EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
RENDIMENTO INDISPONÍVEL
SUSTENTO MINIMAMENTE DIGNO DO DEVEDOR
Sumário

Elaborado pela Relatora nos termos do art.º 663º, n.º 7 do Código de Processo Civil (CPC).
1 - No âmbito do incidente de exoneração do passivo restante, e nos termos do art.º 239º, n.º 3, do CIRE, é fixado ao devedor, para vigorar durante o período de cessão, um rendimento que é indisponível, que fica excluído dos montantes a ceder à fidúcia.
2 - Esse rendimento deverá salvaguardar, face ao disposto no n.º 3, al. b), i), do mesmo normativo legal, “o sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar.”
3 - Determina o legislador que seja tido como valor de referência o salário mínimo nacional, atual retribuição mínima mensal garantida (RMMG).
4 - A fixação daquele rendimento é casuística e deverá ter em atenção as circunstâncias concretas dos insolventes.
5 - Os subsídios de férias e de Natal recebidos pelos insolventes deverão ser contabilizados no mencionado rendimento indisponível.
6 - Quando os rendimentos recebidos pelos insolventes são mensais, como é o caso, a base de cálculo do rendimento indisponível deverá ser mensal.
7 - Sendo a base de cálculo mensal, a cada mês deverá corresponder um duodécimo do resultado da soma dos 14 meses de RMMG, ou seja, RMMGx14:12.
8 - Tratando-se no caso de dois insolventes, cônjuges, deverá o cálculo ser feito da seguinte forma: RMMGx2x14:12.
9 - Esta fórmula assegura o respeito do princípio da dignidade da pessoa humana previsto no art.º 1º da Constituição da República Portuguesa e garante, igualmente, o cumprimento do pretendido pelo legislador quando se refere “ao sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar” e ao salário mínimo nacional, como referências quanto ao analisado rendimento indisponível.
10 - Deverão os insolventes entregar à fidúcia os montantes recebidos que excedam tais valores, tendo por base o cálculo referido.

Texto Integral

Acordam os Juízes da Secção de Comércio do Tribunal da Relação de Lisboa

1. Relatório
J… e M… apresentaram-se à insolvência, formulando pedido de exoneração do passivo restante, dizendo encontrar-se em situação de insolvência atual.
A insolvência dos requerentes foi declarada por sentença datada de 07.07.2023.
Foi dispensada a realização de assembleia de apreciação de relatório.
A Administradora nomeada nos autos juntou relatório, nos termos previstos no art.º 155º, do Código de Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE), no qual se pronunciou pelo prosseguimento do processo para liquidação, face à existência de bens, dizendo ainda, no mesmo que, tendo em conta os rendimentos dos insolventes, não se prevê a entrega de valores aos credores, ou, a existirem, serão de valor muito baixo, caso seja proferido o despacho inicial de exoneração do passivo restante, acrescentando que deve ser proferido o referido despacho.
Ao que consta dos autos nenhum dos credores se pronunciou.
Por decisão judicial proferida em 09.10.2023, foi deferido liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante apresentado pelos requerentes, determinando-se que o rendimento disponível que os devedores venham a auferir, no prazo de três anos a contar da data de encerramento do processo de insolvência, se considere cedido ao fiduciário com exclusão da quantia equivalente a dois salários mínimos nacionais.
Em 18.12.2024, veio a fiduciária nomeado nos autos apresentar relatório nos seguintes termos:
“Os insolventes prestaram esclarecimentos à Fiduciária, enviando os documentos para elaboração do Relatório.
