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ACÇÃO DE RESPONSABILIDADE CIVIL CONTRA O ESTADO
PRISÃO ILEGAL
DIREITO DE INDEMNIZAÇÃO
CADUCIDADE
PRINCÍPIO DA COERÊNCIA AXIOLÓGICA DO SISTEMA JURÍDICO
Sumário
Sumário: (da responsabilidade da relatora - art. 663º/7 CPC): 1- Numa ação de responsabilidade civil contra o Estado, interposta por dois autores com fundamento, em ambos os casos, na prisão ilegal do primeiro autor, é aplicável, também ao segundo autor, o prazo de caducidade do artigo 226.º, do Código de Processo Penal de um ano. 2 – Apesar do artigo 226.º não se aplicar diretamente ao segundo autor, por não ser este quem sofreu detenção ou prisão ilegal, a aplicação do prazo de caducidade impõe-se por força do artigo art. 13.º da Lei n.º 67/2007, de 31 de dezembro e à luz do princípio da coerência axiológica do sistema jurídico.
Texto Integral
Acordam os Juízes na 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:
I. RELATÓRIO
MA e Global Workers, Lda. intentaram ação de processo comum contra o Estado Português, peticionando a sua condenação no pagamento ao 1.º A. da quantia de € 151.500,00, e à 2ª A. da quantia de €3.000.000,00.
Para tanto alegaram, em síntese, que o 1.º A. foi detido em 31.05.2016, tendo-lhe sido aplicada a medida de coação de prisão preventiva, por ser entendido que existiam fortes indícios da prática pelo 1.º A, em concurso real, dos crimes de tráfico de pessoas, p.p. pelo art.º 160.º, n.º 1, als. b) e d), do Código Penal, e adesão a associação criminosa, p.p. pelo art.º 299.º, n.º 2, do Código Penal.
Após abertura de instrução, veio a ser proferida decisão que não pronunciou o 1.º A. pelo crime de associação criminosa, mantendo a pronúncia relativamente ao crime de tráfico de pessoas, tendo também a 2.ª A. sido pronunciada. Em tal decisão instrutória foi revogada de imediato a medida de coação de prisão preventiva, impondo-se em lugar dela a obrigação de permanência na habitação, alteração que veio a ser executada em 1.12.2016.
O 1.º A. manteve-se em cumprimento de tal medida de coação até 25.03.2019, de acordo com o alegado, tendo sido absolvido por acórdão transitado em julgado em 30.06.2021.”
O réu Estado Português, representado pelo Ministério Público, apresentou contestação, invocando a exceção perentória da caducidade do direito de ação do 1º A. (MA), com a consequente absolvição do R. do pedido formulado por este autor; e, sem conceder, defendeu a improcedência da ação, por não provada, nos termos da impugnação deduzida, com a absolvição do réu dos pedidos contra si formulados por ambos os autores.
Notificados para se pronunciarem, os AA. nada disseram, sendo que na petição inicial já haviam sustentado que o prazo de prescrição aplicável é de 3 anos, nos termos do artigo 498.º do Código Civil, aplicável por via do artigo 5.º do Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e demais Entidades Públicas.
Foi proferida decisão com o seguinte dispositivo: “Em face do exposto, absolve-se o R. da totalidade do pedido formulado pelos AA., por verificação da exceção perentória de caducidade do direito que fundamenta a presente ação. Custas pelos AA., nos termos do artigo 527.º do Código de Processo Civil. Registe e notifique.”
Inconformados com a sentença, vieram os autores dela interpor o presente recurso de apelação, formulando as seguintes conclusões [transcrição]:
1. O presente recurso incide sobre a decisão que julgou verificada a exceção perentória de caducidade, relativamente à totalidade dos pedidos formulados, nos termos do art.º 226.º, do CPP e absolveu o Estado Português.
2. O Tribunal a quo considerou que todo o pedido de indemnização se encontrava sujeito ao prazo de caducidade de um ano, previsto no art.º 226.º, n.º 1, do CPP, aplicável a pedidos por privação injustificada da liberdade.
3. Contudo, os Recorrentes não fundamentam o seu pedido, exclusivamente, na privação da liberdade, mas também no erro judiciário que determinou as duas condenações, em sede de primeira instância.
4. O art.º 13.º do RRCEE prevê que o Estado responde pelos danos decorrentes de decisões judiciais manifestamente inconstitucionais, ilegais ou injustificadas por erro grosseiro na apreciação dos pressupostos de facto.
5. O art.º 5.º do RRCEE, determina que, nas matérias não reguladas expressamente na lei especial, aplicam-se as regras gerais da responsabilidade civil, remetendo para o Código Civil, nomeadamente o artigo 498.º do Código Civil, que fixa um prazo de prescrição de três anos para a responsabilidade civil extracontratual.
6. Apenas se encontra sujeita a lei especial e, concretamente, à disciplina dos artigos 225.º e 226.º, do CP, a parte do pedido formulado pelo 1.º Recorrente, que funda exclusivamente na privação injustificada da liberdade (artigos 52 a 61, da PI).
