intrínseca dos atos processuais executivos justifica regime diverso daquele, mesmo quando as nulidades sejam arguidas por terceiros intervenientes no processo de execução. Constitui exemplo de nulidade processual a não observância de ato processual previsto numa norma adjetiva imperativa (cf. art. 195.°, n.° 1, do nCPC). No entanto, o juiz só pode conhecer do vício de procedimento que aquela nulidade origina sobre reclamação dos interessados (cf. art. 196.º, do nCPC).
O efeito de incontestabilidade é um efeito meramente intraprocessual, ou seja, decorre da circunstância de o vício de ilegalidade que não se traduza numa nulidade de procedimento se ter consolidado num processo de execução pendente, por não ter sido alegado tempestivamente pelas partes ou por terceiros intervenientes. Em princípio, a ilegalidade não fica sanada ope legis por convalidação do ato ou da decisão pelo mero decurso do prazo para a sua impugnação. O que acontece é que, não obstante a ilegalidade do ato ou da decisão não ficarem sanados, os seus efeitos tomam-se definitivos. Disto resulta que essa transformação ocorre por via de um efeito intraprocessual, que é a inimpugnabilidade do ato ou da decisão do agente de execução.
Noutras palavras, o efeito da incontestabilidade encontra a sua justificação na circunstância de o vício que pretensamente afetaria a validade do ato ou da decisão ser gerador de ilegalidade e ficar sujeito a um prazo perentório para a sua impugnação (cf. art. 149.º, n.º 1, do nCPC), sob pena de os efeitos produzidos pelo ato ou pela decisão viciada ficarem estabilizados no processo em que tenham sido praticados. Quer dizer: o ato ou a decisão convalidada não passa a ser legal; os seus efeitos é que se tomam definitivos.
O carácter de incontestabilidade que entretanto possa ter adquirido o ato ou a decisão do agente de execução não se confunde com a outra característica acima referida, que é a intangibilidade. A questão é esta: será que o juiz de execução não pode, em caso algum, revogar ou substituir - exercendo o seu poder de correção sobre a atividade do agente de execução - um ato ou uma decisão ilegal do agente de execução que se tenha tomado inimpugnável?
Parece dever entender-se que a resposta tem de ser negativa. Com efeito, os atos e as decisões do agente de execução inimpugnáveis não podem ter uma força vinculativa maior que a da própria figura do caso julgado, que admite a rescisão (cf. art. art. 696.º, do nCPC), a modificabilidade com base em circunstâncias supervenientes (cf. art. 619.º, n.º 2, do nCPC) e mesmo a sua eliminação mediante a aplicação retroativa da declaração de inconstitucionalidade ou de ilegalidade com força obrigatória geral no domínio do direito penal e do direito sancionatório público (cf. art. 282.º, n.º 3, da CRP). Quer dizer: a força vinculativa dos atos ou decisões do agente de execução pode ser igual ou inferior à vinculação do caso julgado; o que não pode é ser maior.
Defendemos, por isso, que a melhor designação para os atos ou decisões do agente de execução consolidados por inimpugnabilidade, tendo em conta as particularidades da sua força ou eficácia vinculativa, é a de caso estabilizado, dando, assim, relevo ao efeito decorrente da sua definitividade.
Noutras palavras, os atos e as decisões do agente de execução tomam-se definitivas sempre que, depois de notificadas às partes, estas não reclamarem do ato ou da decisão perante o juiz, nos termos do art. 723.º, n.º 1, als. c) ou d), do nCPC. Disto decorre que, se o ato ou a decisão daquele agente não for objeto de reclamação pelas partes, o ato ou a decisão torna-se incontestável e inalterável, dado que deixa de ser atacável por iniciativa de qualquer das partes; pode falar-se a este propósito num efeito semelhante ao trânsito em julgado da decisão judicial, ou seja, esse ato ou decisão toma-se, em princípio, imodificável.
Por seu turno, o juiz de execução não pode impor oficiosamente ao agente de execução, depois de este ter praticado um ato ou tomado uma decisão no processo, uma diferente apreciação da mesma questão. A esta solução se opõe, naturalmente, o caso estabilizado formado pelo ato ou decisão do agente de execução. Com efeito, decorre do que acima se argumentou acerca do quadro de legitimação do exercício dos poderes do juiz no processo executivo que este não pode determinar oficiosamente a revogação (anulatória) de um ato praticado ou de uma decisão tomada pelo agente de execução, substituindo-os por uma diferente tramitação ou solução - seja na área da atuação discricionária desse agente, seja em matéria vinculada -, a não ser mediante reclamação das partes [cf. art. 723.º, n.º 1, als. c) e d), do nCPC] ou nos casos em que especificamente a lei autoriza a intervenção fiscalizadora ex officio do juiz, como sucede no domínio dos pressupostos processuais e das nulidades de processo.
Note-se que tão-pouco o art. 6.º, n.º 1, do nCPC habilita o juiz de execução a revogar ou a declarar nulas ex officio as decisões do agente de execução, mesmo no domínio do procedimento. Quer dizer: o art. 6.º, n.º 1, do nCPC não pode ser visto como uma norma habilitante que permite ao juiz de execução anular ou corrigir oficiosamente um ato ou uma decisão tomada pelo agente de execução que entretanto se tenha estabilizado, sem que se deva considerar essa iniciativa oficiosa nula nos termos do art. 195.º, n.º 1, do nCPC.
Com efeito, os poderes de gestão processual do juiz não podem sobrepor-se às decisões definitivas do agente de execução, porque isso colide com o caso estabilizado»[4].
Retornando ao caso concreto:
- a exequente, aqui apelante, foi notificada no dia 24 de abril de 2020, da decisão do agente de execução que declarou extinta a execução por deserção;
- dispunha do prazo de 10 dias (art. 149.º, n.º 1) para reagir contra tal decisão, nos termos do art. 723.º, n.º 1, al. c) ou d);
- não o fez.
Por conseguinte, sobre a decisão da senhora agente de execução que declarou extinta a execução por deserção, formou-se «caso estabilizado», o que, nos termos que decorrem das transcritas palavras de Delgado Carvalho, manifestamente inviabiliza a pretensão da exequente, no sentido de:
- ser «dado sem efeito o despacho recorrido»; e,
- ser «dada continuidade» à ação executiva.
***
IV – DECISÃO:
Pelo exposto, acordam os juízes que integram a 7.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa, em julgar a apelação improcedente, mantendo, em consequência, a decisão recorrida.
As custas da apelação, na vertente de custas de parte, são a cargo da recorrente (arts. 527.º, n.ºs 1 e 2, 607.º, n.º 6 e 663.º, n.º 2).

Lisboa, 29 de abril de 2025
(Acórdão assinado eletronicamente)
José Capacete
João Novais
Ana Mónica Mendonça Pavão
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[1] Constituem causas de extinção automáticas da execução, entre outras, as previstas nos arts. 748., n.º 3, 750.º, n.º 2, 799.º, n.º 6 e 794.º, n.º 4.
[2] Cfr. Delgado de Carvalho, Jurisdição e Caso Estabilizado, Quid Juris, 2017, pp. 138-139.
[3] Jurisdição cit., pp. 158-159.
[4] Jurisdição cit., pp. 161-164.