Assim, foram apurados os seguintes valores:
2023/2024 J… O… Total Rend. Indisponível A entregar
Outubro 752,18 € 857,94 € 1 610,12 € 1 520,00 € 90,12 €
Novembro 520,64 € 539,86 € 1 060,50 € 1 520,00 € -459,50 €
Dezembro 1 041,28 € 1 079,72 € 2 121,00 € 1 520,00 € 601,00 €
Janeiro 520,64 € 539,86 € 1 060,50 € 1 640,00 € -579,50 €
Fevereiro 520,64 € 539,86 € 1 060,50 € 1 640,00 € -579,50 €
Março 520,64 € 539,86 € 1 060,50 € 1 640,00 € -579,50 €
Abril 520,64 € 539,86 € 1 060,50 € 1 640,00 € -579,50 €
Maio 520,64 € 539,86 € 1 060,50 € 1 640,00 € -579,50 €
Junho 520,64 € 539,86 € 1 060,50 € 1 640,00 € -579,50 €
Julho 1 041,28 € 1 079,72 € 2 121,00 € 1 640,00 € 481,00 €
Agosto 520,64 € 539,86 € 1 060,50 € 1 640,00 € -579,50 €
Setembro 520,64 € 539,86 € 1 060,50 € 1 640,00 € -579,50 €
Totais 7 520,50 € 7 876,12 € 15 396,62 € 19 320,00 € -3 923,38 €
Considerando que o valor anual de rendimentos é manifestamente inferior ao rendimento indisponível fixado, a fiduciária entende que não existem valores a ser cedidos.”
Em 16.01.2025, foi proferido despacho nos seguintes termos:
“Atendendo a que o rendimento disponível deve ser calculado mensalmente (porque é essa a cadência dos rendimentos auferidos pelos insolventes) e não anualmente, notifique os insolventes para, no prazo de 10 dias, procederem ao pagamento do rendimento disponível apurado nos meses de Outubro e Dezembro de 2023 e de Julho de 2024 ou apresentarem proposta de regularização que se contenha no período de cessão, com a advertência de que o incumprimento poderá acarretar a cessação antecipada do procedimento de exoneração do passivo restante.”
*
Inconformados com a decisão proferida, em 16.01.2025, apresentaram os recorrentes a presente apelação, pedindo que seja alterado o despacho referido, considerando a média dos doze meses e não havendo lugar a entrega do fiduciário do valor de 1.030,62 € (459,50 € + 90,12 € + 481,00 €).
Apresentam os recorrentes as seguintes conclusões:
1- O presente recurso vem interposto do despacho refª 441914969 que determinou que os insolventes /recorrente entregassem ao senhor fiduciário, valores apurados nos meses de Outubro e Dezembro de 2023 e de Julho de 2024, superiores ao valor do rendimento disponível e que seria de dois ordenados mínimos nacionais.
2- No despacho refª 429170952 em que foi decidido o rendimento disponível aos insolventes foi fixado «...valor equivalente a dois salários mínimos nacionais, consignando que o cálculo deste montante teve como pressuposto a ponderação do rendimento que atualmente auferem, das regras da experiência comum e do custo médio de vida da região, bem como critérios de equidade de que necessitam para a subsistência pessoal, com o mínimo de dignidade, atendendo às despesas que indicaram nos autos...».
-e
foi determinado «Entregar ao fiduciário, quando por si recebida, a parte dos seus rendimentos objeto de cessão».
3-A decisão é omissa quanto ao critério de fixação dos valores do rendimento disponível.
4- No período anual de (1º ano), entre Outubro de 2023 e Setembro de 2024, receberam um total de 15 396,62 € e conforme relatório o valor indisponível era de 19 320,00 €, obtiveram assim um rendimento anual inferior em 3923,38 € de que poderia dispor.
5- No mês de Outubro de 2023 recebeu um valor superior em 90,12 € ao valor de dois salários mínimos nacionais ( 1520 € ) que decorreu de um suplemento extraordinário de pensão; no mês de Dezembro de 2023 receberam um valor superior a dois ordenados mínimos nacionais em 601,00 € e em Julho de 2024 um valor superior em 481 € a mais dos que os dois ordenados mínimos nacionais e que decorreu do pagamento do subsidio de Natal e do subsidio de Férias.
6- Os insolventes receberam no período anual de 12 meses, um valor médio mensal 1283,05 €, valor inferior a dois ordenados mínimos nacionais.
7- Em 2023 o valor de dois ordenados mínimos nacionais foi de 1.520 € e em 2024
dois ordenados mínimos nacionais foram de 1.640 €.