7. Nos artigos 31 a 34, 36 e 47 a 51, da PI, relativamente ao 1.º Recorrente, foram alegados danos diversos dos resultantes da privação da liberdade.
8. Estes danos foram causados, não pela privação da liberdade, mas sim, pelas decisões judiciárias de condenação eivadas de erro, pelo que, quanto a estes danos o RRCEE, é o único aplicável.
9. Assim, os danos patrimoniais sofridos pela 2.ª Recorrente e os danos morais e reputacionais do 1.º Recorrente, que decorrem do erro judiciário das respetivas condenações em 1.ª Instância, não estão sujeitos ao prazo de caducidade de um ano, mas sim ao prazo geral de três anos.
10. Aliás, apenas as pessoas singulares são suscetíveis de privação de liberdade, mormente, de sofrerem detenção, prisão preventiva ou obrigação de permanência na habitação.
11. Os artigos 225.º e 226.º, do CPP, apenas podem ser aplicados às pessoas singulares e nunca a pessoas coletivas, como é o caso da 2.ª Recorrente.
12. Sendo as normas dos artigos 225.º e 226.º, do CPP, de aplicação exclusiva às pessoas singulares, o RRCEE, é o único aplicável, in casu, à 2.ª Recorrente.
13. Assim, o Tribunal a quo, ao decidir como decidiu, violou, por erro de interpretação, o disposto nos artigos 225.º e 226.º, do CPP, quando os interpretou no sentido de serem aplicáveis a pessoas coletivas e aplicando-os à 2.ª Recorrente, quando devia ter interpretado estes preceitos legais, no sentido da sua aplicabilidade exclusiva às pessoas singulares, porquanto tutelam bem jurídico eminentemente pessoal, ou seja, a liberdade.
14. O Tribunal a quo violou, também por erro de interpretação, o disposto nos artigos 225.º e 226.º, do CPP, relativamente ao 1.º Recorrente, quando os interpretou no sentido de serem aplicáveis aos danos que sofreu não emergentes da privação da liberdade, quando devia ter interpretado estes preceitos legais, no sentido da sua aplicabilidade exclusiva aos danos resultantes da detenção, prisão preventiva ou obrigação de permanência na habitação.
15. O Tribunal a quo violou, ainda, por erro de interpretação, o disposto no art.º 1.º, n.º 1, do RRCEE, porque o interpretou no sentido de não ser aplicável aos danos alegados pelo 1.º Recorrente, provocados pela ofensa à sua honra, o crédito e bom-nome, quando estes danos são tutelados, precisamente, pelo regime aprovado pela Lei n.º 67/2007, de 31 de Dezembro, não existindo qualquer outro regime especial que os tutele, pois, o regime especial dos artigos 225.º e 226.º, do CPP, apenas é aplicável aos danos resultantes, stricto sensu, da detenção, prisão preventiva ou obrigação de permanência na habitação.
16. Em suma, a decisão do Tribunal a quo, que julgou procedente, a exceção perentória de caducidade do exercício dos direitos dos Recorrentes, por aplicação do art. 226.º do CPP, apenas é aplicável aos pedidos de indemnização por privação injustificada da liberdade e não à totalidade dos pedidos formulados, porquanto têm diversos fundamentos.
17. A douta sentença recorrida deve ser revogada, na parte em que declara caducado todo o direito de ação e, consequentemente, ser determinado que o Tribunal de Primeira Instância, ordene o prosseguimento dos autos, para apreciação dos pedidos relativos aos danos patrimoniais e não patrimoniais tempestivamente peticionados e causados pelo erro judiciário das condenações revogadas em sede de recurso e que redundaram nas respetivas absolvições.
Conclui a recorrente que deve o recurso ser julgado procedente e consequentemente deve ser revogada a sentença, na parte em que declara caducado todo o direito de ação e, consequentemente, ser determinado que o Tribunal de Primeira Instância, ordene o prosseguimento dos autos.”
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O R., representado pelo Ministério Público, contra-alegou pugnando pela improcedência do recurso.
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Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
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II. QUESTÕES A DECIDIR
Sendo o objeto do recurso delimitado pelas conclusões do apelante, nos termos preceituados nos artigos 635º/4 e 639º/1 do Código de Processo Civil, sem prejuízo das questões que sejam de conhecimento oficioso e daquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras, importa, no caso, apreciar e decidir da seguinte questão:
- Caducidade/prescrição do direito de ação.
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III. FUNDAMENTAÇÃO
A factualidade relevante para a decisão é a que consta do relatório supra.
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IV. FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA
A decisão posta em crise julgou verificada a exceção perentória de caducidade do direito de indemnização invocado na presente ação e consequentemente absolveu o réu (R.) do/s pedido/s.
