INSOLVÊNCIA
RESOLUÇÃO
IMPUGNAÇÃO
FUNDAMENTAÇÃO
DECISÃO INTERLOCUTÓRIA
INADMISSIBILIDADE DE RECURSO
Sumário

I- Apenas são suscetíveis de recurso de apelação autónoma as decisões finais ou interlocutórias previstas no artigo 644.º, n.ºs 1 e 2 do CPC, sendo as demais recorríveis juntamente com a decisão que ponha termo à causa, tal como resulta do n.º 3 do mesmo preceito legal.
II- Pretendendo a recorrente impugnar, juntamente com a decisão final do processo, uma decisão interlocutória que não admitia recurso autónomo, à luz do n.º 2 do art.º 644º do CPC, deve a mesma, no requerimento e alegações conjuntamente apresentadas, revelar a intenção de impugnação também dessa decisão interlocutória, à luz do art.º 644.º n.º 3 do mesmo código.
III- Não o fazendo, o recurso apenas poderá abranger o que tiver sido objeto de conhecimento na sentença, revelando-se desfavorável ao recorrente.
IV- Se, em despacho saneador, o tribunal recorrido apreciou as questões suscitadas pela apelante nos autos, desde logo da inadequação do meio processualmente usado, resultante de caso julgado, e da caducidade do exercício do direito de resolução a operar-se pelo meio que entendia adequado, questões que depois não foram tratadas na sentença em recurso, não pode o tribunal ad quem das mesmas conhecer, dado que aquela decisão, tomada em saneador, não foi expressamente impugnada em recurso.
V- A resolução em benefício da massa insolvente, regulada nos artigos 120.º a 126.º do CIRE, consubstancia um mecanismo legal que se destina a prevenir os atos que prejudiquem a integridade da massa insolvente.
VI- Tal resolução deve ter por base uma declaração que, independentemente da sua especifica integração jurídica, elenque os factos concretos e essenciais que revelem as razões invocadas para a destruição do negócio e permitam ao destinatário da declaração a sua posterior impugnação.
VII- No caso da resolução incondicional, a que se refere o artigo 121.º do CIRE, os requisitos gerais da resolução são dispensados. Os atos aí referidos são resolúveis, independentemente de quaisquer outros requisitos, para além dos previstos nesta mesma disposição legal, não estando assim tal resolução condicionada à verificação ou concreta demonstração da prejudicialidade do ato, que o legislador presumiu iuris et de iure, e não se exigindo também o requisito da má fé do terceiro, salvo o ressalvado no n.º 2 do art.º 121.º.
VIII- Assume natureza gratuita o negócio de transmissão de propriedade de dois imóveis, em execução especifica de um contrato promessa, por força do qual a compradora não pagou qualquer valor monetário pelos aludidos imóveis ao insolvente, tornando assim o ato resolúvel à luz do artigo 121.º n.º 1 al. b) do CIRE.

Texto Integral

ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA
I-/ Relatório:
MM, intentou, por apenso ao processo de insolvência n.º 2578/15.5T8VFX, em que foi declarado insolvente JP, a presente ação de impugnação de resolução em benefício da massa insolvente, referente à transmissão da propriedade, a favor da autora, determinada por sentença judicial (proferida no processo que correu termos sob o n.º 612/12.0TBLNH, do Juízo de Competência Genérica da Lourinhã, em 14/05/2014, e transitada em julgado em 23/06/2014), dos seguintes imóveis:
- Fração autónoma designada pela letra “A”, correspondente a uma moradia bifamiliar de rés-do-chão e primeiro andar, para habitação, descrito na Conservatória do Registo Predial (…) sob o n.º (…), inscrito na matriz predial urbana sob o artigo (…);
- Prédio rústico composto por terra de cultura arvense, sito na Lourinhã, denominado “Cruz”, descrito na Conservatória de Registo Predial (…), sob o n.º (…), inscrito na matriz predial rústica sob o artigo (…), secção (…).
Requer a declaração de ilicitude da aludida resolução operada pelo Sr. Administrador de Insolvência (AI), a favor da massa insolvente.

Para tanto, invocou:
(i) a ineficácia da declaração de resolução em benefício da massa insolvente, por falta de fundamentação da resolução dos negócios efetuada pelo AI (fundada nos arts.º 120.º n.ºs 1 a 4 e 5 e 121.º n.º 1 al. h) do CIRE);
(ii) que a transferência da titularidade dos imóveis foi julgada e homologada por decisão judicial transitada em julgado, a qual apenas podia ser objeto de reapreciação através de recurso de revisão (estando já caducado o exercício de tal direito por decorrido o prazo perentório para requerer o aludido recurso), razão pela qual a resolução do negócio jurídico não pode operar sob pena de violação de caso julgado, não cabendo tal resolução na letra da Lei, que se refere apenas e só a atos ou negócios jurídicos, o que não é o caso;
(iii) que as relações da autora com o insolvente eram meramente profissionais, inexistindo qualquer evidência de insolvência deste, desconhecida da autora até 08/02/2016, data em que em teve conhecimento da declaração de insolvência por força da resolução agora impugnada;
(iv) que não estão reunidos os pressupostos de que depende a resolução condicional ou incondicional dos negócios jurídicos em apreço.