8-A periodicidade mensal deverá reportar-se ao tempo pelo qual dever ser calculado o valor do rendimento indisponível e não necessariamente ao período em que é auferido o rendimento.”
*
Não foram apresentadas contra-alegações.
*
Em 06.03.2025, foi proferido despacho de admissão do recurso, de apelação, com subida imediata, em separado e com efeito meramente devolutivo.
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Foram colhidos os vistos.
Cumpre apreciar.

2. Objeto do recurso
Analisado o disposto nos artºs 608º, n.º 2, aplicável por via do art.º 663º, n.º 2, 635º, nºs 3 e 4, 639º, nºs 1 a 3 e 641º, n.º 2 al. b), todos do Código de Processo Civil (CPC), sem prejuízo das questões que o tribunal deve conhecer oficiosamente e daquelas cuja solução fique prejudicada pela solução a outras, este Tribunal apenas poderá conhecer das questões que constem das conclusões do recurso, que definem e delimitam o objeto do mesmo. Não está ainda o Tribunal obrigado, face ao disposto no art.º 5º, n.º 3 do citado diploma, a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes para sustentar essas conclusões, sendo o julgador livre na interpretação e aplicação do direito.

Considerando o acima referido é a seguinte a questão a decidir no presente recurso:
- qual a base de cálculo dos rendimentos indisponíveis dos insolventes.

3. Fundamentos.
Os constantes do Relatório que se dão por integralmente reproduzidos.

4. Apreciação do mérito do recurso
Em apreciação no presente recurso está o instituto da exoneração do passivo restante.
Dispõe o art.º 235º do CIRE, com a epígrafe “Princípio geral” que: “Se o devedor for uma pessoa singular pode ser-lhe concedida a exoneração dos créditos sobre a insolvência que não forem integralmente pagos no processo de insolvência ou nos três anos posteriores ao encerramento deste …”.
Tal como refere Maria do Rosário Epifânio: “A exoneração do passivo restante constitui uma novidade do nosso ordenamento jurídico, inspirada no direito alemão (…), determinada pela necessidade de conferir aos devedores pessoas singulares uma oportunidade de começar de novo (fresh start).[1]
Enuncia, por sua vez, Catarina Serra que: “A principal vantagem da exoneração é a libertação do devedor das dívidas que ficaram por pagar no processo de insolvência, permitindo-lhe encetar uma vida nova.”[2]
Está aqui em causa a proteção do devedor, a segunda oportunidade que o legislador entendeu conferir ao mesmo, mas não nos podemos também esquecer dos credores desse devedor, desde logo impondo-se que se tenha em consideração a finalidade do processo de insolvência prevista do art.º 1º do CIRE, de satisfação dos credores.
Diz Manuela Espadaneira Lopes, em Acórdão desta mesma Relação, de 13.07.2023 que: “Subjacente ao instituto da exoneração do passivo está a ideia de existência de um equilíbrio entre os interesses dos credores na satisfação dos seus créditos e o interesse do devedor, de perdão de dívidas, o que implica sacrifícios de ambas as partes”.[3]
Tendo estas considerações em mente, importa verificar o disposto no art.º 239º do CIRE, designadamente o seu n.º 3, em causa na apreciação da questão em concreto.
Refere o art.º 239º, n.º 3 do CIRE, no que ora nos interessa que: “Integram o rendimento disponível todos os rendimentos que advenham a qualquer título ao devedor, com exclusão:
(…)
b) Do que seja razoavelmente necessário para:
i) O sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar, não devendo exceder, salvo decisão fundamentada do juiz em contrário, três vezes o salário mínimo nacional;
ii) O exercício pelo devedor da sua actividade profissional;
iii) Outras despesas ressalvadas pelo juiz no despacho inicial ou em momento posterior, a requerimento do devedor.
Refere este artigo dois termos que consistem em conceitos indeterminados que importa que o julgador preencha: o conceito de “razoavelmente necessário” e “sustento minimamente digno do devedor”.
Vasta jurisprudência e doutrina se tem debruçado sobre esta matéria.