Os autores/recorrentes pugnam pela revogação da decisão “na parte em que declara caducado todo o direito de ação”, pretendendo que seja determinado que o tribunal de 1ª instância ordene o prosseguimento dos autos para apreciação dos pedidos relativos aos danos patrimoniais e não patrimoniais causados pelo erro judiciário das decisões penais de condenação dos arguidos/ora apelantes, que por via da procedência do respetivo recurso, conduziram à sua absolvição no processo crime.
Sustentam, em síntese, que:
- O Tribunal a quo considerou que todo o pedido de indemnização se encontrava sujeito ao prazo de caducidade de um ano, previsto no art. 226º/1 do CPP, aplicável a pedidos por privação injustificada da liberdade.
- Contudo, os Recorrentes não fundamentam o seu pedido, exclusivamente, na privação da liberdade, mas também no erro judiciário que determinou as duas condenações em sede de primeira instância.
- Os danos patrimoniais sofridos pela 2ª recorrente e os danos morais e reputacionais do 1.º Recorrente, que decorrem do erro judiciário das respetivas
condenações em 1.ª instância, não estão sujeitos ao prazo de caducidade de um ano (previsto no art. 226º do CPP), mas sim ao prazo (de prescrição) geral de três anos (previsto no art. 498º do Código Civil, aplicável ex vi art. 5º do Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e demais Entidades Públicas, aprovado pela Lei nº 67/2007, de 31 de Dezembro).
- Apenas as pessoas singulares são suscetíveis de privação de liberdade, mormente, de sofrerem detenção, prisão preventiva ou obrigação de permanência na habitação, pelo que os artigos 225.º e 226.º do CPP apenas podem ser aplicados às pessoas singulares e nunca a pessoas coletivas, como é o caso da 2.ª Recorrente.
Concluem que a decisão do Tribunal a quo, que julgou procedente a exceção perentória de caducidade do exercício dos direitos dos Recorrentes, por aplicação do art. 226º do CPP, apenas é aplicável aos pedidos de indemnização por privação injustificada da liberdade e não à totalidade dos pedidos formulados, porquanto têm diversos fundamentos.
Contra posiciona-se o R. Estado Português/ora apelado, representado pelo Ministério Público, pugnando pela manutenção da decisão recorrida, aduzindo, em suma, que decorre do alegado pelos AA. que os pretensos danos resultaram da aplicação das medidas de coação de prisão preventiva e obrigação de permanência na habitação com vigilância eletrónica e a sua revalidação em decisões posteriormente proferidas, não se divisando, para os mesmos, outra causa que não essa. Além disso, alega que o pedido deduzido quanto à 2ª A. alicerça-se, também e ainda, na privação da liberdade do 1º A., conforme se infere, entre outros, dos arts. 72º, 73º e 75º da petição inicial.
Concluindo, o Ministério Público que o pedido final formulado por cada um dos Autores não se fundamenta em causas autónomas e diferenciadas, mas sim, nas decisões de privação da liberdade do 1º Autor, às quais é imputado erro.
Vejamos antes de mais, a questão de saber se o fundamento do pedido se atém exclusivamente à privação da liberdade, ou também ao erro judiciário que determinou as duas condenações em sede de primeira instância.
Os AA. fundam o pedido de indemnização formulado no invocado erro judiciário decorrente das decisões judiciais que, segundo alegam, validaram a detenção do ora 1º A. (arguido no processo crime identificado na petição inicial), lhe aplicaram medidas de coação privativas da liberdade (prisão preventiva e posteriormente, obrigação de permanência na habitação) e a mantiveram durante 2 anos, 9 meses e 25 dias (entre 31.05.2016 e 25.03.2019), assim como a sentença penal condenatória, que terá sido alterada em sede de recurso, “tornando as decisões anteriores totalmente injustificadas e eivadas de erro grosseiro, pois, só um erro qualificado pode determinar tão grave situação.” (v. art 27º da petição inicial).
Consideram os AA. que “o erro judiciário pelo qual o R. é responsável, atentou contra a honra, o crédito e o bom-nome dos AA., causando neste danos de natureza não patrimonial que, pela sua gravidade, merecem a tutela do direito e são passíveis do pagamento de uma indemnização nos termos dos artigos 13.º e 2.º, do RRCEE, este decalcado do art.º 496.º, n.º 1, do CC.” (art. 26 da petição inicial). Concluindo que: “os danos provocados pelo erro judiciário de que foi vítima, além de terem afetado negativamente o seu bom nome, de terem atingido a sua honra e dignidade, geraram no 1.º A sentimentos de vergonha, humilhação, angústia e tristeza, que perduram até hoje. Esses danos consubstanciaram-se, ainda, em sentimentos de ansiedade e medo, bem como, perturbações de sono, com insónias recorrentes, perda de apetite e alguma apatia” (arts 47 e 48 da petição inicial).