Citada, a requerida Massa Insolvente de JP apresentou contestação nos autos, alegando que:
(i) não existe falta de fundamentação da carta remetida para resolução do negócio jurídico, que se encontra clara e exaustiva, a qual, aliás, foi compreendida pela impugnante, como resulta do requerimento inicial que apresentou;
(ii) a invocação de violação de caso julgado não tem fundamento legal, atendendo a que o AI resolveu o negócio jurídico de transmissão de imóveis, não se verificando a tríplice identidade que se exige para verificação de caso julgado, pelo que o mesmo não foi violado, nem o AI de Insolvência se poderia socorrer do recurso de revisão para atacar aquela decisão, tendo sido observados todos os prazos legais para a resolução do negócio a favor da massa insolvente;
 (iii) a sentença em causa, transitada em julgado, limitou-se, face à falta de contestação, a dar como provados os factos por confissão, sem os escrutinar e sem qualquer relação com simulação ou prejudicialidade, tratando-se de ato que se integra nos resolúveis pelo AI;
(iv) as transmissões em causa visaram subtrair parte relevante do património do insolvente, sabendo a autora, ou não podendo ignorar, que este já se encontrava em situação de insolvência, sendo aqueles os bens que permitiriam a solvência de dívidas do insolvente;
(v) a ação intentada pela autora foi uma forma de blindar artificialmente aquele negócio, algo que o insolvente e a autora já haviam premeditado, tratando-se de um negócio simulado, beneficiando a autora em detrimento dos credores do insolvente, sendo tal atuação dolosa, com declarações falsas no contrato, pois que inexistiu qualquer pagamento, tendo os imóveis um valor muito superior ao de aquisição, ficando a autora claramente beneficiada por um negócio cujo único fito foi prejudicar os credores da massa insolvente.
Concluiu no sentido de que, face à factualidade exposta, estão verificados os requisitos da resolução condicional contidos nos artigos 120.º, n.ºs 1 a 5, alíneas a) e b) do CIRE e, ainda, a resolução incondicional, prevista no n.º 3 do art.º 120.º do CIRE, com a remissão operada ao art.º 121.º, n.º 1, alíneas f), g) e h) do mesmo diploma, pugnando pela improcedência da presente ação.

Na tramitação dos autos, foi proferido despacho saneador, em 23/01/2019, onde, em longa e fundamentada decisão, foram julgadas improcedentes as invocadas exceções (de falta de fundamentação da declaração de resolução, de caso julgado, de meio processual inadequado e de caducidade).
Considerando, porém, não ser ainda possível conhecer do mérito da causa, no todo ou em parte, determinou-se o prosseguimento dos autos para audiência final, fixando-se o objeto do litígio, com enunciação de temas de prova.

Tendo sido solicitada perícia pela Ré aos aludidos imóveis, após inúmeras vicissitudes, em 29/11/2023, foi proferido o seguinte despacho «Considerando que a A. inviabilizou a perícia nos presentes autos, determino a inversão do ónus da prova quanto aos factos que se pretendia apurar com a mesma, cabendo, agora, à A. provar em sentido diverso do alegado na contestação, nos termos do art.º 344.º, n.º 2, do Código de Processo Civil.
Abra vista ao Ministério Público face ao não pagamento da multa pela A..
Atenta a inversão do ónus da prova, supra determinado, notifique a R. Massa Insolvente para que se pronuncie quanto à utilidade do depoimento de parte da A.».

Prescindindo a Ré do aludido depoimento de parte, e considerando então a inexistência de prova a produzir em sede de julgamento, foi ordenado, por despacho de 24/05/2024, que as partes fossem notificadas para, querendo, apresentarem alegações por escrito.
A Ré apresentou alegações por escrito.

Foi então proferida sentença que culminou com o seguinte dispositivo:
«3. Decisão
Pelo exposto:
1- Julga-se a presente ação totalmente improcedente, por não provada e, em consequência, absolve-se a R. Massa Insolvente de JP, dos pedidos contra ela formulados por MM e, consequentemente, julga-se válida e eficaz a resolução em benefício da massa insolvente da transmissão da propriedade a favor da A., determinada por sentença proferida no processo que correu termos sob o n. 612/12.0 TBLNH, do Juízo de Competência Genérica da Lourinhã, em 14 de Maio de 2014, e transitada em julgado em 23.06.2014, tendo por objeto os seguintes imóveis:
- Fração autónoma designada pela letra “A”, correspondente a uma moradia bifamiliar de rés-do-chão e primeiro andar, para habitação, descrito na Conservatória do Registo Predial (…) sob o n.º (…), inscrito na matriz predial urbana sob o artigo (…);
- Prédio rústico composto por terra de cultura arvense, sito na Lourinhã, denominado “Cruz”, descrito na Conservatória de Registo Predial (…), sob o n.º (…), inscrito na matriz predial rústica sob o artigo (…), secção (…).
– Condena-se a A. MM como litigante de má fé na multa que se fixa em 5 (cinco) UC’s.
Cumpra o disposto pelo art.º 543, n.º 3 do Código de Processo Civil notificando as partes para se pronunciarem quanto ao montante da indemnização a que alude aquele preceito.
Custas a cargo da A., em face da improcedência da ação, nos termos do art.º 527.º do CPC.
Custas pela A., no que respeita ao pedido de condenação do mesmo como litigante de má fé da mesma, em conformidade com o estatuído no artigo art.º 527.º do CPC.
Registe e notifique».

Inconformada, veio a Autora interpor o presente recurso, que finalizou com as seguintes conclusões que aqui se reproduzem:
«A. A sentença recorrida incorreu numa clara contradição na apreciação da prova produzida nos presentes autos de processo;
B. Que seja declarada inválida a resolução incondicional em benefício da massa insolvente, pela manifesta falta de fundamentação;
C. Considerar procedente, por provada, a ação de impugnação judicial instaurada – tendo em vista fazer soçobrar a pretendida “resolução” de uma decisão judicial homologatória que, com trânsito em julgado, havia decidido a questão da titularidade dos imóveis a que se referem os presentes autos;
D. Tanto mais que – para além de não ter lançado mão do meio processualmente adequado para os efeitos tidos em vista (recurso de revisão da decisão judicial já transitada em julgado) – a Massa Insolvente deixou decorrer o prazo de que dispunha para o efeito (dois meses após o conhecimento de facto que lhe servisse de fundamento), nos termos do art.º 697.º, n.º 2, al. c) do CPC;
E. Que seja revogada a resolução incondicional em benefício da massa insolvente, por não estarem verificados os seus pressupostos;
F. E, em consequência, manter-se o direito de propriedade da Autora, conforme registo da Conservatória do Registo Predial.
G. E ainda revogada a douta sentença do tribunal “a quo” e declarar totalmente improcedente o pedido e causa de pedir.
Termos em que, e nos melhores de direito que V. Exas. suprirão, deve a decisão recorrida ser revogada, determinando-se a sua reformulação em conformidade com a prova produzida, assim se fazendo Justiça!».

Não foram apresentadas contra-alegações.

O recurso foi admitido, após o que os autos subiram a este Tribunal da Relação, e, colhidos os vistos legais, cumpre agora apreciar e decidir.