A título de exemplo citamos Alexandre de Soveral Martins: “Quanto ao limite mínimo do que seja razoavelmente necessário para aquele sustento, o art.º 239,3, b, i, pouca ajuda dá ao intérprete. Várias alternativas têm sido propostas, mas não parece aceitável que se estabeleçam distinções em relação que é minimamente digno atendendo aos padrões de vida seguidos pelo devedor e seu agregado familiar antes da declaração de insolvência. Não só porque isso violaria o princípio da igualdade, como também porque tais padrões poderão ter ajudado a atingir a situação de insolvência.”[4] 
Tem sido entendimento da jurisprudência[5], embora com algumas divergências[6], que o salário mínimo nacional é o limiar mínimo abaixo do qual não deve passar-se.
No que respeita ao teto máximo desde logo o legislador refere no citado art.º 239º, nº 3, b), i), do CIRE, o valor de três salários mínimos nacionais como referência.
Menciona por sua vez o art.º 239º, n.º 4, al. c), do CIRE que:
“Durante o período de cessão, o devedor fica ainda obrigado a:
(…)
c) Entregar imediatamente ao fiduciário, quando por si recebida, a parte dos seus rendimentos objeto de cessão.”
Feitas estas considerações, vejamos a situação em concreto.
Na espécie, foi excluído do rendimento disponível dos recorrentes o valor equivalente a dois salários mínimos nacionais, conforme decisão transitada em julgado proferida em 09.10.2023.
Tratou-se, no caso, de uma apreciação casuística da situação em concreto dos insolventes, tal como a lei permite.
Como se refere no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 28.01.2025:
“O apuramento do montante razoavelmente necessário ao sustento digno do devedor (art.º 239º, nº 3, b) i) do CIRE) é determinado pela valorização casuística das concretas e peculiares necessidades do devedor, actuando a cláusula do razoável e o princípio da proibição do excesso, a ideia de justa medida e de proporção.”[7]
A questão que se coloca, no âmbito deste recurso, é a base de cálculo do rendimento indisponível dos insolventes, desde logo se a mesma é mensal ou anual, sendo certo que, tal como resulta das próprias alegações dos recorrentes, estão em causa também valores recebidos, nomeadamente, a título de subsídios de férias e de Natal.
Como resulta das disposições legais supra citadas o legislador não tomou posição no CIRE sobre esta matéria. Assim sendo, cabe ao tribunal, desde logo no despacho inicial de exoneração do passivo restante, tomar posição.
Da análise do despacho inicial proferido nos autos não resulta, no entanto, que o tribunal, neste caso em concreto, tenha tomado posição nesse despacho.
Apenas no despacho ora objeto de recurso veio o tribunal decidir sobre a matéria, despacho que ora importa sindicar.
A propósito desta questão diz Catarina Serra o seguinte:
“Mas a fixação em concreto, do rendimento disponível envolve sempre uma ponderação casuística por parte do juiz e a verdade é que, apesar daquelas balizas, não há absoluta uniformidade de critérios, Discute-se, essencialmente, se a base do cálculo pode ser mensal ou anual e se, além da retribuição mensal, devem ser considerados, no rendimento indisponível, os subsídios de férias e de Natal”.[8]
Analisada a jurisprudência encontramos várias posições quanto a esta matéria da base de cálculo mensal ou anual dos rendimentos do insolvente.
Temos jurisprudência que entende que o cálculo em apreço deve ser feito mês a mês, integrando os valores correspondentes aos subsídios de férias e de Natal, sem que seja possível fazer compensações como pretendem os recorrentes.[9]
Outra Jurisprudência, referindo a mesma base de cálculo mensal admite, no entanto, que sejam feitas essas compensações[10].