No que tange à 2ª A. Global Workers, Lda., é alegado se trata de sociedade que se dedicava à prestação de serviços destinados à contratação de mão-de-obra estrangeira, mediante a obtenção dos necessários vistos de trabalho, junto das embaixadas portuguesas, e que a partir da data da detenção do 1.º A., não foi deferido mais nenhum dos vistos porquanto a situação processual do 1.º A. (sócio da 2ª R) e demais intervenientes foi transmitida às entidades oficiais competentes (art. 72º da petição inicial), o que levou a que a 2.ª A. tivesse deixado de receber a retribuição correspondente ao exercício da sua atividade e as empresas ficaram sem os trabalhadores de que careciam para as suas campanhas agrícolas, perdendo a 2ª R. a possibilidade de emitir 367 vistos (art. 73 da petição inicial), o que redundou num prejuízo de €751 275 (art. 76º da petição inicial).
Analisando o circunstancialismo supra descrito, o tribunal a quo pronunciou-se assim: “O valor indemnizatório peticionado pelo 1.º A. decorre integralmente da sua detenção, prisão preventiva e obrigação de permanência na habitação, quer seja pela vergonha, humilhação, angústia e tristeza que lhe causaram, quer seja pela própria privação da liberdade a que foi sujeito. Nos termos do artigo 226º, nº 1 do Código de Processo Penal, o pedido de indemnização por privação da liberdade ilegal ou injustificada «não pode, em caso algum, ser proposto depois de decorrido um ano sobre o momento em que o detido ou preso foi libertado ou definitivamente decidido o processo penal respetivo.» De acordo com o alegado pelos AA., o transito em julgado da decisão absolutória teve lugar em 30.06.2021, pelo que a ação indemnizatória devia ter sido proposta pelo 1.º A., enquanto pessoa que sofreu a detenção, até 30.06.2022. A mesma conclusão se alcança relativamente ao pedido formulado pela 2.ª A. uma vez que, também este, tem por causa de pedir a detenção do 1.º A. e a sua situação processual que, de acordo com o alegado, impossibilitou o exercício da sua atividade comercial por não ter sido deferido nenhum dos vistos necessários para o efeito – artigo 72 da petição inicial. Na realidade, o valor alcançado pela 2ª A. como sendo devido pelo R. respeita ao valor que iria faturar com a emissão de 367 vistos, que se encontravam em condições de obter deferimento mas que não o obtiveram por causa da privação de liberdade do A., e o valor que previsivelmente faturaria até 2019, e que não faturou por força da detenção do seu sócio e 1.º A. Assim, também a indemnização peticionada pela 2.ª decorre diretamente da privação injustificada da liberdade e, consequentemente, cumpre aplicar o mesmo regime legal, já que o artigo 13.º do Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e demais Entidades Públicas apenas é aplicável para as situações que não se fundem em privação injustificada da liberdade, uma vez que esta tem um regime especial para o qual tal disposição legal remete. Desta feita, conclui-se que os pedidos formulados pelos AA. deveriam ter sido peticionados até 30.06.2022. Nos termos do artigo 298.º, n.º 2 do Código Civil quando, por força da lei ou por vontade das partes, um direito deva ser exercido dentro de certo prazo, são aplicáveis as regras da caducidade, a menos que a lei se refira expressamente à prescrição. Não fazendo o artigo 226.º do Código de Processo Penal menção à prescrição, concluímos que a figura em causa é a caducidade, e não a prescrição, conforme alegado pelo Ministério Público. A caducidade é apreciada oficiosamente e pode ser alegada em qualquer fase do processo, se for estabelecida em matéria excluída da disponibilidade das partes. Se for estabelecida em matéria não excluída da disponibilidade das partes, necessita, para ser eficaz, de ser invocada por aquele a quem aproveita, pelo seu representante ou, tratando-se de incapaz, pelo Ministério Público – artigos 333.º, n.º 1 e 303.º, n.º 2 do Código Civil. A exceção foi invocada na contestação pelo Ministério Público, a parte a quem aproveita, ainda que erradamente designada, razão pela qual se impõe o seu conhecimento pelo tribunal e a correção da figura em causa. Uma vez que a presente ação foi proposta em 28.06.2024, mostra-se decorrido o prazo de interposição da ação pelos AA. com base na privação de liberdade injustificada, razão pela qual se julga caducado o seu direito de ação. A caducidade do direito constitui uma exceção perentória, na medida em que extingue o efeito jurídico dos factos articulados pelo autor, conforme o previsto no artigo 578.º, n.º 3 do Código de Processo Civil.”
Concordamos com o entendimento da 1ª instância na apreciação e julgamento desta questão.
É inegável que os danos invocados, quer pelo 1ª A, quer pela 2ª A., para sustentar o pedido indemnizatório formulado, se fundam na privação de liberdade sofrida pelo 1º A., não se divisando outra causa autónoma para a indemnização peticionada. Aliás, nem os AA. formulam pedidos de indemnização com base em diferentes atuações de órgãos jurisdicionais. De acordo com o alegado na petição inicial, o 1ª A. foi detido, submetido a 1ª interrogatório judicial, na sequência do que lhe foi aplicada prisão preventiva e posteriormente obrigação de permanência na habitação, vindo ambos os AA. a ser condenados por decisão criminal proferida na 1ª instância, acabando os factos por vir a ser dados como não provados por acórdão da Relação.