*

II-/ Questões a decidir:
Estando o âmbito do recurso delimitado pelas conclusões das alegações da Recorrente, como decorre dos artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.ºs 1 e 2 do CPC, ressalvadas as questões de conhecimento oficioso que ainda não tenham sido conhecidas com trânsito em julgado, as questões que a recorrente coloca à apreciação deste Tribunal são:

(i) A falta de fundamentação da declaração de resolução;
(ii) A inadequação do meio processualmente adequado para os efeitos tidos em vista (recurso de revisão da decisão judicial), em face do caso julgado da decisão judicial homologatória que, com trânsito em julgado, havia decidido a questão da titularidade dos imóveis a que se referem os presentes autos;
(iii) A caducidade do exercício do direito de resolução (pela via do recurso de revisão);
(iv) A não verificação dos pressupostos da resolução incondicional.
***
III-/ Fundamentação de facto:
Foram dados por provados os seguintes factos:
1. Em 26/01/2015 o insolvente apresentou-se a Processo Especial de Revitalização o qual deu origem ao processo n.º 311/15.0 T8LRA, que correu termos na Secção de Comércio de Vila Franca de Xira, Juiz 1, e foi encerrado sem acordo entre o insolvente e credores, pronunciando-se o Sr. Administrador Judicial Provisório pela insolvência do devedor, conforme apenso A cujo teor se dá por integralmente reproduzido;
2. Nos autos principais foi proferida, em 7 de julho de 2015, sentença, transitada em julgado, que declarou a insolvência de JP, conforme referência 124413439 dos autos principais, cujo teor se dá por integralmente reproduzido;
3. O Sr. Administrador de Insolvência remeteu carta registada com aviso de receção à A., datada de 15/02/2016, recebida por esta, conforme referência 5221808, cujo teor se dá por integralmente reproduzido, de onde consta, para além do mais que:
“Venho pela presente, na qualidade de Administrador de Insolvência da Massa Insolvente supra identificada, nomeado por sentença proferida em 07.07.2015 e nos termos do disposto nos artigos 120.º n.ºs 1 a 4 e 5, alíneas a) e b) e 121.º, n.º 1, alínea h), ambos do CIRE, declarar-lhe que procedo a Resolução Incondicional do ato jurídico de transmissão referente aos seguintes imóveis:
- Fração autónoma designada pela letra “A”, correspondente a uma moradia bifamiliar de rés-do-chão e primeiro andar, para habitação, descrito na Conservatória do Registo Predial (…) sob o n.º (…), inscrito na matriz predial urbana sob o artigo (…);
- Prédio rústico composto por terra de cultura arvense, sito na Lourinhã, denominado “Cruz”, descrito na Conservatória de Registo Predial (…), sob o n.º (…), inscrito na matriz predial rústica sob o artigo (…), secção (…).
O Administrador da Insolvência só agora teve conhecimento dos pormenores do negócio, na sequência do desenvolvimento das diligências com vista às averiguações realizadas para a busca e apreensão do património do insolvente enquanto garantia do ressarcimento dos seus credores, altura em que teve acesso à documentação referente ao negócio ora resolvido.
Os fundamentos para a resolução dos atos prejudiciais à massa assentam nos seguintes pressupostos.
a. O património transmitido em benefício de V.ªs Ex.ªs, detém um valor manifestamente superior ao valor estipulado para a transmissão dos imóveis, os quais ascendem, no mínimo, a 200.000,00 €, em função, mormente, da aptidão económica dos imóveis, bem assim como da capacidade construtiva e benfeitorias realizadas, razão pela qual Vª Ex.ª ficou claramente beneficiada com o ato em detrimento direto dos interesses dos credores do insolvente.
b. Mas, ainda que assim não fosse, o benefício da compradora resulta do facto de não resultar que tenha sido pago ao insolvente qualquer montante para a aquisição dos imóveis em causa, encontrando-se assim na propriedade de património para o qual não despenderam qualquer recurso ou atribuiu ao insolvente qualquer contrapartida pecuniária.
c. Na verdade, não resulta documentalmente provado por documento idóneo (cheque com prova de depósito, transferência bancária), o pagamento invocado no contrato-promessa de compra e venda, mesmo depois de ter sido por diversas vezes solicitado ao insolvente documentação comprovativa do pagamento do preço por parte da compradora, o mesmo para além de não remeter qualquer documentação, mesmo depois de ter sido alertado para o facto de que caso não fosse comprovado o recebimento do preço os negócios seriam resolvidos, ainda afirmou reiteradamente que não se recordava se tinha ou não recebido o preço.
d. Mais releva o facto de, quer V.ª Ex.ª, quer o insolvente, por manterem um relacionamento pessoal e profissional, não poderem ignorar que o devedor, à data da compra e venda agora resolvida, se encontrava em situação de insolvência eminente, mormente por não deter qualquer outro património valorável e desonerado e não ter capacidade económica para solver os seus compromissos e dívidas já vencidas.
A resolução assim operada tem ainda natureza incondicional com base no facto de ter sido proferida sentença em 13/05/2014, no âmbito do processo n.º 612/12.0TVLNH, que correu termos no Tribunal Judicial da Lourinhã, julgando procedente, por provada, a ação intentada por vª Ex.ª, declarando transmitida a seu favor a propriedade dos referidos prédios, pelo preço estipulado no contrato promessa celebrado em 10 de Outubro de 2011 (cfr. doc. 1, em anexo), tendo só sido efetuado o registo definitivo da sentença sobre os bens, 17/12/2014 (cfr. docs. 2 e 3, em anexo), acoplado à constatação de que não resulta documentado qualquer comprovativo do pagamento do preço devido, preço esse bem inferior ao preço real.