Jurisprudência que aludindo a uma base de cálculo mensal, nada refere quanto aos subsídios de férias e de Natal.[11]
Jurisprudência que igualmente tendo por referência essa base de cálculo mensal, recorre a uma fórmula que engloba mensalmente os subsídios de férias e de Natal, considerando uma base de cálculo de rendimento mínimo mensal garantidox14:12.[12]
Por último, jurisprudência que considera uma base anual de cálculo, aqui tendo como pressupostos a existência de rendimentos irregulares, incertos e ocasionais.[13]
Em primeiro lugar, no que respeita à questão do englobamento de todos os valores recebidos pelos insolventes, designadamente no caso os valores recebidos pelos mesmos, como referem em sede de alegações, a título de “suplemento extraordinário” e de subsídio de férias e de Natal, temos de ter em atenção o disposto no art.º 239º, n.º 3, do CIRE: “Integram o rendimento disponível todos os rendimentos que advenham a qualquer título do devedor, com exclusão…”. Assim sendo os rendimentos a ter em consideração, no caso, são todos os rendimentos recebidos pelos devedores, no valor global de 15.396,62 €, como considerado pela fiduciária nomeada nos autos e pelo tribunal. Aliás os recorrentes não o põem em causa, apenas questionando a forma de cálculo dos valores recebidos, para efeitos do valor indisponível a atender.
Tendo isto em consideração importa tomar posição, tendo em atenção as várias posições jurisprudenciais referidas.
Em primeiro lugar cumpre concluir que, na espécie, estamos perante rendimentos certos mensais e não perante rendimentos irregulares, incertos ou ocasionais, o que nos leva desde logo ao entendimento de que o cálculo numa base mensal será o mais adequado ao caso.[14]
O argumento de que é anual a informação a prestar pelo fiduciário a cada credor e ao
juiz, nos termos do art.º 240, n.º 2, do CIRE e que a afetação dos rendimentos nos termos do art.º 241º, n.º 1, do mesmo diploma legal, é igualmente anual não colhe, uma vez que, tal como se assinala no Acórdão do Relação do Porto, de 30.04.2020, isto “não significa que o apuramento do rendimento disponível apenas se processe no final de cada ano apurando a média auferida nesse período temporal.
Se assim fosse, sendo cumprida a lei no que respeita a entrega dos rendimentos diretamente ao fiduciário, só no final de cada ano o devedor receberia o rendimento disponível, o que, convenhamos, o colocaria em sérias dificuldades financeiras.
De facto, aquilo que se processa no final de cada ano é a afetação dos montantes recebidos até então e não a liquidação do rendimento disponível nesse momento, liquidação que pelo contrário se foi processando, mensalmente, pelo menos, quando como sucede no caso, o devedor é trabalhador por conta de outrem, sendo os seus rendimentos percebidos mensalmente.
Assim, a regra da anualidade que decorre do nº 2, do artigo 240º e do nº 1, do artigo 241º, ambos os artigos do CIRE, dirige-se ao fiduciário, tendo em vista a prestação de informações aos credores e ao juiz e a afetação dos rendimentos que ao longo do ano foram sendo por ele recebidos.”[15]
Partindo deste pressuposto, recordemos a pedra de toque do legislador na matéria, as referências ao “ao sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar” e ao salário mínimo nacional, atualmente retribuição mínima mensal garantida (RMMG), sendo certo que o legislador não terá ignorado que aquela, ou, no caso, que as pensões em referência recebidas pelos recorrentes, são pagas 14 vezes ao ano.
Assim sendo, entendemos como correto que os referidos valores recebidos a título de subsídios de férias e de Natal devem ser contabilizados como fazendo parte daquele “sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar” de que fala o legislador, embora essa questão aqui, como referimos supra, não esteja posta em causa.
Não nos podemos esquecer que os artigos 263º e 264º do Código de Trabalho atribuem ao trabalhador por conta de outrem um direito a receber subsídios de férias e de Natal, prestações essas que assumem a natureza de retribuição.
Como se enuncia no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 19.03.2024:
“o legislador considera que o montante do salário mínimo (ou remuneração mensal mínima garantida) correspondendo à remuneração mínima de um trabalhador, há-de ser o minimamente necessário para a sua dignificação enquanto indivíduo, enquanto trabalhador, enquanto membro activo dessa comunidade. Todavia, essa ponderação tem por pressuposto que um tal valor é pago 14 vezes por ano. Ou seja, se tal argumento usa como referência o valor do salário mínimo, para o ter por suficiente, também tem de incluir o pressuposto de que o que é suficiente é o valor mensal pago por 14 vezes. E isso porquanto tal é a medida do salário mínimo, que um trabalhador há-de receber 14 vezes por ano”.[16]
Importa pois considerarmos como correta a fórmula referida de Rendimento Mínimo Mensal Garantidox14:12., sendo que esta fórmula assegura o respeito do princípio da dignidade da pessoa humana previsto no art.º 1º da Constituição da República Portuguesa e garante o cumprimento do pretendido pelo legislador quando se refere “ao sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar” e ao salário mínimo nacional, como referências quanto ao analisado rendimento.