Dito isto, a questão a decidir prende-se tão só com a exceção arguida pelo Ministério Público (em representação do R.) e conhecida pelo tribunal, sendo entendido pelo tribunal a quo que tal exceção se integra na figura da caducidade (de conhecimento oficioso, por se tratar de matéria excluída da disponibilidade das partes) e não da prescrição, em face do disposto no art. 298º/2 do Código Civil e dado que o art 226º do CPP não faz qualquer menção à prescrição.
Ou seja, no enquadramento referido, importa apurar se caducou o direito de ação dos autores pedirem quanto aos danos sofridos pela prisão ilegal do 1.º A.
Notamos que não está em causa apreciar a verificação in casu dos pressupostos da responsabilidade civil do Estado, pois essa apreciação, atinente aos requisitos de procedência da ação, respeita ao mérito da causa, ainda que importe convocar a análise dos regimes de responsabilidade civil aplicáveis ao caso e os respetivos prazos de caducidade.
Quer a doutrina quer a jurisprudência têm vindo a considerar que o fundamento da obrigação de indemnizar do Estado emerge diretamente do art. 22º da Constituição da República Portuguesa (CRP), que consagra um princípio geral de direta responsabilidade civil do Estado, por danos resultantes do exercício das funções política, legislativa, administrativa e jurisdicional (v. ac STJ 29/6/2005, P. 05A1064, relator Ponce de Leão).
Para resolver esta questão, concorrem três regimes: i) o regime geral da responsabilidade civil (art. 483.º e segs. do Cód. Civil); ii) o regime especial da responsabilidade civil do Estado por danos decorrentes do exercício da função jurisdicional (art. 12.º e segs. da Lei n.º 67/2007, de 31 de dezembro, sistematicamente inserido no capítulo III homónimo); iii) o regime especialíssimo da indemnização por danos decorrentes privação da liberdade ilegal ou injustificada (arts. 225.º e 226.º do Cód. Proc. Penal).
Quanto ao regime especial, estabelecem os artigos 12º e 13º daquele diploma (Lei n.º 67/2007, de 31 de dezembro)
Art 12º
“Salvo o disposto nos artigos seguintes, é aplicável aos danos ilicitamente causados pela administração da justiça, designadamente por violação do direito a uma decisão judicial em prazo razoável, o regime da responsabilidade por factos ilícitos cometidos no exercício da função administrativa.”
Art 13º
“1 - Sem prejuízo do regime especial aplicável aos casos de sentença penal condenatória injusta e de privação injustificada da liberdade, o Estado é civilmente responsável pelos danos decorrentes de decisões jurisdicionais manifestamente inconstitucionais ou ilegais ou injustificadas por erro grosseiro na apreciação dos respectivos pressupostos de facto.
2 - O pedido de indemnização deve ser fundado na prévia revogação da decisão danosa pela jurisdição competente.”
Como bem sintetiza o acórdão do TRE de 7/5/2020, P. 1303/17.0BEELRA.E1, relatora Florbela Lança (www.dgsi.pt), “A LRCEE prevê a existência de três tipos de responsabilidade da função jurisdicional: por violação do direito a uma decisão em prazo razoável (art.º 12.º); por prolação de sentença condenatória injusta e privação injustificada da liberdade (art.º 13.º/1, 1.ª parte); por prolação de decisão inconstitucional, ilegal ou em erro grosseiro sobre a apreciação dos factos (art.º 13.º/1, 2.ª PARTE).”
Mais referindo o citado aresto que “Para efeitos do regime previsto no art.º 13.º da responsabilidade civil extracontratual do Estado, entendido à luz do art.º 22.º da Constituição, que é o seu fundamento, o erro judiciário reconduz-se ao erro cometido pelo juiz ou pelo Ministério Público.”
Já quanto ao regime especialíssimo, estabelece o art. 225º do Código de Processo Penal, para que remete o supra citado art. 13º/1, que:
“Quem tiver sofrido detenção, prisão preventiva ou obrigação de permanência na habitação pode requerer, perante o tribunal competente, indemnização dos danos sofridos quando:
a) A privação da liberdade for ilegal, nos termos do n.º 1 do artigo 220.º, ou do n.º 2 do artigo 222.º;
b) A privação da liberdade se tiver devido a erro grosseiro na apreciação dos pressupostos de facto de que dependia;
c) Se comprovar que o arguido não foi agente do crime ou atuou justificadamente; ou
d) A privação da liberdade tiver violado os n.ºs 1 a 4 do artigo 5.º da Convenção Europeia dos Direitos Humanos.”
E o art 226º/1 do CPP
“O pedido de indemnização não pode, em caso algum, ser proposto depois de decorrido um ano sobre o momento em que o detido ou preso foi libertado ou foi definitivamente decidido o processo penal respetivo”.