Sucede que, tal decisão sempre é inoponível, quer à Massa Insolvente, quer aos credores, porquanto terceiros de boa fé, tanto mais quando se considera que nem sequer foi contestada pelo insolvente, de onde, se demonstra o conluio obtido entre Vª Ex.ª e o insolvente, no sentido de obter um título judicial declarativo da transmissão da propriedade, com vista a prejudicar os credores do insolvente.
De facto, quer a promessa de venda dos bens, quer o subsequente e convenientemente incontestado processo supra referido, foram realizados com o intuito único de subtrair os bens imóveis ao alcance dos credores do mesmo, ficando assim o insolvente sem bens suficientes e idóneos para o cumprimento das suas obrigações.
Ora, estes imóveis foram prometidos vender com o conhecimento de que os mesmos representavam um meio garantístico para a solvência das dívidas do insolvente.
Como tal resulta, para além de presumida, provada a má fé do interveniente, já que mais não pretenderam do que prejudicar os seus credores, dissolvendo, conscientemente, o parco património possível de constituir garantia do pagamento, ainda que parcial, dos débitos do insolvente, agindo em tal propósito e com perfeita consciência do alcance dos seus atos.
O ato ora resolvido de forma incondicional nos termos da alínea h) do n.º 1 do art.º 121.º do CIRE consubstancia atividade prejudicial aos interesses da massa insolvente, mormente por força da impossibilidade de apreensão e alienação do património objeto de venda o que diminui substancialmente o valor da massa insolvente em detrimento dos interesses dos credores.
Neste sentido, caso V. Exa. admita desde já a resolução do negócio supra mencionado, nos termos supra elencados, sou a solicitar se digne confirmá-lo mediante declaração por escrito, bem deverá o insolvente supra identificado proceder do mesmo modo.
Tal atuação de V. Exa. poderá revelar cooperação no âmbito do processo de insolvência em epígrafe mencionado e que poderá relevar em sede de incidente de qualificação de insolvência. (…)».
4. Com data de 10 de Outubro de 2011, insolvente e A. celebraram contrato promessa de compra e venda, por documento particular, assinado por ambos, no qual aquele prometeu vender e esta prometeu comprar, pelo preço global de € 100.000,00, dos quais € 90.000,00 correspondente ao prédio urbano e €10.000,00 ao prédio rústico, os seguintes imóveis, conforme certidão junta com a referência 7737573, cujo teor se dá por integralmente reproduzido:
- Fração autónoma designada pela letra “A”, correspondente a uma moradia bifamiliar de rés-do-chão e primeiro andar, para habitação, descrito na Conservatória do Registo Predial (…) sob o n.º (…), inscrito na matriz predial urbana sob o artigo (…);
- Prédio rústico composto por terra de cultura arvense, sito na Lourinhã, denominado “Cruz”, descrito na Conservatória de Registo Predial (…), sob o n.º (…), inscrito na matriz predial rústica sob o artigo (…), secção (…).
5. A aqui A. intentou, em 24 de Setembro de 2012, uma ação declarativa com vista à execução específica do contrato mencionado em 4., a qual correu termos com o n.º de Processo 612/12.0TBLNH, do Juízo de Competência Genérica da Lourinhã, conforme certidão junta com a referência 7737573, cujo teor se dá por integralmente reproduzido;
6. No processo referido em 5. o insolvente, ali Réu, apesar de citado, não apresentou contestação nem constituiu Mandatário ou interveio no processo de qualquer forma, pelo que, em 14 de Maio de 2014, foi proferida sentença, transitada em julgado em 23/06/2014, a julgar provados os factos por confissão e a julgar procedente a ação, substituindo-se o Tribunal ao Réu, declarando transmitida a favor da A. promitente compradora, a propriedade dos mencionados bens imóveis, pelo preço estipulado no contrato promessa, conforme certidão junta com a referência 7737573, cujo teor se dá por integralmente reproduzido;
7. Os dois imóveis referidos em 4., têm um valor não inferior a 200.000,00 € (duzentos mil euros);
8. A A. não pagou ao insolvente qualquer quantia monetária para a aquisição dos imóveis descritos em 3. e 4., por conta do contrato referido em 4.;
9. Para além dos imóveis referidos em 3. e 4. não foram apreendidos quaisquer outros bens ao insolvente nestes autos, conforme apenso D cujo teor se dá por integralmente reproduzido;
10. Pelo menos desde setembro de 2012, que a A. tinha conhecimento que o insolvente se encontrava com dificuldades financeiras.
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Com interesse para a decisão da causa não se provou:
a) O negócio referido em 4. teve como fim liquidar em numerário uma divida existente entre o insolvente a Autora;
b) Os imóveis referidos em 4. valem menos de €200.000,00;
c) As relações existentes entre a Autora e ora insolvente eram meramente profissionais;
d) Não era aparente, nem sequer de suspeitar pela A., que o insolvente se encontrava numa situação económica difícil;
e) Uma eventual situação económica difícil do insolvente nunca foi comunicada à A., nem pelo próprio nem por terceiros, até à data da sentença e consequente registo;
f) A A. desconhecia, por completo, a situação de insolvência do insolvente que conduziu à sua declaração;
g) Apenas em 08 de fevereiro de 2016, por força da comunicação da resolução referida em 3., é que a A. teve conhecimento da referida insolvência;
h) Sabia a A. que o insolvente não dispunha de outros bens desonerados para o cumprimento das suas obrigações, para além dos imóveis referidos em 4.;
i) Os intervenientes no contrato referido em 4., sabiam, à data da celebração do mesmo, que a situação financeira do insolvente era irreversível e estava em situação de insolvência eminente;
j) A A. e o insolvente mantinham um relacionamento pessoal.
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IV-/ Do mérito do recurso:
Em causa nos autos a impugnação da resolução por parte do administrador da insolvência do negócio que conduziu à transmissão da propriedade de dois imóveis, pelo insolvente à autora, considerado prejudicial à massa insolvente.