Estão assim em causa, no caso, rendimentos mínimos mensais garantidos, no ano de 2023, no valor de 760,00 €[17] o que multiplicado por dois dá um valor de 1.520,00 € e o que utilizando a fórmula referida permite concluir que deverão ser cedidos os montantes que excedam, mensalmente, o valor de 1.773,00 € (1.520x14:12)x1.
No ano de 2024 já está em causa um valor de rendimento mínimo mensal garantido de 820,00 €[18], o que multiplicado por dois dá um valor de 1.640,00 € e o que utilizando a fórmula referida permite concluir que deverão ser cedidos os montantes que excedam mensalmente o valor de 1.913,00 € (1.640x14:12)x1.
No ano de 2025 já estará em causa um valor de rendimento mínimo mensal garantido de 870,00 €[19], o que multiplicado por dois dá um valor de 1.740,00 € e o que utilizando a fórmula referida permite concluir que deverão ser cedidos os montantes que excedam mensalmente o valor de 2.030,00 € (1.740x14:12)x1.
Assim o que excede tais montantes terá de ser entregue à fiduciária nomeada nos autos, devendo o tribunal ter em consideração as posteriores atualizações do rendimento mínimo mensal garantido.
No caso em concreto e quanto aos valores já apurados pela fiduciária nomeada nos autos, importa considerar que, com referência ao ano de 2023, cumpre ao insolventes entregar à fiduciária nomeada nos autos, com referência ao mês de dezembro de 2023, o valor de 348,00 € e com referência ao mês de dezembro de 2024, o valor de 208,00 €, num valor total de 556,00 €.
Concluímos, pois, que procede parcialmente o recurso interposto, devendo a decisão proferida pelo tribunal a quo ser alterada em conformidade com o decidido.
Assim sendo, importa concluir que assiste parcialmente razão aos recorrentes.
As custas deverão ser suportadas, em parte pelos recorrentes, na proporção de metade  das custas devidas, sem prejuízo do disposto no art.º 248º, n.º 1 do CIRE e do eventual benefício de apoio judiciário (artºs 663º, n.º 2, 607º, n.º 6, 527º, nºs 1 e 2, 529º e 533º todos do CPC).

5. Decisão
Pelo exposto, acordam os juízes desta Secção de Comércio em julgar parcialmente procedente o recurso e, em consequência, alterar a decisão proferida em 16.01.2025 pelo Tribunal a quo, a qual se substitui por outra que determina que o rendimento indisponível dos insolventes deve ser calculado da seguinte forma: rendimento mínimo mensal  garantidox2x14:12, devendo os mesmos entregar à fidúcia, com referência aos anos de 2023 e 2024 os valores em falta, com referência ao mês de dezembro de 2023, de 348,00 € e com referência ao mês de dezembro de 2024, de 208,00 €, num valor total de 556,00 € (quinhentos e cinquenta e seis euros).
Custas pelos recorrentes na proporção de metade das custas devidas, sem prejuízo do disposto no art.º 248º, n.º 1 do CIRE e do benefício de apoio judiciário.
Notifique

Lisboa, 29.04.2025
Elisabete Assunção
Nuno Teixeira
Paula Cardoso
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[1] Maria do Rosário Epifânio, Manual de Direito da Insolvência, 8ª edição, Almedina, pág. 400.
[2] Catarina Serra, Lições de Direito da Insolvência, Almedina, 3ª edição, pág. 773.
[3] Proc. n.º 18394/22.5T8LSB-C.L1.1., disponível em www.dgsi.pt.