Sendo certo, como é sabido, que os regimes (mais) especiais afastam os regimes (mais) gerais, à indemnização por danos decorrentes da privação da liberdade ilegal ou injustificada é prevalecentemente aplicável o disposto nos arts. 225.º e 226.º do Cód. Proc. Penal, como, aliás, é afirmado pelo n.º 1 do art. 13.º da Lei n.º 67/2007, de 31 de dezembro.
Como também foi sumariado no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11/1/24, proferido no P. 1359/20.3T8SNT.L1.S1 (2ª secção), relatora Ana Paula Lobo (acessível em www.dgsi.pt): “I - A ação de responsabilidade civil extracontratual do Estado por danos decorrentes do exercício da função jurisdicional com fundamento em detenção ilegal e absolvição do arguido segue o regime especial aplicável aos casos de privação injustificada da liberdade constante dos arts. 225.º e 226.º do CPP. II - Tal é reconhecido pelo art. 13.º, n.º 1, da Lei n.º 67/2007, de 31-12, e impede a aplicação do regime da responsabilidade por factos ilícitos cometidos no exercício da função administrativa, determinado pelo art.º 12.º da mesma lei, nomeadamente em matéria de prescrição do direito à indemnização, como ocorre com os demais danos ilicitamente causados pela administração da justiça.”
Ora, baseando-se no regime especialíssimo, o tribunal concluiu que “Uma vez que a presente ação foi proposta em 28.06.2024, mostra-se decorrido o prazo de interposição da ação pelos AA. com base na privação de liberdade injustificada, razão pela qual se julga caducado o seu direito de ação.”
Concordamos com a decisão do tribunal de primeira instância quanto a ambos os autores, reconhecido que foi ser a privação da liberdade ilegal o único fundamento do pedido indemnizatório.
A resposta quanto ao primeiro A. decorre da aplicação direta do regime legal, não se oferecendo dúvidas interpretativas.
Quanto ao segundo A., pese embora se imponha reconhecer ser indiscutível que o terceiro sempre estaria excluído do direito a uma indemnização a este título – a aplicação direta do regime dos artigos 225.º e 226.º é apenas ao lesado -, é também necessário considerar que qualquer dano sofrido por um terceiro com fundamento nos mesmos factos que sustentam o pedido do próprio lesado obriga a convocar o regime dos artigos 225.º e 226.º do Cód. Proc. Penal. A tanto obriga o n.º 1 do art. 13.º da Lei n.º 67/2007, de 31 de dezembro ao determinar expressamente a aplicação do regime especialíssimo da privação injustificada da liberdade.
Ou seja, quando o facto danoso invocado pelo suposto lesado seja a privação da liberdade ilegal ou injustificada, imediatamente temos de enquadrar o caso nos arts. 225.º e 226.º do Cód. Proc. Penal, por força do n.º 1 do art. 13.º da Lei n.º 67/2007, de 31 de dezembro, quer o lesado seja o afetado direto, quer seja um terceiro.
E encontrado o regime aplicável temos de, à luz do mesmo, aferir dos pressupostos do direito a uma indemnização e dos prazos aplicáveis para o exercício do direito.
O que não pode acontecer é invocar-se o regime dos artigos 225.º e 226.º para reclamar danos sofridos e, concomitantemente, pretender contornar-se o mesmo regime para excluir a aplicação do respetivo prazo de exercício do direito.
Uma tal solução é incoerente e viola o mais importante de todos os fatores hermenêuticos na interpretação de lei (art. 9.º do Cód. Civil): o princípio da coerência axiológica do sistema jurídico.
Ou seja, uma vez determinado o regime aplicável, a unidade do sistema jurídico impõe a sua aplicação em todas as dimensões nele previstas – no caso, verificação dos pressupostos quanto ao mérito e prazos para o exercício do direito.
E não teríamos dificuldade em ver a necessidade de convocação deste princípio noutras situações.
Tomemos como exemplo o direito a uma indemnização por dano não patrimonial indireto, em geral. Podemos discutir se ele existe fora do caso de morte, conforme previsto na segunda parte do n.º 4 do art. 496.º do Cód. Civil, ou se pode ser reconhecido a outros terceiros não referidos nessa norma.
No entanto, se se admitir que um terceiro (que não o lesado direto) tem direito a uma indemnização por um dano não patrimonial fora do caso previsto na segunda parte do n.º 4 do art. 496.º do Cód. Civil, é indiscutível que o seu direito está sujeito ao prazo de prescrição de 3 anos previsto no art. 498.º do Cód. Civil. Não lembra a ninguém dizer que, não estando o caso expressamente previsto na lei, o prazo de prescrição aplicável é o prazo ordinário de 20 anos (art. 309.º do Cód. Civil).
Ora, também no caso dos autos, se se admitir que um terceiro (que não o lesado direto) tem direito a uma indemnização por um dano decorrente da prisão ilegal de outrem, é indiscutível que o seu direito está sujeito ao prazo de caducidade de 1 ano previsto no n.º 1 do art. 226.º do Cód. Proc. Penal. Não nos parece razoável dizer que, não estando o caso expressamente previsto na lei especial (art. 225.º do Cód. Proc. Penal) não está o exercício do direito do terceiro sujeito ao mesmo prazo de caducidade.