As questões colocadas em alegações recursivas - identificadas em (i) a (iii) - falta de fundamentação da declaração de resolução, inadequação do meio processualmente adequado para os efeitos tidos em vista (recurso de revisão da decisão judicial), em face do caso julgado da decisão judicial homologatória que, com trânsito em julgado, havia decidido a questão da titularidade dos imóveis a que se referem os presentes autos e caducidade do exercício do direito de resolução - foram todas elas, sem exceção, apreciadas e tratadas em sede de despacho saneador proferido em 23/01/2019, onde, em longa fundamentação, a Sra. Juíza a quo julgou improcedentes as aludidas exceções.
Ainda que se possa defender que a decisão então proferida não se enquadra em nenhuma das situações previstas nos n.ºs 1 e 2 do artigo 644.º do CPC, onde se preveem os casos de recurso autónomo, sendo, como tal, passível de ser impugnada no recurso a interpor da decisão que pusesse termo à causa, no caso, a sentença final, sempre o recurso deveria ser dirigido contra tal decisão, autonomizando-a em sede de alegações e conclusões do presente recurso. Assim não procedeu a recorrente, o que, do ponto de vista processual, não se mostra correto, tanto mais que, dúvidas não há, principia as suas alegações recursivas por expressamente declarar que «… notificada da douta sentença proferida em 07-01-2025, e não se podendo conformar com ela, vem apresentar recurso…», terminando a pedir que a sentença recorrida seja «revogada e reformulada em conformidade com a prova produzida».
Deste modo, e a ser assim, tendo sido proferida decisão especifica e concreta sobre esta matéria, que, em bom rigor, não foi impugnada, não sendo apontado o que quer que seja à decisão então tomada pelo tribunal a quo, nada mais tem este tribunal a acrescentar ao decidido.
Constituindo o recurso um meio de impugnação de uma concreta decisão judicial com vista à sua alteração, revogação ou anulação por um tribunal superior, deve o recorrente apontar o que nela foi, no seu entendimento, objeto de errado julgamento. Nos autos, nada do decidido pelo tribunal a quo foi concretamente rebatido em recurso, cujas alegações e conclusões são feitas como se nada tivesse ainda sido decidido nos autos. Em bom rigor, a recorrente reproduz o alegado em petição e não alega nem aponta quaisquer críticas do efetivamente decidido pelo tribunal recorrido, em nada contrariando o raciocínio lógico-dedutivo com base na qual o tribunal a quo criou a sua convicção.
E ainda que a autora, inconformada com a improcedência das exceções por si invocadas, só pudesse apresentar a respetiva impugnação após a prolação da sentença final, pois que a decisão proferida no despacho saneador - que apreciou e decidiu as mesmas de forma concreta, julgando-as improcedentes - não transitou em julgado, na medida em que não está previsto recurso autónomo de tal decisão, certo é que, pretendendo impugnar a mesma, tal deveria inserir no requerimento de recurso. Como dissemos já no proc. 579/22.6T8BJA.L1, em acórdão de 09/04/2024, ao que julgamos não publicado, «(…) V- Pretendendo a recorrente impugnar, juntamente com a decisão final do processo, uma decisão interlocutória que não admitia recurso autónomo, à luz do n.º 2 do art.º 644º do CPC, deve a mesma, no requerimento e alegações conjuntamente apresentadas, revelar a intenção de impugnação também dessa decisão interlocutória, à luz do art.º 644.º n.º 3 do mesmo código».
Onde, fundamentando, se consignou «…. de acordo com o disposto no artigo 637.º, n.º 1 do CPC, os recursos interpõem-se por meio de requerimento dirigido ao tribunal que proferiu a decisão recorrida, no qual se indica a espécie, o efeito e o modo de subida. Neste enquadramento, recorrendo da decisão final, e pretendendo no mesmo recurso impugnar a aludida decisão interlocutória, teria a recorrente que o declarar no recurso apresentado, fazendo requerimento e alegações conjuntas (…)».
Também nestes autos em momento algum a recorrente anuncia a sua intenção de recorrer da decisão inserta no despacho saneador proferido, sendo certo que, com exceção da questão da falta de fundamentação da declaração de resolução (novamente apreciada em sentença), nenhuma das outras questões nela tiveram tratamento (o que se compreende, pois que o tribunal já as tratara e apreciara em anterior decisão).
Por isso, limitando a autora o recurso interposto à sentença proferida nos autos, este tribunal apenas poderá apreciar as questões que nela foram tratadas e conduziram à improcedência da ação, motivando o recurso interposto (ainda que o mesmo em nada ataque, em bom rigor, o ali decidido, limitando-se, também aqui, a reproduzir o alegado em p.i. como se nada até agora tivesse sido decidido nos autos).
E ainda que, no que respeita à questão do caso julgado, a decisão seja sempre recorrível, nos termos do disposto no artigo 629.º, n.º 2 al. a) do CPC, certo é que a recorrente não anuncia a intenção de impugnar a aludida decisão interlocutória, não o declarando no recurso apresentado, onde em momento algum alude à decisão que a apreciou e que logo ali concluiu que «Pelo exposto, por não se verificar a exceção perentória de caso julgado, não ser o recurso de revisão o meio processual adequado no caso concreto, e por não ter caducado o direito de resolução dos negócios jurídicos em apreço, impõe-se julgar improcedente a exceção perentória invocada, sendo os demais fundamentos alegados questão de mérito a apreciar na sentença a proferir a final».
Por isso, ainda que faça referência a tais questões no corpo das alegações e às mesmas aluda em conclusões recursivas (nos pontos C e D), certo é que não as aponta à decisão que delas conheceu, nenhuma referência se fazendo a tal decisão, e aos fundamentos invocados para o ali decidido.
Razão pela qual, e sem mais, apenas apreciaremos na presente apelação a questão da alegada falta de fundamentação da declaração resolutiva (i), e da não verificação dos pressupostos da resolução, em face do alegado desconhecimento por parte da apelante do processo e da situação de insolvência (iv) únicas questões que foram tratadas na sentença em crise.