[4] Alexandre de Soveral Martins, Um Curso de Direito da Insolvência, 4ª edição, Almedina, págs. 626 e 627.
[5] Cf. entre muitos outros Acórdão Tribunal da Relação de Coimbra de 06.07.2016, Proc. n.º 3347/15.8T8ACB-D.C1, Relator Falcão Magalhães, disponível em www.dgsi.pt.
[6] Cf. Ac. da Relação de Lisboa de 17.12.2014, Proc. n.º 3065/14.4TBSXL-D.L1-2, Relator Ezaguy Martins, disponível em www.dgsi.pt.
[7] Proc. n.º 2031/24.6T8STS-D.P1, Relator João Ramos Lopes, disponível em www.dgsi.pt.
[8] Cf. obra citada (nota 2), pág. 784.
[9] Cf., entre muitos outros: Acórdãos do Tribunal da Relação de Coimbra de 09.01.2024, Proc. n.º 2225/22.9T8ACB-D.C1, Relatora Maria João Areias, do Tribunal da Relação do Porto, de 26.06.2023, Proc. Proc. n.º 7467/17.6T8VNG.P1, Relator Mendes Coelho, do Supremo Tribunal de Justiça, de 09.03.2021, Proc. n.º 11855/16.7T8SNT.L1.S1, Relator José Rainho,  disponíveis em www.dgsi.pt.
[10] Cf. entre outros, Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 17.01.2019, Proc. n.º 44/16.0T8OLH.E1, Relatora Maria João Sousa e Faro, disponível em www.dgsi.pt.
[11] Cf., entre outros: Acórdãos do Tribunal da Relação de Évora de 20.02.2024, Proc. n.º 111/22.1/8VVC-B.E1, Relatora Cristina Dá Mesquita, da mesma Relação, de 04.12.2014, Proc. n.º 1956/11.3TBSTR-I.E1, Relatora Cristina Cerdeira, disponíveis em www.dgsi.pt.
[12] Cf., entre outros, em Jurisprudência que já se afigura relevante, Acórdãos: do Tribunal da Relação do Porto, de 28.01.2025, Proc. n.º 20231/24.6T8STS-D.P1, Relator João Ramos Lopes, do Tribunal da Relação do Porto, de 09.04.2024, Proc. n.º 2447/23.5T8STS.P1, Relator Artur Dionísio Oliveira, do Tribunal da Relação de Lisboa de 05.03.2024, Proc. n.º 386/23.9T8VPV-C.L1-1, Relatora Renata Linhares de Castro, do Tribunal da Relação de Lisboa, de 02.05.2023, Proc. n.º 2525/21.5T8BRR.L1-1, Relatora Isabel Fonseca,  todos disponíveis em www.dgsi.pt. Esta posição é igualmente defendida por Catarina Serra, na obra citada (nota 2), pág. 784.
[13] Acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa, de 22.09.2020, Proc. n.º 6074/13.7TBVFX.L1-1, Relatora Amélia Rebelo, do Tribunal da Relação do Porto, de 23.01.2023, Proc. n.º 4060/20.0T8AVR-B.P1, Relator Joaquim Moura, disponíveis em www.dgsi.pt.
[14] Catarina Serra refere a propósito que: “A base mensal é, sem dúvida, mais adequada às situações em que o devedor aufere rendimentos certos e mais controversa no caso contrário, já que não permite ao devedor fazer compensações.”, obra citada (nota 2), pág. 784.
[15] Proc. n.º 2441/16.2T8AVR-D.P1, Relator Carlos Gil, disponível em www.dgsi.pt.
[16] Proc. n.º 1336/23.8T8AMT-C.P1, Relator Rui Moreira, disponível em www.dgsi.pt.
[17] Decreto-Lei 85-A/2022, publicado no Diário da República, 1ª Série, nº 245, de 22 de dezembro.
[18] Decreto-Lei 107/2023, publicado no Diário da República, 1ª Série, nº 223, de 17 de novembro.
[19] Decreto-Lei 112/2024, publicado no Diário da República, 1ª Série, nº 246, de 19 de dezembro.