Imaginemos que, chegados ao Cód. Proc. Penal, depois de para este enviados pelo n.º 1 do art. 13.º da Lei n.º 67/2007, de 31 de dezembro, nos deparava-mos com uma norma estabelecendo, singelamente (e inconstitucionalmente, diga-se): em caso algum o detido tem direito a uma indemnização. Não lembraria a ninguém dizer: “bom, o detido não tem direito a uma indemnização, mas isso não quer dizer que um terceiro não o possa ter”. E se a lei concedesse ao detido o direito a uma indemnização num caso excecionalíssimo, estando o seu exercício sujeito a um curtíssimo prazo de caducidade, também não seria razoável defender não ser este prazo aplicável ao terceiro, mas apenas ao detido.
Em conclusão, à data de interposição da ação, o direito de ação dos dois AA já se mostrava caducado, como acertadamente reconheceu o tribunal de primeira instância, pelo que improcede o recurso.
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V. DECISÃO
Pelo exposto, acordam em julgar a apelação improcedente e, consequentemente, manter a decisão recorrida.
Custas pelos apelantes.
Registe e notifique.
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Lisboa, 29 de Abril de 2025
Acórdão elaborado pela 1ª Adjunta, nos termos do artigo 663.º.º, n.º 3, do Código de Processo Civil.
Rute Sabino Lopes
Paulo Ramos de Faria (com declaração de voto)
Ana Mónica Mendonça Pavão (com voto de vencido)
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Declaração de voto.
Votei a decisão, ainda, pelas razões que se seguem – cfr. o Ac. do STJ de 27-10-2020 (638/15.1T8STC.E1.S1) e António Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, Coimbra, Almedina, 2022, 7.ª ed., nota p. 382, nota de rodapé 599.
Conforme se prevê no art. 13.º do Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e Demais Entidades Públicas (RRCE), aprovado pela Lei n.º 67/2007, de 31 de dezembro, existe um regime especial aplicável aos casos em que esta responsabilidade tem com facto danoso a sentença penal condenatória injusta ou a privação injustificada da liberdade. Quando o facto danoso invocado é um destes dois, é sempre aplicável o regime previsto no capítulo V do título II do Livro IV da Parte I do Cód. Proc. Penal, intitulado “Da indemnização por privação da liberdade ilegal ou injustificada”.
A que casos é que se aplica este regime especial? – Aos casos (…) de privação injustificada da liberdade (designadamente).
Que caso é o nosso? – É um caso (…) de privação injustificada da liberdade.
Que regime se aplica ao nosso caso? – O regime especial aplicável aos casos (…) de privação injustificada da liberdade, referido no art. 13.º do RRCE.
O que nos diz este regime especial sobre o prazo da demanda do Estado? – Que o pedido de indemnização não pode, em caso algum, ser proposto depois de decorrido um ano sobre o momento em que o detido ou preso foi libertado (art. 226.º, n.º 1, do Cód. Proc. Penal) – note-se: “o detido ou preso foi libertado”, não o autor foi libertado, não o titular do direito foi libertado.
Recapitulando, os arts. 225.º e 226.º do Cód. Proc. Penal dispõem sobre a “indemnização por privação da liberdade ilegal ou injustificada”, constituindo oregime especial aplicável aos casos (…) de privação injustificada da liberdade.
O art. 225.º prevê as únicasmodalidades de direito à indemnização com base na ocorrência deste facto danoso, tal como revela a sua epígrafe.
O art. 226.º dispõe sobre o prazo e a legitimidade, em qualquer caso, para o exercício do direito à indemnização por privação injustificada da liberdade. Ou seja, se a 2.ª autora pretende exercer um tal direito – sem curar agora de saber se o tem, ou não –, tem de o fazer no prazo previsto na lei.
É esta uma interpretação puramente declarativa do enunciado no n.º 1 do art. 226.º do Cód. Proc. Penal, totalmente compreendida na sua letra.
É, assim, de recusar a interpretação do texto legal que restrinja a sujeição ao prazo de caducidade aos casos em que o pedido é fundado, por ter o autor o direito substantivo, à luz da única lei que reconhece o direito a uma indemnização por privação injustificada da liberdade (art. 225.º do Cód. Proc. Penal) – convertendo-se, pois, numa interpretação parcialmente ab-rogante do claro enunciado do art. 226.º do Cód. Proc. Penal.
Seja ou não o pedido concludente, à luz da causa de pedir alegada e da única lei que reconhece o direito a uma indemnização – única por ser especial –, tem a demanda visando a “indemnização por privação da liberdade ilegal ou injustificada” de ser instaurada no prazo previsto no n.º 1 do art. 226.º do Cód. Proc. Penal. Se o for, depois se verá se a única lei especial que regula a “indemnização por privação da liberdade ilegal ou injustificada” reconhece, efetivamente, ao autor o direito de que se arroga (art. 225.º do Cód. Proc. Penal).