Iniciando assim a nossa apreciação no que concerne à alegada falta de fundamento da declaração resolutiva (i), vemos que, nesta matéria, alega a recorrente que a carta de resolução enviada pelo AI não se encontra devidamente fundamentada, pois que não justifica ou esclarece porque motivos se encontram reunidos os pressupostos a que aludem as disposições legais que invoca (arts.º 120.º n.ºs 1 a 4 e 5, als. a) e b) e 121.º n.º 1 al. h) do CIRE), limitando-se a remeter para as referidas disposições legais.
A ser assim, argumenta, tal falta de fundamentação determina a invalidade da declaração de resolução em benefício da massa insolvente, bem como a consequente extinção dos efeitos da mesma, uma vez que não foram fornecidos à autora os elementos e as condições que permitam o exercício do direito de impugnação.

Vejamos então.
Em sede de despacho saneador, considerou o tribunal recorrido, o que, de alguma forma, voltou a reiterar na sentença em recurso, após proceder à análise do regime jurídico inserto nos arts.º 120.º e 121.º do CIRE, que «Vejamos se, no caso concreto, a declaração de resolução remetida pelo Sr. Administrador de Insolvência se pode considerar suficientemente fundamentada em termos de factos alegados. Compulsada a declaração de resolução de fls. 128 a 131 e supratranscrita, resulta que o Sr. Administrador de Insolvência indicou concretizadamente os factos nos quais baseou a sua conclusão. Considerando que o Sr. Administrador de Insolvência invoca a gratuitidade do ato - não pagamento do preço - verificamos que a situação sub judice é suscetível de se integrar na  alínea b) do n.º 1, do art.º 121.º do CIRE, porém, independentemente da qualificação do mesmo, condicional ou incondicional, as conclusões que se expenderão são válidas também para ambas.
Assim, estando perante uma resolução, deve constar da declaração factos suscetíveis de integrar e demonstrar:
- a prejudicialidade do ato para a massa insolvente;
- verificação desse ato nos dois anos anteriores à data do início do processo de insolvência;
- a má fé do terceiro – esta presume-se de juris et de jure em sede de resolução incondicional, constituindo uma presunção juris tantum no caso de resolução condicional quanto a atos cuja prática ou omissão tenha ocorrido dentro dos dois anos anteriores ao início do processo de insolvência e em que tenha participado ou de que tenha aproveitado pessoa especialmente relacionada com o insolvente, ainda que a relação especial não existisse a essa data.
Porém, mesmo para integrar a mencionada presunção em sede de resolução condicional – e bem assim caso se integrasse em algum dos casos subsumíveis a resolução incondicional – tais factos têm de ser alegados.
Ora, no caso concreto, está alegado na declaração em apreço que o negócio ocorreu nos dois anos anteriores ao início do processo de insolvência, o que se afigura suficiente. De igual modo, temos a indicação de que a impugnante e o insolvente mantinham uma relação pessoal e profissional.
Ora, estando perante uma resolução incondicional, temos que há presunção de prejudicialidade e presunção de má fé, e essa presunção foi alegada com expressa invocação dos normativos aplicáveis e ainda com indicação dos factos que motivam a aplicação da presunção. Por outro lado, consta da declaração de resolução a alegação de que não foi efetuado o pagamento do preço ao insolvente, o que explica a prejudicialidade do ato face aos credores. Independentemente da presunção de má fé por via da resolução incondicional, temos que foram alegados factos que consubstanciam essa má fé, de forma concretizada e descritiva.
Assim, compulsada a declaração em apreço, resulta que foram alegados factos constitutivos dos três pressupostos para operar a resolução:
- a prejudicialidade do ato para a massa insolvente - sendo um ato oneroso, sem pagamento do preço, como indicado pelo Sr. Administrador de Insolvência, essa prejudicialidade encontra-se alegada devidamente;
- verificação desse ato nos dois anos anteriores à data do início do processo de insolvência - alegada pela indicação de datas;
- a má fé do terceiro - a má fé da impugnante encontra-se na alegação e descrição dos factos que consubstanciam a simulação de um negócio de compra e venda em que o pagamento do preço não terá ocorrido, bem como a utilização de uma ação declarativa para obter sentença que reconheça a propriedade como forma de blindar aquele contrato em ação não contestada pelo, aqui, insolvente, e ainda a alegação de que a impugnante conhecia a situação de insolvência iminente.
Note-se que o facto de considerarmos que a declaração se encontra devidamente fundamentada não significa que os factos em que se baseia se encontram demonstrados, mas sim que os mesmos estão alegados e descritos de forma suficiente para que se considere que a declaração de resolução cumpre os requisitos constantes da Lei. Deste modo, é patente que não existe falta de fundamentação fáctica da declaração de resolução a favor da massa insolvente efetuada pelo Sr. Administrador de Insolvência, pelo que improcede a invocada exceção perentória».

Acompanhamos integralmente o assim decidido e nenhum argumento foi avançado pela recorrente que tal possa pôr em causa. A resolução operada pelo AI encontra-se devidamente fundamentada, sendo absolutamente percetível da sua leitura o porquê da decisão tomada, estando nela claramente identificado o negócio resolvido, a data do mesmo, as circunstâncias que o envolveram, a razão de se entender tratar-se de um negócio prejudicial para a massa e a má fé das partes.
Veja-se, a propósito desta matéria, entre muitos outros, o acórdão do TRP de 07/03/2022, relatado por Pedro Damião e Cunha, no proc. 3318/18.2T8STS-F.P1, disponível na dgsi, onde se consignou que «(…) V- A resolução em benefício da massa insolvente é um instituto específico do processo de Insolvência que permite, de uma forma expedita e eficaz, a destruição de atos prejudiciais à massa insolvente, com vista a apreender para a massa insolvente, não só aqueles bens que se mantenham na titularidade do insolvente, como aqueles que nela se manteriam caso não houvessem sido por ele praticados ou omitidos aqueles atos prejudiciais para a massa insolvente. VI- Neste âmbito, será excessivo exigir que a declaração de resolução contenha uma exaustiva indicação de todos os factos que a justificam; mas essa declaração há-de integrar os factos concretos essenciais que revelem as razões invocadas para a destruição do negócio e permitam ao destinatário da declaração a sua posterior impugnação. VII- Se estiverem em questão, no entanto, atos enquadráveis em alguma das alíneas do nº 1 do art.º 121º do CIRE, basta ao Administrador da insolvência, nesses casos, a indicação precisa do negócio que é objeto do ato resolutivo e a indicação da alínea preenchida, de modo a que o destinatário da respetiva missiva possa aperceber-se de que está em causa uma situação compreendida em tal preceito legal».
Por ser assim, em primeira linha, temos por certo que a declaração de resolução tem/deve de especificar os factos concretos essenciais que revelam as razões invocadas para a pretendida destruição do negócio, permitindo ao destinatário, se depois assim o entender, a sua posterior impugnação.
Independentemente da sua integração jurídica, os factos têm, mesmo que sinteticamente, que ser concretamente alegados na carta resolutiva, para permitir ao terceiro o direito de impugnar o ato, através da ação prevista no art.º 125.º do CIRE, conhecendo previamente os concretos factos ou fundamentos que contra ele são invocados.
Foi o que sucedeu nos autos, onde, de forma clara e precisa, o AI resolveu o negócio jurídico (e não qualquer sentença judicial homologatória transitada em julgado, como alegado pela recorrente) que envolveu a transmissão de propriedade dos imóveis do insolvente, por força da execução específica do contrato promessa invocado, em face da sua gratuitidade, uma vez que a autora não pagou ao insolvente qualquer quantia monetária para a aquisição dos aludidos imóveis por conta do referido contrato.
Concluímos, pois, e sem mais, pela improcedência da argumentação recursiva nesta parte, pois, contrariamente ao pretendido pela recorrente, não se verifica qualquer falta de fundamentação fáctica da declaração de resolução.

De seguida, e no que concerne à alegada falta dos pressupostos para a resolução (iv), também a recorrente não tem razão.

Senão vejamos.

A resolução em benefício da massa insolvente, regulada nos artigos 120.º a 126.º do CIRE, consubstancia um mecanismo legal que se destina a prevenir os atos que prejudiquem a integridade da massa insolvente, sendo o ato resolutivo da competência do administrador da insolvência, que o pode levar a cabo extrajudicialmente - através de mera declaração unilateral recetícia (artigos 224.º, n.º 1, e 436.º, n.º 1, do CC), podendo tal resolução ser judicialmente impugnada pelas pessoas por ele afetadas, como nos autos - ou judicialmente, com recurso à ação declarativa que visa obter aquela declaração de resolução.
Em qualquer dos casos, a resolução procura a reconstituição do património do devedor, destruindo-se os atos que lhe são prejudiciais, ainda que limitados ao período de dois anos anteriores à data de início do processo de insolvência, permitindo-se, desta forma, a recuperação dos bens que dele saíram.
É, pois, indiscutível que o direito de resolução é um direito potestativo de natureza extintiva, que implica que as partes regressem à situação em que se encontrariam se não tivessem celebrado o negócio, assim se operando a extinção do vínculo contratual, sendo que, quanto aos seus efeitos, em termos gerais, o artigo 433.º do CC equipara a resolução à nulidade ou anulabilidade do negócio jurídico, com eficácia retroativa, tal como resulta das disposições conjugadas dos artigos 434.º n.º 1 e 289.º n.º 1 do mesmo código.

No caso em apreço, o AI, para fundamentar a resolução levada a cabo, que considerou incondicional, convocou na carta de resolução - onde, como vimos, relatou os factos concretos subjacentes à operada resolução - o artigo 120.º, nºs. 1 a 4 e 5 do CIRE, e bem assim a alínea h) do n.º 1 do artigo 121.º do mesmo código.
Da leitura dos convocados preceitos ressalta desde logo que o n.º 3 do artigo 120.º tem a particularidade de considerar sempre prejudiciais os atos previstos pelo artigo 121.º, ainda que praticados ou omitidos fora dos prazos aí contemplados, estabelecendo assim presunção inilidível da prejudicialidade de tais atos.
Nos casos previstos no artigo 121.º, a resolução não está assim condicionada - e por isso não exige - a verificação ou concreta demonstração da prejudicialidade do ato nem da má fé da outra parte no negócio prejudicial celebrado pelo devedor, que o legislador presumiu iuris et de iure prejudicial à massa insolvente, prescindindo da prova - e da alegação - da prejudicialidade do ato e da má fé do terceiro.
No entendimento da sentença recorrida, estão reunidos os pressupostos para a aludida resolução, ainda que a integre, preferencialmente, em face dos factos alegados e dados por provados, na al. b) do art.º 121.º n.º 2 do CIRE, que assim regula ««São resolúveis em benefício da massa insolvente os atos seguidamente indicados, sem dependência de quaisquer outros requisitos: b) Atos celebrados pelo devedor a título gratuito dentro dos dois anos anteriores à data do início do processo de insolvência, incluindo o repúdio de herança ou legado, com exceção dos donativos conformes aos usos sociais (…)».
Em recurso, limita-se a recorrente a invocar o desconhecimento do processo e da situação de insolvência de JP, procurando, dessa forma, afastar uma atuação de má fé, defendendo ainda que não tem aplicação aos autos o consagrado no art.º 121.º n.º 1 al. h) do CIRE, e que não estão verificados os demais pressupostos gerais, pois que se limitou o insolvente a cumprir uma sentença, sendo inaplicável o regime da resolução incondicional invocado, tanto mais que o ato não é prejudicial à Ré Massa Insolvente, uma vez que não diminuiu, nem frustrou, a  satisfação dos credores da insolvência, sendo que o crédito da autora já existia antes da sentença, não tendo, portanto, resultado do ato cuja resolução se pretende.
Enfim. Mais uma vez a autora ignora a fundamentação da sentença que ataca, onde se consignou que o ato era resolúvel à luz do n.º 2 da al. b) do art.º 121.º do CIRE por estarmos perante um negócio gratuito, dado que não foi pago qualquer preço.
Foram esse os factos dados por provados e a recorrente não impugnou a matéria de facto, não fazendo assim sequer sentido as suas alegações de recurso. No corpo das alegações argumenta que o negócio ocorreu em 10/10/2011, data do contrato promessa de compra e venda, e que o imóvel em causa jamais vale €200.000,00 face à realidade do mercado imobiliário atual. Esquece-se a recorrente que nos autos foi dado por provado – o que não impugnou – que os imóveis em causa nos autos têm um valor não inferior a 200.000,00€, que a autora não pagou ao insolvente qualquer quantia monetária para a aquisição dos mesmos, e que pelo menos desde setembro de 2012, a autora tinha conhecimento que o insolvente se encontrava com dificuldades financeiras.
Por ser assim, foi consignado na sentença recorrida «No caso em apreço, temos que o devedor se apresentou a PER em 26/01/2015, sendo decretada a sua insolvência em 7 de Julho de 2015 – pontos 1 e 2 dos factos assentes - sendo a carta de resolução datada de 15.02.2016 e, como aceite pelas partes, dentro dos 6 meses seguintes ao conhecimento do ato. Por seu turno, o contrato promessa de compra e venda foi celebrado em 10.10.2011 – ponto 4. dos factos assentes - mas a compra e venda cuja resolução o Sr. Administrador de Insolvência promoveu resultou da procedência de uma ação de execução específica cuja sentença foi proferida no dia 14 de maio de 2014 e transitada em julgado em 23 de junho de 2014 – ponto 6 dos factos assentes -, pelo que o ato em apreço – transmissão da propriedade - ocorreu nos dois anos anteriores à apresentação e declaração de insolvência.
Analisando, as duas modalidades de resolução – incondicional e condicional - verifica-se, desde logo, que se mostra preenchida a alínea b) do art.º 121.º do CIRE, uma vez que o negócio, como resulta dos factos assentes, foi gratuito.
Com efeito, não obstante constar do contrato promessa o pagamento de 50.000,00 a título de sinal, a verdade é que se provou que não foi efetuado qualquer pagamento da A. ao insolvente por conta do mencionado contrato (ponto 8 dos factos assentes) – e tal sucedeu quer na sequência do contrato promessa, quer na sequência da sentença de execução específica. Ou seja, a A. não pagou qualquer quantia ao insolvente por conta do pagamento do preço (a título de sinal ou posteriormente), pelo que não podemos qualificar o negócio  jurídico como de compra e venda, em que se exige o pagamento do preço (cfr. o art.º 874.º do CC, segundo o qual o contrato de compra e venda “é o contrato pelo qual se transmite a propriedade de uma coisa, ou outro direito, mediante um preço”), ou seja, não estamos perante um negócio oneroso, mas sim um negócio gratuito, uma vez que a A. não pagou qualquer contrapartida pela aquisição dos imóveis.
Assim, tratando-se de um ato gratuito celebrado nos dois anos antes do início do processo de insolvência – como supra se referiu - impõe-se concluir que o mesmo é resolúvel incondicionalmente, nos termos da citada al. b) do art.º 121.º do CIRE.
Note-se que, mesmo que se entendesse que tinha sido pago qualquer parte do preço, ou até a sua totalidade, temos que a transmissão dos imóveis ocorreu pelo preço indicado – não pago, salienta-se – de € 100.000,00, sendo que o valor dos imóveis era não inferior a € 200.000,00 – pontos 4 e 7 dos factos assentes -, pelo que, mesmo a concluir-se pela onerosidade do negócio – que ocorreu no ano antes ao início do processo de insolvência, face à data da sentença de execução específica e considerando a data de apresentação a PER e o seu encerramento sem acordo prosseguindo para processo de insolvência (03.06.2015) – temos que perante tal desproporção de valores, as obrigações assumidas pelo insolvente sempre excederiam manifestamente as da A., uma vez que este se viu privado de imóveis no valor de mais de € 200.000,00 e a A. ficou proprietária dos mesmos pelo valor (que, repete-se, não foi pago) de € 100.000,00, ou seja, ficou manifestamente beneficiada, em mais de metade do valor dos imóveis, pelo que sempre teríamos por preenchida a alínea h) do n.º 1, do art.º 121.º do CIRE.
Conclui-se, assim, que a resolução do negócio em benefício da massa insolvente é incondicional, nos termos do art.º 121.º, n.º 1, al. b) (ou, pelo menos a h)), do CIRE, pelo que se mostra prejudicada a má fé da A., uma vez que na resolução incondicional não se exige a prova da mesma.
Em face do exposto, considera-se que a resolução do negócio jurídico efetuada pelo Sr. Administrador de Insolvência é válida e eficaz, cumprindo todos os pressupostos legais, pelo que improcede o peticionado nos autos».