As razões que justificam a fixação de um prazo de caducidade relativamente curto para a propositura da ação – sejam a necessidade de garantir a certeza e a segurança jurídicas que devem envolver a atividade jurisdicional (isto é, a sua indiscutibilidade, mesmo em via reflexa, decorrido certo prazo), seja a simplicidade na identificação da entidade responsável e na descrição do facto danoso – não cessam em razão da identidade do alegado titular do direito. O mesmo é dizer que a coerência axiológica do sistema de justiça impõe a solução adotada no acórdão.
Paulo Ramos de Faria
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Declaração de voto de vencido
Voto vencida porquanto defendo posição contrária à que obteve vencimento por maioria no presente acórdão, relativamente à 2ª A./ora apelante Global Workers, Lda.
A presente acção perfila-se no domínio da responsabilidade extracontratual do Estado por danos decorrentes do exercício da função jurisdicional, cujo regime se encontra regulado na Lei n.º 67/2007, de 31 de Dezembro [que aprovou o Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e Demais Entidades Públicas (LRCEE)].
O art. 13º da citada lei [“1 - Sem prejuízo do regime especial aplicável aos casos de sentença penal condenatória injusta e de privação injustificada da liberdade, o Estado é civilmente responsável pelos danos decorrentes de decisões jurisdicionais manifestamente inconstitucionais ou ilegaisouinjustificadas por erro grosseiro na apreciação dos respectivos pressupostos de facto.] estabelece o regime geral, enquanto que os arts 225º e 226º do CPP, para que remete o 1º segmento daquela norma, estabelecem um regime especial.
Este regime especial apenas é aplicável nas situações aí previstas: “Quem tiver sofrido detenção, prisão preventiva ou obrigação de permanência na habitação pode requerer, perante o tribunal competente, indemnização dos danos sofridos quando (…)
Donde, a pretensão indemnizatória por danos emergentes de detenção ou prisão preventiva ilegal ou injustificada, como ocorre no caso do 1º A/ora apelante, está abrangida por este regime especial e, como tal, sujeita ao prazo de caducidade de 1 ano previsto no nº 1 do art. 226º do CPP.
Porém - e aqui surge a divergência face à posição que obteve vencimento no acórdão - tal regime não pode ser aplicável, em nosso entender, à indemnização requerida por terceiros (e não por quem sofreu a prisão ilegal ou injusta), como sucede no caso da 2ª A. /ora apelante.
A interpretação sustentada no acórdão quanto à 2ª A. não tem qualquer suporte na letra da lei, estando vedado ao intérprete considerar o pensamento legislativo que não tenha um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso (art. 9º/2 do Código Civil), devendo, aliás, presumir que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados (art. 9º/3 do Código Civil).
O princípio da coerência axiológica da ordem jurídica, genericamente invocado como fundamento da posição sustentada no acórdão – que pretende aplicar aos danos invocados pela 2ª A o regime especial do citado art. 225º e logo o prazo previsto no art. 226º - não pode servir de apoio à tese acolhida. Pelo contrário, esse princípio, que impõe como ponto de referência da interpretação “a unidade do sistema jurídico” (cf. art. 9º Código Civil), leva justamente à conclusão de que o regime previsto para aquele a quem foi aplicada medida de coacção privativa da liberdade ilegal ou injustificada - único visado pelos arts 225º e 226º do CPP - não é de aplicar a terceiro, sendo por conseguinte inaplicável à sociedade 2ª A, enquanto demandante por alegados prejuízos no exercício da sua actividade comercial, decorrentes da prisão sofrida pelo seu sócio, ora 1ºA.
Nesta senda, não é aceitável o argumento de que “não é razoável” ou “é incoerente” aplicar à 1ª A. um prazo para o exercício do direito de indemnização (prazo previsto no art. 226º/1 do CPP) diferente do prazo geral de prescrição do direito de indemnização previsto no art 498º/1 do Código Civil (3 anos), aplicável à 2ª A. Como dissemos, a interpretação da lei não pode deixar de partir da sua letra, sob pena de se proceder a uma interpretação que aparentemente poderia configurar uma interpretação extensiva, mas que, por ignorar os ditâmes do art. 9º do Código Civil, se transforma numa interpretação abrogante.
Aliás, nem do acórdão resulta minimamente justificada a solução interpretativa a que se chegou. Ainda que porventura essa interpretação (extensiva?) do nº 1 do art 226º se apoiasse no nº 2 do mesmo preceito, tal seria destituído de fundamento, posto que o nº 2 não contempla na sua previsão a indemnização de terceiro, mas sim a transmissão por via sucessória (às pessoas indicadas nº 2) do direito à indemnização [daquele que sofreu detenção ou prisão preventiva ilegal ou injustificada].
Em face de todo o exposto, entendemos que a apelação deveria ter sido julgada parcialmente procedente, revogando-se a sentença recorrida na parte em que foi decidido julgar procedente a excepção de caducidade do direito invocado pela 2ª A./apelante, e determinando-se o prosseguimento dos autos quanto a esta demandante.