Também aqui acolhemos o fundamentado. A gratuitidade que o ato envolve, em face da não comprovação de qualquer pagamento, com o claro prejuízo para os credores, factualidade que logo resultava da declaração de resolução operada pelo AI, integra, quanto a nós, independentemente do enquadramento jurídico dado pelo aludido administrador, a situação descrita na al. b-) do n.º 1 do artigo 121.º do CIRE, tornando assim lícita a sobredita resolução.
Não estando o juiz sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito, tal como resulta do art.º 5.º n.º 3 do CPC, apenas releva nesta matéria os factos concretos que o administrador de insolvência alega/invoca nessa resolução como fundamentadores desta. Ver, sobre esta esta questão, o acórdão do TRP, proferido no proc. 1564/08.6TBAMT-F.P1 e relatado por Pinto dos Santos, em 10/05/2011, disponível na dgsi, onde se consignou que «(…) II- O destinatário da declaração de resolução em beneficio da massa insolvente (bem como o tribunal) não está vinculado nem condicionado pelas razões de direito (ou pelos preceitos legais) invocadas pelo administrador de insolvência naquela declaração. III- Relevantes (até para efeito de eventual impugnação da resolução) são os factos concretos que o administrador de insolvência alega/invoca nessa resolução como fundamentadores desta. (…)».

Neste enquadramento, de “resolução incondicional” a prejudicialidade à massa insolvente é presumida juris et de jure (artigo 120º, nº. 3), não carecendo a resolução da demonstração da má fé do terceiro interveniente no ato objeto de resolução (artigo 120º, nº. 4).
Luís Carvalho Fernandes e João Labareda (no Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 3ª ed., 2015, Quid Juris, pág. 506), a propósito da convocada alínea b-) do n.º 1 do art.º 121.º do CIRE, dizem-nos que «A resolubilidade dos atos gratuitos prevista nesta alínea funda-se na sua prejudicialidade, inerente à sua categoria de liberalidade: diminuem o património de quem os pratica e, como tal, diminuem a satisfação dos credores».
Também no acórdão do STJ de 16/01/2024, no âmbito do proc. 1932/19.8T8PDL-N.L1.S1, relatado por Ricardo Costa, e disponível na dgsi, se consignou, em sede de fundamentação, que «A resolução incondicional do art.º 121.º do CIRE assenta num benefício ampliado para os interesses dos credores nessa reconstituição patrimonial: a má fé do terceiro não é requisito, nem é necessária a demonstração da prejudicialidade para a massa da celebração de tais negócios (v. o n.º 3 do art.º 120.º do CIRE)».

Por ser assim, e sem mais, preenchidos se encontram os requisitos exigidos para a resolução operada pelo AI, em nada beliscando a argumentação deduzida em recurso o enquadramento jurídico feito, em face da factualidade dada por provada, que, de resto, não foi, também ela, objeto de qualquer impugnação.
Impõe-se, pois, a confirmação do acerto da decisão recorrida.
*
V-/ Decisão:
Perante o exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação de Lisboa em julgar a presente apelação totalmente improcedente por não provada e, consequentemente, em confirmar a sentença recorrida.
Custas pela recorrente.
Registe e notifique.

Lisboa, 29/04/2025
Paula Cardoso
Elisabete Assunção
Nuno Teixeira